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CENÁRIOS DO PÓS-ABOLIÇÃO NO VALE DO PARAÍBA PAULISTA: TUTELA, TRABALHO INFANTIL E VIOLÊNCIA SEXUAL (1888/1889)

Maria Aparecida Papali
Universidade do Vale do Paraíba, Brasil
Valéria Zanetti
Universidade do Vale do Paraíba, Brasil
Mateus Henrique Obristi Castilho
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil

CENÁRIOS DO PÓS-ABOLIÇÃO NO VALE DO PARAÍBA PAULISTA: TUTELA, TRABALHO INFANTIL E VIOLÊNCIA SEXUAL (1888/1889)

Afro-Ásia, núm. 56, pp. 147-167, 2017

Universidade Federal da Bahia

Recepção: 20 Julho 2017

Aprovação: 27 Outubro 2017

Resumo: O artigo discute as tensões desencadeadas no pós-abolição em pequenas cidades do Vale do Paraíba Paulista, tais como São José dos Campos, Jacareí e Paraibuna. Uma das questões que se tornou evidente foi a exploração da mão de obra infantil e juvenil por meio de ações de tutela e contratos de soldada. A documentação consultada possibilitou a interpretação de um cenário tenso, no qual trabalho, fugas e violência sexual se mesclavam no cotidiano de órfãos tutelados e seus respectivos tutores.

Palavras chave: tutela, pós-abolição, órfãos.

Abstract: The article seeks to discuss the tensions triggered in small post-abolition cities in the Paraiba Valley of São Paulo, including São José dos Campos, Jacareí and Paraibuna. One of the issues that became evident through the analysis was the exploitation of children and youth labor through tutorship actions and soldier contracts. The documentation consulted allowed for an interpretation of a tense scenario, where work, evasion and sexual violence mixed in the daily lives of protected orphans and their respective guardians.

Keywords: Guardianship, Post-Abolition, Orphans.

Neste artigo, busca-se discutir uma problemática que vem se tornando recorrente em pesquisas sobre o pós-abolição no Vale do Paraíba. Trata-se da utilização da mão de obra infantil como recurso ancorado pelo Judiciário da época e amplamente difundido entre ex-senhores e demais “homens bons” das cidades. As pesquisadas são São José dos Campos, Jacareí e Paraibuna,1 cidades geograficamente próximas e, no período estudado, pouco significativas no âmbito da agroindústria cafeeira tão cara à região. No período escravocrata, tais cidades abrigavam, em sua maioria, pequenos e médios proprietários, com um grande contingente de homens pobres livres. Ao levantar-se a documentação forense dessas cidades para o período estabelecido, os documentos encontrados em maior número, ao lado de processos crimes e processos cíveis, foram as tutelas e soldadas aplicadas a órfãos pobres, menores desvalidos, filhos de ex-escravas, libertas e mulheres solteiras pobres em geral.2

O pós-abolição tem sido uma temática cada vez mais estudada no país, mas ainda com muitas possibilidades interpretativas. Estudos recentes o vêm apontando como um campo de pesquisa a ser contemplado, cada vez mais, por historiadores envolvidos com a temática. Muito já se falou da exclusão endereçada aos negros e “herdeiros da senzala”, mas se fazem necessários novos estudos, para que se descortinem dimensões ainda obscuras dentro das amplas possibilidades do momento.

Frederick Cooper, Thomas Holt e Rebeca Scott analisam raça, trabalho e cidadania tendo como espaço de investigação Cuba, Estados Unidos e África. Na introdução do trabalho, enfatizam os problemas encontrados com tal temática, dada a diversidade de possibilidades, escassez e fragmentação das fontes, bem como a dificuldade de se estabelecerem limites temporais para tais estudos. No entanto, buscam também deixar clara a necessidade de se compreender esse período como um campo de pesquisa com suas nuances peculiares:

Com muita frequência os estudiosos da escravidão trataram o período que a seguiu — o do trabalho livre — como um pano de fundo conceitual da servidão, indiferenciado e não investigado. O trabalho escravo podia ser analisado em termos econômicos sociais e políticos, mas o trabalho livre costumava ser definido simplesmente como o fim da coação, não como estrutura de controle da mão de obra que precisasse ser analisada a seu próprio modo.3

No Brasil, são muitos os aspectos a serem descortinados em uma época de intensa transformação. Tanto o final da escravidão como o final do século XIX trazem consigo aspectos relacionados com a modernização, o avanço do ideário burguês, bem como sinalizações de uma consciência de cidadania em construção. No entanto, o final da escravidão traz um impasse: não obstante sinalizasse para uma perspectiva de país moderno, possibilitava, também, a perda do controle sobre o trabalho, função tão cara aos nossos mais ferrenhos escravagistas.

Wlamyra Albuquerque ressalta o entrelaçamento entre racialização e cidadania ao investigar as últimas três décadas do século XIX na Bahia, considerando o pós-abolição um campo efervescente de disputas e construções raciais praticadas em todas as categorias sociais. Cada um a seu modo, negros, brancos, intelectuais, Justiça, entre outros, sinalizavam um campo de tensões pautado na racialização. Segundo a autora, as fronteiras existentes em relação à cor foram redefinidas, compondo as peças do intrincado jogo do conceito de cidadania no alvorecer da República.4

Em relação ao Vale do Paraíba, um campo de tensões que tem se mostrado recorrente diz respeito aos trâmites da Justiça em relação ao uso do trabalho infantil. Não raras vezes, juízes de órfãos, oficiais de justiça, inspetores de quarteirão, entre outros, se mostraram coniventes com a prática tão amplamente utilizada na região.

Walter Fraga, ao estudar escravos e libertos no Recôncavo Baiano, sustenta que formas de vida, organização de trabalho, redes de solidariedade, recursos materiais e simbólicos das comunidades escravas foram utilizados como estratégias de sobrevivência após a abolição, muito embora os libertos tenham procurado se distanciar de estigmas que remetiam ao mundo do cativeiro. O autor observa que todas as experiências amealhadas pelos libertos durante a escravidão foram utilizadas, principalmente na busca por melhores condições de trabalho nas tratativas com seus antigos senhores.5

No Vale do Paraíba, as fontes analisadas sinalizam que, não raras vezes, redes de solidariedade se formaram em situações de fuga, quando crianças e jovens não aceitavam o trabalho compulsório para o qual eram remetidos por meio de tutelas e soldadas. Nas fugas, toda uma rede de parentela (mães, tios, avós) atuava na tentativa de acolhimento dessas crianças. Foram certamente estratégias de sobrevivência arduamente arquitetadas, como resposta à constante busca pelo controle de seus tão jovens corpos.

Em trabalho recente, Flavio dos Santos Gomes e Petrônio Domingues levantam a questão da necessidade de se problematizar o pós-abolição, tendo em vista que a discussão levantada pela historiografia tradicional coloca o negro como pária na sociedade, estabelecendo uma explicação generalizante, não alcançando as nuances desejadas:

Por seu turno, a historiografia brasileira argumentou durante muito tempo que, depois da abolição da escravatura, os negros foram preteridos do mercado de trabalho, marginalizados socialmente, excluídos do mundo da política institucionalizada e impedidos de acesso à educação formal. Sem renda, poder e prestígio, por um lado, e desprovidos de qualificação cultural e técnica para competir com os brancos nos albores da República, por outro, passaram a viver na condição de párias, com famílias desestruturadas, em estado de desajustamento e anomia social. Essa explicação generalizante, esquemática e reducionista precisa ser problematizada.6

Muitos são os percalços a serem enfrentados pelos historiadores, quando se debruçam sobre esse tema na história do país. As fontes, além de escassas, são, muitas vezes, fragmentadas, sutis. Torna-se necessário um olhar perspicaz, em condições de ler, nas entrelinhas de um documento, significados maiores que à primeira vista não se estabelecem completamente. Em pesquisa inédita, Ana Lugão Rios e Hebe Castro, tendo como abordagem fontes orais, buscam descortinar memórias de famílias de escravos e ex-escravos no Vale do Paraíba, em uma obra que tem lançado muitas luzes sobre o tema, principalmente porque identificam a problemática em relação ao pós-abolição:

De fato, procura-se recuperar a historicidade dos diferentes processos de desestruturação da ordem escravista e seus desdobramentos, seja no que se refere às relações de trabalho, às condições de acesso aos novos direitos civis e políticos para as populações libertas, bem como às formas de racialização das novas relações econômicas, políticas ou sociais.7

Para todas essas percepções, é necessário, também, compreender as lutas finais do processo abolicionista. Acredita-se que entender as dimensões da luta abolicionista no Sudeste cafeeiro só se torna possível mediante a compreensão de todo o processo vivido pelos mais interessados, ou seja, os próprios escravizados; e, a partir dos significados de liberdade construídos por essa comunidade, decorrente das experiências e aproximações com a liberdade ainda durante a escravidão.

Tais significados de liberdade seriam mais bem apreendidos em seus aspectos mais relevantes não somente durante o processo de desmantelamento da escravidão, como também no pós-abolição, quando toda a experiência dos escravizados, bem como suas expectativas e projetos de vida, estariam se redirecionando, sendo potencializadas, deixando vestígios para o historiador conseguir captar tal momento como um momento único, passível de possibilitar maior aproximação com os valores dos recém-libertos e suas concepções acerca dos significados da liberdade. Tais projetos e concepções dos egressos da escravidão, confrontados com os projetos das elites para essa comunidade, resultariam em focos de tensão capazes de conter valiosas informações sobre aquele período de transição.8

Tutelas e soldadas: trabalho, tensões e fugas

Nos anos finais do regime escravista e nos anos iniciais do pós-abolição, foram muitas as maneiras de trabalho desenvolvidas por libertos e ex-escravos. Em sua pesquisa sobre criadas domésticas no Rio de Janeiro, Sandra Graham observa que tal atividade perpassava o universo do trabalho das mulheres pobres na referida cidade, independentemente de sua condição jurídica. Ser criada doméstica significava conviver com os patrões dentro da privacidade dos lares, sem, no entanto, pertencer a eles. O maior acordo implícito nessa relação de patrões e empregadas domésticas situava-se no item proteção, que, em tese, deveria ser concedido pelos patrões às suas criadas, em troca de obediência e fidelidade exemplares, que deveriam ser exercidos sem rodeios por suas supostas protegidas.9

Em pesquisa sobre a criança pobre na cidade de São Paulo entre 1900 e 1927, Maria Izabel de Azevedo Marques Birolli observa a labuta das crianças nos serviços domésticos — principalmente meninas — exploradas, mal alimentadas, executando tarefas além de suas forças físicas. Nos processos de tutela pesquisados pela autora, há indicações da utilização de meninas tuteladas para o serviço doméstico nas casas de seus tutores.10

Maria Aparecida Papali verifica fortes indícios de tensões no pós-abolição na cidade de Taubaté, no Vale do Paraíba, por meio da análise de ações de tutela. Analisando o teor das tutelas de órfãos pesquisadas, constatou que muitos desses documentos constituíam-se em processos sumários de tutela: expostas as razões de crianças ou jovens necessitarem de um tutor, eram encaminhados a “homens idôneos” da cidade (geralmente indicados pelo escrivão de órfãos) e, assinado o Termo de Tutela, o documento estava concluído. Esse tipo de ação tutelar de caráter sumário foi encontrado principalmente na década de 80, com ápice em 1888, ano em que foram contabilizados 81 documentos com essas características.11

As tutelas aplicadas aos órfãos de posse já existiam como procedimento jurídico desde a Colônia, mas, no final do século XIX e início do século XX, ocorreu a ampliação dessa prática recaindo principalmente sobre os menores desvalidos, quando filhos de mulheres solteiras pobres e miseráveis (incluindo ex-escravas e libertas) foram, amplamente, dados à tutoria, com a justificativa de que tais mães não teriam condições de cuidar de seus filhos. Segundo consta no livro Primeiras linhas sobre o processo orfhanológico, de José Pereira de Carvalho, publicado inicialmente em 1879, fica evidente o quanto a legislação da época se ancorava nas Ordenações Filipinas. Segundo o referido processo, os tutores estariam agrupados em três categorias: tutores legítimos, tutores testamentários e tutores dativos:

Chamam-se tutores testamentários aqueles que são nomeados em testamentos; legítimos aqueles que a lei nomeia na falta ou incapacidade dos testamentários; e dativos, aqueles que, na falta ou incapacidade de uns e outros, são nomeados pelo juiz.12

De acordo com o exposto acima, os tutores nomeados pelo juiz seriam considerados tutores dativos, ou seja, aqueles que supostamente teriam melhores condições de zelar por crianças e jovens filhos de mães solteiras pobres, ex-escravas ou libertas. Segundo Pereira de Carvalho, tem-se a seguinte explicação sobre tutelas dativas:

Esta espécie de tutela [dativa] recai quase sempre em pessoas incapazes, por se não empregarem os meios necessários para se fazer uma acertada escolha, e tal qual recomenda a Ord. do L.4, T.102*7, nas palavras o juiz obrigará um homem bom do lugar, que seja abonado, discreto, digno de fé e pertencente, para ser tutor do órfão, e para guardar e administrar sua pessoa e bens.13

A suposta falta de capacidade atribuída às mães libertas e ou solteiras pobres, contribuiu, certamente, para transformar ex-ingênuos e os demais filhos da pobreza em órfãos necessitados de tutores dativos; e ex-senhores (ou seus pares) em “homens bons” indicados pelos juízes de órfãos.14

Outra maneira jurídica de se usufruir do trabalho do menor consistia na soldada, um contrato de locação de serviços criado no início do Império, endereçado principalmente aos menores filhos de imigrantes, cujo trabalho precisava ser regulamentado. No entanto, com o passar do tempo e com o avanço da legislação escravista, a soldada sofreu uma readequação. Segundo Gislane Campos Azevedo:

Na medida em que as restrições à escravidão começaram a ser impostas, a soldada sofreu mudanças jurídicas, passando a atingir não apenas os filhos de imigrantes, como também toda e qualquer criança pobre. De acordo com a nova legislação a soldada seria utilizada quando os juízes de órfãos determinassem “que menores indigentes sejam alugados para serviços domésticos”. Isso permitiu que seu uso fosse intensificado, pois na prática o contrato de soldada passou a ter como objetivo principal, a tarefa de substituir o serviço escravo das residências pelos serviços de menores abandonados.15

De acordo com o que prescrevia a lei de contrato de soldada, o menor com mais de 14 anos deveria receber um soldo por seus serviços, e aqueles com idades entre 7 e 14 anos ficariam na dependência da arbitragem do juiz. Ainda de acordo com a legislação, o soldo deveria ser depositado em uma conta na Caixa Econômica, cujo montante o jovem só poderia retirar com a maioridade ou em casos específicos, como o casamento, por exemplo.16

Pesquisas recentes vêm demonstrando o quanto esse procedimento de tutelar e assoldadar órfãos pobres foi utilizado em várias regiões do Brasil: Alba Barbosa Pessoa identifica esse tipo de prática na cidade de Manaus; Ana Paula Pruner de Siqueira pesquisa tais procedimentos em Campos de Palmas, no Paraná; Ione Celeste de Sousa desvenda o trabalho compulsório de ingênuos na Bahia. Algumas dessas pesquisas evidenciam a necessidade de se estudar a inserção desses menores nos trabalhos domésticos, conforme salienta Patrícia Geremias, o que parece, de fato, indicar a leitura atenta de tais fontes.17

Nas cidades analisadas em nossa pesquisa, ações de tutela e soldadas foram constatadas, em maior quantidade, a partir de 1888. Em São José dos Campos, foram encontrados, em maior número, processos de ações tutelares, e, em 1888, no pós-abolição imediato, há um aumento significativo dessas ações. Muitas dessas ações de tutela encontradas em São José dos Campos são significativas do ponto de vista da análise qualitativa, já que, em várias delas, são documentadas fugas de menores de seus respectivos tutores ou assoldadantes, envolvendo contendas entre oficiais de justiça, mães e os próprios órfãos.

Em Paraibuna, prevaleceram os contratos de soldada, com destaque para o ano de 1889, quando a existência desses documentos alcança níveis bem elevados. Observou-se uma alta incidência de fugas protagonizadas pelos órfãos e, também, acusações de “defloramento”, ato praticado pelo assoldadante em suas órfãs.

Já na cidade de Jacareí, contratos de tutelas e soldadas só foram encontrados a partir de 1889, ainda assim em número bem menor do que nas cidades vizinhas. No entanto, apesar do pequeno número, tais ações são também turbulentas, contendo fugas, maus-tratos e disputas pelo trabalho do órfão. Alguns desses processos descortinam cenários imbricados, não raras vezes com esses menores sendo disputados entre tutores, mães ou contratantes. São ações de tutelas e soldadas que se prolongam por vários anos, possibilitando ao pesquisador reconstruir um pequeno cenário do cotidiano da época.

O ato de tutelar um menor desvalido pode ser considerado uma atitude em si benéfica, um ato de assistência praticado pelo poder público, como indicam estudos recentes que buscam demonstrar o despertar dos olhos do Estado para a infância em geral, fato que tem início no final do século XIX, intensificando-se no início do século XX.18 No entanto, o que ocorreu no pós-abolição nas cidades pesquisadas foi uma verdadeira corrida ao uso da mão de obra infanto-juvenil de forma indiscriminada, além de evidências de vários tipos de violência e maus-tratos cometidos contra esses menores, incluindo violência sexual.

Tutelas, soldadas e violência sexual em Paraibuna

Neste item, são interpretados três documentos de crime de defloramento do ano de 1889, cujas vítimas foram três menores tuteladas em Paraibuna. Nessa cidade, entre os anos de 1888 e 1889, foi possível constatar uma busca crescente pela mão de obra infantil por meio de ações de contrato de soldada. Tais ações estão documentadas em 68 fontes primárias para o ano de 1889, sendo apenas duas para 1888. Esses documentos tem revelado que as crianças e jovens assoldadados, além de viverem sob um forte ritmo compulsório de trabalho, também não estavam isentas de sofrer violência de diferentes magnitudes. Um dos tipos de violência observada foi a sexual, na forma de crime de defloramento, ocorrido com três irmãs assoldadas no ano de 1889.

As menores Joaquina Benedicta, Maria do Carmo e Maria José, filhas do falecido Joaquim Procópio de Alvarenga e de Floriana Maria de Jesus, viviam sob a guarda de Francisco Lobato de Moura. Em relação às três menores, é constatado o crime de defloramento, com uma agravante no caso de Joaquina Benedicta, por ter a menor engravidado e dado à luz uma criança, filha do suposto autor do crime, Francisco Lobato de Moura. Segundo Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz, “Autos de defloramento são documentos jurídicos que relatam histórias de jovens defloradas, ou seja, que foram desvirginadas, com emprego de violência ou não”.19

O Termo de Contrato de Soldada, assinado no ano de 1889, existente no Arquivo Histórico da Cidade de Paraibuna refere-se somente às menores Maria José e Joaquina Benedicta, cujas idades são, respectivamente, catorze e treze anos, idades essas bem diferentes das relatadas no processo crime de defloramento, também datado do ano de 1889. No inquérito judicial, Joaquina diz ter quinze anos e sua irmã, Maria José, dezoito anos. A não coincidência de idades pode indicar que, de alguma maneira, as menores teriam sido instruídas a aumentá-las, tornando-se, assim, mais velhas e conscientes de seus atos perante o Juízo de Órfãos.

A denúncia do promotor público da Comarca de Paraibuna tinha como base o Código Criminal do Império de 1830. Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz afirma que o crime de defloramento remetia às Ordenações Filipinas promulgadas em 1603 por Filipe I, rei de Portugal:

O termo “defloramento” consta do Código Criminal Brasileiro de 1830, tomado de empréstimo das Ordenações Filipinas, Livro V, o qual trata, dentre outros assuntos, do caso em que homem “forçou alguma mulher”.20 O Código Criminal Brasileiro de 1830, Capítulo II - “Dos Crimes contra a Segurança da Honra”, traz os artigos 219 a 225 referentes ao delito de estupro. O artigo 219 apresenta o seguinte texto: “Deflorar mulher virgem, menor de dezasete annos.” O 222, este: “Ter copula carnal por meio de violencia, ou ameaças, com qualquer mulher honesta”.21

Na leitura desses processos, constatou-se a culpa do réu Francisco Lobato de Moura no inquérito policial e a declaração de sua inocência por parte do Judiciário. Outra semelhança nos três casos é a preocupação com a honra das mulheres. A preocupação em preservar a reputação feminina tem suas origens no primeiro Código Criminal do Império Brasileiro, como observa Angela Pires Martori Chichitostti:

Juridicamente a preocupação em preservar a reputação feminina data em nosso país desde o Código Criminal do Império de 1830. Ontem e hoje (resguardadas as devidas particularidades e exceções), a tempos se procura proteger a honra, um bem valioso e inerente à pessoa humana que, variando conforme Artigo 219 (do Código acima citado consta) - Deflorar uma mulher virgem menor de dezessete anos. Artigo 222 - Ter cópula carnal por meio de violência ou ameaças com qualquer mulher honesta. Observamos pelo exposto que a virgindade, a honra e a honestidade eram tidos como valores essenciais a uma mulher que desejava contrair matrimônio e não ser confundida com uma prostituta, inclusive uma das penas destinadas ao mal feitor que tomasse a mulher antes do casamento e depois a abandonasse, era o pagamento de um “dote” como forma de ressarci-la por ter diminuído a oportunidade da mesma, encontrar um bom pretendente para o casamento, demonstrando uma forma de amparo à figura feminina, posto ser ela um ser inferior na sociedade de então, aproveitando para reforçar “direitos” diferenciados destinados apenas às mulheres honestas.22

As relações entre Juízo de Órfãos, tutor e menores descortinam-se no processo crime analisado. As menores assoldadas tornaram-se o eixo delineador de toda a narrativa do processo, assim como a questão de sua honra e o seu caráter.

O promotor público da comarca, Joaquim José Ferreira Damião, fez a denúncia sobre o caso de defloramento da menor Joaquina Benedicta, em que consta, também, que ela teria dado à luz uma criança. O denunciado de tal crime e responsável pela paternidade é Francisco Lobato de Moura, viúvo, morador do bairro da Fartura e natural de Paraibuna. O réu, no início do processo, já é considerado culpado:

O Promotor Público da Comarca, usando do direito que é concedido pela lei, [...] perante [...] Denunciar a Francisco Lobato de Moura desta cidade de Paraibuna, natural da mesma com profissão de lavrador, pelo fato que passa a referir: Francisco Lobato de Moura, morador do bairro da fartura desta cidade tendo em seu poder e guarda como assoldadante a menor Joaquina Benedicta órfã filha Joaquim Procópio de Alvarenga vulgo Joaquim Venâncio e Floriana Maria de Jesus, a com [...] que aquela menor dera a luz a um filho, constando [...] da [...] da mesma, mesmo Lobato e este significa pelo depoimento da primeira testemunha, que [...] no inquérito — Antônio Mariano dos Santos que diz ter ouvido de Francisco Lobato, que foi quem deflorara a mesma Joaquina Benedicta e também se vê no depoimento da terceira testemunha que é voz publica no bairro ser Francisco de Moura Lobato — pai do filho da menor Joaquina Benedicta.23

No presente auto, há o inquérito da Delegacia de Polícia de Paraibuna, de 9 de maio de 1889, que fornece detalhes sobre a condição jurídica e social das menores: “Constando a esta delegacia que as menores de nome Maria do Carmo, Maria José e Joaquina Benedicta tuteladas de Francisco Lobato de Moura, moradoras em companhia do mesmo achava-se defloradas”.24

O auto de interrogação a Joaquina Benedicta apresenta informações sobre a menor, bem como sobre o ocorrido:

Perguntando qual seu nome, idade, estado, filiação, nacionalidade, profissão? Respondeu chamar se Joaquina Benedicta de 15 anos de idade, solteira, filha de Joaquim Procópio de Alvarenga, vulgo Joaquim Venâncio, já falecido e de Floriana Maria de Jesus natural São Luiz; serviços domésticos. Perguntado como se tinha passado o fato [...] da portaria [...] respondeu, disse fora deflorada não sabendo por quem visto ser muito [...] tempo que tem ocorrido não podendo precisar lembrar, se o defloramento deu se de dia ou de noite em casa ou no mato; perguntado, se é verdade que tinha dias à luz a uma criança? Respondeu que era verdade está a corr. mês para mais ou menos; perguntado se sabia quem era o pai de seu filho respondeu que não, porque tem tido relações ilícitas com muitos homens, entre os quais Francisco Lobato de Moura seu tutor.25

Ao dizer que “não podendo precisar lembrar”, se foi “de dia ou de noite”, “em casa ou no mato”, parece não desejar revelar o verdadeiro autor, seja por medo, pelo trauma sofrido, ou por possíveis retaliações. A relutância em dizer quem foi o culpado, esconde vários motivos, os quais apenas Joaquina Benedicta carregava consigo. Uma das prováveis interpretações para esse fato muito se deve à condição feminina em uma sociedade patriarcal dos Oitocentos. Sobre a afirmação da menor de que “tem tido relações ilícitas com muitos homens, entre os quais Francisco Lobato de Moura seu tutor”, vem a propósito a observação de Boris Fausto: “Nos casos extremos em que a ofendida altera a acusação, atribuindo a responsabilidade a outra pessoa, é claro o desejo de resguardar quem parece ser o verdadeiro responsável”.26

A situação da tutela por meio do contrato de soldada, como política instituída pelo Judiciário, revelou-se nesse caso um mecanismo falho, pois a órfã, além de sofrer as vicissitudes da vida, fora entregue a um tutor viúvo e morando sozinho. Se tais fatores não fossem suficientes, o réu carregava também a reputação de ser “tido como desonesto e perseguidor de moça”.27

A honra é o elemento central do processo no ato do crime de defloramento de Joaquina Benedicta assim como de suas irmãs, de modo análogo à afirmação de Boris Fausto:

O crime de defloramento define a preocupação central da sociedade com a honra materializada em uma peça anatômica — o hímen — e com a proteção da vagina. O hímen representa sob este aspecto um acidente biológico que veio facilitar o controle da sexualidade feminina através da distinção entre mulheres puras e impuras. Símbolo material de uma abstração, em torno dele estrutura-se uma rede cruzada de imagens sociais. 28

As declarações da testemunha Francisco Antônio de Barros em seu depoimento revelam o distanciamento do Juízo de Órfãos de Paraibuna sobre as condições de sobrevivência da menor Joaquina Benedicta. A leitura do depoimento da mesma testemunha é reveladora em sua essência, demonstrando a importância do hímen, significado de honra. Uma vez sendo honestas, Francisco Antônio de Barros se prontificava a ser tutor das menores. Outra omissão do Juízo de Órfãos de Paraibuna foi o descaso com a reputação que carregava o réu. Esses detalhes são observados no depoimento da mesma testemunha Francisco Antônio de Barros:

Disse, mais que há um mês mais ou menos ele testemunha, estando com o Doutor Juiz de Órfãos, disse a este, digo dizer a este que em casa de Francisco Lobato de Moura ter as quatro menores órfãs filhas de Joaquim Venâncio, e que se prontificava a ser tutor de todas elas uma vez que fosse mulheres honestas, respondendo-lhe o juiz que isso não podia garantir, e perguntado a ele testemunha nessa ocasião, se desconfiava de alguma coisa quanto a honestidade das mesmas? Ao que ele testemunha respondeu, que sendo Francisco Lobato de Moura viúvo e morando essas moças em sua companhia era bem provável que tivesse havido alguma coisa.29

Na leitura desse trecho, é possível constatar uma negligência praticada pelo juiz de órfãos. Tendo conhecimento da situação delicada em que se encontravam as menores, nada fez para protegê-las. Demonstra-se, também, a vulnerabilidade a que foram expostas Joaquina Benedicta e suas irmãs, visto que sua tutoria revelou-se perigosa e contraditória, ao serem dadas a soldada para Francisco Lobato de Moura.

Tanto a gravidez como, posteriormente, o filho de Joaquina Benedicta chegaram ao conhecimento de todos a partir de um boato de voz pública. No inquérito policial, todas as testemunhas apontaram o denunciado Francisco Lobato de Moura como o autor do crime de defloramento e da paternidade da criança. Contudo, diante do juiz, as afirmações feitas no inquérito policial foram negadas.

A negação se deu também no discurso de Joaquina Benedicta em frente ao juiz. Mudando sua versão, atribuiu a autoria do crime de defloramento a Antônio Mariano dos Santos. O suposto autor do crime havia se tornado marido da ofendida Joaquina Benedicta pouco antes da abertura do processo. Antônio Mariano dos Santos era trabalhador de roça de Francisco Lobato de Moura e possuía uma dívida com seu patrão. Na narrativa do processo, ele admite ter sido procurado por seu patrão para casar-se com uma órfã que se encontrava deflorada. Em compensação, ele receberia o perdão de sua dívida, como também ganharia roupas para casar-se. Quanto aos papéis do matrimônio, Francisco Lobato de Moura havia lhe dito que não se preocupasse, visto que o juiz mandaria proceder, em razão de Joaquina Benedicta ser menor. O casamento de Joaquina Benedicta e Antônio Mariano dos Santos efetuou-se a menos de um mês do processo.

Tudo indica que a mudança no depoimento da ofendida Joaquina Benedicta tenha sido uma estratégia para livrar o autor do crime, porém o promotor público do processo pediu a condenação do réu Francisco Lobato de Moura, por divergências nos testemunhos recolhidos, reconhecendo neles uma forma de acobertar a verdadeira autoria. No entanto, o juiz declarou o réu inocente, sob a alegação principal de que a menor Joaquina Benedicta apontara como autor do crime seu atual marido, Antônio Mariano dos Santos.

Após a conclusão desse processo, Francisco Lobato de Moura dirigiu-se ao juiz de órfãos para que o exonerasse do cargo de tutor de Joaquina Benedicta, como também de sua irmã, Maria José, como consta no documento de Contrato de Soldada das órfãs Joaquina Benedicta e Maria José do ano de 1889:

Diz Francisco Lobato de Moura, que em 23 de abril do corrente ano, assignou contrato de soldada dos serviços das órfãs de nomes Maria José de 14 anos de idade e Joaquina, de 13 anos de idade, filhas de Joaquim Procópio de Alvarenga, falecido.

Acontece porém, que poucos dias depois, essas órfãs obtiveram alvará de licença para casamento, o que efetuou-se, como provam as certidões inclusas; e para que o suplicante não seja responsável em tempo algum, em face do respectivo termo de contrato, requer a Vossa Senhoria que se digne ordenar que sejam juntas as certidões inclusas e a presente petição aos respectivos autos.30

O trecho acima induziria a pensar que as menores ficaram pouco tempo em companhia do assoldadante Francisco Lobato de Moura, porém, no inquérito do Juízo Municipal de Paraibuna relativo ao crime de defloramento, as testemunhas disseram que Joaquina Benedicta, Maria José e Maria do Carmo viviam em companhia do seu assoldadante há mais de seis anos, informações corroboradas pelas menores. Sendo assim, o termo assinado de contrato de soldada das referidas órfãs apenas legalizou a guarda das irmãs no ano de 1889.

Outro processo de crime de defloramento ocorrido na cidade de Paraibuna foi o da também órfã Maria José, em 1889. A denúncia do promotor se baseia na acusação de defloramento, porém a afirmação é ambígua, pois a situação também é caracterizada como estupro:

Há um ano mais ou menos, Francisco Lobato de Moura, no bairro da fartura desta cidade, estando, a menor Maria José, órfã miserável, filha de Joaquim Procópio de Alvarenga, vulgo Joaquim Venâncio, em casa onde mora Floriana Maria de Jesus, mãe daquela menor, já sendo falecido seu pai, ali, no quintal da mesma casa, de noite, o mesmo Lobato viúvo, e já na idade em que a reflexão deve presidir seus atos, e dos bons exemplos a mocidade que cresce, mas ao contrário conhecido por desonesto, e perseguidor de moças, por meio de violência e promessa de fazer casar a mesma menor Maria José, abusando da fraqueza desta conseguiu no intento deflorando-a e roubando aquilo que a mulher tem de mais melindroso — a honra! É inestimável o dano. É este o histórico do fato delituoso de defloramento cometido por Francisco Lobato de Moura na pessoa da menor Maria José que acha-se evidentemente provado pela confissão da mesma, e pelos depoimentos das testemunhas do inquérito, provando também a existência do crime de defloramento, digo estupro.31

A preocupação central da denúncia é a honra da menor, como oferece a leitura do trecho, sendo enfatizada a expressão “roubando aquilo que a mulher tem de mais melindroso — a honra!”, tornando-se o crime caracterizado como defloramento. Há também informações sobre a menor e de como se procedeu ao crime:

Perguntado qual seu nome, idade, filiação naturalidade, estado, a profissão? Respondeu – chamar se Maria José, de dezoito anos de idade, solteira, natural de São Luiz do Paraitinga, filha de Joaquim Procópio de Alvarenga, vulgo Joaquim Venâncio e de Floriana Maria de Jesus, lavoura. Em tempo tendo seu pai já falecido. Perguntado como se dera o fato constante da portaria de [...] ? Respondeu, que há um ano mais o menos no bairro do denunciado fora deflorada por seu tutor Francisco Lobato de Moura, que o fato deu-se de noite no quintal da casa onde mora sua mãe. Perguntado se sua irmã Maria do Carmo sabia desse fato respondeu que sabia porque presenciava. Perguntado se seu tutor Francisco Lobato de Moura usou de violência utilizando delas? Respondeu que não usou de violência, mas que lhe prometeu fazer casar, razão porque ela depoente a cedeu ao convite dele. Perguntado por que não se casou logo depois de ter sido deflorada assim de lhe havia prometido seu tutor Francisco Lobato de Moura? Respondeu que não fez porque as pessoas a quem seu tutor falara para casar com ela depoente não queriam achando agora um que disse se casava mediante certa quantia oferecida por seu tutor. Disse mais que ontem depois da intimação lhe dissera seu tutor que hoje na ocasião em que fosse interrogada dissesse que o autor de defloramento tinha sido Antônio Jerônimo, pois assim o juiz faria o casamento com o referido Antônio Jerônimo.32

Assim como observado no processo de Joaquina Benedicta, Maria José também mudou sua versão, retirando a culpa do réu Francisco Lobato de Moura. Em outro depoimento, a ofendida diz que fora seu marido Antônio Alves dos Santos quem a deflorou e não Antônio Jerônimo, como tinha sugerido seu tutor. Antônio Alves dos Santos era trabalhador de roça de Francisco Lobato de Moura e também possuía uma dívida com seu patrão, que lhe propôs que se casasse com uma órfã deflorada como perdão para suas dívidas. O casamento efetuou-se três dias antes do comparecimento ao juiz.

O promotor público pediu a condenação do réu Francisco Lobato de Moura, sob a alegação da contradição das testemunhas no inquérito policial e judicial, mas Francisco Lobato de Moura foi inocentado pelo juiz, tendo como base para sua decisão o exame de corpo de delito. De acordo com o juiz, o exame não provava que teria sido o réu o autor do crime de defloramento, a que acrescentou como outro argumento o fato de Maria José ter declarado que o autor de seu defloramento fora seu atual marido Antônio Alves dos Santos.

Outro processo crime de defloramento envolvendo Francisco Lobato de Moura foi encontrado em Paraibuna, no ano de 1889, denunciando o abuso cometido com a menor Maria do Carmo, também assoldada de Francisco Lobato de Moura, como consta na denúncia do promotor:

Há meses, Francisco Lobato de Moura, de noite, em sua própria casa, no bairro da Fartura desta cidade conhecido por bairro do Chico Lobato, achando-se em seu poder ou guarda a menor, Maria do Carmo da qual o mesmo lobato é assoldadante, sendo a mesma órfã, miserável, de idade de dezesseis anos, filha do falecido, Joaquim Procópio de Alvarenga, vulgo Joaquim Venâncio, aquele viúvo e já com idade bastante para dar conselhos, e em que [...] desse presidir de seus atos, e dar exemplos de moralidade a mocidade que cresce, ao contrário, conhecido como desonesto e perseguidor de moças, usando da força o mesmo Francisco Lobato de Moura, agarrando o denunciado, por meio de violência a menor Maria do Carmo, e conseguiu no intento maligno praticando o fato delituoso de defloramento, digo estupro, roubando desta, o maior tesouro a maior riqueza que tem a [...] aquilo que há de mais respeitável — o pudor — a honra! É inestimável o dano.33

Nesse caso em especial, o promotor chegou a falar de estupro, do uso da violência praticada por Francisco Lobato, uma vez que, em outro trecho do depoimento, a ofendida Maria do Carmo declarou que o autor de seu defloramento fora seu tutor, Francisco Lobato de Moura, tendo utilizado a violência para tal fim:

Perguntado se ele Francisco Lobato de Moura usou de violência para conseguir seus fins? Respondeu, que sim, que ela depoente não [...] que ele, lhe havia, e este se enfurecendo agarrou-a derrubou-a e conseguiu por meio da força a consumar o defloramento. Perguntado, se ele tentou somente a deflorá-la ou se continuou [...] com a mesma? Respondeu, que continuou a ter relações consigo até esta data, não tendo ela depoente tido relações ilícitas com mais outro qualquer indivíduo.34

Outra vez, Francisco Lobato de Moura tratou de procurar um marido para casar-se com a terceira órfã deflorada. O escolhido, um funcionário seu de nome Antônio Rogério de Faria, era também prestador de serviços de roça. O matrimônio ocorreu poucos dias antes do comparecimento perante o juiz. Desse modo, mudou-se, mais uma vez, a autoria do defloramento, passando Antônio Rogério de Faria a ser o responsável pelo ato.

No processo de denúncia, o réu Francisco Lobato de Moura tem uma fala bastante reveladora. O acusado usa como argumento o fato de as menores trabalharem no cafezal e de não terem educação. Cabe ressaltar, que a mulher pobre no Brasil sempre trabalhou, não seria diferente no caso das irmãs, mas para Francisco Lobato de Moura o fato de serem trabalhadoras braçais e pobres seria motivo suficiente para desqualificá-las.

Outro trecho revelador da narrativa do réu diz respeito à condição da habitação das moças: “Disse mais que sabe que em vida do próprio pai das moças cuja casa nem portas tinha, e era de pau a pique, os camaradas dele acusado até dormiam com umas moças dentro da casa do próprio pai”.35 A casa de construção simples, não tendo porta, seria um convite para os homens, de acordo com a fala e pensamento do réu.

Findos os testemunhos, o promotor deu seu veredito, condenou o réu Francisco Lobato de Moura pelo crime de defloramento, porém o juiz o inocentou, uma vez mais, alegando falta de provas.

Considerações finais

Os processos de defloramento analisados demonstram as relações conflitantes entre tutores e menores, permitindo, também, desvendar as tensões adjacentes produzidas pelo Judiciário no pós-abolição.

Joaquina Benedicta, Maria José e Maria do Carmo representavam as peças mais frágeis desses processos, carregavam o peso de serem mulheres e pobres em uma sociedade patriarcal, sendo julgadas por um Judiciário pertencente ao mundo dos homens, além de estarem sob a guarda legal de seu tutor e suposto autor do crime de defloramento. Toda essa estrutura deixava-as em situação de desvantagem no decorrer do processo.

A narrativa dos processos crimes de defloramento de Paraibuna contém elementos que desabonam o contexto do contrato de soldada e sua legislação, assim como deixam claras suas contradições e falhas. As menores assoldadas ficaram sob o jugo de seu tutor e do Judiciário, que sobre elas exerciam a dominação social e jurídica. Nos três casos, a discussão é desenvolvida a partir da perspectiva da existência de mulheres honestas ou não honestas, sendo a honra o elemento principal, personificada na membrana do hímen.

Ao serem tuteladas e dadas a soldada, as irmãs Joaquina Benedicta, Maria José e Maria do Carmo não foram protegidas conforme consta nos respectivos documentos. A tutela manifestou-se de forma contraditória e perigosa, pois o juiz de órfãos, embora tendo conhecimento das condições e da reputação de Francisco Lobato de Moura, a ele concedeu a soldada e a tutela das menores. O descaso do curador de órfãos demonstra que a preocupação do Juízo de Órfãos restringia-se ao momento do ato de assinatura do termo de contrato de soldada; posteriormente, os tutelados não mais mereciam vigilância. Uma vez assoldadas por Francisco Lobato de Moura, as menores não representavam mais preocupação para o Juízo de Órfãos, pois passariam a ser de responsabilidade legal de seu tutor, que, amparado pela estrutura judicial e social, acabou por deflorá-las e sair inocente no final dos três processos.

notas

1 Projeto de pesquisa “Pós-Abolição: trabalho e cotidiano em pequenas cidades do Vale do Paraíba Paulista (1888-1930)”.
2 Maria Aparecida Papali, “A infância desvalida e a exploração do trabalho infantil no pós-abolição: Vale do Paraíba Paulista (1888-1895)”, Anais do XXIII Encontro Estadual de História, São Paulo: ANPUH, 2016.
3 Frederich Cooper, Thomas Holt e Rebeca Scott, Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
4 Wlamyra R. de Albuquerque, O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
5 Walter Fraga Filho, Encruzilhadas da liberdade. História de escravos e libertos na Bahia (1870-1910), Campinas: Editora da Unicamp, 2006.
6 Flávio dos Santos Gomes e Petrônio Domingues, Da nitidez e invisibilidade: legados do pós-emancipação no Brasil, Belo Horizonte: Fino Traço, 2013, p. 47.
7 Ana Lugão Rios e Hebe Mattos, Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 29.
8 Maria Aparecida Papali, Escravos, libertos e órfãos: a construção da liberdade em Taubaté (1871-1895), São Paulo: Annablume, ٢٠٠٠.
9 Sandra Lauderdale Graham, Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro (1860-1910), São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 125.
10 Maria Izabel de Azevedo Marques Birolli,“Os filhos da República: a criança pobre na cidade de São Paulo (1900/1927)” (Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2000), p. 179.
11 Papali, Escravos, libertos e órfãos.
12 Ord. L.4,T.102 *1,5 e 7, Papali, Escravos, libertos e órfãos, p. 38; José Pereira de Carvalho, Primeiras linhas sobre o processo orfanológico, Rio de Janeiro: B. L. Garnier Livreiro-Editor, 1888.
13 José Pereira de Carvalho, Primeiras linhas sobre o processo orfanológico, Rio de Janeiro: B. L. Garnier Livreiro-Editor, 1888.
14 Papali, Escravos, libertos e órfãos, p. 38.
15 Gislane Campos Azevedo, “A tutela e o contrato de soldada: a reinvenção do trabalho compulsório infantil”, História Social, n. 3 (1996), pp. 22-3.
16 Azevedo, “A tutela e o contrato de soldada”, p. 23.
17 Alba Barbosa Pessoa, “O Juízo de Órfãos e o trabalho infantil na cidade de Manaus (1890-1920)”, Fronteiras do Tempo: Revista de Estudos Amazônicos, v. 1, n. 2 (2011), pp. 23-42; Ana Paula Pruner de Siqueira, “Tutela: solidariedade aos menores ou mão de obra alternativa?”, Anais do XXVII Simpósio Nacional de História, Natal: ANPUH, 2013; Ione Celeste de Sousa, “Para educar e bem criar: tutelas, soldadas e trabalho compulsório de ingênuos na Bahia”, Anais do XXV Simpósio Nacional de História, Fortaleza: ANPUH, 2009; Patrícia R. Geremias, “Processos de tutela e contratos de soldada: fontes para uma história social do trabalho doméstico”, Anais do٧º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Curitiba, 2015.
18 Eduardo Silveira Netto Nunes, “A infância como portadora do futuro: América Latina, 1916-1948” (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2011); José Carlos da Silva Cardozo, Enredos tutelares: o Juízo dos Órfãos e a atenção à criança e à família porto-alegrense no início do século XX, Porto Alegre: Unisinos, 2014.
19 Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz, “Negra e pobre: violência sexual, racismo e relações de gênero em um auto de defloramento de 1903”, Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades, Salvador, 2011, p. 2.
20 Ordenações Filipinas, Livro V, Título CXVII, p. 1273).
21 Queiroz, “Negra e pobre”, p. 3.
22 Angela Pires Martori Chichitostti, “Notas sobre violência sexual em Ribeirão Preto (1878-1917)”, Anais do XIX Encontro Regional de História, São Paulo: ANPUH, 2008, pp. 1-2.
23 Defloramento Menor Joaquina Benedicta/ Caixa Arquivo 1888/1889/ Núcleo de Patrimônio Histórico Fundação Cultural “Benedicto Siqueira e Silva” / Paraibuna, SP, p. 2.
24 Defloramento Menor Joaquina Benedicta, op. cit., p. 4.
25 Defloramento Menor Joaquina Benedicta, op. cit., p. 6.
26 Boris Fausto, Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924), São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001, p. 204.
27 Boris Fausto, Crime e cotidiano, p. 196.
28 Boris Fausto, Crime e cotidiano. p. 196.
29 Defloramento Menor Joaquina Benedicta, op. cit., p. 15.
30 Contrato de Soldada/ Caixa Arquivo 1888/1889/ Núcleo de Patrimônio Histórico Fundação Cultural “Benedicto Siqueira e Silva” / Paraibuna, SP, p. 4.
31 Defloramento Menor Maria José / Caixa Arquivo 1888/1889/ Núcleo de Patrimônio Histórico Fundação Cultural “Benedicto Siqueira e Silva” / Paraibuna, SP, p . 2.
32 Defloramento Menor Maria José, op. cit., p. 6.
33 Defloramento Menor Maria do Carmo, / Caixa Arquivo 1888/1889/ Núcleo de Patrimônio Histórico Fundação Cultural “Benedicto Siqueira e Silva” / Paraibuna, SP, p. 2.
34 Defloramento Menor Maria do Carmo, op. cit., p. 7.
35 Juízo Municipal de Paraibuna, 1889, p. 38.
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