Resenhas
O título do livro da escritora Cidinha da Silva, #Parem de nos matar, se refere à bandeira de luta do movimento “Reaja ou será morto, reaja ou será morta!”. A menção ao movimento sugere que a autora quer reiterar as denúncias das mortes cotidianas de jovens negros(as), um dos principais temas nos atos organiza- - flexão e deveria levar seus leitores a agir com diligência sobre esse fenô- meno, para que as mortes de jovens e outros indivíduos da população afro-brasileira não se transformem em meros dados estatísticos, não se banalizem, enfim.
As crônicas relatam, na sua - ciadas pela população negra brasileira. Se pudéssemos tipificar as várias formas desse morrer, as classificaríamos como mortes simbólica, institucional e física.
A morte simbólica seria aquela com o potencial de impedir a fruição das estratégias de ocupação de espa- ços historicamente fechados a negras e negros. A elas e eles se coloca uma barreira ao “habitus pleno”, ou seja, mesmo que tenham adquirido o habitus econômico, lhes faltariam, a priori, o capital simbólico (a pele branca) para o seu reconhecimento social. Requer, aqui, ressaltar o simbólico enquanto moeda subliminar poderosa e um demarcador de condição e posição dos grupos sociais. mo marca o sujeito e demarca seus limites à mobilização de estratégias, de dispositivos para transitar socialmente. A cor da pele é um capital negativo nos diversos percursos de vida que singularizam os afro-brasileiros. Nenhum outro capital simbólico — a exemplo da educação — será moeda de reconhecimento suficiente para os que carregam em seus corpos a epiderme negra.
A morte simbólica é apresentada na crônica “MR. Brau e Michelle, o casal odara”, que faz alusão a uma série televisiva protagonizada pelo casal de atores Lázaro Ramos e Taís Araújo. Apesar do sucesso desses atores, que são regularmente contratados para interpretarem varia dos papéis e daí poderem viver do exercício da profissão de ator, Taís Araújo, particularmente, como outras atrizes negras, não escapou da sanha do racismo virtual.
Lázaro e Taís fazem parte de um grupo seleto de negros e negras que deram certo numa zona permitida de atuação. O lugar de destaque destinado à população negra se limitaria precisamente ao de uma “cidadania lúdica”, expressão que tomo da timeline de um amigo e que aponta para o sentido e a performance corporal-estética enquanto própria dos negros e negras brasileiros(as), sejam atletas, cantores, atores, músicos e por aí vai. Este um lugar social cuja ocupação, apesar de contestada pelos racistas mais violentos, é geralmente aceito como apropriado ao negro e à negra.
Já a morte institucional é aquela praticada pelo racismo que emana dos aparatos de poder e saber, quando estes não garantem a mulheres e homens negros o acesso igualitário ao aparato político e aos serviços de saúde, à educação, ao emprego etc. Esse tipo de morte pode ser desencadeado durante a execução das políticas públicas e institucionais que, pelo contrário, acabam por acentuar a distribuição desigual da produção de riquezas entre os grupos sociais. O racismo institucional é sistêmico e direciona a vida de negras e negros às zonas de vulnerabilidade e exclusão.
A morte física, por sua vez, dispensa esclarecimentos. Ela se encontra estampada nos noticiários de todo dia, em geral relegada à página policial. Somos solapados pela banalização do fenômeno, muitas vezes em tom jocoso. A naturalização da morte negra é, em geral, acompanhada de discursos a respeito do “elemento suspeito”, sendo a cor negra da pele entendida como padrão do criminoso. Assim, a morte de meus iguais não causa comoção — nos tornamos corpos e mentes descartáveis, porque objetificados e abjetos.
Cidinha da Silva atribui justamente ao racismo, em suas variáveis simbólica, midiática e institucional, suas equivalentes mortes, mas também as mortes físicas, da população negra brasileira. Ela relata fatos cotidianos, reais, em que negros e negras são discriminados, tendo muitas vezes cerceada sua liberdade de expressão e limitado até o direito básico de ir e vir pelo medo de topar com policiais, seguranças ou grupos organizados de linchadores.
A autora nos fala do corpo. O corpo que é fruto de uma dialética baseada em uma história que se manifesta e se incorpora nas trajetórias singulares de sujeitos e grupos enredados socialmente. E ela adverte: é perigoso possuir um corpo negro.
A memória dos negros mortos nas mãos da polícia, braço armado do Estado, está sedimentada na dor, deixando cicatrizes em excesso, que os afro-brasileiros diretamente atingidos transformam em letras de música, poesia, textos dramatúrgicos, filmes e bandeiras políticas, ou em livros, como este aqui resenha do. Pavimenta-se, assim, ao mesmo tempo, uma memória de lamento e luta, e também um espaço onde as lágrimas que nunca secam — pois o abate dos jovens negros é diário — dão lugar a revoltas e (in)certezas frente ao extermínio da nossa juventude.
As crônicas de Cidinha giram ao redor de uma série de episódios de racismo estampados cotidianamente na mídia — televisão, jornais, redes sociais —, uma mídia que, por sua vez, concorre, pela pena e voz de racistas bem ou mal informados, para naturalizar negros e negras como sujeitos inferiores e marginais.
Temas como direitos humanos, violência doméstica, feminicídio, linchamentos, chacinas, racismo territorial e institucional, carnaval baiano, mulher negra, memória, dor, indústria cultural, entre outros, comparecem nos textos da autora.
O protagonismo da mulher negra é tratado de uma perspectiva enriquecida pela experiência pessoal e brilho narrativo da escritora. O livro é uma afirmação da escrita negra e feminina, para o que chama atenção o prefácio de Sueli Carneiro, a quem o livro é dedicado, ao lado do “Reaja!”
A mulher negra é reiteradamente posta no centro das crônicas para revelar o descaso internacional frente suas agruras, a força representacional daquelas poucas bem-sucedidas, a resposta da Maria Julia Coutinho ao racismo virtual — sendo estas algumas das faces femininas que marcam a obra aqui resenhada.
Detalhando, às mulheres negras são dedicadas as seguintes crônicas: “Nigéria, 276 meninas sequestradas, 2000 mortos em Baga e o olhar do mundo fixado em um atentado na - - lho Crespo + marcha das mulheres - - gente, duas Micheles incomodam também fere e se locupleta da esracial: o caso Fernanda Lima e as - ckmann e Casé com as empregadas e o contexto sociocultural das do- “A capa do mundo é nossa”.
Essas crônicas firmam um diá- logo com estruturas cognitivas e de sentimentos consolidadas a respeito do lugar das mulheres negras na sociedade brasileira. Podemos ler em alguns trechos o desmonte didático feito pela autora do imaginário sobre mulheres negras enquanto seres lascivos, hipersexualizados, corpos sem mente.
Não são crônicas fáceis de se ler, pois, como é característico do próprio gênero, elas desnudam cenas dramáticas do nosso cotidiano, muitas delas recentes nos noticiá- todos os dias na vida de homens e mulheres que, assim como eu, sabem da necessidade de se manterem vigilantes para não serem ceifados simbólica e fisicamente pela violência geográfica, econômica, educacional, estética e cultural.
Identifico no livro a reunião de muitas camadas de dores e angústias das numerosas mães negras espalhadas pelo Brasil, que se fragilizam a cada membro esmagado de sua descendência. A sensação de impotência veiculada em algumas das crônicas se transforma rapidamente em resiliência, demonstrada em tantas outras crônicas, que trazem um sopro de otimismo, esperança, bem como resistência. Esse sopro vem - zadas por bem-sucedidos intelectuais, artistas e atletas que, através - nais, colocam-se na linha de frente da luta contra os racistas, sejam eles brancos ou embranquecidos, além de muitos negros e dos não assumidamente negros.
As crônicas “O recado dos lin- “Política de confinamento X direisumária é legitimada como gol de placa no campeonato de extermínio motoristas de ônibus e a família ne em preto e branco, sem black face “Não existe bolha para proteger o “Racismo institucional em quatro atos” retratam vivamente o racismo que resulta do abuso de autoridade e da pressão psicológica.
A morte da juventude negra, denunciada como prática genocida, emerge como o tema mais marcante do livro. A autora consegue reunir os casos mais emblemáticos que vêm acontecendo no Brasil e, uma vez, nos Estados Unidos. Nesse ponto a polícia mata negros no Brasil e nos EUA”. Ela mostra como a população negra reage aqui e lá ao se sentir acuada e agredida pela força de corriqueiras, levam os negros, nesse âmbito, a desenvolverem uma espécie de pedagogia corporal, isto é, uma hexis corporal. Trata-se de um repertório de movimentos disparados diante da injunção policial (erguer os braços em uma abordagem policial, por exemplo), como medida de proteção diante de medos, ameaças, a montagem de cenas de crimes e insultos praticados pela polícia.
Obra do racismo estrutural na sociedade brasileira, muitos de nós, negros e negras, carregamos a desesperança alimentada pela vergonha do fracasso a nós imposto enquanto destino social. Assim, a crônica “Se eu aparecer morto, não foi suicídio” representa um retrato ou uma luz para não permitir que a memória descanse pelo descaso. Desse modo, - xão sobre a condição social de um jovem negro que, frente às inúmeras ciladas racistas, pudesse vir a extinguir a própria vida. É um exercício contra a pressão psicológica racista, um exercício para evitar a desesperança, de modo a que tenhamos, ou que aumentem, as possibilidades de criar algum projeto de vida.
Na obra são citados exemplos de morte tanto simbólica quanto física, mortes amiúde anunciadas, mas não cumpridas por força de estratégias desenvolvidas para despistá-las, tal como traçado, em tom autorreflexivo, no seguinte trecho:
minha chance de ser assassinado antes dos 19 anos era três vezes superior às possibilidades de um jovem branco. Sobrevivi e não vou me matar. Embora minha possibilidade de ingressar numa universidade (genérica, nem boa ou ruim) fosse três vezes inferior a um jovem branco, consegui. Sofro muito baculejo da polícia, mas ainda não lograram me fazer engrossar a população carcerária e, se um dia me jogarem naquele depósito de gente, fugirei dos números majoritários dos que têm baixa instrução. (p. 153). No meio da crônica há a sentença: a despeito da vida de fracassos que impuseram aos meus iguais consemantive minha alegria de viver. Não estou deprimido e não vou me matar.
Isso se chama resiliência, habilidade para se manter humano e estabelecer zonas de saúde mental para enfrentar o racismo.
Neste percurso, é mordaz a crítica da autora à violência racista reforçada pelo discurso da democracia racial, ideologia que descreve os diferentes grupos raciais na condição de brasileiros em pé de igualdade, todos pertencentes a uma só nação, acentuando tal identidade ao tempo em que oculta as hierarquias sociorraciais. A crença na existência de uma efetiva democracia racial leva à negação da identidade negra por uma parcela da população brasileira, particularmente negros e negras que ascenderam socialmente. Fomos todos e todas socializados pelo racismo e nos acostumamos com os afetos que acomodam alguns de nós pelo acesso a algumas benesses da casa-grande.
Cidinha da Silva nos apresenta o outro lado da história, que é o da luta e da diligência com que escritoras como ela narram o racismo, em caráter de denúncia, através da poesia, de romances, crônicas e contos. A história sempre tem dois lados, já alertou, em uma palestra, a escritora Chimamanda Adichie: “há que se ter cuidado com o sentido da história única”, pois, se não vigiarmos, estaremos aceitando os autos de resistência como justificativa das mortes de jovens negros e pobres periféricos pelo braço armado do Estado.
A última crônica do livro, “Liniker, uma artista em trânsito”, é a história de uma performance que mistura teatro e música em tom transgressor, ressaltando a condição do ser humano livre e criativo, que ultrapassa as barreiras do binarismo de gênero. Liniker é autor da frase “deixa eu bagunçar você”, parte da música Zero - sa frase, concluo que as crônicas de #Parem de nos matar nos desarrumam, nos tiram da inércia frente ao racismo, ao genocídio da população negra e nos colocam de pé na luta contra todas as formas de opressão correlatas.
O livro é material de informação e formação para compreender a realidade brasileira, especialmente para que as mortes ali relatadas estejam sempre presentes na memória da população negra — e que elas não nos calem, não mesmo!