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AÇÕES AFIRMATIVAS PARA AFRODESCENDENTES NO DEBATE DO PARLAMENTO URUGUAIO
Mónica Olaza López
Mónica Olaza López
AÇÕES AFIRMATIVAS PARA AFRODESCENDENTES NO DEBATE DO PARLAMENTO URUGUAIO
Afro-Ásia, núm. 56, pp. 169-201, 2017
Universidade Federal da Bahia
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Resumo: Neste trabalho, são examinados os argumentos discutidos no Parlamento Nacional uruguaio durante o processo que chegou à sanção da Lei nº 19.122, Afrodescendentes. Normas para favorecer sua participação nas áreas educativas e trabalhistas. Essa lei é a medida de política pública mais relevante do Estado uruguaio no tocante à afrodescendência e contou com votação unânime para sua aprovação. No entanto, a análise do debate deixa entrever posições contraditórias não manifestadas e dúvidas explícitas por parte de alguns parlamentares. Em comparação com outros países que adotaram políticas afirmativas, a discussão uruguaia apresenta argumentos similares, mas em um contexto com algumas particularidades como a gratuidade e a não restrição do acesso ao ensino público e uma sociedade com mais diversidade e presença afro.

Palavras chave: afrodescendênciaafrodescendência,UruguaiUruguai,políticas públicaspolíticas públicas,reconhecimentoreconhecimento,redistribuiçãoredistribuição.

Abstract: This paper analyzes the arguments discussed at the Uruguyan National Parliament during the process that led to the passing of the Law 19.122. Afro-descendants. Regulations to promote participation in the areas of education and work. This law is the most relevant public policy step taken by the Uruguayan government related to Afro-descendants, and was passed unanimously. However, an analysis of the debate reveals unspoken contradictory positions and explicit doubts from some members of parliament. When compared to other countries that have adopted affirmative action policies, the Uruguayan discussion shows similar arguments. Nevertheless, the Uruguayan context has distinctive features such as free and unrestricted access to public education, and a more diverse society with greater Afro-descendant presence than perceived.

Keywords: Afro-descendant, Uruguay, public policies, recognition, redistribution.

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AÇÕES AFIRMATIVAS PARA AFRODESCENDENTES NO DEBATE DO PARLAMENTO URUGUAIO

Mónica Olaza López
Universidad de la República, Uruguay
Afro-Ásia, núm. 56, pp. 169-201, 2017
Universidade Federal da Bahia

O presente trabalho apresenta argumentos discutidos no Parlamento Nacional uruguaio durante o processo que culminou com a sanção da Lei nº 19.122, Afrodescendentes, normas para favorecer sua participação nas áreas educacional e trabalhista. Essa lei é a medida de política pública mais relevante do Estado uruguaio relacionada com a afrodescendência e contou com votação unânime para sua aprovação.

Antes da análise do debate da referida lei pelo Parlamento nacional uruguaio, consideramos apropriado mencionar, brevemente, alguns aspectos do Estado, os partidos, a sociedade uruguaia e suas relações, para uma melhor compreensão do tema proposto. Um desses aspectos é a centralidade do papel do Estado em nosso processo histórico. Pedro Barrán e Benjamín Nahum assinalam que o protagonismo do Estado uruguaio deriva-se, em parte, de sua anterioridade em relação à nação e que, pela sua condição de país novo, como também pelo seu escasso dinamismo e vigor próprios, as classes sociais necessitaram da intervenção oficial.1 Os autores afirmam que, na época colonial, foi precisamente o poder imperial que, entre outras atividades, fundou cidades, defendeu o território, permitiu comercializar, condição essa herdada pelo fraco Estado emancipado, no qual “os dirigentes políticos que controlaram o Estado foram os que distribuíram a fortuna, decidiram o ‘lugar social’ de cada um”.2 Uma das características que distinguiu o Uruguai do século XIX em relação a outros países latino-americanos foi a fraca presença hegemônica do setor empresarial agrocomercial e sua união com a Igreja e as Forças Armadas em muitos fatores de consenso e coação.3 Essa presente mas comparativamente mais fraca implantação oligárquica associou-se a uma também fraca implantação capitalista caracterizada por uma dependência externa no âmbito de uma monoprodução relativamente diversificada.4 A mistura de ambas favoreceu a presença do Estado na sociedade civil e sua centralidade na formação social uruguaia e nas mediações políticas da sociedade. Os partidos políticos constituídos muito cedo foram mediadores entre a sociedade civil e o Estado, que funcionou como determinante e ordenador do espaço público.5 De acordo com esses autores, ao contrário do que ocorreu em quase todos os países da América Latina, os partidos Blanco e Colorado não se dividiram em “liberais” ou “conservadores”, mas expressaram, cada um a seu modo, a matriz liberal do momento. O Partido Blanco (depois Partido Nacional) e o Partido Colorado surgiram em 1836 e dominaram a vida política uruguaia até 1973, quando o golpe cívico militar interrompeu a democracia liberal. Por volta de 1984, o bipartidarismo se enfraqueceu com a presença do Frente Amplio (Frente Ampla) “de concepção progressista, anti-imperialista e democrática avançada”,6 fundado em fevereiro de 1971 em sessão realizada na antessala do Senado do Palácio Legislativo, que reuniu a maioria das expressões da esquerda do país. Atualmente, cinco partidos contam com representação parlamentar: Frente Amplio, Partido Nacional, Partido Colorado, Partido Independiente e Unidad Popular. No momento do debate do projeto de lei aqui analisado, os partidos com representação parlamentar eram quatro: Frente Amplio, Partido Nacional, Partido Colorado e Partido Independiente.

Depois dessa superficial referência aos mencionados partidos, apresentamos uma breve resenha sobre os três partidos a que pertencem os parlamentares selecionados como informantes da pesquisa. Seguem-se um panorama geral da situação dos afro-uruguaios, o surgimento do projeto de lei, os temas emergentes no decorrer do debate parlamentar centralizados em opiniões e argumentos favoráveis e contrários à implementação de ações afirmativas para a população afrodescendente, ilustrados com depoimentos de parlamentares, além de nossa análise dos fatos e conclusões. Interessa, particularmente, identificar os argumentos expostos a favor e contra as políticas de ação afirmativa dirigidas aos afrodescendentes, pela importância de salientarem-se as manifestações debatidas, de estabelecer-se um paralelo com outras realidades, especialmente a brasileira, com destaque na região, chamando a atenção para a unanimidade constatada para a votação afirmativa.

As fontes documentais são as sessões da Câmara de Representantes, do Senado e sua posterior discussão no Congresso. As informações foram obtidas nos diários de sessões publicados no site do Parlamento.7 Em geral, a discussão centra-se na necessidade de combater a desigualdade e no fato de que ela tem raízes históricas para o coletivo afrodescendente. A Comissão de População e Desenvolvimento Social e a de População, Desenvolvimento e Inclusão reuniram dados contando com assessoria e, no Congresso, com a apresentação do relatório realizado pelo deputado Julio Bango, pertencente ao Frente Amplio. O relatório faz referência à situação internacional e detalha os dados levantados nas Pesquisas de Lares do Instituto Nacional de Estatística (INE) e no último censo (2011).

Breve resenha sobre os partidos políticos majoritários

A informação a seguir interessa a este texto, pois os informantes selecionados para a pesquisa são parlamentares de um dos três partidos adiante apresentados. Em termos gerais, para sua elaboração, seguiremos as considerações de Manuel Alcántara e Flavia Freidenberg.8

Partido Colorado

É um dos partidos mais antigos do Uruguai A partir de sua criação, foi associado à defesa dos interesses urbano-montevideanos e a um discurso liberal, aberto e cidadão. Esteve no poder, de forma ininterrupta, entre os anos de 1851 e 1958, exercendo a presidência do governo do país e com maioria parlamentar. No período de restauração democrática (a partir de 1985), esteve três vezes na presidência do governo. Dessa forma, esteve ligado historicamente ao poder do Estado com grande influência na conformação da sociedade uruguaia, principalmente em finais do século XIX e início do XX, no período liderado por José Batlle y Ordóñez. Instaurou o Estado-Nação, legou sua posição democrático-estadista, intervindo nos serviços públicos e “tornando o Uruguai um Estado não confessional e de forte conteúdo popular”.9

Segundo Alcántara e Freidenberg, uma das características desse partido é a tenacidade para manter sua unidade interna perante as discrepâncias e cisões. Outra característica importante é a distribuição do poder de partido entre seus dirigentes, com responsabilidades executivas na administração nacional ou departamental, entre as bancadas legislativas e na liderança das frações. Os militantes e parlamentares colorados situam o seu partido ideologicamente no centro.

Partido Nacional

Também de existência longa na história política uruguaia, esse partido atingiu a presidência do governo em três períodos (iniciados em 1958, 1962 e 1989), sendo, à exceção de um momento transitório, a segunda força partidária com longa trajetória na oposição e identificado, historicamente, com a representação dos interesses rurais, “com um discurso conservador, paroquial e oposto às influências do exterior”.10

Partido com experiência em lidar com as divisões internas e em participar na coalisão de governo, é situado, por militantes e legisladores, à direita no espectro ideológico do país. Em matéria de lideranças, embora tenham se destacado diferentes personalidades, foi Luis Alberto de Herrera quem assim se manteve até 1958, seguido por um breve e intenso exercício de liderança por parte de Wilson Ferreira. Em 1989, Luis Alberto Lacalle levou o partido à presidência do governo nacional. Quanto à localização do poder partidário, esteve em diferentes setores (tendo em vista a divisão que caracteriza o partido) e, ao finalizar-se a presidência de Lacalle, foram privilegiados os órgãos superiores da estrutura partidária.

Frente Amplio

Nascida, em 1971, com o intuito de marcar claramente uma estratégia opositora e alternativa aos partidos tradicionais, essa força política reuniu grupos da esquerda uruguaia, setores dissidentes oriundos do Partido Colorado e do Partido Nacional e numerosos cidadãos independentes, constituindo-se, assim, na maior construção histórica da esquerda uruguaia. Atualmente, localiza-se no espectro ideológico da esquerda, com transformações programáticas tendentes à moderação política em uma sociedade não acostumada a mudanças violentas, qualificada como moderadora. Em matéria de lideranças históricas, destacou-se Líber Seregni, sucedido por Tabaré Vázquez. Mas é preciso salientar que a esquerda uruguaia foi dirigida por diferentes líderes que deixaram sua marca pessoal. O acordo do plenário — parte dos órgãos com função executiva dentro da estrutura interna dessa força política — de abril de 1998 estabeleceu a necessidade de reafirmar como valor e prática a democracia interna e a unidade de ação para desafiar as políticas neoliberais e para a construção de um governo popular. Obteve a maioria parlamentar em 1999 (hoje menos intensamente, mas a mantém), a vitória em primeiro turno das eleições nacionais e a década de governo departamental em Montevidéu (conservada até hoje), o departamento mais populoso e capital do país.

Destaque-se que, juntamente com a reorganização do movimento afrodescendente uruguaio e as mudanças internacionais, foi a partir dos anos noventa que se encontram evidências de que o Uruguai começou um novo olhar para as diferenças entre maiorias e minorias, por meio de documentos e relatórios apresentados a organismos e conferências nacionais e internacionais. Isso ganhou intensidade, em 2003, em nível departamental em Montevidéu e, em 2005, em nível nacional, com o governo departamental e nacional do Frente Amplio, respectivamente.

Afrodescendência e afro-uruguaios

As sociedades latino-americanas, quase sem exceção, se originaram de um denominador comum: estados-nação culturalmente, embora à força, homogêneos, em prol de uma nação que olhou positivamente para o centro, especialmente para a Europa. Isso marginalizou amplos setores, como a população indígena majoritária na Bolívia, no México e no Peru ou a população afrodescendente no Brasil.11

A presença do Estado foi fundamental para consolidar, exercer e perpetuar a dominação. Assim, o Estado exerce um papel fundamental, pois significa um espaço no qual as mudanças que possibilitam o reconhecimento social incidem na comunidade, e é um campo de disputa para reconhecer a diferença como valor positivo e promover participação e redistribuição. O processo para o reconhecimento leva a admitir a história do não reconhecimento, ou de um reconhecimento falso, entendido este último como reconhecimento parcial, que pode estimular um estigma ainda maior.12 Pelo contrário, o reconhecimento exibe a necessidade de redistribuição e participação.13 Como exemplo, pode-se observar a visibilidade e a geração de políticas públicas para populações originárias e afros a partir do registro da variável étnico-racial em pesquisas de lares e censos.

Embora a incidência do Estado tenha força, pois as políticas públicas voltadas para as mudanças institucionais facilitam as organizações pelo fato de contar com um marco jurídico, os recursos humanos que fazem parte dessa tarefa têm de se sensibilizar, de se comprometer, sem desconhecer a participação, no cenário público, dos movimentos sociais envolvidos.14

Como apresentei em outro trabalho,15 as pesquisas relacionadas com a questão racial afrodescendente no Uruguai mostram que as categorias raciais não deixaram de incidir como atributos classificatórios da população uruguaia; a raça existe como construção social que provoca efeitos na vida das pessoas; ser classificado pelos “outros”, os brancos, como pertencentes à raça negra tem consequências de exclusão e preconceito para a pessoa assim identificada e para toda a sociedade. Os afrodescendentes experimentam racismo estrutural, institucional e nas diferentes interações da vida cotidiana; embora, em sua maioria, os integrantes da categoria negro ou afro possam não estar em interação social, experimentam um sentimento de solidariedade por terem sido vítimas das representações e dos estereótipos negativos associados às pessoas pertencentes à raça negra. A sociedade uruguaia é preconceituosa, e os afrodescendentes sofrem o preconceito de forma pessoal e direta, além da segregação estrutural decorrente de sua condição de pobreza; relacionam o sofrimento com o passado de escravidão que ainda marca, de forma qualitativa e simbólica, a identidade e o lugar social dos descendentes de escravos, tanto para si quanto para a cultura hegemônica branca. Isso exige, do poder legislativo, leis sobre o preconceito e políticas públicas de ação afirmativa. O Uruguai é um país multicultural e deveria implementar políticas multiculturais de reconhecimento de sua diversidade.

Outras diferenças notoriamente desfavoráveis aos afrodescendentes em relação à etnia-raça branca expressam-se em indicadores tais como desvinculação educacional, salários mais baixos, pequena presença de negros em cargos relevantes de tomada de decisões tanto no setor público quanto no particular. Existe uma tendência à baixa autoestima, o fator raça agrava a situação de quem experimenta a pobreza, e os afrodescendentes sofrem problemas de reconhecimento.16

A informação obtida a partir do censo de 2011, o último realizado no Uruguai e o primeiro a registrar etnia/raça desde 1852, permite concluir que a população afrodescendente é a minoria étnico-racial quantitativamente maior do país: 8,1% da população total declararam ter ascendência afro, e 4,8% a consideraram sua ascendência principal. Em seu relatório de 2013, Cabella, Nathan e Tenenbaum17 afirmam que, como já explicitado em estudos anteriores, os afrodescendentes continuam apresentando piores desempenhos e condições de vida que o restante da população. A desigualdade racial se constata em todo o território nacional: os afrodescendentes estão sobrerrepresentados nos estratos mais desfavorecidos dos dezenove departamentos. Não se registra um só departamento no qual se observe paridade de condições socioeconômicas entre a população afrodescendente e não afrodescendente, embora existam departamentos nos quais as diferenças são menores.18

Em relação ao mercado de trabalho, a taxa de desemprego é maior na população afrodescendente, e as mulheres afros (12%) superam as não afros (8,4%) e os homens não afrodescendentes (4,3%).

Os afrodescendentes com pelo menos uma necessidade básica insatisfeita (NBI) representam 51,3% do total de pessoas com ascendência afro, contra 32,2% da população não afrodescendente em igual situação. A população afrodescendente que mora em lares com duas ou mais carências críticas duplica o valor observado entre os não afrodescendentes. Estão entre as necessidades básicas com maior nível de insatisfação na população afro: o conforto (37,1%), a moradia (25,8%) e a educação (14,5%), seguidas pelo saneamento (9,1%) e pelo acesso à água potável (6,5%).19

A educação se destaca como uma dimensão importante na qual se expressa a desigualdade entre os afrodescendentes e o restante da população uruguaia. Em todo o país, as taxas de analfabetismo dos afrodescendentes superam as dos demais habitantes:

Dois de cada três jovens afrodescendentes de 18 anos deixaram de receber educação formal, e a participação dos jovens afrodescendentes no ensino superior é bem menor do que a da população não afrodescendente.20

Por outro lado, entre as mulheres afrodescendentes, observa-se

[...] uma paridade média superior à do resto das mulheres em todos os grupos de idade; no fim da vida reprodutiva, as mulheres com ascendência principal “afro ou negra” superam os três filhos, quase um filho a mais em média que as mulheres não afrodescendentes.21

Apesar dos avanços quanto à situação da população afrodescendente no Uruguai, como, por exemplo e o mais importante, o projeto de lei debatido no Congresso Nacional e aqui analisado, os dados apresentados mostram a persistência de desigualdade entre a população afro e a não afro. Nesse sentido, as ações políticas afirmativas podem contribuir para melhorar iniquidades e desigualdades, ações essas que não somente buscam combater o preconceito atual, mas também eliminar seus efeitos persistentes, sejam eles psicológicos, culturais, comportamentais ou de qualquer tipo, que, geralmente, se mantêm e se consolidam ao longo do tempo. É necessário promover a transformação no comportamento e na mentalidade coletiva, em prol da observância dos princípios de diversidade e pluralismo de forma permanente nas práticas cotidianas em qualquer âmbito da sociedade.

Além disso, as experiências de aplicação de ações afirmativas em nível internacional mostram que, nos planos e programas de entidades públicas e particulares, a maior parte das vagas disputadas em empregos, escolas, etc. são concedidas levando-se em conta a competência, o que salvaguarda a democracia, a liberdade individual e a não discriminação.22

Na América Latina, foram feitos esforços para induzir os governos à aplicação da ação afirmativa como meio para garantir a existência de oportunidades e favorecer a participação dos grupos étnicos raciais no desenvolvimento do país. Por exemplo, a Declaração dos Líderes Afros da América Latina e do Caribe, de São José da Costa Rica, realizada durante a preparação para a III Conferência Mundial contra o Racismo, o Preconceito Racial e as Formas Conexas de Intolerância, é muito explícita quanto ao estabelecimento de cotas para a aplicação da ação afirmativa no emprego, na educação e na participação política. Além disso, exorta o desenvolvimento de uma política de ação afirmativa integral em moradia, patrimônio cultural, acesso à justiça e à saúde. O Plano de Ação do Fórum das Américas pela Diversidade e Pluralidade, celebrado em Quito, no Equador, em março de 2001, exige, igualmente dos Estados, a criação de políticas de ação afirmativa para povos indígenas e afrodescendentes como parte das políticas públicas, e de políticas de desenvolvimento, no âmbito nacional e regional, principalmente em moradia, patrimônio cultural, acesso à justiça, à saúde e, especialmente, a participação política plena com cotas percentuais de participação nas estruturas executivas, legislativas e judiciárias dos governos nacionais; cotas percentuais na seleção e promoção dos empregados nas empresas privadas, de comunicação e governamentais; cotas percentuais de participação no sistema educacional, particularmente como professores de ensino fundamental, médio e superior.23 O tema aqui analisado é um exemplo do avanço de nosso país quanto a considerar a etnia/raça, ao mesmo tempo em que mostra suas limitações e abre novas questões.

Surgimento do projeto de lei

A lei nasceu na XLVII Legislatura da Câmara de Representantes, com o projeto apresentado pelo deputado Felipe Carballo à Comissão Especial de População e Desenvolvimento Social.24 Eleito pelo Movimiento de Participación Popular, integrante do Frente Amplio, o deputado apresentou o projeto em 2011. A bancada do Frente Amplio criou uma comissão para a qual convocou organizações da sociedade civil e integrantes dos partidos Colorado e Nacional; conjuntamente, participaram juristas especialistas em matéria legal. Durante dois anos — desde a apresentação do projeto de lei até a sua aprovação —, o texto foi analisado, em primeiro lugar, pela Comissão Especial de População e Desenvolvimento Social da Câmara de Representantes,25 contando com o assessoramento da Comissão Honorária Contra o Racismo, a Xenofobia e Toda Outra Forma de Preconceito e do Ministério do Trabalho e Previdência Social. Entre março e maio de 2013, participaram, também, membros destacados da sociedade civil organizada, autoridades do Ministério de Desenvolvimento Social e o embaixador itinerante e diretor da Unidade Étnico-Racial do Ministério das Relações Exteriores. O projeto de lei aprovado pela Câmara de Representantes foi modificado em sua redação e incluiu outros itens acrescentados pelo projeto de lei substitutivo aprovado pela Comissão de População, Desenvolvimento e Inclusão da Câmara de Senadores, tendo sido, posteriormente, aprovado pela Assembleia Geral.

O projeto de lei no debate parlamentar

Da leitura das sessões nas quais foi discutido o projeto de lei, destaca-se, em primeiro lugar, um percurso de quatro anos desde a criação do projeto até sua discussão, com um trabalho prévio por parte da bancada do Frente Amplio e um longo trajeto nas comissões, que incluiu a consulta às organizações da sociedade civil e às que integram mecanismos de equidade racial na institucionalidade estatal, e aos não menos importantes relatórios de avaliação internacional relativos ao tema recebidos pelo Uruguai que assinalam os avanços e os pontos pendentes de solução.

No decorrer das sessões, foram apresentados temas como a situação de desvantagem da população afrodescendente, tendo-se analisado se ela é produto da pobreza ou da pertença racial. Às vezes, mesmo reconhecendo traços de racismo e sua incidência nas condições e oportunidades de vida, associou-se à pobreza, aludindo à semelhante situação de outros pobres, o que abriu outras questões. Focalizar as políticas ou apenas universalizar? Trata-se de pobres contra pobres? É lícito favorecer a uns, sabendo-se que isso significa que outros tenham de esperar? Questionamentos similares aos levantados na discussão das políticas de ação afirmativa tinham surgido em outros países, em um período similar do processo e nos grupos de discussão organizados para esta pesquisa. Também se pleiteia que a lei é necessária, mas não basta a sua existência para produzir mudanças: é imprescindível sua implementação, e muitos parlamentares, homens e mulheres, assinalam a necessidade de agir em um nível amplo de políticas de antipreconceito.

Argumentos desfavoráveis para a aplicação de políticas afirmativas

O deputado Gustavo Cersósimo (Partido Colorado), ao fundamentar seu voto afirmativo em geral, comenta alguns aspectos que considera negativos com relação ao projeto de lei:

O primeiro aspecto que me preocupa refere-se a que a solução que estabelece esse projeto de lei é uma discriminação e, portanto, afeta o princípio constitucional de igualdade perante a lei, que é fundamental na nossa ordem jurídica.

Esse é um dos argumentos regularmente utilizados por quem se opõe à aplicação das políticas de ação afirmativa. Outro argumento contrário foi:

[...] advirto sobre certos limites que devem ser respeitados na hora de votar privilégios para determinados setores. Acredito que, sem dúvida, caso seja aplicada, também outros prejudicados inocentes, marginalizados, deslocados e postergados terão reduzidas suas possibilidades de acesso a esses mesmos benefícios.26

Ambos os argumentos são razoáveis, mas também rebatíveis. O primeiro, contra a aplicação de ações afirmativas, se refere à sua contradição ao artigo da Constituição que estabelece a igualdade no tratamento de todos sem distinção. Esse foi o argumento apresentado, perante o Supremo Tribunal Federal, por mais de duzentos estudantes brancos rejeitados em consequência da aplicação das cotas na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Os que eram a favor das cotas afirmavam que a igualdade não se atinge com o mesmo tratamento dispensado a todos, mas efetivando o cumprimento do referido princípio no tratamento diferencial a pessoas em diferentes situações. Nesse caso, se estaria estendendo efetivamente a cidadania historicamente negada a índios e negros, a metade da população brasileira.27

Outro ponto desenvolvido pelo mesmo deputado tem relação com a existência de denúncias por atos de preconceito, em nível estatal, no momento de acesso à função pública por parte da população afrodescendente. Isso foi apurado, e sua existência negada pelo então diretor do Escritório Nacional do Serviço Civil.28 Outro ponto de preocupação para o deputado foi o prazo e a reserva de 8% de vagas, percentual equivalente ao da população afro no total da população uruguaia, de acordo com os dados levantados pelo último censo:

Quando determinamos a solução e conseguimos aproximar critérios, estabeleceu-se que o prazo seria de dez anos e que a reserva de lugares na função pública seria de 8%, equivalente à porcentagem de afrodescendentes que existe na nossa sociedade. Também queremos esclarecer que a porcentagem de reserva de cargos públicos nunca deve ser igual à porcentagem de participação da população ou classe social beneficiada pela medida. Sempre deve ser menor, pois, caso contrário, tem um maior efeito prejudicial para esse setor e para os outros setores da sociedade.29

Cersósimo menciona outra de suas inquietudes:

Também me preocupa (— foi esclarecido —) que, no artigo 1º — que foi assinalado por todos como uma declaração e que deve fazer parte de uma exposição de motivos, mas não do texto normativo da lei —, existe um reconhecimento de responsabilidade que poderia dar lugar a possíveis demandas nesse sentido, o qual foi esclarecido por professores da Faculdade, em especial da Cátedra de Direito Civil.30

Em relação a esse aspecto formulado por Cersósimo, o deputado Pablo Abdala (Partido Nacional) assinala:

Senhor presidente: foi exposto na Comissão um aspecto que acho que não é menor — foi muito responsável tê-lo questionado — e é em que medida esses reconhecimentos amplos e genéricos que formulam os primeiros artigos desse projeto de lei podem chegar a ser fonte de responsabilidade civil para o Estado; essa foi uma dúvida razoável que se levantou. Temos de ser justos quanto a reconhecer que o senhor deputado Cersósimo foi um dos colegas que deu especial ênfase a esse aspecto; preocupou-se com esse assunto e nos fez refletir, e acho que isso motivou que a Comissão solicitasse determinados assessoramentos, que até agora não tinham sido solicitados, para ficarmos tranquilos e votarmos com calma em relação a esse assunto.31

Categorias em debate: classe e raça

O debate entre a classe e a raça está geralmente presente no tratamento da situação da população afrodescendente ou quando se assinalam dificuldades e desvantagens para ter acesso a bens e serviços. Isso pode consistir em marcar uma postura de pertença de classe, ou — como parece ser o caso da explicação do deputado Abdala ao se referir às possibilidades educacionais dos afrodescendentes — acaba-se querendo resolver o problema pela pobreza, eliminando-se a racialidade, que seria e é, a meu ver, a origem do preconceito. Diz o deputado Abdala:

[Em] aprendizagem e estudo, os afrodescendentes estão nessa situação por causa, sobretudo, de sua condição de pobres, à qual chegam, claro, graças ao preconceito de que foram objeto antigamente. Mas, nessa mesma condição, também se encontram, aos mil, uruguaios que não são afrodescendentes, mas têm as mesmas dificuldades para se incorporar ao sistema educacional formal e, portanto, para estudar, aprender e progredir.32

A situação de pobreza de uma grande porcentagem de afro-uruguaios é comparada com outras situações de pobreza que serão postergadas pela política afirmativa, argumento correto, como já vimos. O que interessa destacar nesse ponto é a circularidade entre a pobreza e a pertença racial, na qual nunca se chega a reconhecer esta última como origem da primeira. Embora se faça referência à história da escravidão, há um momento em que o discurso se desliga e passa-se à pobreza, esquecendo-se, praticamente, a pertença racial, o passado colonial e o que isso significou e significa na América Latina, desde a sociedade de castas latino-americana à sociedade de classes.33 O registro da dimensão étnico-racial mostra que, em igual situação de pobreza, a população afro tem menos chance de seguir em frente em comparação com a não afro em qualquer aspecto de sua vida, por causa da incidência do fator preconceito que agrava a situação de pobreza.

Apreciação do contexto internacional, o enfoque de direitos humanos nas decisões e a ênfase na pobreza

Cersósimo menciona que, em definitivo, se aceita a aplicação dessas políticas pelos compromissos do Uruguai, em nível internacional, relativos aos direitos humanos. E serve-se de declarações de um dos assessores convocados pela Comissão, o doutor Martín Risso Ferrand:

Permito-me assinalar e lembrar o que expressou o catedrático doutor Risso Ferrand quando lembrou o famoso caso de Alan Bakke, nos Estados Unidos da América: “Quando os afrodescendentes não chegam à universidade, ou chegam em porcentagens muito inferiores ao número que representam na sociedade, não sei se eles não chegam por serem afrodescendentes ou porque, em geral, se situam nos setores mais pobres da sociedade e recebem pior formação, pior educação. Se isso não for certo, os afrodescendentes estão em uma situação de igualdade com todos os não afrodescendentes que estão no mesmo setor. Se brancos e afrodescendentes estão na mesma situação, isto é, não podem ter acesso a uma boa educação nem a uma boa formação, acho que a diferença entre afrodescendentes e brancos poderia gerar um problema de constitucionalidade”. Diz, mais adiante, o doutor Risso Ferrand: “Eu vejo que os afrodescendentes não precisam de bolsas por serem afrodescendentes, precisam por estarem em setores muito pobres. Nessa situação de pobreza se encontram os afrodescendentes e também gente que não o é. Então, por que destinar mais bolsas aos afrodescendentes quando existem pessoas que estão na mesma situação?”. E acrescenta: “Mas aqui o problema é se as dificuldades que tem o afrodescendente para ter acesso ao mercado de trabalho, ao ensino superior, à escola técnica, etc., se deve à sua condição de afrodescendente ou à sua condição de pobre. Se são decorrentes de sua condição de pobre, não se pode discriminá-lo, mas, se ficar provado que, pelo fato de ser afrodescendente, há bloqueios especiais — por exemplo, se ingressa em uma instituição de ensino superior e é segregado —, então, sim, se poderia”.34

Esse último ponto sugere algumas reflexões: talvez o afrodescendente nunca chegue a ser segregado — esse tipo de preconceito não é comum na sociedade uruguaia —, mas nunca vai ingressar no ensino superior por já ter sido discriminado, de alguma maneira, na escola ou no ensino médio, ou já ter sofrido várias formas de preconceito e, por ser pobre, acrescenta-se o antecedente de sua origem étnico-racial, unindo-se, à pertença étnico-racial, a pertença de classe que, como manifestara Marx, não depende da vontade dos indivíduos.

Argumentos favoráveis para a aplicação de políticas afirmativas

Segundo o deputado Abdala:

As ações afirmativas estão plenamente contempladas pela ordem jurídica, porque ingressam na Constituição em vista das normas internacionais de direitos humanos que se incorporam à ordem constitucional, o que é chamado de bloco de direitos humanos. Portanto, a partir daí, ganha plena legitimidade esse tipo de soluções e de ações afirmativas ou de discriminações positivas, como forem chamadas, que visam, precisamente, a corrigir desigualdades irritantes ou a solucionar situações de estigmatização ou de exclusão. Não estamos falando de qualquer desigualdade. Não é que a singela circunstância de uma simples desigualdade nos leve a reagir do ponto de vista político e seja suficiente para estabelecer essas formas de discriminação que, em algum momento, vão terminar atingindo alguém em algum lugar e em algum momento, porque discriminar a favor de determinado setor significará, pelo menos por algum tempo, afetar, postergar, relegar, diminuir ou reduzir a expectativa ou o direito de outros integrantes da comunidade e de outros membros da sociedade de acesso ao mesmo benefício, ao mesmo estado jurídico ou à mesma situação jurídica. Deve ser um preconceito completo, profundo, relevante, prolongado no tempo. Isso é o que os juristas nos demandaram. Eu acredito, senhor presidente — por isso digo que podemos votar bem tranquilos —, que, nesse caso, dada a situação do coletivo que estamos analisando, essa condição se dá, sem dúvida alguma, como um fato notório que, a essa altura, não requer nem admite prova em contrário. Os juristas que consultamos nos diziam que a condição da temporalidade, sem dúvida, também resulta essencial.35

O deputado assinala alguns pontos já mencionados — a situação internacional favorável à aplicação dessa norma quando as realidades assim o requeiram, a sinalização desses aspectos para o Estado uruguaio, a quase impossibilidade de desconhecer, na atualidade, a situação desse setor da população — e destaca a importância da temporalidade para a aplicação das medidas de ação afirmativa. Um dos pontos-chave para que houvesse aceitação seria o estabelecimento de limites temporais de duração para essa política.

O deputado Doreen Javier Ibarra (Frente Amplio) esclarece que o tema é uma das preocupações do Frente Amplio desde seu V Congresso e faz um resumo do processo que visa a promover maior igualdade e equidade no gozo dos direitos cidadãos:

Esse é um tema que sempre nos preocupou como força política. No V Congresso do Frente Amplio, foram tomadas decisões muito claras em relação a propostas que possibilitassem a equidade de gênero, gerações, raças e etnias: “A equidade étnico-racial será incluída como orientação permanente. Deveremos avançar na visibilização do problema, atender os fatores culturais que o mantêm e instrumentar mecanismos que promovam a igualdade de oportunidades”. [...] Empreendemos ações afirmativas e é verdade que avançamos na geração de mecanismos de equidade racial, na desagregação de indicadores e em ações pontuais, como no caso das bolsas. Trabalhamos em parceria para derrubar aqueles mecanismos de preconceito que geraram situações de exclusão social, econômica, política e cultural e, portanto, vulnerabilidades que nos levam a ter de contar com esse tipo de ações.36

Aqui estamos diante de um dos pontos programáticos do partido Frente Amplio no âmbito de outras iniquidades que podem apresenatar-se como intersecções e da pertença de classe. Introduz-se o tema cultural, ao mencionar que os fatores desse tipo seriam os que sustentam as iniquidades, e menciona a exclusão econômica, política e cultural.

Os mecanismos de equidade racial instalados em algumas dependências do Estado uruguaio enfrentam problemas orçamentários que os impedem de funcionar de forma adequada. Como mencionaram alguns informantes, estavam, em alguns casos, localizados, como na Prefeitura de Montevidéu, em um dos piores lugares do prédio e, durante algum tempo, eram ignorados pela portaria da instituição:

Foi em 2008, quando perguntamos pelo escritório: nos responderam que não sabiam que ali funcionava um escritório, ao qual chegamos depois de muitas perguntas e voltas pelo terceiro andar da Prefeitura de Montevidéu.

Atualmente, a Unidade Temática pelos Direitos dos Afrodescendentes funciona no Anexo do prédio da Prefeitura, com condições apropriadas para o seu desempenho.

O deputado Rafael Michelini (Frente Amplio) expressa:

É bom ter presentes as dificuldades, a incompreensão que muitas vezes enfrentamos por algo tão simples como acrescentar uma pergunta no censo nacional, na Pesquisa Contínua de Lares, para que seja estabelecido, em definitivo, em uma dependência pública, um pequeno escritório, com a intenção de despertar sensibilidade na sociedade uruguaia em relação a esse tema [...] As razões para acompanhar esse projeto de lei são históricas, jurídicas e políticas, mas também há um aspecto emocional, pois está sendo reconhecida a luta dessas organizações, dos seus dirigentes, do homem e da mulher afro-uruguaios que ainda suportam, de forma cotidiana, o preconceito que tanto afeta a autoestima.37

A senadora Constanza Moreira (Frente Amplio), na condição de membro informante do trabalho aprovado por unanimidade pela Comissão de População, Desenvolvimento e Inclusão da Câmara de Senadores, expõe e argumenta na sessão plenária:

[...] quinhentos anos de tráfego de escravos e muitos séculos de escravidão instalam esse fenômeno como algo estrutural. Hoje o que estamos fazendo é implementar algumas ações corretivas no que se refere a um fenômeno que não vai desaparecer de repente.38

Além disso,

Existe um preconceito absoluto entre brancos e negros que é o fenômeno da estigmatização. O que é o preconceito absoluto? Entre uma pessoa afrodescendente — uso os termos “afrodescendente” e “negro” como equivalentes, como o fazem muitos autores — e uma branca, com o mesmo nível educacional, a pessoa negra ganha quase 27% menos, só por sua origem racial; temos de lembrar que o mesmo acontece com as mulheres. Isso significa que existe um preconceito puro, que é o preconceito que não se explica por componentes de capital humano. Não se trata de ganharem menos porque são menos educados. Não. Quando se leva em conta o nível educacional, ganham menos porque existe um componente de preconceito puro — o da estigmatização — que, por sua vez, opera em outro sentido, isto é, na falta de ânimo para continuar estudando, o que tem a ver com o tema da autoestima. Os jovens afrodescendentes estão em melhor situação que seus pais, pois se mobilizaram para cima, e o mesmo acontece com os jovens brancos, que também estão mais bem situados. O país não está caindo, existe um fenômeno de mobilidade intergeneracional positiva em toda a sociedade uruguaia; as crianças estão tendo um melhor nível educacional que seus pais em todos os níveis. No entanto, as pesquisas mostram que a diferença entre os dois grupos se mantém constante, o que significa que o impacto da educação sobre as diferenças raciais seria relativamente neutro.39

Dessa intervenção, interessa salientar a discriminação relacionada com a pertença racial com base em dados estatísticos e em pesquisas nas quais os afrodescendentes expressam a falta de ânimo ou o grande esforço da família não apenas econômico, mas também por problemas relacionados com a autoestima e com a dúvida quanto à capacidade para desempenhar tarefas não relacionadas com o estritamente manual, com a visibilidade de sua imagem na atividade comercial, por exemplo. Embora haja gerações de afrodescendentes jovens que conseguiram superar seus pais no nível educacional, é preciso assinalar que isso não significou, entre os afros, a superação na herança de ofício, como o trabalho doméstico feminino, o predomínio do trabalho manual, assim como a convivência com a discriminação racial algumas vezes dissimulada, outras vezes não assumida por naturalização, deliberadamente hostil em algumas circunstâncias. A pesquisa de aspectos desse tipo tem estado praticamente ausente nos debates.

O senador Eber Da Rosa (Partido Nacional) argumenta:

Em definitivo, esse projeto de lei, além de consagrar ações concretas no que respeita a vagas de trabalho, ao acesso ao Estado e a bolsas para alcançar determinados níveis de estudo, estabelece uma declaração de interesse geral para que, no futuro, os programas educacionais e de formação docente contenham, expressamente, capítulos referentes à participação e às contribuições da raça afrodescendente ao longo da história do país e para que se conheça seu passado de escravidão e estigmatização.40

Essa intervenção supõe um olhar para o passado de escravidão e para que sejam abordadas, como temas de aulas, a participação e a contribuição dos afrodescendentes e sua estigmatização. O que chama a atenção é que ainda se fala em “raça”. Esse termo poderia ser usado em outros contextos, por exemplo, para dar conta de que, realmente, a raça é uma construção social e simbólica que é preciso derrubar, que se refere a questões biológicas vistas como infundadas pela ciência atual, que responde a uma teorização deliberada, formulada no século XIX, justamente para dominar e explorar pessoas fenotípica e culturalmente diferentes do padrão ocidental eurocêntrico. E, no texto acima, é utilizado para fazer referência à afrodescendência.

Provavelmente, está correta a deputada Mercedes Santalla (Frente Amplio) ao falar da situação histórica da população afrodescendente:

[...] submetidos desde os tempos do tráfico de escravos, vítimas da discriminação racial e social. Sobre este último ponto, é preocupante que, em nossa sociedade, ainda não o tenhamos tratado nem encarado de maneira que possamos trazer à tona, com a mais absoluta nitidez, essa outra face escondida em que aparecem esses preconceitos, embora seja provável que, na tentativa, estaríamos correndo o risco de nos aproximarmos de desvendar o que realmente sofreram esses compatriotas ao longo de quase dois séculos de marginalização. Acredito que seria um duro golpe ao nosso querido modo de vida uruguaio. Hoje, felizmente, os ventos vão mudando — embora sem debate profundo a respeito e, sobretudo, ao impulso das novas gerações —, vamos abrindo espaços de tolerância e níveis de respeito com o outro que não tínhamos décadas atrás. Trata-se, porém, de avançar por um caminho que ainda é pouco transitado.41

Detenhamo-nos na afirmação da deputada em relação à falta de profundidade no debate que ela menciona, mas não propõe. Efetivamente, abrem-se espaços de tolerância e de consideração das situações diferentes, mas o debate substancial ainda está pendente. Nos exemplos mencionados até o momento, não se fala das situações de sofrimento concreto de discriminações passadas e atualmente ainda existentes; além dos números, não se aprofundam as questões históricas que, essas sim, são mencionadas e sua permanência além dos quinhentos anos de conquista e colonização do continente. Não se fala sobre a sedimentação da construção simbólica estereotipada e estigmatizada do não europeu, do índio e do afro, e da desvalorização ou ignorância do mestiço.

Uma boa pergunta para pesquisa seria: Por que o debate não acontece? As hipóteses de resposta podem ser várias: porque é um tema que não se considera transcendente; por ser um dos traços da sociedade uruguaia moderar os temas e não aprofundá-los; porque não existe convicção da força do racismo na acentuação das desigualdades, que é o que o Parlamento uruguaio pode resolver. O relevante é que o tema venha à tona, como menciona a deputada, pois dez ou quinze anos atrás seria impensável seu tratamento parlamentar, embora seja hoje ainda insuficiente.

O deputado Julio Bango evidencia a necessidade de que exista a lei, como também um amplo conjunto de providências que atendam à discriminação e à desigualdade:

Embora convencidos de que as leis são uma condição necessária mas não suficiente para resolver a situação da discriminação e da desigualdade, entendemos que, com a aprovação dessa lei, o Parlamento Nacional dá um passo muito relevante e favorável para avançar no combate dessa situação, em prol da construção de uma sociedade mais diversa, plural, justa e democrática.42

Outros pontos que merecem destaque são: o papel da mídia em relação ao tema; a representação; a institucionalidade necessária para o efetivo cumprimento da lei; a ressonância do termo “afrodescendente”; e a pergunta de autoidentificação.

O papel da mídia para a aplicação dessas políticas

A aplicação de novas políticas pode obter maior sucesso se a mídia contribuir para sua difusão. Para tanto, os governos deveriam solicitar à mídia a realização de campanhas e impulsioná-las, especialmente aos meios de comunicação públicos. No nosso país, o início, nos meios de comunicação, da campanha “Borremos el racismo del linguaje” (Apaguemos o racismo da linguagem) abriu o debate, embora tenha acontecido um episódio com conotações racistas, como foi o “caso Tania Ramírez”.43 A difusão na mídia ampliou, igualmente, o conhecimento desse episódio e, por um tempo, o assunto esteve presente, com mais ênfase na violência do que no seu caráter de racismo, como o tipificou a Institución Nacional de Derechos Humanos y Defensoría del Pueblo. A mídia esteve ausente, no entanto, durante as discussões do projeto. Sobre isso, intervém o deputado Luis Puig (Frente Amplio):

Na verdade, não podemos dizer que a aprovação desse projeto de lei, que visa a analisar e a gerar ações positivas em torno da violação sistemática de direitos humanos, tenha provocado o entusiasmo da mídia. Geralmente, quando são tratados temas de menor importância, há uma presença significativa dos meios de comunicação nesta sala. Mas hoje, quando seria absolutamente necessário que a mídia cumprisse um papel fundamental na promoção dos direitos humanos, vemos que não está presente, pois, aparentemente, o tema não provocou grande entusiasmo. E isso se vê como uma das dificuldades que se apresentam para levar a cabo políticas integrais em matéria de não descriminação e de integração social que impeçam que, em nossa sociedade, se continuem a construir círculos de exclusão.44

Além disso, o deputado Puig coloca a temática no âmbito das ações de violação aos direitos humanos, questão pouco provável há alguns anos atrás.

Representação

Sobre a representação, expressa a senadora Carmen Beramendi (Frente Amplio):

Quero assinalar que os afrodescendentes não estão presentes como porta-vozes desse debate — do mesmo modo que outros coletivos — porque, além de estarem mais excluídos no sistema educacional e no emprego, de estarem sobrerrepresentados no último quintil de ingressos e no trabalho doméstico, eles estão sub-representados nos espaços de tomada de decisões.45

O deputado Martín Elgue (Partido Nacional) declara:

A outra reflexão tem a ver com algo que eu me pergunto. Não rasguemos as vestes e façamos uma introspecção. Entre 99 deputados titulares e suplentes, alternamos 152 representantes. Quantos deputados e deputadas afrodescendentes há aqui? Quantos? Não vou dizer; cada um sabe. O que está acontecendo? Por que, por um lado, se pedimos que sejam contempladas vagas, nós, os dirigentes políticos, não o fazemos como se deveria?46

Essas intervenções demonstram a ausência de representação dos próprios afrodescendentes no tocante a assuntos de seu interesse, ao empoderamento em relação a seus próprios temas e interesses, à sua ausência em muitos espaços de poder, até mesmo no espaço parlamentar, no qual os partidos com representação tiveram, durante muito tempo, apenas um deputado afro, como foi o caso de Edgardo Ortuño.

Cumprimento da lei

A deputada Bertha Sanseverino (Frente Amplio) expressa:

Que papel cumpre a institucionalidade, o Estado? Nesse projeto, há atores que têm de estar muito firmes, e não se trata apenas do Ministério do Trabalho e Previdência Social, nem das bolsas que possamos oferecer; trata-se de uma trama institucional muito forte que, provavelmente, necessite de algumas mudanças legislativas para tornar mais operativo o cumprimento dos direitos humanos, a não discriminação e o não racismo.47

O senador Luis Alberto Heber (Partido Nacional):

É preciso ter cuidado quando são geradas uma ou duas vagas, porque, depois, a Administração vai dizer que não pôde respeitar os 8%, porque não se gerou o número suficiente de vagas que permitisse o cumprimento dessa porcentagem! Estou sendo claro? Vimos que a Administração, perante as porcentagens, se engana a si mesma. Como dizia o senhor senador Penadés, o que estabelece a lei não se reflete imediatamente na realidade. Não acredito que haja má vontade; não estou atribuindo má vontade a ninguém. Talvez haja antolhos burocráticos que levem a não se enxergar o que quer o legislador, antolhos burocráticos utilizados por quem, casualmente, está na Administração. Por exemplo, 8% de duas vagas não são suficientes para que uma delas se destine a esse fim; portanto, se preenchem as duas vagas, como sempre, e não se cumpre a lei.48

Sobre o cumprimento das disposições, vários dos informantes desta pesquisa referiram as dificuldades em que se encontraram no momento de implementá-las. Por exemplo, o desconhecimento do tema afro, das questões étnico-raciais, o desconforto que produz o assunto, sua negação ou minimização. Nesse sentido, caberia pôr em prática diferentes mecanismos institucionais que permitissem o funcionamento das disposições, evitando-se que ficassem unicamente no discurso ou em ordens descumpridas. Para a aplicação da lei, por exemplo, deveríamos saber qual é a presença de afrodescendentes no âmbito estatal, em que postos se encontram e se tiveram barreiras não formais para sua ascensão.

Afrodescendência e autoidentificação

O senador Pedro Bordaberry (Partido Colorado) questiona:

Pode uma lei deixar ao arbítrio de um cidadão que se autoidentifique para ter acesso a um direito? Acredito que não.49

Isso é respondido pela informante senadora Moreira, ao concluir as exposições. Ela explica que esse é um tema amplamente discutido em nível internacional e nacional e que, no momento, costuma ser a forma adotada nesses casos.

O termo “afrodescendente” surgiu no âmbito dos encontros regionais anteriores à III Conferência Mundial Contra o Racismo, o Preconceito Racial, a Xenofobia e Outras Formas de Intolerância, realizada, no ano de 2001, em Durban, quando seu uso foi legitimado pela comunidade internacional para se referir à população descendente de africanas e africanos vítimas do tráfego transatlântico e da escravidão, trazidos à força à América durante o período colonial, vítimas históricas do racismo, do preconceito racial, da marginalização, da pobreza, da exclusão e da reiterada negação dos seus diretos humanos. Foi, precisamente, na Conferência Regional Preparatória das Américas, realizada em Santiago do Chile, que se originou o uso do termo. A definição de afrodescendência integra aspectos raciais de construção social e aspectos étnicos e de etnicidade de construção de identidade, mediados por experiências individuais e/ou coletivas de preconceito. Coexistem duas formas de identificação: a autoidentificação refere-se às características que cada pessoa percebe sobre si mesma, e a heteroidentificação, às percebidas por outras pessoas. Segundo o documento ¿Qué ves cuando me ves?50 (O que você vê quando me vê?), da Faculdade de Ciências Sociais (UdelaR), apesar de o Uruguai ter uma curta história na implementação e no reconhecimento da autoidentificação étnico-racial das pessoas, há um certo consenso social em torno das percepções de pertença étnico-racial e, portanto, o critério de autoatribuição, usado habitualmente nos instrumentos oficiais, se adequa bem à sociedade uruguaia. Na referida publicação, compara-se a aplicação da autoidentificação e da heteroidentificação, considerando-se, até o momento, a autoidentificação como a melhor alternativa. Na Encuesta Nacional de Hogares Ampliada (ENHA) (Pesquisa Nacional de Lares Ampliada) de 2006 e no Censo de 2011 as perguntas foram: “Você acredita ter ascendência afro ou negra? Qual considera a principal?”. Para a segunda pergunta, o censo incorporou o item “nenhuma” (= não há principal) como outra possível opção de resposta.51

O senador Ope Pasquet (Partido Colorado) diz:

Compartilho também as observações que está formulando o senhor senador Bordaberry, que assinala uma dificuldade objetiva que vai se apresentar na aplicação dessa lei. O que realmente queremos é respaldar, apoiar e promover a população negra no Uruguai, mas, em vez de dizermos “negro” estamos dizendo “afrodescendente”, o que gera um monte de dificuldades pelas razões que acabam de ser expostas. Estamos fazendo alusão a uma questão que não chega ao centro do conceito, e isso, como disse, gera dificuldades. Acredito que seria bom utilizar uma linguagem mais simples para corrigir esses problemas.52

Esse é um tema em permanente tensão, debatido em conferências e outros encontros internacionais afros, e também está contemplado nas decisões tomadas pelo movimento afro-uruguaio. Assim, duvidar se a denominação é simples ou difícil, por parte de um senador da República, não significaria um problema de desconhecimento e de falta de reconhecimento?

A título de conclusão

Hoje é possível visibilizar as diferenças e seus portadores: eles se encontram em um momento histórico que propicia a defesa do seu direito a vivê-las e de serem aceitos. Juntamente com o reconhecimento, é preciso observar a equidade e a igualdade nas oportunidades em populações em situação de vulnerabilidade por sua pertença étnico-racial, e sua intersecção com outras discriminações, porque essas desigualdades socioeconômicas são produto de longos períodos de exploração, sustentadas em categorizações simbólicas que se elaboraram e localizaram, racializando e subalternizando a condição de ser afro, indígena ou mestiço a partir da criação de estereótipos negativos ou aspectos dissimulados, carregados de desvalorização — como no caso do trabalho escravo. A organização do movimento afro-uruguaio, seus vínculos com organizações semelhantes em nível internacional e sua participação em diferentes eventos nacionais e internacionais têm provocado avanços muito importantes como o aqui tratado.

Foram examinados argumentos discutidos no Congresso Nacional durante o processo que culminou com a sanção da Lei nº 19.122, e procuramos relacioná-los com discussão semelhante em outros países, como no decorrer da instauração do sistema de cotas no âmbito universitário brasileiro. Essa lei constitui um avanço significativo no tocante a políticas públicas voltadas para iniquidades e desigualdades históricas que, hoje, o Estado uruguaio assume como tais. Constitui-se, além disso, como um antecedente de política de Estado relativa à questão racial afro por surgir da unanimidade conseguida para sua aprovação, o que é muito importante para os resultados reais de sua aplicação, para acompanhar a implementação, as avaliações, as retificações e por contar com maiores chances de superar os cinco ou dez anos de governo de um partido. Embora a própria lei determine 15 anos de aplicação ao estabelecer um âmbito temporal, acordando o que, no momento, foi considerado um prazo razoável que permitiria corrigir as situações de desigualdade, não deveria se descuidar da necessidade de reforçar dispositivos que possibilitem seguir passo a passo seu real cumprimento. Outro ponto efetivo que gera uma base sólida de compromisso com a futura implementação dessa lei é a participação da sociedade civil organizada e dos seus representantes nos mecanismos de equidade racial. Ao mesmo tempo, conta com o apoio de técnicos e acadêmicos em parceria com parlamentares e representantes do coletivo afro organizado.

As intervenções dos representantes do Frente Amplio introduzem questões não consideradas, tais como o papel da mídia e o problema da representação, assim como enfatizam as raízes históricas da desigualdade. Mesmo assim, não existiu um debate profundo, não apenas sobre o problema afrodescendente, mas sobre a questão racial no Uruguai. Esse é um debate pendente para a sociedade uruguaia e, igualmente, para seu Parlamento. É um debate difícil e profundo, porque implica, entre várias questões, uma revisão da sua história, mas, principalmente, do seu imaginário. Talvez ainda não tenha sido o momento, mas estamos no caminho certo.

É bastante notório que, para a aprovação dessa lei, talvez, mais do que o convencimento dos parlamentares, tenham interferido os relatórios internacionais apresentados ao Estado uruguaio, que instavam a tomar decisões sobre o assunto, a normativa internacional vigente, uma sociedade civil organizada que controla os votos e, como mencionamos no decorrer da análise documental, havia maioria para aprová-la, o que inclui uma perspectiva governamental no enfoque de direitos.

Outrossim, os parlamentares conseguiram acreditar, mais ou menos ingenuamente, no discurso do igualitarismo uruguaio, característico do imaginário social predominante, e, ao mesmo tempo, não escutar os relatos de afrodescendentes ou não ter consciência da predominância das atividades que desenvolvem; prestar pouca atenção às letras das comparsas;53 naturalizar a presença histórica dos afrodescendentes como aguadeiros, cevadores de chimarrão, escravos; e vê-los, quase unicamente, como excelentes tocadores de tambor em fevereiro. Mas não é possível ignorar o poder dos números, menos ainda se eles provêm de dados produzidos pelo Instituto Nacional de Estatística, e esses dados têm por trás uma sociedade civil organizada, em meio a uma propícia situação internacional. Consideramos que fazer essas perguntas não minimiza a relevância da unanimidade no momento da votação, mas achamos inevitável abordar essas questões. Nas discussões registradas na documentação, a apresentação de diferentes relatórios torna desnecessário discutir-se a constatação do racismo. Perante evidência tão contundente, não é possível declarar-se sua negação. A discussão principal se dá em torno da necessidade de focalizar ou não na aplicação de políticas públicas, e passa por temas como as garantias para o cumprimento da lei e as medidas que isso requer.

É importante que nos detenhamos, ainda, em dois aspectos que consideramos essenciais: um deles, presente em outros trabalhos de campo para esta pesquisa, é o uso do termo “afrodescendente”; o outro, o problema da autoidentificação.

Para o primeiro, a fundamentação apresentada pelo senador Bordaberry, aludindo, de acordo com o dicionário da Real Academia Espanhola, o significado de “afro” e de “descendente” à origem africana do primeiro antepassado homo sapiens sapiens e à extensão do continente africano, não levou em conta o significado político do termo e, primordialmente, a decisão do seu uso por parte dos movimentos afrodecendentes organizados, reunidos em conferências regionais e mundiais. O dito pelo senador Bordaberry é ratificado pelo senador Pasquet. Entendemos que a discussão do uso dos termos “negro” e “afrodescendente” está em permanente tensão, não está encerrada e há fundadas razões para respaldar ambos os termos. Apesar disso, nos perguntamos: Podem-se desconhecer as decisões dos próprios atores, sobretudo em se tratando de senadores da República? A resposta a essa pergunta é, obviamente, negativa. Como já mencionamos, o termo “afrodescendente” foi legitimado pela comunidade internacional.

O segundo aspecto, a autoidentificação, é um tema em permanente tensão, longamente debatido em conferências e outros encontros internacionais afros, como também no âmbito acadêmico nacional e internacional. No Uruguai, os especialistas assinalam que, até o momento, essa é a categoria para indicar a pertença étnico-racial que melhor se ajusta à nossa sociedade. Talvez, com o avanço da implementação da lei e sua avaliação, surja a necessidade de revisá-la.

Os argumentos apresentados a favor da lei têm a ver com o preconceito e a desigualdade em sua dimensão socioeconômica. No entanto, a dimensão cultural e simbólica da desigualdade aparece ao nomear-se, como antecedente de reconhecimento, a Lei nº 18.059, que estabeleceu o dia 3 de dezembro como Dia Nacional do Candombe, da Cultura Afro-Uruguaia e da Equidade Racial, assim como na revisão da presença e das contribuições afros à história e à cultura nacional, estabelecidas na lei e mencionadas na discussão.

Também se alude à ausência da mídia na difusão desse projeto, na qual ele não teve grande repercussão, do mesmo modo que a quase ausência de menção a políticas culturais que reforcem o não racismo, porque, embora seja importante a existência da Comissão Honorária Contra o Racismo, a Xenofobia e Toda Outra Forma de Preconceito, o desejável não é agir apenas quando acontecem episódios — embora seja necessário —, mas procurar evitá-los. Entre os mais importantes argumentos para questionar-se a habilitação de políticas afirmativas, um dos primeiros pleiteados como problema a ser levado em conta ao legislar ações afirmativas é a contradição com o princípio de igualdade determinado pela Constituição da República. Durante as sessões, argumenta-se sobre o porquê de votar-se ou não essa lei, mas não se pleiteia um debate em torno da fundamentação das argumentações, como aconteceu no Brasil, por exemplo.

O argumento oferecido para rebater foi o de que o princípio de igualdade já não existia, na medida em que os afrodescendentes não gozam dos seus direitos, mesmo existindo o referido princípio constitucional. Na mesma linha questionadora, assinala-se que, para dar solução à situação de pobreza de um setor da população, retarda-se a solução para outros setores igualmente pobres,54 supondo-se que os afrodescendentes estão em situação de desvantagem mais por serem pobres, do que por serem afrodescendentes. Apesar disso, o raciocínio culmina em considerar-se a pobreza como fator determinante da desvantagem socioeconômica. Esse argumento é levantado por parlamentares dos partidos Blanco e Colorado, com diversos matizes. É evidente que grande parte do coletivo afro-uruguaio que está em situação de pobreza faz parte dos setores pobres em uma sociedade de classes como a uruguaia. Mas o que fica, frequentemente, fora das análises por longos períodos é a linha de cor que atravessa a sociedade de classes nos países ex-colônias.55

Para quem defende as posições que discutem a aplicação da lei aqui em tela, um elemento que justificaria a aplicação de algum tipo de preferência e intervenção seria nos casos de discriminação comprovada. Nesse ponto, se poderia especular sobre os dados surgidos da análise, com relação às perguntas sobre a ascendência étnico-racial, levantados pelo INE. Não se considera discriminação comprovada?

No decorrer da discussão, levantam-se algumas dúvidas com relação à aplicação efetiva dos 8%. O que ocorreria nos casos de haver poucas vagas? Como se informaria aos potenciais beneficiários desse direito? Por que não se aplica a distribuição no próprio Parlamento? Que papel desempenhariam os meios de comunicação de massa? Esses são elementos de grande relevância para prever e corrigir situações atuais e outras que possam se apresentar no futuro.

Entre alguns dos pontos de aceitação geral, não há dúvidas sobre o papel transformador da lei, no entanto, deve-se agir em diferentes níveis para que se efetivem mudanças reais. Por isso, as medidas a serem tomadas devem ser mais abrangentes. Por outro lado, isso não resolve o problema de fundo da pobreza estrutural. Manifesta-se a presença de vários tipos de racismo: estrutural, institucional, absoluto. Faz-se, entretanto, pouca referência a um tipo de racismo tão sofrido como os demais, que também os atravessa: o automático, o de costume, o cotidiano, o absolutamente naturalizado.

Outros pontos de concordância são a iniciativa das organizações da sociedade civil para chegar-se a esse momento, o papel de destacados dirigentes pertencentes às referidas organizações e a intimação a apresentarem contribuições nas instâncias de discussão. A esse respeito, não devemos esquecer que os relatórios internacionais instaram à participação da sociedade civil nesses processos. Para chegar-se à unanimidade, seria de se esperar que tivessse influído o número de votos que os afrodescendentes representam, votos esses que os partidos disputam entre si, além da certeza de que não faria sentido opor-se a projetos quando previamente se sabe que contam com a maioria para sua aprovação e, fundamentalmente, o fato de que a existência dessa lei se deve à demanda do coletivo afrodescendente organizado.

Não há dúvidas sobre a relevância desse debate para a “questão racial” no Uruguai, sobre as consequências positivas que a aplicação dessa lei possa gerar para os afro-uruguaios, de modo a tornar visível que, como assinalam Figueiredo e Grosfoguel, “a epistemologia hegemônica que se beneficia do discurso da imparcialidade/universalismo/neutralidade, na realidade tem cor”.56 A política também.

Material suplementar
Notas
notas
1 José Pedro Barrán e Benjamín Nahum, Historiapolíticaehistoriaeconómica, Montevidéu: Banda Oriental, 2004.
2 Barrán e Nahum, Historiapolítica, p. 61.
3 Carlos Real de Azúa, Elimpulsoysufreno. Tresdécadasdebatllismoylasraícesdelacrisisuruguaya, Montevidéu: Banda Oriental, 1973.
4 Gerardo Caetano e José Rilla, HistoriacontemporáneadelUruguay. DelacoloniaalMercosur, Montevidéu: CLAEH; Fin de Siglo, 1994.
5 Caetano e Rilla, HistoriacontemporáneadelUruguay.
6 Miguel Bayley, ElFrenteAmplio. Historiaydocumentos. Montevidéu: Banda Oriental, 1985, p. 21.
7 Diários de sessões, <www.parlamento.gub.uy>, acessado em 02/2015.
8 Manuel Alcántara e Flavia Freidenberg (eds.), LospartidospolíticosenAméricaLatina, Salamanca: Universidade de Salamanca, 2001.
9 Alcántara e Freidenberg. Lospartidospolíticos, p. 435.
10 Alcántara e Freidenberg, Lospartidospolíticos, p. 476.
11 Cf. Felipe Arocena e Sebastián Aguiar (eds.), MulticulturalismoenUruguay, Montevidéu: Trilce, 2007; Aníbal Quijano, “Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina”, in Edgardo Lande (comp.), Lacolonialidaddelsaber: eurocentrismoycienciassociales. Perspectivaslatinoamericanas (Buenos Aires: CLACSO, 2000), pp. 246-76; Mario Margulis e Marcelo Urresti, Lasegregaciónnegada. Culturaydiscriminaciónsocial, Buenos Aires: Biblos, 1998; Rita Laura Segato, “Los cauces profundos de la raza latinoamericana: una relectura del mestizaje”, CríticayEmancipación. RevistaLatinoamericanadeCienciasSociales, v. 2, n. 3 (2010), pp. 11-44; Catherine Walsh, “‘Raza’, mestizaje y poder: horizontes coloniales pasados y presentes”, CríticayEmancipación. RevistaLatinoamericanadeCienciasSociales, v. 2, n. 3 (2010), pp. 95-124.
12 Charles Taylor, Elmulticulturalismoylapolíticadelreconocimiento, México: Fondo de Cultura Económica, 1993.
13 Nancy Fraser, “Redistribución, reconocimiento y participación. Hacia un concepto integrado de justicia”, in UNESCO, Informemundialsobrelacultura2000-2001. Diversidadcultural, conflictoypluralismo (Madri: UNESCO; Mundi-Prensa), pp. 48-57.
14 Sylvia Montañez, Mónica Olaza e Laura Silvestri, “Uruguay. De la invisibilidad ¿al reconocimiento?”, FundamentosenHumanidades, v. 15, n. 2 (2014), pp. 55-68.
15 Mónica Olaza, AfrodescendientesenUruguay. Debatessobrepolíticasdeacciónafirmativas, Montevidéu: Doble Clic, 2017, pp. 22-4.
16 Cf. Jill Foster, Elracismoylareproduccióndelapobrezaentrelosafrouruguayos, Montevidéu: CLAEH, 2001; Juan José Altamiranda, “Afrodescendientes y política en Uruguay” (Monografia final de Licenciatura em Ciência Política, Universidade da República, 2004); Marisa Bucheli e Wanda Cabella, Elperfildemográficoysocioeconómicodelapoblaciónuruguayasegúnsuascendenciaracial, Montevidéu: UNFPA-UNDP/INE, 2007; Arocena e Aguiar, MulticulturalismoenUruguay; Lucía Scuro Somma (coord.), Poblaciónafrodescendienteydesigualdadesétnico-racialesenUruguay, Montevidéu: PNUD, 2008; Mónica Olaza, Laculturaafrouruguaya. Unaexpresióndemulticulturalismoemergentedelarelaciónglobal-local, Montevidéu: Plural, 2008; Mónica Olaza, Ayeryhoy. Afrouruguayosytradiciónoral, Montevidéu: Trilce, 2009; Mónica Olaza, “Políticas públicas y cultura política. Reflexiones posibles para des-naturalizar prejuicios, estereotipos y racismo”, in Alejandro Grimson (comp.), Culturasypolíticasypolíticasculturales (Buenos Aires: Fundación de Altos Estudios Sociales, 2014), pp. 133-144; George R. Andrews, Negrosenlanaciónblanca. Historiadelosafro-uruguayos1830-2010, Montevidéu: Linardi e Risso, 2010; Juan Cristiano, “Raíces africanas en Uruguay. Un estudio sobre la identidad afro-uruguaya” (Monografia final de Licenciatura em Sociologia, Universidade da República, 2010); Lil Vera, “Discriminación racial e identidad. La experiencia de las generaciones recientes de afrodescendientes en Uruguay” (Monografia final de Licenciatura em Sociologia, Universidade da República, 2011); Wanda Cabella, Mathías Nathan e Mariana Tenenbaum, “La población afro-uruguaya en el Censo 2011”, in AtlassociodemográficoydeladesigualdaddelUruguay, 2 (Montevidéu: Trilce, 2013).
17 Cabella, Nathan e Tenenbaum, “La población afro-uruguaya”.
18 Cabella, Nathan e Tenenbaum, “La población afro-uruguaya”, p. 71.
19 Cabella, Nathan e Tenenbaum, “La población afro-uruguaya”.
20 Cabella, Nathan e Tenenbaum, “La población afro-uruguaya”, p. 70.
21 Cabella, Nathan e Tenenbaum, “La población afro-uruguaya”, pp. 69-71. Para aprofundar essa informação, cf. Olaza, AfrodescendientesenUruguay, pp. 43-6.
22 Joaquim Gomes Barbosa, “O debate constitucional sobre as ações afirmativas”, in Renato Emerson dos Santos e Fátima Lobato (org.). Açõesafirmativas. Políticaspúblicascontraasdesigualdadesraciais (Rio de Janeiro: DP&A, 2003), pp. 15-57.
23 Cristina Torres, “Acciones afirmativas para lograr la equidad de salud para los grupos étnicos/raciales”, documento apresentado à Oficina Regional para a Adoção e Implementação de Políticas de Ação Afirmativa para Afrodescendentes da América Latina e do Caribe. Montevidéu, Uruguai, 07-09/05/2003, Washington DC: OPS-OMS, 2003.
24 Pasta nº 1288, Anexo nº 761.
25 Essa informação, as leis e as sessões estão disponíveis em <http://www.parlamento.gub.uy>.
26 Gustavo Cersósimo, Câmara dos Deputados, 08/08/2013, p. 133.
27 Cf. Felipe Arocena, “Brasil: de la democracia racial al estatuto de la igualdad racial. Argumentos. Estudios críticos de la sociedad”, NuevaÉpoca, v. 20, n. 55 (2007), pp. 97-115.
28 Câmara dos Deputados, 17/10/2012.
29 Cersósimo, Câmara dos Deputados, 17/10/2012, p. 41.
30 Cersósimo, Câmara dos Deputados, 17/10/2012, p. 40.
31 Pablo Abdala, Câmara dos Deputados, 17/10/2012, p. 37.
32 Abdala, Câmara dos Deputados, 17/10/2012, p. 39.
33 Uma análise exaustiva do assunto encontra-se em Carlos M. Rama, Losafrouruguayos, Montevideo: El Siglo Ilustrado, 1969.
34 Cersósimo, Câmara dos Deputados, 17/10/2012, p. 41.
35 Abdala, Câmara dos Deputados, 17/10/2012, p. 37.
36 Doreen Javier Ibarra, Câmara dos Deputados, 17/10/2012, p. 42.
37 Rafael Michelini, Câmara dos Deputados, 17/10/2012, pp. 63-4.
38 Constanza Moreira, Câmara dos Senadores, 16/07/2013, p. 249.
39 Moreira, Câmara dos Senadores, 16/07/2013, p. 253.
40 Eber Da Rosa, Câmara dos Senadores, 16/07/2013, p. 254.
41 Mercedes Santalla, Câmara dos Deputados, 17/10/2012, p. 52.
42 Julio Bango, Câmara dos Deputados, 17/10/2012, p. 22.
43 Jovem militante afrodescendente, funcionária do Ministério de Desenvolvimento Social e estudante universitária que protagonizou uma briga com um grupo de mulheres na saída de uma balada em Montevidéu, em dezembro de 2012, e acabou hospitalizada com lesões graves. O acontecimento foi declarado como um fato com características racistas pela Instituição Nacional de Direitos Humanos. As imagens podem ser encontradas em YouTube. Tania Ramírez foi agredida sem revidar à surra. Houve insultos de ambas as partes e, dirigindo-se a ela, foi dito: “Negra suja, vai passar chapinha no cabelo”.
44 Luis Puig, Câmara dos Deputados, 17/10/2012, p. 58.
45 Carmen Beramendi, Câmara dos Senadores, 16/07/2013, p. 263.
46 Martín Elgue, Câmara dos Deputados, 17/10/2012, p. 55.
47 Bertha Sanseverino, Câmara dos Deputados, 17/10/2012, p. 22.
48 Luis Alberto Heber, Câmara dos Senadores, 16/07/2013, p. 268.
49 Pedro Bordaberry, Câmara dos Senadores, 16/07/2013, p. 263.
50 Graciela Sanroman et al., ¿Quévescuandomeves? AfrodescendientesydesigualdadétnicoracialenUruguay, Montevidéu: Faculdade de Ciências Sociais, UdelaR, 2011.
51 Cabella, Nathan e Tenenbaum, “La población afro-uruguaya”.
52 Ope Pasquet, Câmara de Senadores, 16/07/2013, p. 267.
53 N da T: Grupo de pessoas que desfilam juntas no carnaval, de modo geral com fantasias do mesmo tipo. As comparsas das Sociedades de Negros, depois Sociedades de Negros e Lubolos (antigamente eram chamados assim os homens brancos que se pintavam de negro) se mantiveram, o que permitiu dar continuidade à identidade coletiva da cultura afro-uruguaia, sendo um dos dois fenômenos fundamentais de sua manifestação pública. A outra manifestação cultural pública são as saídas dos tambores durante o ano todo, nos bairros de Montevidéu, no Desfile Inaugural e no Desfile de Llamadas das Comparsas de Negros e Lubolos. Luis Ferreira, LosTamboresdelCandombe, Montevidéu: Colihue Sepe, 1997.
54 Giovanni Sartori, Lasociedadmultiétnica, Madri: Taurus, 2001.
55 Sobre esse ponto, podemos nos remeter às análises realizadas por diversos autores. A respeito de raça e colonialidade do poder na América Latina, cf. Quijano, “Colonialidad del poder”; Segato, “Los cauces profundos de la raza latino-americana”. Sobre a “racialidade das relações de classe”, cf. Margulis e Urresti, Lasegregaciónnegada.
56 Ângela Figueiredo e Ramón Grosfoguel, “Por que não Guerreiro Ramos? Novos desafios a serem enfrentados pelas universidades públicas brasileiras”, CiênciaeCultura, v. 59, n. 2 (2007), p. 40, <http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v59n2/a16v59n2.pdf>, acessado em 15/07/2015.
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