Resenhas
A COMUNIDADE TABOM DE GANA ENTRA DEFINITIVAMENTE EM CENA. Brazilian-African Diaspora in Ghana: The Tabom, Slavery, Dissonance of Memory, Identity, and Locating Home. East Lansing: Michigan State University Press, 2016. 364p
A COMUNIDADE TABOM DE GANA ENTRA DEFINITIVAMENTE EM CENA. Brazilian-African Diaspora in Ghana: The Tabom, Slavery, Dissonance of Memory, Identity, and Locating Home. East Lansing: Michigan State University Press, 2016. 364p
Afro-Ásia, núm. 54, 2016
Universidade Federal da Bahia
Pierre Verger, na sua obra mais alentada, Fluxo e refluxo, que se tornou referência incontornável na historiografia africanista, referenciou praticamente toda a bibliografia produzida até então (1968) sobre o retorno de africanos libertos à África — o que ele denominou como refluxo do tráfico transatlântico —, rumo, principalmente, ao Benim, Togo, Nigéria, Gana e Angola. Com exceção da tese de Michael Turner (1975), riquíssima - no na região do golfo do Benim, da obra seminal de Manuela Carneiro da Cunha (1985) e da apresentação do lado cubano da história por Sarracino (1988), somente a partir da década de 1990 o assunto começou a despertar maior interesse.[1] Assim, pesquisas aprofundadas foram desde então desenvolvidas, dentre outros, por Alberto da Costa e Silva, Alcione Marco A. Schaumloeffel, Milton Guran, Monica Lima, Robin Law e Lisa E. Castillo.[2]
O livro aqui resenhado é tributário dessa produção historiográfica e antropológica, retrabalhada a partir de ampla pesquisa desenvolvida por A longa lista de agradecimentos do livro traça o percurso da pesquisa de campo levada a efeito pelo autor, que - volvidas com os temas correlatos ao seu objeto de estudo e testemunha o diálogo com praticamente todos os pesquisadores que, de alguma forma, atuam neste campo.
Publicada em 2016, a obra está editorialmente inserida na prestigiosa Ruth Simms Hamilton African Diaspora Series — assim denominada em homenagem a uma pioneira nos estudos da diáspora africana nos EUA —, da Michigan State University Press, que tem como objetivo publicar trabalhos sobre as experi- ências passadas ou contemporâneas dos povos africanos através do mundo. Aliás, Brazilian-African Diaspora in Ghana está ali perfeitamente à vontade, já que a série busca, justamente, dar visibilidade à experiência global dos afrodescendentes e, desta forma, contemplar suas semelhanças e diferenças e a continuidade e transformação dos seus contextos sociocultural, histórico, político e econômico. No caso dos Tabom, o autor trabalha com três estágios da migração forçada: migração involuntária para o Brasil, migração de retorno à África e visita dos seus descendentes ao Brasil.
Apoiado em sólida pesquisa de arquivo e de campo que lhe permitiu agregar evidências etnográficas à - ra obra de fôlego verdadeiramente acadêmica sobre o povo Tabom de Gana. Até hoje, os estudos em Gana têm privilegiado, sobretudo, o caso dos africanos expatriados provenientes da América do Norte e da Jamaica. Na introdução do livro, Essien informa que pesquisou arquivos em Gana, Brasil, Nigéria, Inglaterra e Itália, tendo consultado registros coloniais e missionários, cartas, documentos de abolicionistas, correspondência consular brasileira, relatórios diplomáticos e parlamentares britânicos (sobre abo lição e navios negreiros), estatísticas de viagem, jornais e documentos administrativos, incluindo passaportes e registros policiais. Também efetuou, a partir de 2005, cerca de cinquenta entrevistas em Gana, Londres e junto aos afro-cubanos na Nigéria, o que agrega ao trabalho uma perspectiva bastante atual do fenômeno. Com isso, pôde cotejar e complementar documentos escritos com outros da história oral, por onde chegou às histórias de vida de africanos libertos e seus descendentes e do próprio povo Tabom. Em outras palavras, sua metodologia inclui uma prática interdisciplinar que integra literatura, antropologia, estudos turísticos e sobre herança patrimonial, com ênfase na importância da cultura material, para uma análise mais acurada do fenômeno. os Tabom se articularam social, cultural, política e economicamente para se fazerem aceitos na sociedade local, expondo como eles escaparam da escravidão no Brasil para, algumas décadas depois, se tornarem vítimas da opressão colonial. Para tanto, vale-se de uma genealogia or- - respondem ao contexto histórico de Gana, a saber: a primeira geração de 1820 a 1900, no período considera- 1957, correspondendo ao período nossos dias, no período dito pós-colonial. A partir daí, o autor adota, no uma abordagem não-linear que articula passado, presente e possiblidades futuras desse refluxo migratório dos Tabom para a África e, quem sabe, um novo retorno ao Brasil.
A obra apresenta com riqueza de detalhes o papel que esses africanos libertos no Brasil desempenharam no seu retorno como agentes de transformação social e a qualidade da vida social, política, religiosa e econômica. Neste último campo, destacam-se a alfaiataria — que se tornou um dos principais marcadores de identidade dos Tabom —, a prospecção de água e as técnicas agrícolas, exatamente como aconteceu na Nigéria, Togo e Benim.
Segundo Essien, a obra
situa o papel da memória histórica - tre os afro-brasileiros da Diáspora, além de contribuir na elaboração contínua do discurso sobre a Diáspora e o Atlântico. (p. xix)
Para ele, a memória histórica associa-se aos processos sociais compartilhados por diferentes tipos de narrativas: acadêmicas, artísticas, partidárias etc. Na sua opinião — e isso, naturalmente, é matéria complexa e controversa —, não se trata, precipuamente, de história, uma vez que a memória pode envolver processos e sujeitos sociais que não teriam sequer existido.
Vale destacar o uso que o autor faz das notas, realmente exaustivas nas referências, servindo-se desse que esclarecem e expandem o enferem. Brazilian-African Diaspora in Ghana trabalha com uma bibliografia bastante ampla e pertinente - cluindo aí, eventualmente, autores traduzidos de expressão francesa e até de língua portuguesa. No entanto, embora tenha efetuado pesquisas no Arquivo Público da Bahia, o autor perde muito ao deixar de lado a copiosa produção historiográfica sobre o tema nas línguas portuguesa e francesa. A única exceção diretamente utilizada por ele é o artigo seminal e, portanto, incontornável, de Alcione Amos e Ebenezer Ayesu na Afro-Ásia, n. 33 (2005).
O livro, com 364 páginas, é organizado em três partes, que compreendem ao todo dez capítulos, além da conclusão. A Parte 1 – intitulada “Do Brasil para Gana: incomparável fortaleza e o sentimento de sentir-se em casa” – encerra cinco capítulos. Trata das origens dos primeiros retornados para Gana e esboça as pri- - mente para Gana, ou para a Nigéria e depois para Gana. Sua narrativa é marcada pela coragem e perseverança demonstrada pelos ex-escravos quando decidiram embarcar de volta à África. Destaca também os três principais fatores no Brasil que determinavam esse movimento migratório: alforria, revolta de 1835 na Bahia e abolição da escravatura em 1888 no Brasil.
O capítulo 1 – “Diáspora ao inverso: dissonância da memória, viagem de esperança e .—. de retorno” — aborda o papel da memória nas histórias do refluxo migratório. Enfoca histórias de africanos no Brasil e como eles preservaram suas matrizes culturais, como os retornados lembravam-se da África e como um conjunto de fatores históricos contribuiu para seu anseio pela terra natal. Aborda ainda o papel dos abolicionistas ingleses, que garantiram a segurança dos escravos alforriapolíticas e sociais em Lagos, que forçaram muitos retornados a buscarem abrigo em outras paragens.
Já o capítulo 2, intitulado “Historicizando a presença no Gã Mãj: desafios e silêncios”, trata das origens da diáspora afro-brasileira em Gana e das várias ondas migratórias a partir de 1820. Narra a chegada Lagos a se fixarem em Acra, Gana, e quem eram essas pessoas. Explica, ademais, por que o poder local ofereceu hospitalidade e terra para os recém-chegados e como estes dialogavam com as complexidades da cultura local nesse processo de instalação.
Com o título de “A história social do Gã Mãj: colonialismo e seu impacto na diáspora afro-brasileira”, o capítulo 3 coloca a migra- ção de ex-escravos do Brasil e da Nigéria para Gana na perspectiva histórica e social de Acra. Também destaca a contradição da política britânica que, ao mesmo tempo em que apoiava a abolição da escravatura no Brasil, submetia os retornados aos rigores da exploração colonial. Enfatiza ao mesmo tempo o fato de que a história social Gã influenciou a construção da identidade Tabom antes e durante o domínio colonial britânico, uma complementando a outra.
Apoiado na história de vida de Ferku — um africano liberto no Brasil que se instalou em Lagos antes de mudar-se para Gana e se casar com uma “brasileira” nascida em Acra —, o autor examina a questão da posse da terra em território Gã e sua ligação com a maneira própria com que os retornados estruturavam a noção de família e a relação com a sua descendência. Esse o conteúdo do capítulo 4, cujo título é “A evolução da questão do território em Gã Mãj e a diáspora afro-brasileira: paradoxo da liberdade e o surgimento de conflitos”.
Esta parte se completa com o capítulo “Fugindo da escravidão para o colonialismo e suas querelas: como os projetos coloniais e disputas internas ameaçaram o território brasileiro (as terras) e a liberdade”, que dá seguimento ao capítulo anterior, apresentando aspectos do período pré-colonial e da história colonial de Gana de 1880 aos anos 1950. Aqui o autor aborda o enfrentamento dos retornados com um colonialismo rigoroso. Mostra como a memória da escravidão e a revolta liderada pelo Chief Nelson contra o Compulsory Labor Ordenance, de 1897, forjaram a resistência contra a opressão colonial e em defesa de suas terras. Faz ainda um paralelo com disputas pela terra em nossos dias.
Na Parte 2, o autor aborda, em cinco capítulos, o grau de envolvimento dos libertos brasileiros com o comércio de escravos, tanto na costa quanto no interior no país. Por esse viés, ele trata das diversas facetas do retorno, abordando a transposição de reconfiguração da identidade.
No primeiro, cujo título é “(Re) criando a escravatura brasileira em um ambiente propício: o ‘fantasma’ da escravidão”, Essien levanta sociedade e à cultura e seu envolvimento com o comércio escravagista Faz um relato da história da escravatura em Acra que beneficiou os lí- deres Gã, Akwamu, Ashanti e Fante, além de missionários, funcionários coloniais e negociantes europeus, tanto na costa como no interior de Gana, mostra como os Tabom obtiveram vantagem com esse comércio e especula sobre até onde esse procedimento teve influência negativa na sua história.
O segundo capítulo — “Condos Tabom: impacto na história de dos brasileiros e seus descendentes no período pré-colonial, apresenta como eles introduziram habilidades e tecnologias no domínio da irriga- ção e da produção agrícola, dentre outros. Enfatiza, além disso, que alguns descendentes dos primeiros Tabom serviram nas tropas britânicas na 2a Guerra Mundial, e que outros serviram como embaixadores, professores ou líderes religiosos.
“Brasileiros juntos, brasileiros à parte: as árvores genealógicas e o processo de tornar-se um Gã”, último capítulo desta parte, trata da identidade e da transformação cul- - trando como nem toda família mantém e valoriza realmente seus laços com o Brasil. Concentra-se nas três mais importantes famílias dos Tabom, os Lutterodt, os Peregrinos e os Nelson.
A terceira e última parte do livro, que leva o título de “Diáspora em círculo perfeito: Gana é o lar, Brasil é a nação mãe”, é composta por dois capítulos, além da “Conclusão”. Aí o autor reflete sobre o “anseio” dos Tabom pelo Brasil, como isso é instrumentalizado pela memória histó- rica, e como os ex-escravizados e os Tabons lembram, esquecem, representam e negociam seus laços com Gana e com o Brasil em diferentes períodos e circunstâncias.
No capítulo 9 – intitulado “Diáspora desvanescente e memória longínqua: como o governo brasileiro e os Tabom estão preservando a Brazil House e o cruzamento do Atlântico em um círculo (completo) perfeito” –, o foco é a relação do grupo com o governo brasileiro através da embaixada em Acra. Apresenta a Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Gana, criada em 2005 por ocasião da visita do então presidente Lula, e destaca o papel da Brazil House no campo turístico e o envolvimento da embaixada brasileira em diversas querelas no seio da comunidade Tabom. Trata também do impacto de promessas do presidente Lula não realizadas na comunidade e da frustração de muitos de seus membros por não poderem visitar o Brasil, sobretudo em função de Gana ir participar da Copa do Mundo de 2014 no Brasil.
O capítulo seguinte, “Examinando de perto a promessa não realizados Tabom ao Brasil: uma situação sem esperanças?”, de número dez na ordenação do livro, aprofunda as precedente, com foco nas consequ- ências para a comunidade do não cumprimento de promessas do governo brasileiro no sentido de facilitar a viagem deles ao encontro de sua ancestralidade, ainda que mítica, no Brasil.
Observa-se, a título de conclusão, que uma obra ambiciosa como essa, que objetiva cobrir cerca de duzentos anos de história e problematizar um complexo processo de negociação da memória e de reconstrução contínua do passado no presente, corre sempre o risco de não conseguir atingir todas as metas propostas. Sobretudo, quando se aproxima de uma história do tempo presente, para discutir a relação que as comunidades africanas estabelecem com políticas de ação afirmativa defendidas por um projeto de governo estabelecido no Brasil nas primeiras décadas do século XXI, tema que em si mesmo já daria uma obra própria. Assim, é digna de nota a forma incompleta como, ao final do volume, o autor descreveu o processo de renovação da Brazil House e o papel que ela desempenha, ou poderia desempenhar, na construção permanente da identidade social dos Tabom.
Na verdade, tive a oportunidade de me envolver pessoalmente com neste processo, acompanhando de perto as iniciativas do ministro das - rim, ainda no primeiro governo de Lula. Primeiramente, Amorim tentou sensibilizar o ministro Gilberto Gil sobre o tema e, a seu pedido, eu produzi um relatório sobre a situação dos Tabom e a possibilidade de estabelecer um centro cultural brasileiro na propriedade da famí- lia Lutterodt, na Brazil Lane. Mais tarde a proposta foi retomada, com bastante afinco, pelo embaixador Luís Fernando de Andrade Serra, que negociou pessoalmente com a família proprietária do imóvel e com os Tabom a montagem de uma estrutura que atendesse aos anseios mais prementes da comunidade e se constituísse, ao mesmo tempo, em uma referência cultural brasileira na capital de Gana.
O autor, que se valeu dos instrumentos metodológicos da antropologia e da história oral para fazer - cou na discussão da problemática contemporânea: um estudo de caso exemplar sobre a situação social atual dos Tabom, com a vantagem de poder acessar os atores envolvidos. Assim, o tratamento dispensado à história recente destoa do conjunto da obra.
Entretanto, no geral, Brazilian-African Diáspora in Ghana cumpre com competência a missão de trazer o caso Tabom para o centro dos debates sobre o refluxo da diáspora africana, amplia a sua contribuição ao fazê-lo através da articulação com a trajetória de outras comunidades de retornados, como a dos agudás e dos afro-cubanos, e, também, apresenta documentação relevante de forma sistemática e bem fundamentada.
Notas