Resumo: O texto descreve e analisa a obra Um defeito de cor (2006), da brasileira Ana Maria Gonçalves, considerado um dos livros mais importantes da literatura do século XXI. A ideia é demonstrar, por meio das memórias de Kahinde/Luísa, uma mulher negra, ex-escrava, cega e à beira da morte, como a atual literatura produzida por escritoras afrodescendentes, ao plasmar em suas obras um modelo original de raça e de gênero, permite explorar a história sob um ângulo diferente daquele usualmente adotado pela literatura tradicional, possibilitando novas representações valorativas e a superação de estereótipos preconceituosos e excludentes relacionados com raça e gênero. A obra em análise, por transcender as narrativas tradicionais e ser portadora de mensagens capazes de traduzir desejos de valorização, superação de condições concretas de existência e de emancipação de pessoas oprimidas, abre caminho para descentralizar os discursos conservadores que fomentaram, historicamente, estereótipos preconceituosos e invisibilizaram as identidades de indivíduos negros e as lutas para conquistar direitos historicamente negados. Consideramos que esta literatura histórica contemporânea e crítica é capaz de se converter em um poderoso mecanismo de luta em favor do reconhecimento social da raça negra, particularmente da mulher.
Palavras chave: Literatura de mulheres negrasLiteratura de mulheres negras,histórias de escravashistórias de escravas,reconhecimento social de negrasreconhecimento social de negras.
Abstract: The text describes and analyzes the work Um defeito de Cor (2006) by the Brazilian author Ana Maria Gonçalves, considered one of the most important books of 21st century Brazilian literature. The idea is to demonstrate, through the memories of Kahinde / Luisa, a black woman, ex-slave, blind and on the verge of death, how the current literature produced by Afro-descendant women writers, by translating into their works an original model of race and gender, allows us to explore history from a different angle than those models usually adopted in traditional literature, making possible new representations of value and overcoming biased and exclusionary stereotypes related to race and gender. By transcending traditional narratives, carrying messages capable of translating desires for valorization and overcoming the concrete conditions of existence and emancipation of oppressed people, the literary work under analysis paves the way for decentralizing conservative discourses that historically fostered prejudiced stereotypes and made invisible the identities of black people and their struggles to conquer historically denied rights. We consider that this historical and critical literature can become a powerful mechanism of struggle in favor of the social recognition of the black race, particularly women.
Keywords: Black women literature, slave stories, black people, social recognition.
Artigos
A LITERATURA COMO MECANISMO DE LUTA PELO RECONHECIMENTO SOCIAL DE MULHERES NEGRAS NA OBRA UM DEFEITO DE COR
Recepção: 07 Agosto 2016
Aprovação: 31 Agosto 2017
A produção literária latino-americana e caribenha escrita por mulheres negras apenas adquiriu maior visibilidade e reconhecimento nas últimas décadas do século XX, quando o exercício da escrita como direito de todos se fez acompanhado de conquistas sociais demandadas pelos emergentes movimentos políticos internacionais.1 Grupos que foram privados do acesso à linguagem escrita e à leitura alçaram suas vozes e declararam que a cultura letrada deveria servir como um instrumento de luta capaz de incluir o Outro, até então ausente de seu próprio mundo. Compondo este cenário de empoderamento sociocultural, as mulheres com ascendência africana incorporaram-se à luta e reivindicaram o direito de se apropriarem da escrita, nutridas pelo desejo de criarem uma “contra-história” centrada na identificação da própria realidade do sujeito, em que um mesmo fenômeno fosse possível de ser narrado de diferentes e múltiplas maneiras, dependendo de quem o narrasse.2
Essas narrativas criam uma verbalização sobre o rompimento dos espaços de opressão, reivindicando a promessa de liberdade, de justiça e de reconhecimento dos grupos submetidos à posição ou ao tratamento inferior nas estruturas sociais, permitindo avanços do conhecimento. Entretanto, os discursos chamados literários3 “transgressores” são objeto, não raramente, de negação nos espaços tradicionais das denominadas “instituições da literatura”,4 ocasionando resistências, conflitos e lutas no campo das relações de força e poder de ambos os lados.
A obra Um defeito de cor, da brasileira Ana Maria Gonçalves,5 objeto de apreciação deste texto, apresenta-se como uma dessas obras literárias “transgressoras” que favorece diferentes interpretações sobre sua trama. Essas obras mudam em seus discursos as velhas formas de narrar os processos históricos e sociais do Brasil colonial, permitindo imaginar uma multiplicidade cultural e novas formas de democratização. Trata-se de uma narrativa que expõe, de forma intrigante e provocativa, as relações sociais e de poder, os mitos e os rituais culturais das nações brasileira e africana, misturando história oficial e personagens reais com ficção. Sob uma nova perspectiva de empoderamento, as histórias de mulheres escravas permitem converter a escrita literária em uma ferramenta que ajuda na construção de uma nova identidade capaz de superar os estereótipos que, durante muito tempo, a mulher africana transportou, geralmente cheios de preconceitos racistas e sexistas; uma ferramenta de luta para o reconhecimento e a emancipação.
O romance Um defeito de cor, ganhador do Prêmio Casa das Américas em 2007,6 destaca-se por ter sido considerado o livro mais importante da literatura brasileira do século XXI e a primeira obra literária escrita por uma brasileira mestiça. O título do livro refere-se ao nome atribuído aos que não eram brancos e à discriminação que sofriam por conta disso, já que deveriam “branquear” suas origens. Sua autora é Ana Maria Gonçalves, nascida em 1970, em Minas Gerais, um estado com forte presença de população negra e, ao mesmo tempo, o principal foco de tradição e conservadorismo social e político do país.
A partir de um olhar contemporâneo combina, nas suas mais de novecentas páginas e pondo em cena mais de quatrocentos personagens, memória (a oralidade) e o registro escrito (literal), cria novas possibilidades da organização literária e compõe um grande afresco, onde se entrelaçam lendas, mitos, realidade e ficção para (re)construir a história do Brasil. Desenvolve-se em um espaço de tempo de aproximadamente oitenta anos e tem como pano de fundo grandes acontecimentos da história do Brasil. A Independência brasileira, o desenvolvimento e o declive da escravatura no país, a sublevação dos Malês, em 1835, a influência inglesa contra o tráfico de escravos, a aprovação da Lei do Ventre Livre e a proibição do comércio de escravos são exemplos de momentos históricos que a autora referencia ao longo da obra. Trata-se, portanto, de uma obra concentrada em um período histórico fundamental para a conformação da sociedade brasileira atual e capaz de favorecer um progressivo reposicionamento e uma valorização acerca do reconhecimento e da emancipação da mulher negra.
A protagonista do romance é Kehinde, uma escrava livre, que consegue voltar à África e, anos depois, anciã e praticamente cega, regressa ao Brasil em busca de seu filho, Luís Gama,7 que, quando criança, foi vendido como escravo por seu pai para pagar suas dívidas. Durante a travessia, Kehinde vai relatando suas memórias com a intenção de assegurar-se que podem chegar às mãos de seu filho. Apelando para o flashback e misturando história e ficção, recria, com múltiplos relatos, os problemas sociais e políticos do século XIX brasileiro e africano.
Todo o romance se desenvolve entre verdades e meias verdades, recurso que é utilizado desde a apresentação da obra, quando a autora, em cerca de vinte páginas, passa de autora a personagem que se inclui na trama para narrar a “fantástica história” que originou o texto. O enredo introduzido por Gonçalves para explicar a gênese do livro ocorre no presente, tempo verbal que a autora utiliza para narrar sua própria história e suas experiências como pesquisadora e escritora em uma mistura de fatos históricos, situações concretas, invenções e fatos mágicos. E, assim, o texto é construído de forma simples e ambígua, no qual a autora ora põe a origem e a construção do romance nas mãos do destino, que lhe permitiu encontrar um manuscrito abandonado, ora recorre à fidelidade dos registros históricos consultados para a sua escrita. As interferências da autora em seu texto, as citações de documentos, as notas de rodapé e suas conversas com os personagens conseguem tornar indiscerníveis os fatos concretos da pura ficção, derrubando os limites entre o real e o imaginário e desafiando sua capacidade para controlar o texto. Gonçalves, que começa incorporando em sua obra a poética da cultura africana, similar à da cultura da Bahia de Todos-os-Santos, também quis homenagear o autor Jorge Amado, que incorpora, em sua vasta obra literária, o discurso histórico e mítico da Bahia, região do Nordeste brasileiro com forte presença de afrodescendentes.
Desde o início, apresenta o romance como um fruto da serendipia, expressão que não tem uma definição precisa, mas que pode ser entendida como um descobrimento imprevisto, ou derivado de um conhecimento anterior, ou propiciado pelo azar. Esse jogo permite ao imaginário literário uma ampla liberdade para o emprego de conteúdos e formas e possibilita que o romance possa ser lido como um tipo de crônica ficcional na qual não há qualquer tipo de limite. Aliás, esse recurso é semelhante à construção de Carlo Ginzburg em seu livro O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição,8 no qual, utilizando as possibilidades teóricas e metodológicas do paradigma indiciário, polariza as questões entre racionalismo e irracionalismo.
O fato é que a obra emaranha magias e sentimentos de amor, saudades e nostalgias, apegos e desapegos, e também resiliências e lutas pela felicidade. Um romance otimista que acredita na utopia de democracia igualitária e na superação de situação de marginalização social. São histórias de “sujeitos multifacetários que vivem entre lugares, veem-se a partir de quem são e, ao mesmo tempo, do que esperam que sejam”.9 Histórias que deixam abertas múltiplas possibilidades de fazer perguntas e de obter respostas, embora fictícias, sobre as lutas pelo reconhecimento e pelas buscas de liberdade, o que, talvez, seja o maior mérito do romance.
Na sociedade contemporânea, surgem novas e complexas concepções de identidade e de sujeito derivadas de múltiplas “filiações” étnicas, linguísticas e religiosas. As identidades que até recentemente se vinculavam a classes, grupos ou características biológicas e possuíam uma conotação de permanência, adquiriram uma natureza mais variável e flexível, permitindo aos sujeitos compartirem simultaneamente diversas formas de identidade e manejarem milhares de imagens, de informação e de situações. Os mesmos processos que rompem com os antigos laços de pertencimento e enraizamento dão lugar ao surgimento de outra identidade capaz de integrar diversos aspectos da vida social coletiva,10 mediante a aquisição de conhecimentos e valores e do estabelecimento de novas relações sociais.
Na obra, a identidade dos personagens é marcada por um jogo constante de movimentos de inclusão e exclusão, de sentimentos de pertencimento e não pertencimento, realçando as distintas identidades assumidas pela personagem protagonista. Graças, talvez, a esse jogo de mutações identitárias que requerem novas aprendizagens e conhecimentos, Kehinde, apesar das adversidades, tenha se tornado capaz de assumir os rumos de sua vida, convertendo-se em senhora do seu destino. O exemplo da protagonista parece sugerir a outras mulheres a possibilidade de reconhecer-se nela e considerar as múltiplas possibilidades de construir histórias capazes de dar outros significados ao seu mundo, modificando os rumos de uma vida adversa.11
Na escrita da obra, Ana Maria Gonçalves recorreu a arquivos,12 jornais, testemunhos da época e relatos dos viajantes e comerciantes do Brasil colonial, analisando-os sob uma perspectiva histórica, antropológica e sociológica. Essa diversidade de fontes converteu o livro em uma crônica histórica, em um escrito autobiográfico e em uma obra de conteúdo epistolar, dificultando, assim, definir-se o gênero adotado. Esses recursos lhe proporcionaram a liberdade para construir e transformar personagens e acontecimentos históricos em fictícios e manipular acontecimentos históricos concebidos como “verdadeiros” por meio de novas versões. E, ainda, a liberdade para preencher as lacunas omitidas pela historiografia oficial.
Sem se importar com a fidedignidade histórica, a autora opta pela verossimilhança ao descrever a Independência do Brasil, o desenvolvimento do sistema escravista, a sublevação dos Malês,13 em 1835, a influência inglesa contra o tráfico de escravos, a aprovação da Lei do Ventre Livre e a proibição do comércio de escravos,14 fatos que caracterizaram a sociedade brasileira da época em que se desenvolve o romance.
A história narrada é a de uma sociedade exposta em suas contradições e antagonismos, que vai se construindo cotidianamente com seus acontecimentos e as histórias dos sujeitos. É a história de uma sociedade violenta, sobretudo contra quem desafiava o poder e seus poderosos, mas também histórias de criação de hiatos e rupturas capazes de tornar próximo o diferente; de aproximar as heterogeneidades e tornar possível o que parecia impossível. Relatos humanos sobre paixões humanas: rivalidades entre mulheres e homens brancos e negros; histórias de mulheres brancas com ciúmes de mulheres negras e de homens brancos com ciúmes de negros; histórias de negros inteligentes, letrados e cultos e de senhores e senhoras brancas analfabetas, incultas e dependentes dos conhecimentos dos negros.
Trata-se de uma obra em que as contradições e os antagonismos relacionados com as lutas e as disputas pelo poder, amor, reconhecimento e liberdade de entrecruzam por meio de fatos reais ou da ficção, possibilitando aos personagens compor novas identidades distintas das usualmente mostradas no romance brasileiro. Histórias de vencidos que se tornam vencedores e de lutas pelo reconhecimento e pela liberdade. Situações em que a opressão e a submissão de mulheres negras, exemplificadas em Kehinde criança, são superadas por vivências exitosas e conquistas de liberdade, autonomia, dignidade e respeito, como foi o caso de Kehinde adulta.
As recordações de Kehinde representam as memórias e as vozes de milhares de seres afrodescendentes que, como ela, viveram durante a época da escravidão. Com isso, a obra de Ana Maria Gonçalves possibilita emergir a identidade coletiva do povo afrodescendente e, consequentemente, do sujeito remanescente da diáspora.
O primeiro capítulo do romance apresenta o regresso de Kehinde ao Brasil, acompanhada de sua filha adotiva Geninha, para tentar encontrar seu filho, vendido ainda criança. No decorrer da viagem, tenta recuperar os laços de pertencimentos brasileiros perdidos durante sua longa permanência na África, uma busca entre o que é, o que foi e o que será. Embora oferecesse segurança a volta ao Brasil em condições superiores àquelas de quando chegou, da primeira vez, na condição de escrava, continua a persistir o medo, medo de não chegar com vida à terra, em vista de sua idade e de suas condições de saúde. Por isso, enquanto descreve suas memórias, comenta: “Estamos afastados há tanto tempo. O que terá acontecido a você durante todos esses anos? Por mais que o destino tenha sido bom comigo, tenha me dado mais filhos que sempre me orgulharam, nunca te esqueci”.15
O romance não registra sua chegada e, assim, não se sabe se consegue desembarcar no Brasil ou se morre antes, no entanto, isso não parece ter maior importância para a narradora, pois as dimensões espaciais e temporais estão marcadas pelas incertezas, características de uma estrutura narrativa pós-moderna. A anulação do tempo vivenciado pela protagonista traz à tona questões relacionadas com a abstração da realidade intemporal; um retorno ao passado por meio das recordações, mas, ao mesmo tempo, um avanço do futuro dada a urgência de encontrar o filho.
A insegurança de Kehinde de não conseguir concluir as suas memórias antes que a morte a alcance parece ser amenizada pela disposição de Geninha em registrar as suas narrações, antes de a sua história ser incontável ou cair no esquecimento. A força expressiva da memória agregada à escrita permite vencer o tempo e a distância, desafia o esquecimento e a invisibilidade e possibilita a existência e o reconhecimento dos que, de outra maneira, estariam condenados ao esquecimento. Como explica Carlos Fuentes:
A aproximação à palavra não pode ser excludente ou restritiva. A língua é como um rio caudaloso muitas vezes, e apenas um riacho outras vezes, mas sempre dono de um leito — a oralidade. [...] Toda essa profusa corrente da oralidade corre entre dois ribeiros: um é a memória, o outro é a imaginação. O que recorda, imagina. O que imagina, recorda. A ponte entre os dois ribeiros se chama língua oral ou escrita.16 (tradução livre)
Geninha, que representou a guarda inicial das recordações escritas de Kehinde, foi, décadas depois, seguida por Ana Maria Gonçalves, que assumiu a responsabilidade de perpetuá-las pelo relato literário. Com frequência, Gonçalves teve de recorrer à sua imaginação para cobrir as partes que faltavam no texto, ocupando o lugar de intérprete das mesmas e abrindo espaços para outras construções capazes de transformar a representação original da memória em uma “transposição criativa”. E, assim, flutuando entre lembranças e imaginação, as três mulheres, Kehinde, Geninha e Gonçalves, vão estabelecendo a “ponte entre os dois ribeiros” — a oralidade e a escrita — e permitindo diferentes leituras e interpretações da epopeia da protagonista.
As primeiras lembranças de Kehinde se referem à sua infância na África, quando, depois de presenciar a morte de sua mãe e de seu irmão assassinados por soldados do rei Adandozan,17 partiu sem rumo juntamente com sua avó e com Taiwo, sua irmã gêmea, até chegar à cidade de Uidá, onde foram capturadas por traficantes de escravos e embarcadas em um navio negreiro rumo ao Brasil. No final da viagem, Kehinde, “pelo seu próprio destino”, seria a única a sobreviver e chegar ao Nordeste brasileiro. Em sua narrativa, conta a alegria que sentiu quando o barco a deixou, em 1817, na maior ilha da Bahia de Todos-os-Santos, posteriormente chamada Itaparica, depois de uma longa travessia pelo mar. Ana Maria Gonçalves, por seu turno, ao descrever o seu processo de escrita, relata que, em 2002, depois de um feliz encontro com a “Bahia de Todos os Santos” decidiu conhecer Itaparica e, durante alguns meses, foi uma “feliz moradora da ilha”.18 Segundo Gonçalves, o “destino” a havia levado àquele local para que ela pudesse localizar os manuscritos que se encontravam perdidos em uma pequena igreja da ilha.
A presença do destino, inserida nos sincretismos religiosos das culturas brasileira e africana, acompanha todo o texto. Kehinde, assumindo essa dualidade, em momentos se apega à tradição cristã e afirma que o curso da vida e da morte é traçado pelo destino predestinado por um Ser maior e que dele ninguém pode fugir; em outros momentos, porém, incorpora a visão africana, garantindo que é possível mudar a rota traçada, se os Seres Superiores que dirigem o próprio destino estiverem de acordo. Quando o destino quer, “tudo é possível”, é o “destino permitido”.
O romance deixa em aberto a possibilidade de ter sido o destino que permitiu o cruzamento de caminhos entre Gonçalves e Kehinde no espaço literário; duas mulheres pertencentes a tempos e circunstâncias diferentes que se encontram, na ilha de Itaparica, para criar e recriar relatos e romper “as fronteiras da realidade dentro de um livro e as fronteiras de um livro dentro da realidade”, tal como afirma Fuentes.19
Em seu prólogo, confessa Gonçalves que muitas foram as noites em que, durante a transcrição das memórias do manuscrito, quando não conseguia entender a escrita, sentiu a própria Kehinde “soprando palavras em meu ouvido” e conclui: “Coisas da Bahia, crê quem quiser”.20
Quando Gonçalves estabelece uma relação de correspondência entre a história e as suas verdades recriadas, possibilita a existência de um mundo fictício em que se estabelece um diálogo entre o passado e o presente, por meio de diferentes perspectivas narrativas. Esse tipo de literatura permite a todos os “intervenientes do processo de criação literária representar um papel ficcional no texto”,21 sejam eles os personagens, o autor ou o leitor. Gonçalves “embarca” nesse tipo de criação e monta um jogo em que as peças, como em um encaixe, trazem do esquecimento figuras concretas ou fictícias para compor seu texto e, assim, criar seu mundo histórico e ficcional, ao tempo em que possibilita ao leitor também recriar um outro mundo, conforme suas próprias representações. Esse tipo de literatura, indica o escritor Eduardo de Assis Duarte,22 ressalta a idiossincrasia, meta ficcional da obra, em que a narrativa se apropria de figuras da história afro-brasileira, como Luísa Mahin,23 a heroína que lutou na Rebelião dos Malês e participou de outros acontecimentos em favor da libertação dos escravos, criando situações de complexidades e ambivalências. Gonçalves, no seu estilo de criação literária, não deixa claro, por exemplo, se o nome cristão assumido por Kehinde ao chegar ao Brasil foi inspirado na figura histórica de Luísa Mahin, mãe do poeta Luís Gonzaga Pinto da Gama, nascido de mãe negra e pai branco, escravo aos dez anos e considerado um dos maiores abolicionistas do Brasil. A narrativa da autora está sempre permeada pela ambivalência.
No relato, conta Kehinde que decidiu adotar o nome de Luísa para se apresentar aos brancos, “mas sempre se considerou Kehinde”.24 A ambivalência sugerida refere-se não só à sua dupla identidade nominal, mas a uma ação de resistência seguida de uma ação de liberdade e de insubordinação, uma vez que, ao regressar para a África e viver como uma pacata, acomodada e bem sucedida senhora africana, ela assumiu seu nome de “branca” (Luísa) e o deu de herança à sua neta. Durante o resto de sua vida, continuará levando ambos os nomes, um símbolo de seu processo de alteridade, mas também das identidades múltiplas.
Segundo Stuart Hall,25 vivemos em uma época em que a combinação entre o que é semelhante e o que é distinto coloca em evidência a cultura afrodescendente ou sua negação. Os resultados desses deslocamentos serão a aparição de várias identidades que significam, algumas vezes, a negação de romper com a anterior e, em outras, a aculturação do sujeito no jogo das relações sociais e de poder que tem suas representações simbólicas.26 Pierre Bourdieu 27 explica que o poder simbólico tem a capacidade de produzir e de tornar visíveis diferentes grupos sociais e étnicos. É a partir do capital simbólico adquirido em experiências anteriores que se busca um reconhecimento para mudar uma visão pré-existente de um grupo social e para tornar visível sua homogeneidade e força. As representações simbólicas, quer individuais, quer coletivas, se convertem em estratégias de luta por um espaço social, dentro do contexto em que um determinado indivíduo ou grupo em situação de subordinação se encontra inserido. No caso das situações de analfabetismo das mulheres negras, reconhecidamente grupos privados do acesso à linguagem escrita e à leitura, vozes são alçadas a seu favor para declarar que a cultura letrada deve incluir a todos e manifestar o inconformismo contra situações de exclusão.
Quando essa exclusão ocorre no âmbito da literatura, Luiza Lobo, citando Torin Moi, 28 depois de apresentar as posições da teoria literária de autoria feminista e seus dilemas ante os procedimentos de controle da produção do discurso literário, comenta que, de um ponto de vista teórico, a literatura de autoria feminina negra necessita criar, politicamente, um espaço maior dentro do universo da literatura, a partir de um ponto de vista e de um sujeito de representação própria. Mas, segundo ela, a “simples” condição de ser mulher e negra não é suficiente para uma pessoa assumir uma postura feminista emancipadora na literatura; o que torna um texto feminista emancipador é seu ponto de vista e sua inserção em um projeto político caracterizado pela militância para assegurar os direitos negados.
Isso significa que a literatura de autoria feminina negra encontra sua medida de representação quando as escritoras assumem, como mulheres e negras, posições contra a discriminação e a opressão. É por isso que, na obra de Gonçalves, Kehinde/Luísa se apresenta como uma mulher negra que luta contra as situações de exclusão e resiste. Uma negra que assume uma nova identidade individual, mas que continua assumindo a identidade de origem e até conservando as herdadas de seus antepassados, figuradas por todas as mulheres negras que compuseram o seu universo biológico e cultural e que, como ela, enfrentaram processos de opressão e de marginalização. Assim, é possível para uma personagem literária representar todas as pessoas que lutam para mudar suas trajetórias de vida, que lutam pelo seu reconhecimento e pela sua liberdade.
A literatura, portanto, como ferramenta de luta, permite visões da realidade desafiadoras e o despertar de sentimentos de pertencimento e de identificação sobre o mundo e sobre suas próprias atitudes. Essas novas descobertas tornam possíveis as transformações e o refazer histórico.
A experiência da escrita e da leitura, duas práticas estreitamente relacionadas, se apresentam como um pressuposto básico para a compreensão dos mecanismos do desenvolvimento humano e uma das aptidões mais requeridas para a atual convivência social.
Em diversas passagens da obra, Kehinde ressalta suas experiências de leituras e de escritas e descreve seu apreço por seus livros, o que a torna distinta de outras pessoas, brancas ou negras analfabetas que viviam no Brasil do século XIX. Vale ressaltar que, em 1820, menos de 1% da população brasileira sabia ler e escrever e, em 1872, quando se realizou o primeiro censo no país, os analfabetos constituíam 82,3% da população, em sua maioria negros, cujo estatuto jurídico lhes proibia o acesso à cidadania e, por conseguinte, à educação.29
Quando Gonçalves outorga a Kehinde a capacidade de ler e escrever, lhe confere, também, o reconhecimento e o status de vencedora, apesar de continuar vivenciando experiências de desprezo e de negação de reconhecimento em vista das estruturas normativas, morais, jurídicas e políticas da época. Naquele contexto de exclusão, a condição de alfabetizada a diferenciava de outros indivíduos escravos, tornando-a quase uma “atração”. Em seus relatos, conta que, algumas vezes, quando fazia cartas ou anotações na rua,
Algumas pessoas me atiravam dinheiro, pensando que eu vivia daquilo, uma preta que sabia escrever e se exibia em locais públicos. Confesso que achei divertido e que me fez bem, não o ato de ter recebido dinheiro, de que eu não precisava nem era essa a intenção, mas me senti orgulhosa de mostrar que sabia fazer uma coisa que não era muito comum, nem entre os brancos.30
Se, por um lado, a autora não explicita os motivos pelos quais a personagem procurou saber ler e escrever sozinha, por outro, parece insinuar uma íntima correlação entre oportunidade e destino, quando tinha de acompanhar a sua jovem patroa durante as aulas que eram dadas por um escravo malê. Com uma determinação pouco usual em uma época em que quase ninguém tinha acesso à escrita e não se permitia a alfabetização de escravos, a determinação de Kehinde de aprender a ler, desafiando as normas jurídicas coloniais e as relações de poder estabelecidas por uma sociedade racista e preconceituosa, sua posse de leitura e escrita é entendida como uma postura de luta e de insubordinação. Foi a aquisição dessas ferramentas que lhe possibilitou maior conhecimento, maior autonomia em sua vida. A familiaridade com a escrita e a leitura lhe abriu outras possibilidades de ler o mundo e, também, lhe facilitou encontrar as estratégias para “comprar a sua liberdade”. Encontramo-nos aqui com a recriação feminina de Juan Francisco Manzano, o escravo cubano que aprendeu sozinho a escrever e, por isso, obteve a sua liberdade.
Paulo Freire comenta que a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e que o ato de ler é uma experiência existencial.31 Os textos, as palavras, as letras são fundamentais para a compreensão do mundo, para ampliar a capacidade que se tem para inscrever-se ou reinscrever-se no mundo e para transformá-lo mediante práticas conscientes.
No entanto, em uma sociedade em que, para um negro, a possibilidade de aprender a ler e a escrever ou de ter livros era vista quase como um delito, ao mesmo tempo em que essa condição o distinguia dos demais, também o distanciava dos seus, pelo controle das instituições sociais. Sobre o controle exercido pelas instituições sociais, González, citando Dubois, afirma que:
A eficácia de cada instituição se logra pela imposição de sistemas de normas e valores; e é aqui que as instituições aparecem como lugares de dominação e de subordinação ideológica de que são resultado, não só pelos discursos que difundem e que produzem, mas, sim, pelo caráter de imposição das instituições, já escrito em seu modo recorrente da realidade das práticas sociais, na maneira em que fixam, sobre o terreno de uma legitimidade, as condições de possibilidade e de exercício dessas práticas.32 (tradução livre)
A importância — e o perigo — do ato de ler revela-se na Revolta dos Malês, um levante dos escravos mulçumanos letrados para libertar-se de sua situação de opressão. A repressão dos rebeldes à custa de um massacre buscou, sobretudo, eliminar aqueles que eram alfabetizados, por entender que significavam ameaça para a manutenção da ordem vigente e, por isso, uma transgressão.
Essas transgressões propiciadas pela apropriação da leitura e da escrita, que permitem a elaboração de novos discursos e o avanço do conhecimento, continuam sendo, até hoje, objeto de negação nos espaços sociais e de lutas. As potencialidades políticas da escrita e da leitura do mundo abrem espaços para chegar-se a questões relacionadas com o poder e a justiça, involucrando aspectos relacionados com a raça, a classe e o gênero. Entre o cultivo de uma cultura tradicional não escrita que se manifesta e se transmite na memória e a construção de um discurso escrito com potencial múltiplo, situa-se a atual criação cultural das mulheres afrodescendentes, organizada desde “múltiplos olhares”. Como explica Beltrán:
Literatura e documento, ficção e realidade, mulheres e homens, letrados e iletrados, oralidade e escrita, memória e autobiografia, alienação e emancipação, poder e contrapoder, palavra e silêncio, exclusão e educação, condição de classe e posição de classe, consciência de si e consciência para si,33 amos e escravos, direitos e serviços, políticas e práticas são formas culturais de ler o mundo. A aproximação à alfabetização pode fazer-se desde múltiplos olhares.34
O ato de escrever e ler literatura também pode ser transgressor, dependendo de quem escreve ou das mensagens publicizadas. Os conteúdos da obra podem propiciar reflexões e vínculos de solidariedade entre o leitor e o enredo, abrindo espaços para manifestações de indignação e para demandas de justiça e de reconhecimento. A obra de Jonathan Culler,35 em que o autor discute a formação do sentido e das identidades humanas, parece insinuar que uma das contribuições da narração literária é a construção da identidade dos leitores, os pontos de vista que se identificam e se reconhecem. O reconhecimento produzido pelo contato com a alteridade possibilitaria a construção de novas identidades e do desejo coletivo de transcender as situações de dominação.36
A linguagem literária é um instrumento de poder, tanto de manipulação como de força, alega Hutcheon.37 Ao longo dos tempos históricos, a literatura, como representação cultural de processos comunicativos, traduz desejos coletivos de transcender ou de manter situações de injustiça ou de dominação, dependendo de sua localização social, histórica, política e cultural e, também, de quem os traduz.
A obra Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, que expõe a situação da sociedade escravista brasileira, particularizando a situação da mulher negra e seus meios para compreender seu mundo e transformar sua condição de existência, serviu de cenário para a análise e a reflexão atualizadas sobre o universo escravagista brasileiro. O romance, organizado com descrições históricas, sociológicas, antropológicas e ficcionais, permitiu adentrar nos padrões de comportamentos adotados naquela organização social relacionados com a questão de raça e de gênero e sua diversidade de elementos e funções.
As narrativas de sua protagonista Kehinde, cuja imagem de empoderamento sociocultural transcende os preconceitos relacionados com o papel e a posição da mulher negra de outrora, abrem caminho para descentralizar os discursos conservadores que, historicamente, fomentaram estereótipos preconceituosos e invisibilizaram suas identidades. Servem de referência para a resistência desses grupos em suas demandas por direitos e valorização social. Servem de exemplo para fortalecer as identidades das mulheres negras e suas lutas para conquistar direitos historicamente negados. Servem, enfim, para propiciar movimentos e relações sociais inovadoras.
Consideramos que a obra Um defeito de cor, por transcender as narrativas tradicionais permeadas de estereótipos negativos sobre a identidade negra e por ser portadora de mensagens capazes de traduzir desejos de valorização, superação de condições concretas de existência e emancipação de pessoas oprimidas, se converte em um poderoso mecanismo de luta em favor do reconhecimento social da raça negra, particularmente da mulher negra.