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QUANDO O QUE SE DISCUTE É A REALIDADE: UM DEFEITO DE COR COMO PROVOCAÇÃO À HISTÓRIA*

Fabiana Carneiro da Silva
Universidade de São Paulo, Brasil

QUANDO O QUE SE DISCUTE É A REALIDADE: UM DEFEITO DE COR COMO PROVOCAÇÃO À HISTÓRIA*

Afro-Ásia, núm. 55, pp. 71-108, 2017

Universidade Federal da Bahia

Recepção: 10 Fevereiro 2016

Aprovação: 06 Março 2017

Resumo: O romance Um defeito de cor, publicado, em 2006, por Ana Maria Gonçalves, pode ser considerado um acontecimento no cenário da produção literária contemporânea brasileira. Além de se destacar por seu fôlego e pela matéria da qual se propõe a ser uma reelaboração, a saber, o nosso ainda traumático passado escravista, o livro tem um foco narrativo inédito em nossas letras: uma escrava ou, se consideramos a condição da narradora ao final de sua vida, quando dita o relato, uma liberta. A constituição desse texto literário se realiza como contraponto à, reconhecida e declarada, obliteração da história do povo negro no país. Nesse sentido, o romance estabelece intrínseca relação com a disciplina História e a ela faz uma provocação. O presente trabalho pretende compartilhar algo da investigação acerca do modo como são criadas correspondências entre a forma do romance e um discurso histórico. No mesmo contínuo, procuramos sinalizar os aspectos passíveis de ocupar o campo do literário e que compõem os esforços dos pesquisadores da história social empenhados em elaborar narrativas comprometidas com as perspectivas dos negros em relação aos séculos XVIII e XIX. Ancorados nessa trama complexa, delineamos um movimento presente no qual as oposições “ficção e realidade” e “ficção e história” voltam a interpelar da Crítica Literária uma revisitação e ressignificação de seus critérios.

Palavras chave: Um defeito de cor, Revolta dos Malês, Literatura e Crítica Literária, História Social.

Abstract: The novel Um defeito de cor, published in 2006 by Ana Maria Gonçalves, can be considered a milestone in the context of contemporary Brazilian literature. Beyond standing out for its verve and the matter of which it sets itself to be a reelaboration, namely our still traumatic past slavery, the book has a narrative focus that is unique in our literature: that of a slave or, if we consider the condition of the narrator at the end of her life, when she dictates her account, of a freed woman. The constitution of this literary text stands as a counterpoint to the, aknowledged and declared, obliteration of the history of black people in the country. In this sense, the novel establishes an intrinsic relationship with the discipline of History and it provokes it. This paper aims to share some of the investigation on how the relations are established between the form of the novel and a historical discourse. In the same continuum, we set out to signal which aspects are likely to occupy the literary field and that constitute the efforts of researchers of social history engaged in elaborating narratives that are commited to the perspectives of blacks in relation to our 18th and 19th centuries. Stemmed in this complex plot, we outline a current movement in which the oppositions “fiction and reality” and “fiction and history” once again challenge literary criticism to revisit and reinterpretate its criteria.

Keywords: Um defeito de cor, Revolt of the Malês, Literature and Literary Criticism, Social History.

A produção literária brasileira contemporânea, considerada como os títulos publicados a partir da década de 90 até os dias atuais, tem proporcionado novas experiências para os leitores e colocado questões significativas para a crítica que se incumbe de sua análise e interpretação. A dificuldade de realização dessa crítica se deve, entre outros fatores, à impossibilidade de se estabelecer uma unidade na produção, que, além de ser numerosa, configura-se a partir de uma grande variedade de estilos e temas. Na maioria dos casos, não há uma fortuna crítica que tenha assegurado o valor desses textos, e sua presença no panteão criado pela historiografia literária está ainda em discussão. Simultaneamente, muitos dos referenciais teóricos que subsidiavam as análises das produções literárias até poucas décadas atrás e ofereciam um parâmetro de leitura foram, no movimento dialético de contato com as obras recentes, postos em xeque. Nesse sentido, o trabalho com a literatura e a crítica contemporânea foi submetido a novos e árduos desafios, sobretudo para aqueles que estão dispostos a compreender o conjunto de produções contemporâneas em sua multiplicidade.

O romance Um defeito de cor,1 publicado, em 2006, por Ana Maria Gonçalves, pode ser considerado um acontecimento que parece exigir da crítica uma explicitação dos critérios de avaliação do objeto literário e a disponibilidade para o questionamento de alguns parâmetros estabelecidos. A obra surge de um terreno compartilhado por muitos outros agentes, já que o chão comum que fundamenta sua elaboração é também substrato dos vários agrupamentos literários que se constituem, sobretudo nas periferias das grandes cidades, e produzem escritores, livros, saraus; dos debates de caráter étnico-raciais nas esferas públicas e políticas; da ação dos educadores no confronto diário entre e para além dos muros das escolas; e — por que não reconhecer? — de parte da academia que, lentamente, modifica sua constituição e suas perspectivas. A tentativa de construção desse território outro, sabemos, vem de longe, de séculos de sangue vertido; em nossa história recente, ela deve, especialmente, às mobilizações dos movimentos negros e, uma vez mais, ao muito sangue, que ainda verte, da população negra brasileira.

Desse modo, no cenário de nossa produção literária contemporânea, além de se destacar por seu fôlego e pela matéria da qual se propõe a ser uma reelaboração, a saber, o nosso ainda traumático passado escravista, o livro tem um foco narrativo inédito em nossas letras: uma escrava ou, se consideramos a condição da narradora ao final de sua vida, quando dita o relato, uma liberta. Essa africana liberta é quem assume a primeira pessoa do discurso. A coadunação desses elementos, bem como de outros procedimentos estéticos utilizados pela autora, faz do romance uma notória obra que, apesar de (re-)apresentar o século XIX, surge de uma necessidade contemporânea e sobre a contemporaneidade perfaz, como veremos, um discurso significativo, ainda que marginal.

Um defeito de cor se realiza como contraponto à obliteração da história do povo negro no país. Nesse sentido, o romance estabelece intrínseca relação com a disciplina História e a ela faz uma provocação, na medida em que a organização da obra parece incorporar procedimentos presentes nas novas narrativas históricas e ter como princípio a criação ficcional de uma experiência que nossa História ainda não deu conta de registrar. Neste artigo, pretendo compartilhar a investigação acerca do modo como são criadas correspondências entre a forma do romance e certo discurso histórico. No mesmo contínuo, procurarei sinalizar os aspectos passíveis de ocupar o campo do literário e que compõem os esforços dos historiadores da “micro-história” empenhados em elaborar narrativas comprometidas com as perspectivas dos negros em relação ao período que compreende, sobretudo, os séculos XVIII e XIX. Ancorada nessa trama complexa, delinearei um movimento presente no qual as oposições “ficção e realidade” e “ficção e história” voltam a interpelar da Crítica Literária uma revisitação e ressignificação de seus critérios.

O romance constitui-se como uma longa carta na qual a narradora, Kehinde, uma africana liberta, conta a trajetória de sua vida ao filho desaparecido. Já velha e cega, ela dita o relato a Geninha (quem de fato escreve) durante uma travessia marítima em direção ao Brasil, na qual, uma vez mais, Kehinde empreende uma viagem na busca daquele que seria o destinatário do texto. Apesar de ter nascido livre, esse filho teria sido vendido como escravo pelo próprio pai e, portanto, quase nada acompanhou dos percalços e sucessos da experiência de sua mãe.2

Durante as muitas páginas do romance, quase 1.000, o leitor é conduzido pelos meandros da sociedade escravista brasileira. Propondo-se a reelaborar o seu périplo, Kehinde, ou Luísa (nome católico atribuído a ela no Brasil), relata sua vida desde o momento em que, ainda criança, no Daomé,3 perde a mãe e é capturada e trazida ao Brasil como escrava — a bordo de um navio negreiro, o chamado “tumbeiro” —, até a situação presente, na qual, tendo voltado a residir na África, em Lagos, tornou-se uma rica empresária e constituiu uma nova família. No entrever dos acontecimentos diretamente ligados à sua história particular, entramos em contato com uma reconstrução do universo cultural dos escravos da Bahia e com importantes fatos históricos, como a articulação, eclosão e repressão de um significativo episódio das revoltas nacionais, a Revolta dos Malês.

A particularidade do enredo e do foco narrativo da obra a situam num diálogo direto com os desdobramentos operados contemporaneamente no Brasil pela disciplina História. Podemos afirmar — como propõe o crítico Jaime Ginzburg — que a existência desse tipo de voz narrativa deve-se a um processo de “desrecalque histórico” na cultura nacional. Isto é, haveria, segundo ele, um processo de transformação da vida intelectual brasileira, o qual, na Literatura, resultaria na erupção de “vozes” de sujeitos tradicionalmente ignorados ou silenciados. Daí a presença de narradores “descentrados” em relação a vozes que, em correspondência com os valores patriarcais, assumiram lugares hegemônicos na história social, isto é, sobretudo vozes de “homens brancos, de classe média ou alta, adeptos de uma religião legitimada socialmente, heterossexuais, adultos e aptos a dar ordens e sustentar regras”.4

Nas últimas décadas, parece ter havido um movimento semelhante nos estudos produzidos desde a História. Até então, parte considerável das narrativas históricas do século XX esteve centrada na perspectiva dos “dominadores”, isto é, daqueles que estabeleciam, de algum modo, vínculos com instâncias de poder e puderam, assim, deixar os registros a partir dos quais os pesquisadores trabalhavam. Dessa forma, como explica a historiadora Beatriz Mamigonian, uma ampla camada de indivíduos e grupos sociais permaneceu anônima nos trabalhos historiográficos.5 A atenção para as “classes subalternas” passou a dar-se quando os historiadores admitiram a hipótese de que a agência desses sujeitos deveria ser apreendida e analisada. Na História, o processo que leva à nova proposta metodológica teve longo rastro e incluiu importantes proposições que foram debatidas e matizadas desde diversas perspectivas historiográficas.6 O trabalho de Carlo Ginzburg, no entanto, destaca-se como referência de revisão da “nova história” que abriu senda para as pesquisas posteriores a que Mamigonian se refere. Ao prefaciar a edição italiana de O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição, Ginzburg dá a ver a complexidade do desafio que, a partir de então, passa a ser enfrentado pelos historiadores: “A escassez de testemunhos sobre o comportamento e atitudes das classes subalternas do passado é com certeza o primeiro — mas não o único — obstáculo contra o qual as pesquisas históricas do gênero se chocam”.7

Sendo assim, tendo como objetivo “resgatar do esquecimento as experiências daqueles que não deixaram seus próprios registros nem ficaram marcados na memória coletiva”,8 as trajetórias individuais e de pequenos grupos transformaram-se em um campo significativo dos estudos historiográficos. Para lidar com o problema da escassez de fontes nas quais esses sujeitos figurem enquanto voz enunciativa, foi requerido do historiador “o preparo para a investigação nominativa em fontes fragmentadas”, e tornou-se comum a estratégia analítica de escolha de “um indivíduo por foco central [da] narrativa”, de modo que a trajetória do sujeito eleito seja relevante e possibilite aprofundar o desenvolvimento do tema central da pesquisa. Conforme explica Mamigonian, há de haver um diálogo produtivo entre a “realidade identificada no nível micro-histórico (o vivido) e os processos macro-históricos nos quais essas vivências estão inseridas”, o que exige uma perspicácia interpretativa do pesquisador, já que há uma diferença evidente entre o uso de histórias “individuais para apenas ilustrar contextos já conhecidos” e a prática de, a partir dos casos individuais ou da reconstrução de trajetórias coletivas, “reconstituir contextos novos, em variações do exercício de redução da escala de análise”.9 Grupos de pesquisadores brasileiros constituíram-se a partir da mobilização dessa proposta e passaram a ser vistos como referências nas pesquisas relacionadas com os esforços contemporâneos de compreender o “funcionamento das relações sociais, a reiteração de hierarquias sociais, a construção de identidades e as interações entre as sociedades” escravocratas dos séculos XVIII, XIX e início do século XX.10

De modo suplementar a esse gesto, o romance de Gonçalves configura-se como um objeto artístico que se propõe a transfigurar a questão da escravidão no Brasil, a qual permanece como uma espécie de “trauma” e, portanto, conforme explicitado pelos esforços dos historiadores, sem uma forma clara que constitua, objetivamente, tal experiência enquanto memória pública e acessível aos cidadãos do país. Sendo assim, a despeito de certas dificuldades do contexto de produção do romance, como a pouca interlocução dentro do universo do cânone literário brasileiro, a ousadia e a potencialidade do livro de Gonçalves parece ser assumir a literatura como espaço legítimo para que a história da escravidão, desde a perspectiva de uma mulher negra, seja contada e, mais do que isso, reelaborada.

A necessidade de trabalhos como esses, tanto de historiadores quanto de ficcionistas, está assentada numa exigência e urgência do presente. Além disso, as produções que derivam desse empenho também têm valor, na medida em que inserem o pensamento brasileiro no âmbito de discussões e reflexões comuns às localidades que passaram por processos de exploração de trabalho escravo de africanos, isto é, das nações que, em conjunto, constituem a região que foi batizada como “Atlântico Negro”. Contudo, é sabido que a elaboração do texto literário atende a pressupostos distintos das narrativas realizadas desde a História. Nos próximos segmentos deste artigo, procurarei elaborar uma discussão sobre tais pressupostos e analisar como Um defeito de cor propõe questionamentos que, apesar de terem consequências ainda indeterminadas, parecem resguardar algo de significativamente potente.

A questão da forma: primeira provocação

O livro tem como estrutura geral um prólogo, uma bibliografia final e dez capítulos, os quais são introduzidos com provérbios africanos e subdivididos por subtítulos que antecipam os acontecimentos de cada segmento. Cada uma dessas partes é essencial para a análise da obra, e a visão delas em conjunto permite a apreensão de sua complexidade. No prólogo, “Serendipidades”, assinado por uma instância que se coloca como autora do romance — nomeada como a própria Ana Maria Gonçalves —, somos informados de que estaríamos diante de uma obra que possui uma dimensão autobiográfica, já que, por meio de uma coincidência enigmática, a autora teria encontrado os escritos — cartas — da narradora do texto, isto é, de Kehinde e, a partir disso, se proposto a torná-los públicos.11 Sobre isso, ela afirma:

Se eu me apropriasse da história, provavelmente a autoria nunca seria contestada, pois ninguém até então sabia da existência dos manuscritos, nem em Itaparica nem alguns historiadores de Salvador para quem os mostrei [...]

Nunca é demais lembrar que [trechos das cartas de Kehinde] tinham desaparecido ou estavam ilegíveis várias folhas do original, e que nem sempre me foi possível entender tudo o que estava escrito. Optei por deixar algumas palavras ou expressões em iorubá, língua que acabou sendo falada por muitos escravos, mesmo não sendo a língua nativa deles. Nestes casos, coloquei a tradução ou a explicação no rodapé. O texto original também é bastante corrido, escrito por quem desejava acompanhar a velocidade do pensamento, sem pontuação e quebra de linhas ou parágrafos. Para facilitar a leitura, tomei a liberdade de pontuá-lo, dividi-lo em capítulos e, dentro de cada capítulo, em assuntos. Espero que Kehinde aprove o meu trabalho e que eu não tenha inventado nada fora de propósito. Acho que não, pois muitas vezes, durante a transcrição, e principalmente durante a escrita do que eu não consegui entender, eu a senti soprando palavras no meu ouvido. Coisas da Bahia, nas quais acredita quem quiser...12

A estratégia de assinalar a existência das cartas manuscritas como “origem do romance”, isto é, fontes documentais da história narrada, pode ser lida como uma forma de evocar a metodologia da “micro-história”. Mais do que isso, o “achado” de “Ana Maria Gonçalves” estaria na ordem do inédito, na medida em que, por uma série de motivos,13 no Brasil, não herdamos dos séculos passados registros, diários ou autobiografias produzidos pelos negros escravizados.14 Para o desenvolvimento de seus trabalhos, os historiadores a que nos referimos anteriormente apoiam-se em fontes variadas — como pronunciamentos em sessões parlamentares, certidões de batismo, cartas de alforria, inventários, processos criminais, ações de liberdade, livros de registros dos navios negreiros, das alfândegas ou das Casas de Correção da Corte, entre outras —, que, no entanto, possuem em comum o fato de se constituírem como documentos em que, normalmente, a voz do escravizado aparece mediada (ou apenas subtendida) pela intervenção de outrem. No ofício dos historiadores, as análises desses materiais exigem um procedimento de cunho “investigativo”, um tipo de leitura a contrapelo que se imbui de iluminar aspectos das práticas sociais até então obnubilados. A falta de uma informação ou a impossibilidade de manter o acompanhamento da trajetória de um dos indivíduos escolhidos (não raro nomeados como “personagem”) impele o historiador a dar um passo na direção da elaboração de hipóteses sobre o que poderia ter acontecido. Não há dúvida de que essas hipóteses são formuladas considerando-se as fontes e uma série de condicionantes que poderiam atuar sobre a vida do sujeito em questão, para além, inclusive, de sua agência. No entanto, esse procedimento também é caracterizado por uma notória prática criacional e imaginativa, que nem sempre é visibilizada.

Quando Um defeito de cor recupera o recurso literário clássico que afirma o encontro das fontes documentais a que ele deveria a existência, também se invoca, portanto, um lugar de enunciação que pertence à História.15 Logo, não é ingênua a menção aos historiadores feita no trecho supracitado. O prólogo desloca a oposição Literatura e História, resguardando alguma possibilidade de vantagem para a primeira, pois, além do acesso ao material e à manipulação de seu conteúdo, o conhecimento privilegiado da fonte possibilitaria à autora-personagem, se assim ela quisesse, uma apropriação indevida da história. Gera-se, desse modo, uma indeterminação em relação ao caráter ficcional da obra e, desde o início do romance, instaura-se uma tensão que o livro estabelece com a ideia de verdade e, num mesmo contínuo, como mencionamos, um diálogo com o campo do saber delimitado pela disciplina História.

No outro extremo, como desfecho do livro e estabelecendo contraste intrigante com esse prólogo, encontra-se a seção “Bibliografia”. De rara presença em romances, a listagem de títulos que, como o termo “Bibliografia” indica, serviram de base para a escrita de Um defeito de cor, não pode ser desconsiderada na análise integral da obra. Um conjunto de referências procedentes das mais diversas áreas, tais como Antropologia, Sociologia, Literatura e História, além da indicação de “fontes primárias” presentes em arquivos públicos, aparecem sob a seguinte rubrica: “Esta é uma obra que mistura ficção e realidade. Para informações mais exatas e completas sobre os temas abordados, sugiro as seguintes leituras”. O segmento, que pode ser lido de mais de uma maneira, merece atenção, e o exercício de sua exegese configura-se como uma etapa importante do argumento que estou construindo aqui.

Em sentido distante do que foi apontado no prólogo, a “Bibliografia” atesta uma comprovação científica, por assim dizer, à matéria narrada. Ou seja, a uma só vez, ela desconstrói a ilusão de verdade proposta pela declaração de existência dos manuscritos e afirma que tampouco a história é fruto apenas do engenho fabuloso da autora. Por outro lado, essa seção e a inscrição no romance que ela realiza sugerem a insuficiência da obra literária enquanto objeto de produção de conhecimento, pois indica a leitura dos outros textos como forma de se conquistar “informações mais exatas e completas sobre os temas abordados”. Ao que parece indicar, a legitimidade da história teria lastro, sobretudo, nos escritos provenientes de outros intelectuais e pensadores que se propuseram a escrever sobre a matéria narrada. Algumas questões, que serão retomadas adiante, ganham forma. De modo mais elementar, pode-se perguntar inicialmente: por que a necessidade de se afirmar que a obra mistura “ficção e realidade”? Afinal, qual seria o romance em que essa mistura não acontece? A indicação das obras de referência do romance seria uma sugestão para que verificássemos e separássemos o “real” do “ficcional”? Os textos remetidos seriam, então, correspondentes ao “real”? E, estendendo um pouco em direção à nossa questão primeira, como a oposição ficção e História se configura dentro dessa equação montada pela estrutura do romance?

Essas são indagações caras à Teoria Literária e, em outros contextos, significativas respostas a elas foram formuladas por diferentes correntes da área. No entanto, a revisitação dessa fortuna crítica precisa ser vista sob a luz da tensão que aqui se estabelece. Se o romance Um defeito de cor, enquanto obra contemporânea, propõe a volta dos questionamentos acima referidos como uma necessidade do presente, parece-me importante que seja feita uma investigação detida que contemple a indeterminação do estatuto do literário e realize, inclusive, o cotejo do romance com as narrativas que se têm produzido na História.

Os procedimentos estéticos utilizados no desenvolvimento da narrativa do romance parecem requerer um efeito de realidade. Desse modo, as memórias e a subjetividade da narradora são desenvolvidas simultaneamente à precisão e à objetividade com que são narrados os fatos que constituíram a História da Bahia e circunscreveram a vida de Kehinde. Um dos episódios mais significativos desde esse prisma é a Revolta dos Malês. Além de ter sido uma rebelião inimaginável que ameaçou as estruturas de poder do regime escravocrata, na medida em que constituiu efetiva e simbolicamente a possibilidade de articulação e reação escrava, essa sublevação desencadeou uma série de consequências repressivas aos africanos no Brasil, as quais, de acordo com a narrativa, atingiram Kehinde diretamente e redefiniram os rumos de sua trajetória. A centralidade desse evento para o romance, que é tão extenso e narra tantos outros momentos historicamente significativos (como o ataque ao Quilombo dos Urubus, a Cemiterada, a Independência da Bahia, o processo de articulação dos retornados, entre outros), pode ser ratificada quando consideramos o quanto, no construto interno da obra, ele foi decisivo para o surgimento da narrativa a que temos acesso. Explico: é a participação na Revolta dos Malês que obriga, posteriormente, a fuga de Kehinde e o distanciamento de seu filho, Luiz, o qual, no período em que ela se ausenta, foi vendido como escravo pelo pai. Esse episódio, portanto, determina as ações posteriores da narradora (sua ida para o Rio de Janeiro e seu retorno à África, por exemplo) e, em última instância, a necessidade de que o relato de sua vida, destinado ao filho perdido, seja registrado.

Não por acaso, a Revolta dos Malês também adquiriu grande relevância para os historiadores, sobretudo depois da publicação, em 2003 — três anos antes do lançamento do romance — da pesquisa do historiador João José Reis, por meio do livro Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835.16 Citado na Bibliografia de Um defeito de cor, o livro parece ter sido mais do que um material de consulta, já que são muitas e explícitas as correspondências que o romance estabelece com ele. Desse modo, a comparação entre os textos pode ser produtiva, tanto por dar mostras do tipo de narrativa produzida contemporaneamente pela História, quanto por focalizar os procedimentos estéticos da obra literária e, nisso, seu gesto de suplemento dessa mesma História.

Tomando como segmento de análise o episódio da eclosão do levante escravo em 1835, a aproximação entre romance e narrativa histórica que propomos ganha potência e ilumina nossos questionamentos. No capítulo 5 da parte II de seu livro, a saber, “A batalha pela Bahia”, João José Reis inicia o seu texto com uma contextualização do dia escolhido pelos africanos para a revolta:

A rebelião de 1835 estava planejada para acontecer no amanhecer de um domingo, 25 de Janeiro, dia de Nossa Senhora da Guia [...] A festa de Nossa Senhora da Guia começara de fato no sábado, e à noite uma multidão de devotos e festeiros já se reunia no local para rezar e se divertir. Era uma dessas celebrações públicas que misturavam, além do sagrado e do profano, gente de condições sociais diversas. Mas, pelo menos em 1835, havia uma ausência. Enquanto os senhores celebravam sua santa de um lado da cidade, do outro, muitos escravos e libertos, também com fé religiosa e festa, preparavam-lhe uma surpresa que foi quase completa.17

Informa-se ao leitor a data planejada para o levante e a caracterização e importância social do evento escolhido pelos escravos e libertos como momento da ação; essas informações, porém, são formalizadas a partir de um trabalho com a escrita que realiza um corte temporal e transpõe o leitor para a cena do evento, em que há, de forma paralelística (devotos — os senhores — rezam e se divertem / africanos rezam (com fé religiosa) e conspiram), duas ações acontecendo, sendo uma delas oculta aos demais e revelada apenas ao leitor, ao qual também é antecipado que a surpresa preparada pelos conspiradores não foi completa. O excerto evidencia algo que será uma constante na escrita do capítulo, uma forma particular de produção da narrativa em que há uma notória preocupação com o modo com que os eventos são apresentados.

A documentação policial (sobretudo depoimentos), elaborada a partir do processo de averiguação e inquérito da Revolta dos Malês,18 constitui a principal fonte de Reis. Sendo assim, o seu texto deriva de um empenho de investigação e seleção desse material e configura-se como uma malha de articulação entre as vozes dos sujeitos que participaram ou emitiram considerações sobre o evento (testemunhas, escrivães, jornalistas) e as proposições do historiador. Ao contrário de uma forma de narrativa histórica produzida até pouco tempo, que prezava pelo distanciamento e objetividade, nesse caso, o historiador não se exime de se colocar enquanto sujeito e primeira pessoa no texto, declarando suas hipóteses de interpretação e dificuldades de leitura das fontes, bem como suas reflexões e análises do episódio estudado.

Durante a narrativa da rebelião, são inúmeros os momentos em que essas marcas aparecem no capítulo. Ao considerar o número de envolvidos no combate final, por exemplo, Reis confabula: “acredito que cerca de duzentos africanos chegaram a lutar em Água de Meninos”;19 quando comenta o relato de Antônio Pereira Rebouças, que, ao saber da possibilidade do levante, foi inquirido, pelo sogro, a “acautelar os escravos”, Reis não deixa de expressar o sentimento de lástima pela precariedade das fontes e o gesto imaginativo que deriva disso: “Pena que não nos é dado saber como Rebouças teria ‘acautelado’ seus escravos, mas imagino que os trancafiou em seus quartos”;20 quando analisa e compara duas versões de relatos sobre uma mesma passagem do episódio, o historiador se posiciona, dando a ver, inclusive, o movimento de construção de seu texto: “Acredito mais no inquérito […] Mas voltemos ao fio da meada”;21 tais movimentos são igualmente apreensíveis quando, retomando o cuidado em sublinhar a perspectiva dos escravos e libertos sobre o caso, Reis declara: “Infelizmente, o relato mais detalhado que temos do confronto em Água de Meninos foi feito pelo chefe de polícia Gonçalves Martins, que naturalmente enfatizou a bravura de seus homens e a sua própria”;22 e, por fim, apenas para ficarmos nessas poucas citações, ao comentar, tal qual um narrador, o destino dos combatentes que no calor da luta tentavam salvar suas vidas, afirma sobre um guarda nacional, Luís Tavares Macedo: “Esse aí escapou por pouco”.23

Destaca-se, pois, a liberdade de escrita do historiador que pressupõe uma noção do conhecimento histórico como discursivamente estruturado e, portanto, numa relação distinta da noção clássica da História. Os textos produzidos por Reis e por outros historiadores contemporâneos comprometidos com a história social da escravidão apresentam uma notória preocupação formal e se empenham na construção da narrativa, de modo a, muita vez, acercarem-se do que pode ser compreendido como o âmbito literário, tanto se pensarmos formalmente, quanto no sentido de leitura provocado pelas produções. Há um construto fabuloso, portanto, que, não raro, fisga o leitor, o qual é atraído e envolvido pela trama que o texto histórico propõe. Enquanto produção textual, a estratégia metodológica apresentada no início deste trabalho impele o pesquisador a operar dentro de um universo criativo que compreende a exposição do que aconteceu e também a elaboração do que poderia ter acontecido.24

No entanto, esse tipo de narrativa não abre mão do índice de realidade, isto é, da relação com as fontes enquanto referência a algo externo ao texto e ao gesto do historiador, dito de outra forma, enquanto provas da veracidade daquele acontecimento. Desde a História, admite-se que são muitas as possibilidades de interpretação das fontes a que se tem acesso, as quais, por sua vez, também foram produzidas atendendo a demandas e propósitos diversos (nem sempre textualizados). Contudo, a desconfiança em relação às fontes e a explicitação da parcialidade e intencionalidade do historiador não desestabilizam, ainda, a História enquanto uma forma autorizada de produção lógica de conhecimento.

Essa diferença entre o discurso historiográfico e o discurso literário pode ser apreendida quando acompanhamos o trabalho de historiadores que dialogam, em suas análises, com a literatura. Sidney Chalhoub escreveu o livro Machado de Assis, historiador,25 no qual busca fazer uma interpretação da sociedade brasileira no século XIX utilizando-se dos romances que, em sua leitura, adquirem a forma de “testemunhos históricos” como ele mesmo afirma:

[...] boa parte desse texto tem sido uma análise do paternalismo a partir da interpretação daquilo que um romance de Machado, analisado como testemunho histórico, pode nos revelar a respeito de uma sociedade em que tal ideologia assume caráter hegemônico.26

Ao analisar a obra Helena,27 a estratégia de Chalhoub consiste em atribuir ao livro o status de “fonte” e acompanhar as ações do enredo, de modo a evidenciar nelas a ideologia senhorial. Somando-se à leitura de outras fontes — a saber, os documentos das repartições públicas onde Machado trabalhou, sobretudo do Ministério da Agricultura, incluindo um trabalho de decifrar a caligrafia do romancista para poder identificar os documentos que ele produziu ou em que interferiu —, o romance é apreendido como expressão de uma conjuntura política e o seu caráter eminentemente literário, isto é, fundamentado numa relação de trabalho simbólico e polissêmico com a linguagem, pouco considerado.

Em sentido outro, a leitura que João José Reis realiza e apresenta como posfácio do romance Tenda dos Milagres, de Jorge Amado,28 também ajuda a compreendermos como, na operação dos historiadores, as relações entre Literatura e História são concebidas.29 Nesse caso, o historiador reconhece certa especificidade do discurso artístico e se incumbe de explicitar ao leitor o vínculo entre tal objeto — o romance — e aquilo que ele chama de “história real”:

Com efeito, Tenda dos Milagres pode ser lido como história social, cultural e até intelectual, alegórica mas verossímil em muitos aspectos. Ajuda a criar essa impressão o fato de Jorge Amado ter construído personagens e tramas a partir da história real. Veja-se, por exemplo, de onde deriva boa parte do pensamento e da ação dos personagens Pedro Archanjo, o protagonista do livro, e Nilo Argolo, seu mais formidável adversário. A figura de Nina Rodrigues é o modelo para a criação do personagem Nilo Argolo. Já Pedro Archanjo resultaria de uma operação mais complicada. Amado declarou ser sua criação “a soma de muita gente misturada”, destacando Miguel Archanjo Barradas Santiago de Santana (1896-1974), descendente de avôs ibéricos (um espanhol, outro português) e avós africanas (uma tapa, outra ganense) [...] Esse o lado “popular” de Pedro Archanjo. Mas o lado “intelectual” e militante foi inspirado no mestiço Manuel Querino (1851-1923), abolicionista, professor de desenho, sindicalista e estudioso da história e cultura do negro na Bahia, inclusive do candomblé.30 [grifo meu]

Reis, em sua leitura do romance, busca indicar as correspondências documentais e as referências bibliográficas utilizadas por Jorge Amado e, nesse gesto, reitera a oposição entre ficção e História, assumindo esta última enquanto “realidade”. De acordo com ele, os personagens de Amado não teriam as contradições do pensamento dos homens, pois, nesse caso, “a realidade se mostrou mais complexa”.31

De modo breve, podemos averiguar como, em suas leituras, Reis e Chalhoub sustentam a oposição entre Literatura e História e, assim, reiteram uma diferença fundamental entre a nova forma de se produzir História e a Literatura. Tal diferença é retida e posta em xeque por Um defeito de cor. Fazendo uso do espaço da ficção como elemento fundamental de seu texto, Gonçalves retoma e provoca a História, fazendo o movimento inverso ao de Chalhoub — isto é, lendo a História como fonte de ficção — e, nesse sentido, desconstruindo a oposição que Reis ratifica. A partir da narração do episódio da Revolta dos Malês, comum tanto ao romance quanto ao livro do historiador João José Reis, poderemos ver como isso acontece. O cotejo entre fragmentos que analisaremos revela algo significativo: com a crucial diferença de inserir uma mulher como participante ativa e narradora da Revolta dos Malês, no que se refere a esse episódio específico, o romance se coloca como uma edição, uma rasura, do texto do historiador.32

A retomada do trabalho de Reis pelo romance Um defeito de cor é explícita. Para fazer isso visível, porém, será necessário acompanhar alguns movimentos de ambos os textos.33 De acordo com o historiador, o início do Levante dos Malês teria sido antecipado por conta de uma denúncia da qual participou uma negra chamada Sabina, raivosa em relação ao seu companheiro, que seria um dos conspiradores. Antes da comunicação de Sabina com Guilhermina — outra negra e quem de fato realiza a denúncia —, o livro de Reis narra, fazendo uso de trechos dos depoimentos dos envolvidos, a passagem na qual Sabina vai até a casa de um dos articuladores principais da revolta, Manuel Calafate, em busca de seu companheiro, Victório Sule, como podemos ler no seguinte trecho:

[Sabina] Vinha falar de um dos conspiradores, seu companheiro Victório Sule, com quem tivera uma briga feia naquela manhã [...] Ela saiu em busca do ‘pai de seus filhos’, e o localizou ‘em casa de uns pretos de Santo Amaro à rua do Guadalupe”. Na verdade, ela parece ter chegado à casa do africano Manoel Calafate, quase ao pé da ladeira da Praça [...] Victório ali estava jantando em companhia do ‘maioral’ e muitos outros africanos, provavelmente na preparação dos últimos detalhes da revolta do dia seguinte. Sabina não chegou a ver o companheiro naquele dia, mas teve um áspero diálogo com a negra Edum, que lhe dissera que ela só veria seu homem quando os africanos se tornassem senhores daquela terra, ao que Sabina respondeu desafiadora que ‘no outro dia haviam de ser senhor de surra e não da terra.34 [grifos meus]

Em Um defeito de cor, o mesmo episódio figura também como ponto de partida daquilo que culminou na antecipação da eclosão da revolta e é narrado da seguinte forma:

Quando Edum abriu a porta, fiquei aliviada ao ouvir a voz de uma mulher perguntando pelo Vitório Sule.35 A Edum disse que não sabia quem era, que ali não tinha ninguém com esse nome, mas a mulher insistiu, afirmando que tinha ouvido a voz dele minutos antes, que ele era pai dos filhos dela e precisava encontrá-lo. [...] a mulher estava muito nervosa e disse que não era a primeira vez que ia naquela casa buscar o seu homem, onde ele sempre se reunia com ‘o maioral’, e que não iria embora sozinha. [...] Para acabar com aquele escândalo, Edum disse que não era festa e que não ia deixá-la entrar, e se ela tinha certeza de que o Vitório estava lá, era para esperar por ele em casa, no dia seguinte, quando os pretos fossem os donos da terra. A Edum falou isso em tom de brincadeira, o que enfureceu ainda mais a mulher, que finalmente foi embora, depois de dizer que os pretos, e principalmente nós, íamos ganhar era surra e não terra.36 [grifos meus]

A correspondência entre os textos é notória, não apenas no que se refere à seleção e à estrutura da ação narrada, mas, inclusive, em termos vocabulares. Isso ocorre novamente mais adiante, na passagem em que se narra o momento em que os rebeldes estão prestes a serem descobertos pela polícia. No romance, Kehinde conta:

Mas foi uma voz masculina que perguntou ao Domingos se ali dentro da loja estava havendo uma reunião de pretos. Com medo da ameaça do Aprígio, ele disse que não, que na loja moravam apenas dois inquilinos bem comportados. Os policiais quiseram saber quem eram e o que faziam tais inquilinos, e o Domingos respondeu que eram o Manuel Calafate, que o próprio nome já dizia a profissão, e o Aprígio, vendedor de pão e carregador de cadeirinha. O Domingos estava muito nervoso [...]37 [grifos meus]

E nas palavras de Reis:

Naquela noite Domingos foi encontrado pela patrulha sentado à janela. Foi-lhe perguntado se havia africanos em sua loja, ao que ele respondeu nervosamente que os únicos pretos ali naquele momento eram seus inquilinos “muito capazes” (quer dizer, bem-comportados, trabalhadores, inofensivos), Manoel Calafate e Aprígio, este carregador de cadeira e vendedor de pão. O nervosismo de Domingos era justificado. Alguns minutos antes descera à loja [...] Aprígio ameaçara matá-lo com uma ‘faca de ponta’, caso denunciasse a reunião africana em curso.38 [grifos meus]

Uma vez mais, é perceptível a coincidência entre os textos.39

No romance, tais correspondências acontecem em inúmeras outras passagens do segmento “A Rebelião”.40 A preocupação histórica é tamanha, que a narradora opera um movimento de distanciar-se de sua perspectiva enquanto indivíduo atuante no confronto; movimento que é declarado por ela textualmente:

Não me causou boa impressão esse início de luta, antecipando o momento planejado. Mas atribuí o mal-estar às primeiras cenas de terror, e durante todo o tempo que durou a correria pela cidade não parei para pensar no que estava acontecendo. Algumas das coisas que vou contar a partir de agora fiquei sabendo mais tarde, juntando pedaços que as pessoas me contavam sobre o que tinha ficado sabendo, ou de que tinham participado. Mas acho melhor contar como se tivesse visto tudo acontecer, como se estivesse presente em todos os lugares onde havia alguém lutando, pela liberdade ou simplesmente para não morrer.41 [grifos meus]

O trecho, desfecho do subcapítulo “O Plano” (que antecede “A Rebelião”), deixa explícita a estratégia narrativa de expor um relato linear do episódio histórico em detrimento da experiência fragmentada e parcial da narradora. De fato, há uma quebra de ritmo da narrativa e um tom do relato que se distancia da dicção predominante de Kehinde, o que tem como efeito o distanciamento do leitor da trama proposta pela obra. A abertura da seção “A Rebelião”, citada a seguir, deixa evidente essa dinâmica, sobretudo se comparada à narração dos episódios que antecederam o confronto e aqui aparecem como citação subsequente:

A denúncia de que uma rebelião estava para começar foi feita no início da noite de sábado por um nagô liberto, que também se chamava Domingos e que tinha ouvido comentários estranhos entre os pretos do cais do porto, onde durante todo o dia chegaram vários saveiros com pretos do Recôncavo.42

Na manhã do dia vinte e quatro de janeiro, saí de casa com o sol ainda por nascer e deixei você dormindo na minha cama, para onde o levara na noite anterior. [...] Eu sabia que voltaria, mas não sabia quando, principalmente porque ninguém conhecia todo o plano, nem qual o papel teria nele. Passei no quarto dos santos e orei para Xangô, para que a coragem e a proteção dele descessem sobre mim como um raio, principalmente na hora de lutar.43

De um fragmento para o outro há uma notória alteração no modo como a subjetividade da narradora aparece. A segunda citação, que na ordem de acontecimentos do romance antecede a primeira, aproxima o leitor de Kehinde, e é possível conhecer a interioridade da protagonista, na qual a ansiedade em relação ao que será da batalha e a preocupação materna a respeito do futuro incerto se destacam. Notamos como a religiosidade (que a reconecta com seus ancestrais e com o universo africano) é concebida como um espaço de onde se obtêm força e coragem. Além disso, o trecho recupera e evidencia o interlocutor do relato, Luiz, o filho desaparecido e que é participante do episódio rememorado. No trecho que se segue (e consta aqui como primeiro fragmento supracitado) essa subjetividade perde força. Há uma descrição mais objetiva do acontecimento, com uma precisão que não se deixa contaminar pelos sentimentos da narradora, dando margem, inclusive, a que especulemos se o interlocutor implícito seria o mesmo do momento anterior. Tal procedimento acontece ao longo de todos os subcapítulos em que se narra a batalha dos malês. São poucas as intervenções de caráter mais pessoal da narradora, a qual apenas no desfecho desse episódio, citado a seguir, parece recobrar o tom de outrora:

Mesmo quando as patas dos cavalos avançavam sobre nós, mesmo quando as poucas armas de fogo que tínhamos já estavam sem munição, mesmo quando um ataque contínuo de mais de quinze minutos de balas vindo de dentro do quartel deixava muitos de nós fora de combate ou a correr pelos matos e montes da vizinhança [...] Durante algum tempo fiquei sozinha no meio daquela confusão toda. Olhei para os lados e não vi mais conhecidos, e então fechei os olhos, como tinha feito no caminho de Savalu para Uidá [...] Não sei por quanto tempo permaneci assim, sem que nada me tocasse, até que fui sacudida pelo Eslebão.44

A oscilação no tom e no ritmo da narrativa é procedimento constante em Um defeito de cor. Essa dinâmica apresenta-se, às vezes, como uma ruptura, e a inserção dos episódios históricos, quando não intrinsecamente ligados aos desdobramentos da história narrada, desafia o leitor e a crítica. Se, em trecho citado anteriormente, pudemos notar como Reis incorpora, em seus escritos, procedimentos que o aproximam do âmbito literário, nesses casos de Um defeito de cor, constatamos o inverso, a predisposição do romance a incorporar algo da escrita historiográfica.

Há, contudo, uma notória complexidade no modo como essa incorporação acontece e naquilo em que ela resulta. Na mesma medida em que é evidente a intertextualidade com o texto de Reis, é imperativo o deslocamento que o romance opera em relação a ele. O fato de ser Kehinde a narradora redimensiona a escrita historiográfica e constrói uma possibilidade até então não concebida pelo historiador. De acordo com a narrativa de Rebelião escrava no Brasil, a participação de mulheres na Revolta dos Malês apenas se deu no momento de denúncia do levante e, depois, no cálculo de mortos, quando se encontra uma mulher. Nas palavras de Reis: “Gertrudes, uma escrava nagô, ‘que morreu de um tiro de espingarda’. Única mulher entre os mortos, teria ela participado do levante, ao modo de Zeferina dez anos antes? Ou fora morta por uma bala perdida?”.45

A hipótese de participação das mulheres, condensada na aparição de Gertrudes, apenas sugerida pelo historiador, é levada a cabo por Gonçalves. Kehinde explicitamente afirma:

Eu e Edum, as únicas mulheres do grupo, não colocamos o barrete, mas amarramos um lenço branco na cabeça [...] Eu tentava me acostumar ao barulho para saber como agir, e, misturados aos gritos de guerra em árabe, haucá e iorubá, além da luta corpo a corpo, os tiros eram o que mais incomodava.46

O destino de Edum não é revelado ao leitor. Diferentemente de Gertrudes, porém, de quem, independentemente de ter participado do combate ou não, só temos notícias a partir de seu corpo morto, Kehinde, depois de participar do combate em Água de Meninos e ver o seu grande amigo Fatumbi ser atingido por uma bala fatal na cabeça, foge com um grupo de rebeldes e consegue se refugiar em um esconderijo. Ela sobrevive e, ademais, conta o que viveu.

A História ainda não concebe a existência de uma mulher que teria participado ativamente da Revolta dos Malês.47 Entretanto, o presente parece exigir essa história, que é então legitimada na literatura (que uma mulher negra se permitiu produzir). Desse modo, para além da situação limite que Um defeito de cor narra — a escravidão —, também parece ser um limite o lugar que o livro instaura. A “realidade” exposta nessa literatura não é um espelho de uma realidade reconhecida, mas a construção de uma história que, em termos gerais, foi obliterada e que no âmbito do conhecimento produzido pelas Ciências Humanas, notoriamente pela História, raramente apresenta a trajetória de sucesso de uma mulher negra escravizada no século XIX que o romance sustenta (na medida em que Kehinde é retratada quase de modo heroico). Desse modo, a contraposição de Um defeito de cor com o texto histórico coloca em jogo o questionamento da função referencial da Literatura ou — se considerarmos que o discurso histórico também é problematizado se visto à luz do romance — da própria linguagem. Para seguirmos nessa reflexão, convém, a partir de agora, recorrer a algo do que “herdamos”, como fortuna teórica, do conhecimento produzido pela Crítica Literária.

A questão da referencialidade: segunda provocação

Tarefa impertinente em relação a qualquer romance, mas, no caso de Um defeito de cor, em especial, é fazer um teste de “verificação” da matéria histórica literariamente narrada. Quer dizer, levar a cabo a declaração presente na Bibliografia — “Esta é uma obra que mistura ficção e realidade” —, tentando estabelecer a distinção indicada, me parece ser uma atividade, se factível, improdutiva. Mais interessante e ajustado, no que diz respeito às reflexões desde a Teoria Literária, seria, por um lado, tentar apreender o modo como a tradição realista é recuperada pelo romance e posta em tensão com o discurso histórico, operando como suplemento dele, ou seja, alcançando onde a História não consegue ir; por outro lado, analisar como ambos os discursos se relacionam com aquilo que poderíamos denominar “realidade”, isto é, como os textos se relacionam com o princípio de que haja um referente externo a eles.

A tradição realista, em que poderia ser inserido Um defeito de cor, e os teóricos encarregados de sua crítica já se detiveram muitas vezes na reflexão sobre o par Literatura e História, entretanto, ainda que seja passível de ser lida de modo produtivo sob a luz das proposições dessa fortuna crítica, a obra de Gonçalves parece resguardar algo que resiste a elas e exige da crítica uma revisitação (e revisão) de seus critérios e pressupostos de análise. A noção de “romance histórico” é um bom ponto de partida para a explicitação disso.

A configuração da “totalidade da história” pela “grande literatura” foi o principal objeto de estudo do pensador György Lukács. No livro O romance histórico, escrito entre 1936 e 1937, Lukács desenvolveu alguns dos postulados que, desde então, tornaram-se referência para a crítica literária materialista. De acordo com ele, tendo como pressuposto a ideia de autonomia da obra de arte, no romance, o tempo está implicado na forma. Sendo assim, as possibilidades de construção de uma obra são condicionadas, a despeito do empenho e do gênio de seu autor, por possibilidades do momento histórico de sua produção.48 Dessa maneira, o romance histórico não seria episódico ou um gênero particular, mas a formalização que o romance assume ao figurar o passado como a pré-história do presente.49

O contexto a que se refere essa proposição é bem específico, segundo o autor, a fase clássica do romance histórico seria de 1815 a 1848, e Walter Scott o criador da forma, influenciando depois Balzac, Púchkin, Manzoni e Tolstói. Scott teria introduzido no romance o retrato dos costumes e acontecimentos e, sobretudo a partir dos diálogos, passou a dar vida humana aos tipos sociais históricos prosaicos e medianos. Nas palavras de Lukács:

A grandeza de Scott está em dar vida humana a tipos sociais históricos. Antes de Scott, os traços humanos típicos, em que se evidenciam as grandes correntes históricas, jamais haviam sido figurados com tal grandiosidade, univocidade e concisão. E, acima de tudo, jamais essa tendência de figuração havia sido trazida conscientemente para o centro da representação da realidade.50

Segundo Lukács, as figuras históricas importantes aparecem nos romances de Scott, mas não são figuras principais/centrais no enredo. Tendo homens comuns como protagonistas, a concentração e a intensificação dramática com que são narrados os acontecimentos operam no sentido de tornar o passado possível de ser revivido e, nessa direção, permitir que o leitor se insira na totalidade da história. Desse modo, o passado seria representado como algo que “diz respeito a” e move o presente: “Portanto, o que importa para o romance histórico é evidenciar, por meios ficcionais, a existência, o ser-precisamente-assim das circunstâncias e das personagens históricas”.51

Tornar o passado experienciável seria a condição para que se experienciasse o contemporâneo, já que Lukács escreve em acordo com uma concepção hegeliana, segundo a qual a História é concebida — em oposição a uma noção histórica teleológica — como um movimento contraditório e dialético.

Sem desconsiderar a distância entre o momento de elaboração de tais proposições e a particularidade dos objetos aos quais elas se referem, é possível assinalar alguns aspectos que Um defeito de cor e o conceito de “romance histórico” compartilham. Não há dúvidas de que, ao encenar o século XIX, a obra também produz um discurso sobre o contemporâneo e, nesse sentido, aponta para a coexistência, no presente, de uma outra temporalidade. O romance possibilita que sejam estabelecidas correlações entre uma noção do passado, elaborada a partir dos acontecimentos que conformaram e dinamizaram a sociedade escravista — especialmente a trajetória da mulher negra —, e o presente — no qual vislumbramos atualizações dessa estrutura e a herança (ou maldição) de um racismo violentamente operante. A escolha por centrar a narrativa nas ações dos africanos escravizados também guarda relação com o gesto de inserir na Literatura a experiência daqueles desprovidos socialmente de poder. Essa parece ser a História significativa para Lukács. É pela História do povo que ele se interessa e, afirma, “a grande tarefa do romance é precisamente a invenção ficcional de personagens do povo, de personagens que encarnem a vida interior do povo e as importantes correntes que se manifestam nele”.52

Diante desse propósito, a relação entre “realidade” e “ficção” é concebida pelo filósofo como fundamental. Isso fica evidente no seguinte trecho, que é extenso, mas vale a pena ser lido por deixar clara a correspondência que ele estabelece entre literatura e realidade:

Visto que a realidade como um todo é sempre mais rica e multifacetada que a mais rica obra de arte, nenhum detalhe que reproduza com exatidão a realidade, portanto, um detalhe biograficamente autêntico, um episódio autêntico etc. consegue, em sua facticidade, alcançar a realidade. Para causar no leitor a impressão de riqueza da realidade, todo o contexto da vida tem de ser reformulado, a composição tem de ganhar uma estrutura totalmente nova. Se, nesse processo, podem-se utilizar detalhes e episódios autênticos, tal como eles são, trata-se de um acaso particularmente feliz. Mesmo nesses casos, eles não estão livres de modificações, pois o seu ambiente, seu antes e seu depois terão sido alterados de modo decisivo, e essas alterações transformam precisamente a qualidade artística dos episódios [...].53

A ficção é alçada como meio de apreensão da realidade, sendo esta última facilmente distinguível, considerada mais “rica” e “multifacetada” e, por ser extrínseca ao âmbito da ficção, inatingível.

Seguindo na contraposição entre o conceito e o romance de Gonçalves, percebemos que, se a obra recupera a oposição entre ficção e realidade concebida por Lukács, ela o faz redefinindo-a de forma instigante. Há uma dimensão realista no modo como as ações são evocadas da memória de Kehinde e narradas ao leitor. A fim de construir isso, como vimos, o romance incorpora discursos históricos (como o de Reis)54 aos seus procedimentos estéticos, sobretudo enquanto dados que denotem os “episódios autênticos” e nessa direção correspondam — Apontem? Busquem alcançar? Insiram? — à realidade (por isso, quiçá, a afirmação de que o romance mistura “ficção” e “realidade”). No entanto, como tentei demonstrar no segmento anterior, a justaposição desses recursos resulta numa estrutura controversa que, no lugar da “concentração” e “intensificação dramática” da narração, exigidas por Lukács, apresenta um texto de tom e ritmos oscilantes — o que nos faz perguntar pela necessidade da extensão do romance — e, como veremos adiante, um caráter, às vezes, postiço da dicção da narradora, aspecto que leva à problematização da verossimilhança em certas passagens do texto.

Logo, desde a perspectiva lukaciana, como produto de seu tempo, Um defeito de cor constitui-se como um objeto “estranho”. Na medida em que contém arestas que colocariam em risco o seu valor estético, a conformação da obra parece ser em si um elemento contraditório da/na História, o qual encena um debate sobre as condições de representação da escravidão na contemporaneidade. Seria possível tornar experienciável o passado abominável do que foi o ser mulher escrava no Brasil ao longo do século XIX? É concebível que Kehinde descreva calma e linearmente passagens de extrema violência vividas por ela?55 Existe aqui um referente que a obra recupera, desde um gesto mimético, ou seria ela própria a construção desse referente, num gesto performático? A relação com a História que Um defeito de cor perfaz parece propor uma revisão da ideia de autonomia da obra literária e, assim, questionar os referenciais teóricos mobilizados por Lukács, fato que nos permite afirmar que o conceito de “romance histórico” não é suficiente para dar conta da leitura do livro.56 O conjunto dos recursos de linguagem do romance põe em questão elementos extraliterários e exige outras ferramentas analíticas para que a crítica possa se realizar.

Ainda que também não dê conta da complexidade da obra de Gonçalves, a coletânea O rumor da língua,57 de Roland Barthes, contribui para que reelaboremos, de modo produtivo, a leitura de Um defeito de cor desde outra concepção cara à Teoria Literária. Situando a obra literária e o texto historiográfico sob uma perspectiva da análise estruturalista da linguagem, Barthes investiga a relação desses discursos com um “real” cuja existência antecede ou está para além deles. Desse modo, ele indaga:

[...] a narração dos acontecimentos passados, submetida comumente, em nossa cultura, desde os gregos, à sanção da “ciência” histórica, colocada sob caução imperiosa do “real”, justificada por princípios de exposição “racional”, essa narração difere realmente, por algum traço específico, por uma pertinência indubitável, da narração imaginária, tal como se pode encontrar na epopeia, no romance, no drama?58

De acordo com Barthes, a necessidade de autenticar o “real” começa com o discurso histórico, o qual seria modelo para a literatura; isso data da Antiguidade, quando o “real” esteve ao lado da História para opor-se à verossimilhança (característica da poesia, da imitação) que, por sua vez — ao contrário da História — dependia da opinião pública. Ao realizar uma análise semiótica do discurso histórico,59 Barthes identifica uma série de particularidades que caracterizariam esse discurso. Comparando-o com a literatura, no que se refere à relação com o “real”, escreve:

[...] discurso histórico é essencialmente elaboração ideológica, ou, para ser mais preciso, imaginário, se é verdade que o imaginário é a linguagem pela qual o enunciante de um discurso (entidade puramente linguística) “preenche” o sujeito da enunciação (entidade psicológica ou ideológica). Compreende-se daí que a noção de “fato” histórico tenha muitas vezes suscitado aqui e ali, certa desconfiança. Já dizia Nietzsche: “Não existe fato em si. É sempre preciso começar por introduzir um sentido para que haja um fato”. A partir do momento em que a linguagem intervém (e quando não interviria?), o fato só pode ser definido de maneira tautológica: o notado procede do notável, mas o notável não é — desde Heródoto, quando a palavra perdeu sua acepção mítica — senão aquilo que é digno de memória, isto é, digno de ser notado. Chega-se assim a esse paradoxo que pauta toda a pertinência do discurso histórico (com relação a outros tipos de discurso): o fato nunca tem mais que uma existência linguística (como termo de um discurso), e, no entanto, tudo se passa como se essa existência não fosse senão a cópia pura e simples de uma outra existência, situada num campo extra-estrutural, o “real”. Esse discurso é, sem dúvida, o único em que o referente é visado como exterior, sem que nunca seja, entretanto, possível atingi-lo fora do discurso. Faz-se, pois, necessário indagar com mais precisão qual o lugar do “real” na estrutura discursiva.60 [grifo meu]

A equiparação entre os discursos realizada por Barthes confere pouca atenção aos lugares sociais de onde se produzem a literatura e a atividade do historiador. Desse modo, as ferramentas e técnicas, os sistemas de circulação e os modos de apreciação que os dois tipos de textos fomentam, bem como todo um histórico de autorreflexão feito por historiadores, escritores e críticos literários sobre o fundamento de suas produções, são minorizados nessa análise.61 Contudo, ela parece ser produtiva por focalizar a estrutura formal dos textos e fazer um comentário que vincule um problema caro à História e à escrita realista.

Talvez o que Um defeito de cor proponha como subtexto seja justamente a indagação sobre o “lugar do real na estrutura discursiva”. De acordo com Barthes, haveria no discurso histórico uma confusão (ilusória, diz ele) entre o significado e o referente. Isto é, o significado seria tomado como um referente, e o significante do “ato de palavra” como um “ato de autoridade”, quer dizer, com o poder de dar forma àquilo que se chama “real”. Em decorrência dessa análise, Barthes elabora e passa a utilizar a ideia de “efeito de real”, já que caberia ao discurso histórico apreender o inteligível e dar a ele um sentido, uma significação, que é, de acordo com Barthes, sempre revogável. De modo semelhante, a partir do surgimento do realismo,62 a Literatura passa a reivindicar o “efeito de real” e, para isso, faz uso de diversas estratégias, como a inserção de detalhes descritivos, pormenores muitas vezes dispensáveis ao desenvolvimento lógico da narrativa, na busca, segundo a análise de Barthes, de indicar dados que imprimiriam o efeito de realidade no texto. Seria essa uma forma de ilusão referencial que podemos observar em Um defeito de cor, na medida em que a narradora lança mão de diversos recursos para que sua história seja considerada verossímil e em conformidade com uma realidade da qual o leitor participa, ainda que distanciado no tempo.

Nesse sentido, podemos enquadrar as inúmeras descrições do romance; já velha e tendo experienciado boa parte do século XIX, Kehinde relembra, com precisão e riqueza de detalhes, características urbanas da cidade do Salvador e do Rio de Janeiro (inclusive a localização das ruas e a arquitetura das casas), aspectos dos personagens e da sociabilidade do período em que viveu, a ordenação lógica e política dos fatos históricos dos quais foi contemporânea e, inclusive, os pensamentos e as impressões que tinha nas diversas situações relatadas. Se, por um lado, em consonância com Barthes, esse movimento busca conferir autenticidade à obra, sua dimensão realista, por outro, o mesmo gesto, no que ele tem de excesso e didatismo, imprime uma dicção artificial à narradora e compromete a verossimilhança do texto, apontando, quiçá, para outro compromisso da obra.63

Recuperar a comparação entre Um defeito de cor e Rebelião escrava, desenvolvida no segmento anterior, pode ajudar para que se explicite isso que chamo de “compromisso” e, assim, para que avancemos na análise. Vejamos a contraposição dos trechos em que o segredo do levante dos africanos é revelado às autoridades. O historiador João José Reis escreve:

Dirigiu-se a André Pinto da Silveira, seu vizinho branco, e lhe contou o que sabia. Na casa de Silveira também estavam Antônio de Souza Guimarães e Francisco Antônio Malheiros, que se encarregaram de informar as novidades ao juiz de paz do 1º Distrito da freguesia da Sé, José Mendes da Costa Coelho.64

Para Reis é importante mencionar, enquanto índice de realidade, o nome de todos os sujeitos envolvidos nas ações (quando as fontes assim permitem). Não apenas nesse trecho, mas ao longo de todo o capítulo, o autor procura identificar e atribuir identidade aos sujeitos da História, sejam eles figuras de autoridade ou figuras que até então entrariam para a história — se entrassem — como anônimas. No romance, Kehinde faz uma seleção e notoriamente explicita o nome dos subalternos (negros, escravos ou não) em detrimento do nome das autoridades: “Na casa do vizinho, para o nosso azar, estavam dois amigos do juiz de paz do distrito da Sé”.65A narração resgata explicitamente a passagem do texto do historiador, porém, notamos a omissão do nome do juiz de paz e de seus “amigos” e o acréscimo da consideração “para o nosso azar” que denota, inclusive pelo uso da primeira pessoa do plural, a perspectiva de quem conta a história. O que me parece interessante, e acrescenta mais um elemento em tensão com a leitura das proposições de Barthes, é: os dados que, na obra literária, reassumiriam um compromisso com o “real”, a saber, as informações (explicações antropológicas e sociais, detalhes arquitetônicos, descrições históricas) que aparentemente advêm das referências de pesquisas científicas/acadêmicas, adquirem, no conjunto do romance, um efeito de artificialidade (como leitores, nos perguntamos: como a narradora, já idosa, poderia se lembrar de tudo isso com tamanha precisão?). Já os dados e ações que, desde uma perspectiva centrada na História, por exemplo, poderiam significar uma criação deliberada, como a própria existência de Kehinde e de seus vínculos pessoais, aparecem como índices de realidade. Dito de outra forma, nesse romance, aquilo que pode ser considerado um índice de realidade aponta para o construto ficcional. Sublinha a história que não pôde ser contada pela História, justamente pela ausência das fontes que autorizariam esse discurso a ser produzido.

Isso, somado à linearidade e à ausência de perturbação na fala de Kehinde — duas marcas estilísticas contrárias à fragmentação e sofrimento com que as narrativas contemporâneas abordam situações traumáticas —, indicam, a meu ver, outro propósito do texto. Há um compromisso com uma memória que precisa ser elaborada e tornar-se pública. Atribuir a esse discurso o corpo e a voz de uma mulher negra escravizada no Brasil é imperativo, já que, em nossa estrutura social e simbólica, a condição subalterna da mulher negra é gritante, alarmante e exasperante. O didatismo que sublinhamos e que acompanha de modo inerente o trabalho de Gonçalves indica um outro interlocutor do texto que não apenas aquele construído e nomeado na trama do romance. Tendo no horizonte da recepção da carta um leitor contemporâneo, e não estritamente o filho Omutende/Luiz Gama, podemos compreender a necessidade de transmissão de boa parte do relato.

A discussão sobre a verossimilhança, portanto, está incorporada ao texto de modo deliberado e, em diversos momentos, a narradora, Kehinde, explicita uma autoconsciência da problemática da composição de sua fala; ela parece, inclusive, fazer um comentário sobre o momento histórico presente:

É estranho como todos esses nomes e lugares me voltam à memória sem esforço algum, como se eu estivesse vendo a história acontecer neste exato momento [...] Eu estava com o grupo que ia à frente abrindo o caminho [...] e quando olhava para trás e via todas aquelas pessoas, pensava no que poderiam ter passado para estar ali.66

Sendo assim, as proposições de Barthes são também deslocadas e tensionadas por Um defeito de cor. A obra de Gonçalves remete a um referente exterior, que, no entanto, não parece estar disponível num registro de oficialidade pública enquanto “real”, se considerarmos que o processo de elaboração desse “real” tem o discurso histórico como componente de grande relevância.67 Assim como Kehinde abria o caminho no excerto citado, o romance parece abrir caminho para uma construção que até então a Literatura Brasileira não produziu e a História começa a produzir.

Logo, o romance sugere uma volta à investigação sobre a construção simbólica da realidade, a qual é definida por Linda Hutcheon como característica de uma poética pós-moderna. No que se refere à Literatura, haveria, segundo Hutcheon, um “paradoxo do pós-moderno” que consiste no retorno à História como base da Literatura, mas que tem como simultâneo o gesto de inserir e confrontar essa mesma História. A isso ela denomina “metaficção historiográfica”:

A metaficção historiográfica refuta os métodos naturais, ou de senso comum, para distinguir entre o fato histórico e a ficção. Ela recusa a visão de que apenas a história tem uma pretensão à verdade, por meio do questionamento da base dessa pretensão na historiografia e por meio da afirmação de que tanto a história como a ficção são discursos, construtos humanos, sistemas de significação, e é a partir dessa identidade que as duas obtêm sua principal pretensão à verdade. Esse tipo de ficção pós-moderna também recusa a relegação do passado extratextual ao domínio da historiografia em nome da autonomia da arte. Romances como The Public Burning e A lenda de “Legs” afirmam que o passado realmente existiu antes de sua ‘textualização’ na ficção ou na história. Eles também demonstram que ambos os gêneros constroem inevitavelmente à medida que textualizam esse passado. O referente ‘real’ de sua linguagem já existiu, mas hoje só nos é acessível em forma textualizada: documentos, relatos de testemunhas oculares, arquivos. O passado é ‘arqueologizado’ (Lemaire 1981, xiv), mas sempre se reconhece seu repositório de materiais disponíveis, como sendo textualizado.68

Se a proposição de Hutcheon aproxima-se de Barthes ao reconhecer a dimensão discursiva tanto da História quanto da Literatura e, nesse sentido, vincula as duas instâncias e estabelece uma relação entre elas e uma certa pretensão à verdade, Hutcheon distancia-se do filósofo e semiólogo quando afirma a existência de um “real” que precede os textos. Isto é, de acordo com ela, a História e a Literatura se encarregariam de atribuir forma e sentido aos acontecimentos e transformá-los em fatos: “o referente ‘real’ da linguagem já existiu, mas hoje só é acessível em forma textualizada”. Explicando de outra maneira, mas ainda fazendo uso das palavras da crítica, teríamos acesso ao “real empírico” do passado apenas por meio dos discursos e dos vestígios textualizados (categoria que inclui as fontes usadas pelos historiadores, vistas, então, como objetos de intertextualidade). A História, desde essa mirada pluralista e, para alguns, como ela mesma coloca, perturbadora, estaria mais situada no campo da significação do que no campo da legitimação e, no que tange à Literatura, concebida como mais uma forma de discurso, haveria o questionamento de sua autonomia, isto é, do aspecto autônomo da arte, o qual sanciona que a Literatura seja concebida como uma representação da realidade ora “provisória e limitada”, ora “privilegiada e superior”.

Um defeito de cor parece corroborar essa proposta de Hutcheon e explicita uma autoconsciência dos processos mencionados, quer dizer, deliberadamente, o romance instala e indefine a oposição entre ficção e história (nas palavras de Hutcheon “os pressupostos dos contratos genéricos da ficção e da história”).69 A questão da referencialidade subjaz a esse movimento textual e reflexivo. Contudo, mesmo que inclua a ressalva a isso em seu texto (e assim se distancie de Barthes), Hutcheon parece reprisar o que ela mesma nomeia como “essencialização da textualidade global” e, nesse sentido, Um defeito de cor se esquiva de sua leitura.

Ana Maria Gonçalves, ao criar condições para que Kehinde narre a sua história, recupera e se apropria dessa memória e experiência coletivas que, a despeito da textualização, sobreviveram aos mais violentos mecanismos hegemônicos de ocultamento e permaneceram vivas, graças a algo que talvez também não caiba neste texto. Em “Branqueamento e branquitude no Brasil”, Maria Aparecida Silva Bento explora a dimensão subjetiva que envolve a dialógica relação entre negros e brancos no Brasil.70 De acordo com ela, há, por parte dos brancos, um sentimento de medo e um silenciar em relação ao que foi a escravidão em nosso país. Esse sentimento de medo é passível de ser compreendido, tendo em vista os 400 anos (do total de 500 que o país tem) de “apropriação indébita concreta e simbólica, violação institucionalizada de direitos” por parte dos brancos. Ainda em sua proposição, ela argumenta que, apesar das ações concretas para apagar a “mancha negra do país”,71 de um modo intergeracional, é realizada uma transmissão dos conteúdos inconscientes coletivos ligados ao ato transgressivo cometido em comum. São esses conteúdos que causam “permanente desconforto para os brasileiros [principalmente para os brancos] e surgem quando menos se espera”.

São esses conteúdos que Um defeito de cor aciona e os quais produzem o (necessário) incômodo que, nos termos deste artigo, escolhi chamar de “provoc(ação)”. O uso do espaço da ficcionalidade feito pela escritora e do jogo que ele comporta no contexto particular do Brasil ginga com a circunstância de que, ao contrário do discurso historiográfico, o romance não é submetido ao teste da verdade. A escolha é significativa para a análise da obra e convém que nos fixemos a ela antes de abandonarmos72 essa vereda de investigação que o romance incitou.

A indecidibilidade constitutiva

Até então, vimos que, em termos gerais, o livro Um defeito de cor realiza uma provoc(ação) ao discurso histórico que, por meio de aspectos formais de sua constituição, bem como da situação e do momento de leitura que ele evoca, recupera e instaura um debate que tem, como fundamento, a relação entre ficção e verdade e entre linguagem e realidade. Procurei mostrar em que sentido a obra incorpora elementos da História e diante dela se coloca numa dinâmica caracterizada por uma dupla ação.

A primeira seria reivindicar o estatuto de verdade atribuído ao discurso histórico; a obra assim se oferece como atestado simbólico e efetivo da existência de outras mulheres negras que, como Kehinde, experimentaram e resistiram ao sistema escravista sem se deixar subtrair por ele. Nesse sentido, a obra explicita um desejo de intervenção e compromisso social que põe em xeque a delimitação da Literatura enquanto espaço autônomo em relação a outras esferas sociais, isto é, ela refuta o próprio estatuto de autonomia que a constitui como um romance ao ter como pressuposto implícito sua caracterização não como representação do real, mas como o real em si, isto é, um elemento constituinte do jogo de significações da experiência.

Como segunda e simultânea ação, a obra deixa em evidência o construto ficcional de sua manufatura, possibilidade que não é conferida à História, e, assim, salvaguarda-se como capaz de enunciar um relato, o qual, para ter sua legitimidade assegurada, não depende de fontes em que a verdade dos fatos seja atestada. Desse modo, contraditoriamente à ação primeira, reforça o caráter autônomo da Literatura e sua relação particular com a verdade e com o referente que podemos denominar como “real”. É a esse gesto que nos referimos quando afirmamos algumas vezes, ao longo deste texto, que Um defeito de cor constitui-se como um suplemento da História. Na acepção derridiana, o suplemento opera como um acréscimo que vem suprir uma falta, nesse caso, constituinte do discurso histórico que, como linguagem, funciona a partir de uma lógica de substituições, num jogo caracterizado pela ausência de um significado transcendental (isto é, de uma origem ou possibilidade — almejada por Luckács — de totalização).73 A comparação entre o romance e o texto de Reis evidenciou que à História possível — uma História descontínua que manipula a noção de acaso em sua metodologia — o livro viria acrescentar algo.74

Digamos que o livro inaugura um lugar de enunciação por meio de um curto-circuito. “Se toda linguagem carrega a necessidade de sua própria crítica”, a Literatura não poderia ficar de fora, e o romance viabiliza que a afirmação derridiana seja ratificada. De acordo com o argelino Derrida, “o espaço da literatura não é somente o de uma ficção instituída, mas também o de uma instituição fictícia, a qual, em princípio permite dizer tudo” (“tudo”, nesse caso, em sua dupla acepção, isto é, tanto quanto correspondente à ideia de exaurir um assunto, quanto de dizer qualquer coisa).75 Para o filósofo, é como se a Literatura tivesse uma garantia “socio-jurídica política”; no entanto, essa possibilidade, que resguarda uma potência revolucionária, também pode operar dentro de uma lógica reacionária, na medida em que a rubrica de ficção pode neutralizar o que é expresso pela Literatura.

Se Barthes e Hutcheon trabalham em direção à desconstrução do discurso histórico, em Derrida é a Literatura que tem o seu essencialismo questionado. Desse modo, ele propõe que:

[...] não há nenhum texto que seja literário em si. A literariedade não é uma essência natural, uma propriedade intrínseca do texto. É o correlato de uma relação intencional com o texto, relação esta que integra em si, como um componente ou uma camada intencional, a consciência mais ou menos implícita de regras convencionais ou institucionais — sociais, em todo caso [...] Mudando de atitude com relação ao texto, é sempre possível reinscrever num espaço literário qualquer enunciado — um artigo de jornal, um teorema científico, um fragmento de conversa. Há, portanto, um funcionamento e uma intencionalidade literários, uma experiência, em vez de uma essência, da literatura (natural ou a-histórica).76

Na visão derridiana, a Literatura tem uma relação suspensa (como suspensão e como dependência, condicionalidade) com o “sentido” e a “referência”. Por isso, a dificuldade em definir a questão da Literatura sem passar pela questão da verdade e da essência da linguagem.77Um defeito de cor, em sua dimensão estética, política e ética, é uma obra que parece configurar essa suspensão e exige uma leitura crítica que seja capaz de se deslocar, de modo a reter os gestos contraditórios da obra.78

Considerando os processos de omissões e ocultamentos do que se refere à agência do negro no Brasil e levando ao limite a proposição que apresento, poderíamos sugerir que o romance Um defeito de cor tensiona a ideia de autonomia do objeto literário e questiona a referencialidade da própria Literatura (assim como a da História). Sobre a ilusão de “realidade”, em muitos níveis e de modo inegável, explicita-se o construto literário que, ademais, constitui-se como suplemento, no sentido derridiano, da História. Um defeito de cor, portanto, não pode ser compreendido fora de sua intenção, explicitada pela forma, de intervir na História e nas experiências que perfazem, ou não, esse discurso. Essa parece ser uma necessidade comum às obras que enformam a construção coletiva contemporânea. Contudo, em sua relação com a História, a obra aponta para a problematização da própria instituição literária e, sustenta, pois, uma indecidibilidade constitutiva.

A indecidibilidade constitutiva

1 Todas as referências a Um defeito de cor serão realizadas a partir da seguinte edição: Ana Maria Gonçalves, Um defeito de cor, Rio de Janeiro: Record, 2006.
2 O livro, desde o prefácio, mantém uma ambiguidade em relação à caracterização dessa narradora, que pode ser concebida como a figura de Luiza Mahin. Ela teria participado da Revolta dos Malês e dado à luz o poeta brasileiro Luiz Gama. Retomo essa vereda de análise em outros momentos de meu trabalho. Por hora, aos que se interessarem, é possível acompanhar algo dos estudos em torno dessa personagem histórica/mítica no trabalho Luiza Mahin entre a ficção e a história, de Aline Najara da Silva Gonçalves. Nessa dissertação, a autora faz um detido levantamento para verificar a existência histórica de Luiza Mahin e chega à conclusão de que “a historiografia discute, mas não reconhece a existência” da personagem. O romance de Gonçalves é classificado por Aline Najara como um tipo de “narrativa reparatória”, isto é, uma narrativa que deliberadamente dá existência a uma imagem importante na “memória coletiva do povo negro brasileiro”: “Trata-se de um mito cristalizado, mas, ainda assim, móvel, na medida em que transita em campos variados a ponto de ser apropriada de formas distintas. É justamente nesta dinâmica que está sua singularidade. Ao adentrar o terreno da subjetividade, preenchendo uma carência historiográfica em resposta a um anseio há tempos reclamado pela memória afro-brasileira”, Aline Najara da Silva Gonçalves, “Luiza Mahin entre a ficção e a história” (Dissertação de Mestrado, Universidade do Estado da Bahia, 2010), p. 91, <http://www.ppgel.uneb.br/wp/wp-content/uploads/2011/09/goncalves_aline.pdf>, acessado em mar. 2015.
3 Atual Benin.
4 Jaime Ginzburg, “O narrador na literatura brasileira contemporânea”, Tintas. Quaderni di letterature iberiche e iberoamericane, n. 2 (2012), pp. 199-221, <http://riviste.unimi.it/index.php/tintas>, acessado em dez. 2013.
5 Beatriz Mamigonian, “José Majojo e Francisco Moçambique, marinheiros das rotas atlânticas: notas sobre a reconstituição de trajetórias da era da abolição”, Topoi, v. 11, n. 20 (2010), pp. 75-91.
6 Retomar de modo pormenorizado esse histórico — que tem como marco inicial a Escola dos Annales — talvez exceda o escopo deste trabalho e a minha competência enquanto não especialista em História. Lidar com essa limitação da pesquisa de viés interdisciplinar é uma necessidade (não de todo confortável).
7 Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição, São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 16.
8 Mamigonian, “José Majojo e Francisco Moçambique”, pp. 75-6.
9 Mamigonian, “José Majojo e Francisco Moçambique”, p. 76.
10 Dentre esses pesquisadores, Mamigonian destaca Sidney Chalhoub, Regina Xavier, Keila Grinberg e João José Reis. Além da própria Mamigonian e de Maria Helena P. T. Machado, eu acrescentaria à lista Wlamyra Ribeiro de Albuquerque e os pesquisadores integrantes da linha de pesquisa “Escravidão e Invenção da Liberdade”, coordenada por ela e pelo professor João José Reis. Tendo em vista a dificuldade dos estudos ligados à compreensão das questões raciais na Teoria Literária brasileira, esses trabalhos realizados na área da História constituem-se como referências necessárias para os pesquisadores que, desde as Letras, se propõem a pensar nas relações entre escravidão e/ou negritude e Literatura. No campo das Letras, dentre aqueles que alimentam esse trabalho, sublinha-se a atuação das seguintes referências: Eduardo de Assis Duarte e pesquisadores agregados ao seu projeto de constituição da Literatura Afro-Brasileira (materializado no portal Literafro e na coleção Literatura e afro-descendência no Brasil, UFMG, 2011), Maria Nazareth Soares da Fonseca, Luís Cuti e Ligia Fonseca Ferreira.
11 De acordo com Gonçalves, “Serendipidade” é um termo que “passou a ser usado para descrever aquela situação em que descobrimos ou encontramos alguma coisa enquanto estávamos procurando outra, mas para a qual já tínhamos que estar, digamos, preparados. Ou seja, precisamos ter pelo menos um pouco de conhecimento sobre o que ‘descobrimos’, para que o feliz momento de serendipidade não passe por nós sem que sequer o notemos”. Gonçalves, Um defeito, p. 9.
12 Gonçalves, Um defeito, p. 17.
13 A relação distante dos escravizados com o universo letrado e a existência de um mecanismo deliberado de subtração dos papéis concernentes ao funcionamento e à memória do regime escravista são justificativas para essa falta que particulariza o Brasil no contexto dos séculos XIX e XX e o distancia, por exemplo, dos EUA, onde é possível encontrar registros significativos desse tipo.
14 Uma exceção a isso é o relato de Mahommah Baquaqua encontrado recentemente. Mahommah Gardo Baquaqua, Biografia e narrativa do ex-escravo afro-brasileiro Mahommah Gardo Baquaqua, Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1997.
15 Sobre isso, a autora-personagem, ainda no prólogo, afirma-se [ter voltado para contar a história presente nos manuscritos] aliviou um pouco a minha consciência por estar tirando deles um documento tão importante como aquele”. Gonçalves, Um defeito, p. 16.
16 João José Reis, Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Todas as citações dessa obra advêm dessa edição.
17 Reis, Rebelião escrava, p. 126.
18 Há outras fontes citadas, como materiais publicados na imprensa e relatórios das autoridades; aliás, o cuidado de citação e a menção às fontes consultadas é elemento importante na construção do texto.
19 Reis, Rebelião escrava, p. 143.
20 Reis, Rebelião escrava, p. 128.
21 Reis, Rebelião escrava, p.128.
22 Reis, Rebelião escrava, p. 142.
23 Reis, Rebelião escrava, p. 133.
24 Nas palavras de Reis: “Uma maneira de avaliar as ações dos rebeldes na cidade é levar em conta, ao lado do que fizeram, o que podiam ter feito”. Reis, Rebelião escrava, p. 149.
25 Sidney Chalhoub, Machado de Assis, historiador, São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
26 Chalhoub, Machado de Assis.
27 Machado de Assis, Helena, Porto Alegre: L&PM, 1998 (a primeira publicação da obra data de 1876).
28 Jorge Amado, Tenda dos Milagres, São Paulo: Companhia das Letras, 2008 (publicado pela primeira vez em 1968).
29 Não é possível afirmar que Literatura é uma disciplina de modo não problemático. Essa questão será abordada ainda neste artigo.
30 João José Reis, “Raça, política e história na tenda de Jorge”, posfácio ao livro de Jorge Amado, Tenda dos Milagres, São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 294-5.
31 Reis, “Raça, política e história”, p. 297. Nilo Argolo teria como referência Nina Rodrigues e Pedro Archanjo, Manuel Querino. “Pedrito é outro personagem de Tenda dos Milagres com equivalência na história real. Trata-se do delegado Pedro Azevedo Gordilho, tristemente famoso nas tradições orais do povo de santo como um policial despótico, perseguidor incansável de candomblés nos anos 1920. Porém, como afirma uma estudiosa do caso, Ângela Lühning, é difícil separar lenda de realidade. A própria lenda o tem como personagem contraditório. Assim como Nina protestava contra a violência policial, Pedrito, que invadia terreiros, destruía altares, confiscava atabaques e prendia pais e mães de santo, seria, ele também, protetor de algumas casas de culto nunca atacadas. O historiador e folclorista José Calasans — aliás também personagem de Tenda dos Milagres — recolheu cordel sobre Pedrito [..]”.
32 Considerando aqui que a publicação do livro de Reis é anterior ao romance de Gonçalves.
33 Conto com a paciência do leitor para acompanhar os trechos citados.
34 Reis, Rebelião escrava, p.127.
35 O nome de “Victório Sule” é grafado como “Vitório Sule”. Essa alteração pode ser significativa como veremos adiante.
36 Gonçalves, Um defeito, p. 519.
37 Gonçalves, Um defeito, p. 522.
38 Reis, Rebelião escrava, p. 127.
39 São muitas outras as correspondências que podemos indicar. Apenas a título de mais um exemplo, poderíamos analisar o subcapítulo “O plano”, no qual a escritora recupera as explicações sobre
os insurgentes que são propostas por Reis. No entanto, no romance, elas aparecem desde a fala e a perspectiva da narradora. Kehinde explica: “Devíamos evitar os prédios ocupados por soldados e só atacar aqueles que nos atacassem, porque eles eram mais bem armados que nós, que tínhamos muitos facões e espadas e pouquíssimas armas de fogo”. Gonçalves, Um defeito, p.521.
40 Podemos ler o subtítulo “A rebelião” como, também, uma remissão direta ao livro Rebelião escrava no Brasil.
41 Gonçalves, Um defeito, p. 523.
42 Gonçalves, Um defeito, p. 523.
43 Gonçalves, Um defeito, p. 516.
44 Gonçalves, Um defeito, p. 529.
45 Reis, Rebelião escrava, p. 155.
46 Gonçalves, Um defeito, pp. 517-25.
47 Como mencionamos antes, o romance sugere, de modo contundente, que a narradora seja a figura de Luiza Mahin, suposta mãe de Luiz Gama. No entanto, a possibilidade de existência dessa personagem histórica é negada por João José Reis.
48 Para Lukács, o romance não decorre de uma subjetividade consciente de seu ato criador, antes ele é constituído por um duplo mal-entendido: o da expressão e o da compreensão, já que opera independentemente das intenções do enunciador e do espectador. György Lukács, O romance histórico, São Paulo: Boitempo, 2012.
49 Lukács, O romance, p. 17.
50 Lukács, O romance, p. 51.
51 Lukács, O romance, p. 62.
52 Lukács, O romance, p. 385.
53 Lukács, O romance, p. 369.
54 Na bibliografia do romance, também consta a referência aos materiais presentes nos arquivos públicos de Salvador.
55 No seguinte trecho, pode-se ler o episódio em que Kehinde relata como, ainda criança, foi comprada por seu primeiro senhor: “A cada manhã renovavam a esperança de serem escolhidos para, enfim, deixarem aquele lugar que aos poucos ia acabando com eles, roubando saúde e, principalmente, dignidade [...] Sabendo das poucas chances que eu teria e que não deveria perder nenhuma delas, tentei me manter limpa e demonstrar alegria, pois percebi que a aparência contava muito [...] [Entra no espaço um homem “muito distinto, de meia-idade” e escolhe dois escravos, depois aponta a bengala para Kehinde] Antes que ele se arrependesse, e antes mesmo que me chamasse, corri para ele e me apressei a fazer todo o procedimento, o que me valeu uma chicotada de reprimenda por parte do empregado, mas também algumas risadas de todos que prestavam atenção [...] Como percebi que estava agradando, resolvi continuar. Dava um salto, levantava os braços, mostrava a planta dos pés, me agachava e ficava de pé, dava pulos no ar e repetia tudo em seguida. Eu já estava ficando cansada, quando o homem também se cansou de rir e passou a conversar em português com o empregado, e eu sabia que estava perguntando meu preço. Eu estava muito feliz por ter sido aceita”. [grifos meus] Gonçalves, Um defeito. No trecho, observamos uma sequência de ações lógicas, apresentadas por meio de períodos breves, descritas em função de um objetivo definido e declarado. Tal aspecto evidencia uma característica importante da narradora, presente em muitas outras passagens da obra, a esperteza. Rapidamente, Kehinde detecta a dinâmica da compra de escravos e as consequências para os que não são comprados. Como estratégia de sobrevivência, ela, ainda criança, passa, de modo grotesco, a encenar sua disponibilidade para a vida de escrava e, apesar da chicotada e da situação extremamente violenta, é capaz de sentir felicidade ao perceber que seu plano foi bem-sucedido. O tom da narrativa não abre margem alguma para o lamento, nem para a expressão da dor — inclusive física —, nem para qualquer negatividade.
56 Essa denominação segue sendo fortemente mobilizada pela crítica na leitura de certas obras contemporâneas. Em estrito senso, porém, Lukács aponta o declínio do romance histórico a partir de 1848.
57 Roland Barthes, O rumor da língua, São Paulo: Martins Fontes, 2004.
58 Barthes, O rumor, pp. 163-4.
59 Para isso, toma como referência os textos de historiadores clássicos como Heródoto, Maquiavel, Bossuet e Michelet. Há uma diferença significativa entre a forma de escrita desses historiadores e os textos produzidos pela Nova História, como o de João José Reis. No entanto, o cerne da indagação de Barthes parece válido também nesses casos.
60 Barthes, O rumor, p. 174.
61 Os nomes de Hayden White, Paul Veyne, Michel de Certeau e Roger Chartier podem ser citados como significativas referências de historiadores que se propuseram a fazer reflexões sobre o imbricamento do discurso histórico com o ficcional.
62 Ainda nesse universo de referências europeias que constituem parte significativa dos estudos literários no Brasil, outros dois títulos “clássicos” para a discussão sobre o realismo são o livro de Erich Auerbach, Mimesis, e o livro de Ian Watt, A ascenção do romance. No caso do primeiro, tendo como objeto a Literatura francesa do século XIX, sobretudo, Stendhal, Flaubert e Balzac, o realismo é compreendido como o período em que a Literatura propõe uma representação que tem como fundamento “o tratamento sério da realidade cotidiana, a ascensão de camadas humanas mais largas e socialmente inferiores à posição de objetos de representação problemático-existencial, por um lado — e, pelo outro, o engarçamento de personagens e acontecimentos quotidianos quaisquer no decurso geral da história contemporânea, de pano de fundo historicamente agitado”. Erich Auerbach, Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental, São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 440. Já Watt destaca como característica dessa nova forma de Literatura a caracterização e apresentação do ambiente, a individualização dos personagens — o que remente a uma identidade particular — e o ordenamento causal das ações, que resulta numa estrutura mais coesa. Para dar conta de seu realismo e da originalidade que o novo gênero constitui, há uma “pobreza de convenções formais” que, se comparada à tragédia ou à ode, imprime ao romance um aspecto amorfo. Ian Watt, A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding, São Paulo: Companhia das Letras, ٢٠١٠, p. ١٤.
63 A rememoração das conversas políticas que presenciava quando criança, ainda no primeiro engenho no qual trabalhou, a descrição detalhada do que foi a Cemiterada em seus aspectos sociais, ou, ainda, as várias notas de rodapé — que explicam ao leitor, sobretudo, aspectos da cultura e da religiosidade africana — podem figurar como exemplos do que nomeio como “excessos” que colocam em debate a verossimilhança do romance.
64 Reis, Rebelião escrava, p. 127.
65 Gonçalves, Um defeito, p. 524.
66 Gonçalves, Um defeito, p. 528.
67 Sabemos que, felizmente, esse discurso não é a única referência que constitui a nossa memória acerca do passado.
68 Linda Hutcheon, Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção, Rio de Janeiro: Imago, 1991, p. 127.
69 Hutcheon, Poética do pós-modernismo, p. 131.
70 Maria Aparecida Silva Bento, “Branqueamento e branquitude no Brasil”, <http://www.ebah.com.br/content/ABAAAexxUAB/branqueamento-branquitude-no-brasil?part=5>, acessado em 02/10/2015.
71 No texto, ela se refere à ação de Rui Barbosa que, em 1891, queimou parte da documentação do período escravista no Brasil.
72 É difícil decretar a conclusão de um texto, pois comumente os textos são registros de um processo do pensamento que segue em curso. Considero, então, que o texto não acaba, ele é provisoriamente abandonado.
73 Derrida escreve: “Se então a totalização não tem mais sentido, não é porque a infinidade de um campo não pode ser coberta por um olhar ou discursos finitos, mas porque a natureza do campo — a saber a linguagem e uma linguagem finita — exclui a totalização: este campo é com efeito o de um jogo, isto é, de substituições infinitas no fechamento de um conjunto finito. Este campo só permite estas substituições infinitas porque é finito, isto é, porque em vez de ser um campo inesgotável, como na hipótese clássica, em vez de ser demasiado grande, lhe falta algo, a saber um centro que detenha e fundamente o jogo das substituições”. Jacques Derrida, “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, in A escritura e a diferença, São Paulo: Perspectiva, 1967, p. 245.
74 “O movimento de significação acrescenta alguma coisa, o que faz que sempre haja mais, mas esta adição é flutuante porque vem substituir, suprir, uma falta do lado do significado.” Derrida, “A estrutura, o signo”, p. 245.
75 Jacques Derrida, Essa estranha instituição chamada literatura: uma entrevista com Jacques Derrida, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, p. 49.
76 Derrida, Essa estranha instituição, pp. 64-5.
77 Daí que, para Derrida, a tarefa da Crítica Literária confunde-se com a do filósofo.
78 As proposições do argelino Derrida foram úteis no sentido de me ajudar a sustentar a ginga que Um defeito de cor propõe. O romance, porém, evoca uma tradição de saberes negro-brasileiros que podem e devem ser incluídos em sua análise. Nesse sentido, os estudos de Eduardo Oliveira acerca de uma “cosmovisão africana”, ou “filosofia afrodescendente no Brasil”, são de grande valia, assim como o repertório teórico produzido desde outras experiências da diáspora. O que neste artigo aparece como ponto final indica abertura para a necessidade de elaboração de uma interpretação crítica afrocentrada que se acerque do âmbito configurado no e pelo romance.

Autor notes

* Deixo registrado os meus mais sinceros agradecimentos aos interlocutores que contribuíram para a feitura deste artigo. Dentre eles, o meu orientador Marcos Piason Natali e os integrantes da linha de pesquisa “Escravidão e Invenção da Liberdade” (UFBA); em especial, ao coordenador da linha, João José Reis, que foi muito atencioso em nossos diálogos e generoso ao me acolher no grupo durante o período de um ano.
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