Resenhas
No meu dicionário,
roqueiro é aquilo
que fica lá em cima da
rocha
E fanqueiro é o cara
que vende tecido
de linho e algodão.
Pra mim sertanejo é
antes de tudo um forte
e axé é força e boa
sorte [...]
Fonte: Nei Lopes, Dicionário
Sou muito fã de Nei Lopes desde o tempo que Dondon jogava no Andaraí e nossa vida era mais simples de viver. Sobre seu parceiro neste Dicionário da História Social do Samba (mas não no samba “Dicionário”), Luiz Antônio Simas, tenho pouco a dizer — mas figurar ao lado do sambista na capa deste livro reforça o seu perfil de intelectual apaixonado pelo tema da “cultura popular carioca”. Sim, porque, do século XX ao XXI, Nei Lopes acumulou carreira invejável entre os especialistas no tema. Em primeiro lugar porque, ao contrário de todos os autores publicados nesta área (exceção feita a Candeia, talvez, cuja obra escrita é bastante limitada), ele tem o dom de compor sambas que seduzem antecipadamente os leitores de seus textos, desanimando possíveis críticas. Em segundo porque, como intelectual interessado nos temas da no Brasil, consolidou uma obra respeitável, de consulta obrigatória por todos os estudiosos do samba. O conjunto é formado por mais de uma dezena de livros, entre ficção e obras de referência ou análise cultural, o que é bastante raro entre seus pares nas rodas de samba do Salgueiro e outros bairros populares da zona norte carioca que, desobrigados de refletir sobre os significados de seu trabalho, investem todo o esforço e criatividade (não sem razão) nas rimas e nos compassos. Nei Lopes é, finalmente, presença obrigatória nos debates que cercam a questão da consciência negra e da militância contra o racismo. Por tudo isso, tornou-se quase uma entidade a ser reverenciada.
Não estando imune a isso, sinto-me pouco confortável para comentar, com o habitual rigor crítico das rodas universitárias, o livro que acaba de ser lançado — em meio às efemérides em torno do centená- rio da gravação do “Pelo telefone”, considerado por muitos o primeiro samba registrado comercialmente no país. Publicado em 2015, ganhador do Prêmio Jabuti em 2016, o aparecimento do livro é oportuno neste momento em que há um esforço de diversos especialistas para efetuar balanços, trazer novidades[1] A dupla de autores optou, entretanto, por um formato já muito utilizado no conHá entre elas um número bem avultado de dicionários e enciclopédias, compostos por verbetes curtos que não favorecem uma discussão mais aberta dos conceitos e do que eles implicam na análise do processo histórico de formação do samba.[2] Talvez para evitar um debate que, com boa dose de razão, pode lhes parecer enfadonho ou incômodo, os autores adotaram novamente aqui o formato das “obras de referência” — com a aparência neutra do saber universal e do domínio da informação. Mesmo assim, cabe lembrar que, na História Social, nem mesmo dicionários podem aspirar à neutralidade. É necessário, assim, trazer à luz do dia as ideias que norteiam os critérios de seleção de verbetes e seu conteúdo, a escolha do que seria ou não pertinente ao campo escolhido, relevante ou irrelevante, importante ou acessório. Elas não são evidentes por si mesmas, nem tão indiscutí- veis quanto a autoridade de Nei Lopes para falar do assunto.
Para isso, é preciso ler as entrelinhas para explicitar e discutir aquilo que está por trás dos verbetes deste dicionário, em sua maioria úteis e interessantes. Não que eu (ainda) goste de discutir ou questionar: ao contrário, como Cartola nos primeiros versos de sua carreira, na maturidade estou mais para “chega de demanda”. Mas é indispensável momento quando se trata de História, ou ficamos aprisionados a uma narrativa produzida pelos seus próprios protagonistas, sem qualquer inocência. Os profissionais da área consideram um costume saudável o de clarificar o mais possível, desde servem de esteio a análises e intero caso deste Dicionário. Entretanto, um trabalho que procura se definir dentro de uma área específica do conhecimento, a História Social, vê sociedade como uma arena de conflitos. Nela, o debate e o confronto constitutivos e ninguém estará livre deste escrutínio crítico. Caí no laço, portanto, e não há como contornar a presidiram à escolha e o conteúdo dos verbetes ou, em outras palavras, à versão que os autores defendem sobre a história social do samba.
A introdução do volume, embora bastante econômica, deixa perceber os traços insistentes de uma forma de ver a questão que vem sendo, nos últimos anos, afastada pela maioria dos especialistas acadêmicos. Já na abertura do livro, vem o endosso à ortodoxia cultural de José Ramos Tinhorão: só se poderia falar em samba quando os compositores teriam passado a cultivá-lo “conscientemente”, como portadores de algum um tipo de projeto. Por esta razão, já bastante discutível, os autores adotam uma datação comum a outros intérpretes: o final dos anos 1920, com o aparecimento da fórmula do Estácio para as escolas de samba, seria o marco para o nascimento do gênero enquanto música urbana. As Nova comandados por migrantes baianos e por cariocas como Sinhô, Pixinguinha ou Caninha nas décadas anteriores (que, aliás, conviveram e disputaram espaço no mercado cultural com Ismael Silva e seus companheiros ao longo das décadas de 1920, 30 e seguintes) são relegadas, indiretamente, à categoria de primórdios, origens, algo que mal se distinguia de formas ancestrais associadas à africanidade. A década de 1930, sob a batuta (melhor dizer o apito?) de Vargas, teria assistido à consolidação deste samba verdadeiro e original, uma vez reconhecido pelo próprio Estado como a principal expressão da música nacional.
Só esta forma de pensar pode explicar o caráter sumário das inverbetes robustos em torno do samba praticado no Rio de Janeiro em tempo anterior à existência das “escolas”. No quesito geográfico, não há referência para a Cidade Nova, lugar de fixação da primeira geração de sambistas – embora o Estácio de Sá mereça a honra, já que o bairro é concebido como o “berço do samba”, ao lado de outros locais como Madureira, o Morro do Borel, a Serrinha.[3] Tudo o que aconteceu antes disso está condensado em um verbete genérico (pp. 27-8), - tado da Bahia e a presença de uma “comunidade baiana” naquela região, mencionando os terreiros de candomblé ali existentes e pouco mais. O papel da religião como polo aglutinador de um forte movimento musical desde, pelo menos, o início do século XX não é reconhecido — e nem mesmo a relação disso com as famosas “tias” baianas, com seus trajes rituais do culto aos orixás, é mencionada em outro verbete sobre - vés de buscar os nexos na perspectiva da história social, enfatizam antes a fixação das alas de baianas nas escolas de samba atuais e os enredos carnavalescos mais recentes que aludem à Bahia ou às baianas. Entretanto, há muito o que explicar em relação a este período e ao próprio esforço de legitimação do gênero musical empreendido por estes grupos. Além de frequentar botequins, terreiros e rodas de partido-alto, eles atuaram para conferir ao samba e ao carnaval os traços da “respeitabilidade” que julgavam indispensáveis à aceitação e generalização do samba para além dos limites de seus próprios círculos: não à toa, deles vieram os primeiros registros fonográficos conhecidos da música urbana carioca, cujo centenário se comemora este ano.
Seja como for, e com quais protagonistas, tal processo de aceitação — abrindo caminho em meio ao preconceito e à intolerância como enfatizam os autores — não se daria sem conflitos. Para os autores, em uma expressão que soa um tanto estranha, a força do samba neste perí- odo “transcendia o racismo” (p. 12): simultaneamente, servia aos interesses políticos dominantes e oferecia um canal de reconhecimento para os seus criadores negros e marginalizados. Ao mesmo tempo, observam eles, quando o samba se tornava a música oficializada dos anos 1930, o país vivia um período em que a palavra cultura era associada a erudição (e não à forma popular dos setores excluídos). Por isso, a despeito de consagrado como oriundo da população negra, o samba era confrontado pelo racismo em um movimento pendular de culpabilização dos afrodescendentes pelo atraso que, afinal, também era “coisa nossa”, como diria Noel Rosa.
A dupla de autores incorpora ainda, na sua definição de samba, uma outra dimensão política: apoiando-se no literato Marques Rebelo, não vacilam em afirmar que “o samba urbano carioca nasceu como expressão dos anseios de uma classe” que “tomava consciência dos direitos adquiridos com a Revolução de 1930”, em um processo no qual, reafirmam os autores, sempre persistiram a tensão e a subestimação (pp. 12-3).
O jazz norte americano, segundo eles, teria nascido de um modo muito semelhante ao samba carioca (negro, popular, nacional, contestatório) mas, ao contrário deste, logo se tornaria “um modo universal de expressão musical” (p. 13). Para explicar a inferioridade do samba nos circuitos internacionais, valem-se de Darcy Ribeiro: na década de 1980, - cionais sobre os órgãos formadores de opinião pública e seu controle sobre as redes de comunicação de massa teriam gerado uma progressiva descaracterização de “nossa” cultura e a alienação crescente da consciência nacional. Descaracterizar o samba da sua forma original seria, para eles, como abdicar da identidade brasileira (pp. 12-3).[4]
Tudo isso teria levado à “recolonização do país” e à perda de espaço do samba como sua expressão mais autêntica. Finalmente, face a este processo violento, o samba surpreenderia ainda hoje, tanto no plano artístico como no social, por seu poder de resistência à permanente pressão derrogatória de que é objeto. A evidência desta força estaria em sua renovação constante e na aptidão de assimilar valores de outras origens, enfrentando nas últimas décadas a “música transnacionalizada” como o funk e o hip-hop que comunidades excluídas e carentes dos guetos e periferias” — aparentemente para desgosto dos sambistas de estirpe e de raiz (pp. 11-3).
Estão presentes nesta forma de argumentar todos os elementos de uma ideologia cristalizada na calda açucarada do nacionalismo e uma perspectiva que aprisiona a análise cultural a uma versão francamente antiquada do marxismo. Os termos utilizados não permitem engano: autenticidade, resistência, cultura nacional, classe e raça. Por vezes, povo ou popular aparecem como sinônimos dos dois últimos elementos, mas isso não muda muito o esquematismo teórico. Aí estão, ainda que aparentemente modernizadas em alguns momentos pelo emprego de palavras como “transnacional” ou “multicultural” que aparecem aqui e ali nos verbetes, as velhas ideias do samba como uma manifestação essencializada, racial e classista, de resistência política movida por vários níveis de “consciência” que perfazem sua identidade nacional -popular. Dir-se-ia que estamos de volta aos tempos de Dondon, como se, de alguma maneira, eles jamais tivessem se ausentado das conversas sobre o samba e seus significados. Muitos autores acadêmicos e não acadêmicos, entretanto, apostaram nesta construção, de modo que Nei Lopes e Luiz A. Simas não estão sozinhos neste engano que já dura muitas décadas na historiografia e musicografia brasileiras sobre o samba. Já é hora, portanto, de rever - mitir que novas possibilidades históricas ocupem seu lugar (e talvez deem espaço a outros verbetes em uma próxima edição deste dicionário tão útil aos estudiosos e interessados no tema).
Como diz o próprio Nei Lopes em outro trecho do samba que abriu este texto: “É preciso cuidado com o que a gente fala/ A boca mais sá- bia é aquela que cala/ E que pensa bastante antes da canção”. Tenho discutido em meus últimos trabaargumentando que: a) a associação entre samba e nacionalidade, ou “nacional”, foi uma longa e eficaz construção empreendida por intelectuais e agentes políticos, nem sempre com propósitos idênticos ao longo com diferentes perspectivas, intennesta construção também com sentidos que mudaram ao correr do teme “cultura negra” (seja lá qual for a definição que se adote para este termo) é um tanto forçada, em vista das o surgimento do gênero em meio às camadas subalternas da população da cidade do Rio de Janeiro e à inevitável convivência cotidiana entre trabalhadores negros, brancos, brasileiros e imigrantes, igualmente nunos lugares de trabalho e lazer — ou no xadrez das delegacias: a presença destes sujeitos entre os sambistas não seria, nesta perspectiva, uma exceção - nalmente, que o samba não pode ser visto como resultado de um processo unívoco: ele foi produto de uma disputa permanente entre diferentes comunidades negras e populares, com experiências, modos de vida e foi erigido como expressão nacional e fatia lucrativa no mercado cultural, o samba esteve longe de expressar univocidade, constituindo antes um campo de embate cultural entre diferentes sujeitos sociais no qual elementos de tensão social como a gênero, a política e assim por diante recebem diferentes leituras expressas em uma linguagem musical que se universalizou para exprimir as ten- - dade (e não apenas a visão de mundo dos oprimidos ou da nação).[5]
Nesta perspectiva, o samba deixa de ser entendido como uma simples forma de resistência contra a descaracterização imperialista da “nossa cultura” para constituir um lugar de embate entre seus próprios produtores, oriundos de diferentes lugares no tecido social. Foi assim também com a música norte-americana, que parece soar um tanto ameaçadora aos autores do dicionário, a propó- sito. Nela cabem Louis Amstrong, Billie Holliday, George Gershwin, Cole Porter, Nina Simone e Frank Sinatra e quem mais vier — e nem mesmo a gigantesca indústria do entretenimento norte-americana, que fez deles artistas que alcançaram e comoveram todo o mundo, pode jamais apagar suas diferenças sob o rótulo comum de um (único?) gê- nero musical. Se comunidades dos morros e subúrbios, se o movimento negro, a juventude dourada da zona sul carioca e outros sujeitos se apropriaram do samba em diferentes décadas e, com seus acordes, hastearam as próprias bandeiras, é preciso entender estes embates não como tentativas de apropriação indevida, descaracterização, sintoma de processos de subordinação e resistência. Como qualquer linguagem, o samba serve para exprimir diferentes pontos de vista sobre a sociedade e seus conflitos – sem perder, é bom que se diga, o frescor ou a autenticidade. É um espaço múltiplo e tenso de diálogo entre diferentes, um idioma comum que teve sempre sotaques diversos.[6]
Já posso ver os autores e muito mais gente torcendo o nariz. Por isso, devemos explorar este campo pisando devagar, miudinho, devagarinho — e pensando bem antes da canção como sugere o mestre Nei Lopes. Até porque nada do que Dicionário constitui propriamente um erro. Evidentemente o samba tem um elo inegável com a síncopa africana, como mostrou Carlos Sandroni sem deixar margem a dúvidas.[7] É claro que houve, na maior parte dos grupos de sambistas, uma prevalência de indivíduos descendentes de africanos escravizados e isso foi decisivo na configuração do gênero musical — mas talvez essa forma de entender sua história possa ser temperada pela constatação de que o racismo lhes fechou, mais que aos pobres em geral, as oportunidades de saltar para fora das favelas e bairros populares onde o samba nasceu e se firmou. Isso não confere automaticamente aos sambistas qualquer perspectiva de consciência, e muito menos de classe, no interior de um circuito cultural massificado. Tampouco torna possível lhes atribuir a exclusividade do gênero, cuja difusão fez com que tivessem acesso a ambientes sociais antes vedados a eles. Nos anos 30 já não era possível aceitar tal perfil restrito para estes músicos e compositores — ou teríamos que excluir de seu convívio nomes como Noel Rosa, Carmen Miranda e tantos outros artistas que marcaram época —, assim como negar o rótulo de samba às harmonias e à “batida” de João Gilberto.
Repetindo o refrão: sambistas são artistas, não porta-vozes políticos da nação ou dos oprimidos. Oriundos de lugares diversos da sociedade, eles exprimem diferentes experiências e modos de ver. Por isso, e não por outra razão, o samba constitui uma excelente fonte de estudo para historiadores: ele expressa - renças verticais (entre dominantes e dominados, por assim dizer), mas também as horizontais (entre setores diferentes de uma mesma classe, por exemplo). Permite flagrar as - mens e mulheres, negros e brancos, empregados, homens “de família” e pobres da cidade, entre as autoridades e os cidadãos — o que, convenhamos, é muito mais do que o olhar binário que os autores sugerem aos usuários do volume.[8]
Um passeio por alguns verbetes pode exemplificar estes limites — tanto quanto uma busca por aquilo que faz falta no volume. Não há, por exemplo, um dedicado ao teatro de revista — que serviu de base para a popularidade de músicos como Sinhô, Pixinguinha e muitos outros que se lançaram antes do sucesso dos sambistas malandros do Estácio.[9] Sinto falta igualmente — retornando às referências geográficas do samba na cidade — de um verbete “Zona entre os sambistas e a boemia carioca, racial e socialmente heterogênea das ruas de prostituição nos anos 1920. Algumas ausências chegam a espantar. A maior delas é a falta de uma entrada especifica para discutir “Racismo”, ausente na sistematização proposta pelos autores. Fica difícil entender por que tal questão, crucial para a própria perspectiva defendida por eles, é tratada de passagem em outros momentos ou traduzida obliquamente como “Desqualificação” no verbete que enfrenta mais diretamente o problema (pp. 97-8). Ela poderia ser retomada em “Consciência negra” (76-7), outra oportunidade perdida de deixar aflorar o tema: nesta passagem, os autores limitam-se a uma breve e genérica definição do termo, uma sumaríssima referência aos movimentos negros desde o final dos anos 1930 e, finalmente, a arrolar compositores que adotaram este tipo de temática em seu trabalho, como Candeia.
Cabe mencionar ainda dois verbetes, que deveriam ser o prato principal do volume, mas deixam bastante a desejar em termos de densidade analítica e mesmo em relação às inlugar, espanta a curta referência ao “Carnaval”, que merece uma entrada própria, mas resumida em oito linhas — complementadas aqui e ali por inoutros verbetes (pp. 54-5). O dedicado ao termo “Cordão”, por exemplo, diretamente alusivo ao universo carnavalesco, não chega a mencionar sua característica designada pela imprensa do início do século XX como “pancadaria”, devido ao uso forte da percussão e cuja semelhança com baterias de escolas mais recentes é evidente (pp. 78-9). O verbete “Samba”, por outro lado, não por acaso é o maior de todo o volume (pp. 247-55). Seu conteúdo, entretanto, decepciona o leitor mais exigente. Recorre-se longamente ao perigoso exercício da etimologia (à qual os autores parecem aficionados, como convém aos que apreciam dicionários e enciclopédias). Há uma rápida apreciação morfológica para diferenciar samba rural e outras modalidades do samba urbano carioca — apresentando uma visão evolutiva que faz com que este último derive de cucumbis e brasilidade, como a presença de negros fantasiados de índios” (p. 253). Creio que incorrem em erro aí, pois negros fantasiados de índios bem podiam derivar dos caboclos de terreiro — presentes em algumas formas de religiosidade como o candomblé e omolokô presentes na cidade do Rio de Janeiro —, mais que revelar alguma forma de “brasilidade”.
Apesar destes limites, o Dicionário tem pontos fortes e oferece - sadores do tema, tanto sob a forma fornecimento de instrumentos já desenvolvidos de investigação.[10] Esta contribuição começa pelo peso do verbete “Política”, em que as relacom suas lideranças e os agentes públicos são exploradas (pp.222- 4). Certamente este é um tema estratégico para compreender certos mecanismos da política carioca, especificamente, e também, em certa medida, em outras partes do país. Escolas de samba, com seus fortes vínculos comunitários, adquiriram um grande peso eleitoral disputado por diferentes correntes, aspecto que tem sido pouco desenvolvido pelos pesquisadores da área. O conteúdo - portantes para quem se proponha a mergulhar na tarefa de compreender perigosas que datam, pelo menos, dos anos 1920.[11] Desconfio que este caminho será precioso para entender boa parte do que veio depois na história da cidade e do país, ao sedimentar numerosos mecanismos que fizeram florescer o populismo nas décadas seguintes. Nei Lopes e Luiz Antônio Simas oferecem perspectivas mais recentes, mas não menos importantes, para explorar estas possibilidades analíticas.
Há ainda verbetes corajosos. O termo “Violência”, por exemplo, aborda um tema delicado e difícil de tratar, mas relevante ou talvez até mesmo decisivo para entender o samba em nossos dias e sobre o qual é necessário falar: a criminalidade e a força que ela adquiriu nas comunidades que abrigam as escolas de samba (pp. 297-300). O tema está diretamente ligado à compreensão da força comunitária e política das a política institucional e com o poder paralelo da criminalidade organizada, que invadiu inclusive estes canais de comunicação oficiais. A força das escolas de samba no Rio de Janeiro, produzindo identidades, sentimentos de pertença e de comunidade nas favelas e periferias, é um tema subjacente a boa parte dos verDicionário. Este é, aliás, o ponto alto da intertrazidas pelo volume — uma espé- cie de visão organizadora que está por trás de boa parte de seus conteúdos. Se isso não chega a configurar uma história social do samba, é porque Nei Lopes e seu parceiro — que têm domínio incontestável sobre as - volvem seu trabalho de sistemati zação — parecem considerar como sua tarefa primordial defender, de autenticidade e resistência, uma experiência que foi e é ainda vital - dades esquecidas e vilipendiadas da cidade que se diz maravilhosa. Tal dimensão, que havia sido percebida por Candeia, tem ainda um significado político e social que faz com ela possa se manter viva e fazer sentido para tanta gente.[12] Isso diferencia a perspectiva de Nei Lopes e Luiz Antônio Simas (ou de Candeia) do simples nacionalismo teimoso e antiquado de outros autores. Nei Lopes não é propriamente um historiador, mas um artista com boa formação intelectual, sensibilidade política e muita habilidade, tanto na hora de versejar quanto na de organizar o seu saber, resultado de décadas de convívio com o mundo que descreve e torna mais inteligível para os leigos. Assim, nada melhor para fechar estes comentários que os versos que encerram o mesmo samba que abriu este texto:
Artista, em meu ponto de vista, é quem cria e conquista E que sabe que, mesmo em capa de revista, Artista é artista e mané é mané.
Notas