Resenhas
HIRIBARREN Vincent. A History of Borno: Trans-Saharan African Empire to Failing Nigerian State. 2017. Londres. Hurst and Co.. 311pp. |
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Os africanos do período pré-colonial mapearam seus territórios? Quão arbitrárias eram as fronteiras coloniais africanas? Perguntando de outro modo: quais as convergências, se alguma, entre as noções africanas e europeias de limites territoriais? Essas questões, anteriormente feitas por estudiosos africanistas como Ivor Wilks e Ralph Austen, para mencionar apenas dois, informam a History of Borno de Vincent Hiribarren, uma análise histórica da relativa estabilidade das fronteiras de Borno desde o início do século XIX. Ao argumentar que a unidade geográfica chamada Borno sobreviveu a numerosos regimes políticos, este livro serve como uma crítica dos que apoiam a ideia de que os europeus não deram qualquer atenção às circunstâncias locais ao desenharem as novas fronteiras coloniais africanas durante a era da partilha da África, do final do século XIX até o início do século XX.
Dividido em sete capítulos, o primeiro, que delineia o Borno pré-colonial ou oitocentista, destaca o sistema administrativo, a relações entre a capital, Kukawa, e as províncias ou feudos (chima chidibe). Decisões políticas irradiavam da capital enquanto os feudos, sob os Galadima ou Kachela, serviam como postos avançados provinciais, defensivos e comerciais. Uma demarcação apropriada de fronteiras era central para defender Borno contra inimigos externos. Por exemplo, embora as forças do jihad de Sokoto, declarada em 1804 no vizinho território haussá, falharam em sobrepor-se ao Borno em 1808, elas fizeram estragos suficientes para levar um guerreiro e scholar, Mohammed Al-Kanemi, a repelir os invasores. Em seguida, a longeva dinastia Saifawa ou Mai caiu durante uma guerra civil e foi suplantada por Al-Kanemi, que mudou a capital de Ngazargamu para Kukawa. Al-Kanemi lutou sua guerra contra Sokoto não apenas com armas, mas também com argumentos teológicos, legais e políticos. Amiúde relacionados à natureza do Islã e do jihad, esses debates também envolveram nacionalismo étnico. El-Kanemi mobilizou, principalmente, os povos Kanuri e Kanembu de Borno contra os haussás e fulanis de Sokoto. Depois os distritos não-muçulmanos nas escarpadas montanhas de Bauchi, no oeste, e em Adamawa, no sul e sudoeste, se tornaram as fronteiras naturais para dois poderosos estados muçulmanos. Por estas razões o autor argumenta que os africanos, tanto como seus equivalentes na Europa, tinham consciência dos seus limites territoriais.
O Capítulo 2 se concentra nas interações entre Borno e o mundo mais amplo no século XIX. Primeiro, baseado em sua identidade islâmica e localização nas bordas sulinas do deserto do Saara, Borno estava orientado para a África do Norte e o Oriente Médio. Assim, seus maiores parceiros comerciais incluíam Trípoli, Egito e sociedades na região mais ampla da bacia do Nilo. Nos anos iniciais da expansão europeia na África, os líderes de Borno tentaram usar seus laços com o Império Otomano como instrumento de combate à influência e o imperialismo europeu. Mas a Europa não era o único inimigo. Em 1893, um exército predatório liderado por um senhor da guerra e escravista sudanês, Rabih Fadlallah, saqueou Borno, derrubou a dinastia de El-Kanemi, que subira ao poder em 1813/14, e mudou a capital de Kukawa para Dikwa.
O regime de Rabih teve vida curta. Em 1900, forças europeias — alemães, francesas e britânicas — marcharam contra o Borno de Rabih. Após dois anos de combates os franceses derrotaram e mataram Rabih e Borno foi dividido entre os europeus. A Grã-Bretanha ficou com a maior porção (agora nordeste da Nigéria), enquanto os alemães se apossaram de Dikwa.
Nem Rabih nem os europeus deram início a um novo sistema administrativo. Hiribarren acentua que ambos foram pragmáticos. De modo a justificar a conquista e os novos regimes, ambos reconheceram e mantiveram os limites territoriais e os princípios de governo pré-existentes. Também trabalharam em colaboração com várias facções de Borno. Quer dizer, Rabih e os administradores europeus agiram, não como forasteiros ou conquistadores, mas como aliados que reafirmaram o poder de Borno e de seus apoiadores. Por exemplo, depois da morte de Rabih, em 1900 os alemães instalaram como o primeiro Shehu (rei) em Dikwa o Shehu Sanda Kura, um membro da velha dinastia borno. Em 1901, eles o substituíram por seu irmão, Umar Abubakar Garbai, ancestral dos atuais emires de Borno. Ao cooptarem diversos setores de Borno, inclusive membros de várias famílias reais e dinastias defuntas, os invasores estrangeiros se tornaram herdeiros legítimos do poder e glória do antigo Borno.
Assim, num clássico sistema de dividir para dominar, emergiu uma aliança simbiótica entre conquistadores e chefes locais. Para se legitimar, os primeiros se aproveitaram da autoridade e das demandas dos segundos, e estes mobilizaram os europeus para reclamar a glória perdida ou para consolidar novas vitórias. Como em outros estudos sobre estratégias administrativas coloniais em África, Hiribarren vê continuidades nos esquemas coloniais e pré-coloniais de governo. Os europeus reforçaram e perpetuaram o território do antigo Borno com o propósito de exercer poder e coletar impostos. Mas o compromisso com o mito do antigo Borno não era estático. Por um lado, os europeus apoiaram facções políticas diversas, desde quando isso ajudasse suas estratégias de governo, ao mesmo tempo que as antagonizavam quando necessário. Não importa qual a colônia, as políticas europeias oscilavam entre reconhecer e manter a integridade territorial de Borno e apoiar lideranças específicas, até ignorar aqueles que desafiavam a demanda dos europeus ao manto do antigo Borno.
De fato, como o título indica, o Capítulo 4 detalha como os colonialistas reconstituíram o antigo Borno. Sob o sistema britânico e governo indireto, que buscou criar diversos estados africanos com a imagem de suas entidades pré-coloniais e investiram muitos chefes africanos com o poder e os privilégios (ou mais que isto, algumas vezes) de seus ancestrais, Borno foi dividido em um sistema administrativo no qual o reino designava uma província e as chefaturas foram divididas em emirados, distritos e vilas. Uma grande diferença foi que, enquanto o shehu e os emires permaneceram sendo os mais seniores entre os chefes no distrito e na província, respectivamente, eles eram submetidos a um comissário britânico no nível provincial e a um administrador no nível distrital (ou do emirado). O sistema concentrava os assuntos externos, militares e fiscais nas mãos dos britânicos, enquanto a maioria de todos os outros aspectos da vida foi delegada aos chefes locais, especialmente as aristocracias pré-britânicas que apoiaram os britânicos durante e depois da conquista.
Mas havia uma contradição entre os objetivos políticos coloniais e a realidade de sustentar todo o aparato do antigo Borno. Baseado em um tratado entre franceses, alemães e britânicos, o antigo Borno foi dividido e Dikwa se tornaria parte da colônia alemã de Camarões. A Grã-Bretanha, por outro lado, converteu um forte militar mais de 50 milhas a oeste em nova capital, agora Maiduguri, onde instalaram como shehu Umar Abubakar Garbai, membro da dinastia de Kanem. Assim, pela primeira vez, Borno teve dois reis, um entronado pelos britânicos em Maiduguri e o outro presidindo a Borno alemã em Dikwa. O deslocamento da capital de Dikwa para Maiduguri, além do redirecionamento do comércio do deserto para a costa, levaram ao colapso das relações comerciais de Borno com a Libia e a antiga capital, Kukawa, até então um centro de redistribuição na antes florescente rota Borno-Trípoli.
Os Capítulos 5 a 7 discutem vários estágios na formação de um “novo” Borno. O Capítulo 5 mostra como a principal preocupação dos funcionários britânicos e kanuri era fortalecer a posição de Borno, acreditando que isto os habilitaria a agregar obter e obediência da parte de seus súditos e dos estados vassalos. Uma tática foi reescrever a história de Borno com uma ênfase sobre a ascensão do reino e suas campanhas militares. Portanto, os funcionários coloniais britânicos eram mais do que simples administradores, eles eram também propagandistas de Borno e historiadores “nacionais” comprometidos em promover o reino para seus vizinhos.
Os Capítulos 6 e 7 focam no redesenho dos limites coloniais, depois da Primeira Guerra Mundial, quando, após a derrota da Alemanha, suas colônias africanas foram transferidas para a Liga das Nações, que delegou a administração cotidiana delas a autoridades francesas e britânicas. Perto de cinco décadas mais tarde, à época da independência da Nigéria, Adamawa e Borno, parte do território administrado, votaram para sair do Camarões francês e unir-se ao norte da Nigéria. Hiribarren destaca ter havido, por trás dos bastidores, esforços de funcionários kanuri e britânicos para influenciar o resultado do plebiscito. Finalmente, o Capítulo 8 se dirige a tópicos sobre a política nigeriana no nordeste do país, desde a criação dos estados, entre 1967 e 1991, que gradualmente enfraqueceram o poder do shehu, à política partidária, a deportação temporária da Nigéria para o Chad, em 1981, de Alhaji Shugaba, um político kanuri, até o atual tumulto produzido pela organização religiosa fundamentalista cum terrorista Boko Haram.
Em geral, este livro contém dados sobre a permanência relativa das fronteiras de Borno ao longo dos últimos dois séculos, ao mesmo tempo que estuda o funcionamento das políticas administrativas coloniais na Nigéria. Uma de suas mais importantes contribuições é a síntese que faz de extensa documentação primária e secundária em inglês, alemão e francês. No entanto, há diversas limitações potenciais. Primeiro, uma devoção excessiva para entender a territorialidade e a jurisdição política das autoridades de Borno e europeias a expensas das pessoas afetadas pelas fronteiras. Como historiador social, este resenhista ficou desapontado que o livro ignore como as fronteiras afetaram os cidadãos. Exceto por uma referência de passagem ao comércio através da fronteira entre Nigéria e Camarões, ou a etnicidade, especialmente aos kanuris, os leitores não são informados sobre como Borno respondeu não aos limites territoriais, mas a sua evolução e significado.
Há também uma impressão de desequilíbrio em relação ao livro. Dos oito capítulos, cada um cobre mais de oito décadas daquilo que pode-se chamar a era “independente” ou pré-colonial de Borno, os sete anos da conquista de Rabih e dos Europeus, e mais de cinco décadas desde a independência (1960-2014). Em contrapartida, cinco capítulos (3 a 7) são devotados a sessenta anos de governo europeu. Baseado nessa estrutura, parece que o autor se guiou pela riqueza e fácil acesso às fontes arquivísticas europeias. Se este é o caso, devemos supor que o conteúdo reflete não mais do que a “mentalidade oficial europeia” sobre o Estado de Borno?
O título também é um pouco confuso, senão enganoso. O ponto de partida do livro é quando Borno se encontrava num gradual processo de declínio por quase meio século. Desde que o Borno do início do Oitocentos era uma sombra do império no seu auge, em meados do Setecentos, isso levanta a questão sobre a adequação de ser parte do subtítulo a expressão “Trans-Saharan African Empire/Império Africano trasaariano.” Da mesma forma, o marco cronológico final, 2014, não delineia claramente o que significa “Failing State/Estado falido” ou frágil, fraco, débil. Qual Estado é falido – os estados da Nigéria, de Borno ou Yobe, ou o Reino de Borno? E quais as características desse malogro? É a ascensão do Boko Haram ou a criação de estados e a consequente dissolução da autoridade régia do shehu? Se é este o caso — e para invocar a ideia do autor sobre a long durée histórica —, não seria possível encontrar paralelos entre estes e outros episódios discutidos no livro, como a incursão dos jihadistas de Sokoto, a ascensão de Al-Kanemi e sua dinastia, as conquistas de Rabih ou a partilha europeia do antigo Borno?