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DESCOLONIZANDO O CONHECIMENTO: CONTRIBUIÇÃO DE NEGROS BRASILEIROS AO DIÁLOGO TRANSATLÂNTICO
Afro-Ásia, núm. 56, pp. 239-248, 2017
Universidade Federal da Bahia

Resenhas


CHALHOUB, Sidney; PINTO, Ana Flávia Magalhães (org). Pensadores negros – pensadoras negras: Brasil séculos XIX e XX. Cruz das Almas: Editora da UFRB; Belo Horizonte: Fino Traço, 2016. 447 p.

O Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (NEAB-UFRB) presenteia o leitor com uma obra de fôlego, que reúne dezenove artigos, uma entrevista e congrega 22 pesquisadores e pesquisadoras de diferentes universidades.1

Muito acertada a escolha dos organizadores da obra em nomear de pensadores e pensadoras o conjunto de intelectuais, ativistas políticos, poetas, sociólogos, historiadores, sambistas, artistas, geógrafos, literatos, homens e mulheres públicos. Com esta denominação, o livro não somente conecta-se à figura do pensador/a e sua busca de respostas, como também dialoga com a figura do pensador africano. Mais do que isso, os termos pensador e pensadora remetem ao papel do intelectual que se lança ao debate público, bem como remetem ao papel do ativista político, que se indigna perante as injustiças sociais e propõe-se a refazer a esperança diante da tragédia humana. Da mesma forma, os termos vão além das fronteiras disciplinares, traçadas para entender a realidade a partir de métodos específicos de uma ou outra disciplina. Ao contrário, no enfrentamento da escravidão, do racismo, da desigualdade racial, da injustiça racial, pensadores e pensadoras articularam diferentes formas de conhecimento e diferentes abordagens para entender a realidade, configurando, muitas vezes, um conhecimento transdisciplinar avant la lettre. Importante ressaltar, também, que as respostas oferecidas às experiências de racismo não foram somente transdisciplinares, mas vistas a partir de campos distintos do conhecimento, como música, pintura, poesia, teatro etc, além do conhecimento acadêmico stricto sensu.

A coletânea organizada tem o mérito de reunir um conjunto significativo de pesquisadores e pesquisadoras que desenvolveram, ou estão desenvolvendo, dissertações de mestrado, teses de doutorado ou pesquisas aprofundadas sobre personagens e épocas de nossa história. Ao tempo que instiga o leitor e a leitora a investigar a contribuição de pensadores/as a diversas áreas do conhecimento, a coletânea pode ser colocada em diálogo com algumas questões provocativas que rondam as Ciências Sociais e as Humanidades.

Primeiramente, é claro o diálogo com o desafio de um outro registro a ser feito a partir da voz e interpretação de autores subalternos. Aqui nos encontramos a meio caminho dos achados metodológicos e apontamentos políticos do prestigiosos grupo de estudos da subalternidade.2 Se o desafio era perceber a enunciação subalterna a partir das rasuras da historiografia oficial, a coletânea que ora comentamos baseia-se no registro escrito do subalterno, um registro que inclusive pode prescindir da representação do intelectual, uma vez que o subalterno pode falar e pode escrever.3 Portanto, a intervenção do intelectual se faz necessária se, e somente se, desejarmos sistematizar o pensamento de determinado pensador ou pensadora, se desejamos situá-lo/a no contexto histórico, político e intelectual, bem como se desejamos estabelecer relações entre eles e elas.

Em segundo lugar, outro diálogo possível e necessário da coletânea é com a produção intelectual dos africanos e africanas da diáspora. Em decorrência da ausência de um conjunto sistemático e consistente de pesquisas, como apresentado na coletânea em tela, intelectuais negros e negras brasileiras ainda não assumiram a devida importância no diálogo transatlântico, colocados injustamente em segundo plano por intelectuais afro-diaspóricos de outros países do Atlântico negro. Obviamente, uma das razões disto é a hegemonia linguística em que se dá este diálogo, por enquanto mediado, predominantemente, pelo inglês e francês. Pensadores negros - Pensadorasnegras acende a esperança de construirmos um diálogo mais simétrico no Atlântico negro a partir das novas gerações de pesquisadores.

Por fim, uma terceira e central possibilidade de diálogo que se coloca com o livro é com a perspectiva decolonial, entendida não sob uma perspectiva acadêmica, que remontaria à década de 1990 e aos trabalhos de Anibal Quijano,4 senão a uma perspectiva mais ampla que remonta a qualquer estratégia de mudança das relações de poder forjadas a partir da invenção das Américas e da subjugação dos povos africanos.5 Assim, podemos situar diversos pensadores/as estudados nessa coletânea como perfeitamente decoloniais.

Não seria justo aos pesquisadores e às pesquisadoras que colaboraram com este belo e instrutivo livro não comentar cada uma de suas contribuições. Vamos aos capítulos que compõem a obra:

O Capitulo 1, de autoria de Rodrigo Camargo de Godoi, dedica-se a Francisco de Paula Brito (1809-1861), editor e livreiro negro no século XIX. O ensejo para um estudo biográfico é a exclusão de Paula Brito da lista de sócios do Club Fluminense, um suntuoso estabelecimento inaugurado em 1853 com o propósito de reunir a fina flor do Império para apreciar e vivenciar a cultura europeia. Amigos de Paula Brito protestaram na imprensa da época contra a sua exclusão atribuindo-a à cor de sua pele, pois o editor reunia tanto condições econômicas quanto prestígio político para ingressar na seleta agremiação. Paula Brito, além de outros feitos, publicou, em 1833, o jornal O Mulato ou Homem de Cor, onde tratava os brasileiro de ascendência africana não como objeto, mas como sujeitos do próprio discurso.

No capitulo 2, Eduardo de Assis Duarte dedica-se ao romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis (1825-1917), publicado em 1859. “Úrsula não é somente o primeiro romance abolicionista da literatura brasileira”, afirma o autor, “[é] também o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente, que tematiza o assunto a partir de uma perspectiva interna e comprometida politicamente em recuperar e narrar a condição do ser negro em nosso país.” (p. 53). O fio condutor do artigo são as referências morais dos personagens negros do romance. O autor traz ao primeiro plano as referências de liberdade e civilização em África, contraposta à barbárie da empresa colonial descrita em Úrsula, bem como coloca em xeque os valores cristãos dos senhores de escravos a partir das virtudes encontradas nos personagens negros da história.

Luiz Gama (1830-1882) é o tema do capitulo seguinte, escrito por Elciene Azevedo. Dando prosseguimento a estudos anteriores, a autora disserta sobre a vida do rábula e abolicionista nascido livre, mas escravizado por oito anos ao ser vendido pelo próprio pai, um “fidalgo”, ao tráfico interprovincial de escravos. A autora dá destaque à produção literária de Luiz Gama, bem como à sua atuação como rábula em defesa de negros escravizados ou, mais especificamente, negros ilegalmente escravizados, tendo por base tanto no princípio da igualdade quanto no direito natural à liberdade.

O quarto artigo, escrito por Sidney Chalhoub, centra-se na atuação de Machado de Assis (1825-1908), como cidadão e intelectual, no combate à escravidão e ao racismo. Chalhoub destaca a atuação do escritor como funcionário do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas em prol da expansão dos direitos dos trabalhadores escravizados no que concerne, especificamente, à aplicação da lei do ventre livre e da lei dos sexagenários. Para além dessas considerações de Machado como um funcionário público, o autor explora, em contos e romances, temas tais como o costume da violência sexual contra mulheres negras e a leviandade dos senhores perante os sentimentos afetivos delas, a divisão racial do trabalho e a produção do silêncio a respeito do legado da escravidão e suas consequências para a sociedade brasileira.

O artigo seguinte, de Ana Flávia Magalhães Pinto, trata de José do Patrocínio (1854-1905) e seu debate com Silvio Romero, ironicamente chamado por Patrocínio, em uma de suas missivas, de teuto-sergipano de “lábios grossos e arroxeados, apesar de arianos.” (p. 119). Patrocínio, filho de um cônego e uma mulher escravizada, notabilizou-se como um dos grandes jornalistas na segunda metade do século XIX, fundador, junto com Joaquim Nabuco e André Rebouças, da Confederação Abolicionista. O capítulo explora um episódio da vida de Patrocínio, qual seja, a reprovação pública, em coluna anônima publicada no jornal O Corsário, do casamento dele com uma moça branca de família. Sem afirmar que a coluna era de Silvio Romero, Ana Flávia conduz o leitor a tirar suas próprias conclusões a partir dos seguidos ataques a Patrocínio assinados por Silvio Romero, e das respostas do abolicionista na Gazeta de Notícias.

O Capítulo 6, de autoria de Hebe Mattos, se dedica aos escritos de André Rebouças (1838-1898), quando este se auto-exilou na Europa, acompanhando d. Pedro II, e logo depois viajou pela África. O engenheiro Rebouças, fiel ao imperador, acreditava que a República tinha sido um golpe produzido pelas antigas oligarquias escravocratas, que temiam a implementação de uma “democracia rural”. Em sua viagem, feita entre 1891 e 1893, ele saiu de Cannes, atravessou o Mediterrâneo, cruzou o canal de Suez, passou por Moçambique, residiu na África do Sul por alguns meses, até chegar a Funchal, na Ilha Madeira. Neste período, Rebouças correspondeu-se com amigos brasileiros e passou a assinar como “Negro André”, identificou-se como um Ulisses Africano, falou do seu coração metade africano, metade brasileiro. Segundo Hebe Mattos, a correspondência do Ulisses Africano neste período parece sugerir algum contato com o pensamento pan-africanista, em gestação nos Estados Unidos no mesmo período.

O Capitulo 7 trata do cronista porto-alegrense Arthur da Rocha (1859-1888), que no final do século XIX criou o personagem K. Zeca, frequentador de eventos da sociedade ilustrada de Porto Alegre. Arthur da Rocha se valia do personagem para criticar os preconceitos raciais, os costumes e as hierarquias sociais da sociedade porto-alegrense. Se Rocha não podia falar abertamente contra o preconceito racial, K. Zeca explicitava-os e fazia troça da elite ilustrada da cidade. Cássia Daiane Macedo da Silveira e Marcus Vinícius de Freitas Rocha, os autores do artigo, reconstroem criativamente o cotidiano de um negro letrado na cidade em questão. Todavia, muito longe de um simplismo, demonstram as ambiguidades do autor expresso no seu personagem. Tratava-se de um negro letrado que lograra participar de um mundo branco porque compartilhava alguns de seus códigos, enquanto não deixava de fazer críticas a eles. Mas a participação de Arthur da Rocha no mundo branco lembrava o voo de Ícaro, sempre limitado pela cor de sua pele.

Lima Barreto (1881-1922) é o tema do capítulo seguinte. Magali Gouveia Engel opta por se dedicar às crônicas do autor, as quais permitem observar a maneira pela qual ele vivenciava suas experiências como um mulato letrado no Rio de Janeiro e debatia as ideias de seu tempo. Destaca a autora a crônica “Meia Página de Renan”, em que Lima Barreto contesta as ideias do filósofo e historiador francês, segundo a qual negros e chineses estariam condenados a uma servidão eterna. Contrário a esse postulado, Lima argumenta que Ernest Renan precisava conhecer a história das antigas colônias de sua pátria, especialmente a rebelião do Haiti e o papel de Toussaint L’Ouverture na independência daquela nação. Chamava também a atenção para as revoltas contra a escravidão e a formação de quilombos no Brasil. A autora explora, ainda, crônicas que possuem um tom mais autobiográfico, em que Lima Barreto faz referências a sua origem africana e sua situação socioeconômica.

Manuel Querino (1851-1923) é personagem destacado no capítulo escrito pela pesquisadora Sabrina Gledhill. Em tempos em que grassava o racismo científico entre intelectuais e políticos brasileiros, Querino produziu uma obra na contracorrente desse pensamento, destacando o papel do africano na formação do Brasil. Sabrina Gledhill inscreve o baiano de Santo Amaro na tradição do Black Vindicationism (reivindicação negra), a qual procura construir representações respeitáveis, dignas e positivas de africanos e afrodescendentes.

O velho militante José Correia Leite (1900-1989) é trazido ao Capítulo 10 por Mário Augusto Medeiros da Silva. Correia Leite foi não somente uma testemunha ocular das história do movimento negro em São Paulo, mas um protagonista das ideias emancipadoras em defesa da autonomia dos indivíduos e da igualdade. Além disso, foi um dos raros militantes que registrou sua história – E disse o velho militante José Correia Leite, de Cuti –, contribuindo para se contrapor a uma historiografia que se silencia em relação à população negra. Ao longo do capítulo, Medeiros da Silva relembra-nos os feitos de Correia Leite, desde a fundação do jornal Clarim da Alvorada, na década de 1920, passando pela fundação do Clube Negro de Cultura Social e pela Associação dos Negros Brasileiros nas décadas seguintes, até chegar à fundação da Associação Cultural do Negro, na década de 1950, sendo esta uma das organizações políticas negras mais longevas até então, ao lado da Frente Negra Brasileira.

No capítulo 11, Janaina Damasceno escreve sobre Virginia Leone Bicudo (1915- 2003), autora de duas obras seminais no campo das relações raciais: Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo,6 dissertação defendida em 1945 na primeira turma de pós-graduação em Sociologia do país, sob orientação de Donald Pierson, e Atitudes de alunos de grupos escolares em relação com a cor dos seus colegas, pesquisa desenvolvida no âmbito do projeto Unesco, em 1955. Janaina Damasceno faz um interessante paralelo entre as experiências de Virginia Bicudo e as de duas outras intelectuais afro-americanas: Ellen Irene Diggs e Katherine Dunham. Diggs, antropóloga negra, PhD pela Universidade de Harvard, impedida de se hospedar no Hotel Serrador, no Rio de Janeiro, enquanto Katherine Dunham, coreógrafa e antropóloga, também impedida de se hospedar no Hotel Esplanada, em São Paulo, em 1950. O que há de comum nas experiências dessas três mulheres negras – sejam as experiências diretas das pesquisadoras norte-americanas com o racismo brasileiro, sejam as experiências indiretas colhidas a partir de depoimentos da população negra em São Paulo – é um contradiscurso à ideia de democracia racial.

O capítulo seguinte é uma surpresa agradável. Baseia-se nos escritos de Maria de Lurdes Vale Nascimento, assistente social, jornalista, professora e ativista, que conduziu a coluna “Fala a Mulher” do jornal Quilombo. Maria Nascimento não foi somente colunista deste jornal, mas uma de suas fundadoras, assim como o foi do Teatro Experimental do Negro - TEN. Com uma incrível sensibilidade e argúcia historiográfica, Giovana Xavier traz a estrela de Maria Nascimento para clarear a noite escura, juntamente com outras estrelas que volta e meia são ofuscadas por outros. No TEN, ela fundou o Conselho Nacional das Mulheres Negras, que tinha como missão o desenvolvimento de uma “campanha voluntária para elevação do nível educacional da mulher negra”. Juntamente com Léa Garcia, Guiomar de Mattos e Ruth de Souza, Lurdes Nascimento teve destacado papel na defesa da regulamentação do trabalho doméstico.

No capitulo 13, de Marcio Macedo, temos a trajetória intelectual, artística e política de Abdias do Nascimento (1914-2011). Além das conhecidas atuações de Abdias ligadas ao teatro – Santa Hermandad Orquídea, Teatro do Sentenciado e Teatro Experimental do Negro –, Marcio Macedo destaca o significado da peça Sortilégio, mistério negro (1951) na carreira política e artística do pensador. Fortemente influenciada pelo movimento literário da négritude, por influência de Ironildes Rodrigues, essa peça é interpretada como uma ruptura com a crença na integração e assimilação dos negros na sociedade de classe, em favor de uma atuação política que valoriza a cultura e identidades negras como plataformas da ação política. Outra contribuição é o conceito de quilombismo, interpretado por Marcio Macedo como uma síntese das contribuições do pan-africanismo e do afrocentrismo a partir das experiências do negro no Brasil.

Carolina Maria de Jesus (1914-1977) é apresentada por Conceição Evaristo no capítulo seguinte. O argumento central do artigo é a “consciência negra” de Carolina de Jesus. A partir de uma leitura aprofundada dos sete livros publicados por Carolina e de textos inéditos disponíveis na Biblioteca Nacional, Evaristo revela uma autora complexa e contraditória, mas que, além de contatos com José Correia Leite no final da década de 1930 e com ativistas tais como Eduardo de Oliveira, Oswaldo Camargo e Solano Trindade, tem diversos trechos em que o “sujeito da escrita” se confunde com o “sujeito da vivência”, expondo sua “experiência vivencial negra”. A “consciência negra” da autora do mundialmente conhecido Quarto de despejo não era uma consciência do autoelogio racial como podemos ver em outros intelectuais e ativistas da segunda metade do século XX, mas era aquilo que Evaristo nomeia de uma “consciência constatativa” da condição do negro na grande São Paulo e no enfrentamento das autoridades da literatura nacional.

O compositor e sambista Candeias (1935-1978) é o tema do capítulo seguinte. De truculento policial a compositor do famoso samba “Dia de graças” e líder-fundador do Grêmio Recreativo Escola de Samba Quilombo - GRES, a biografia e os sambas de Candeias são analisados pela historiadora Maria Clementina Pereira Cunha. Visitando o contexto histórico de descenso do samba nas décadas de 1950-1960 frente à Bossa Nova, Jazz, Jovem Guarda, a autora recupera o ativismo cultural de Candeias e outros notáveis sambistas e compositores em defesa da cultura popular e o seu diálogo com o Centro Popular de Cultura da UNE, na década de 1960. Se ao longo da maior parte da vida de Candeias não se pode encontrar um engajamento na questão racial, a fundação do GRES Quilombo, em 1975, três anos antes de sua morte, o aproxima definitivamente da causa.

O Capítulo 16 é dedicado ao poeta, pintor, dramaturgo, ator, folclorista, coreógrafo e militante político Solano Trindade (1908-1974), o poeta do povo. Neste capítulo, Elio Ferreira seleciona cinco poemas de Solano para análise: “Canto dos Palmares”, “Navio negreiro”, “Sou negro”, “São Bão Jesus dos Martírios” e “Tem gente com fome”. A partir desses poemas, o poeta do povo é descrito como um griô, que produz uma escrita de resistência, esperança e utopia. A partir de sua própria memória e da memória coletiva, reconstrói-se a história da diáspora africana e faz-se uma louvação da cultura da população aquilombada, reterritorializando a África no Brasil. Em diálogo com as slaves narratives – autobiografias de escravos fugidos nos EUA –, o autor chama a atenção para não somente a riqueza lírica e poética de Solano, mas também para a demanda por igualdade e a afirmação da solidariedade entre a população negra.

O capítulo seguinte, escrito por Christen Smith, aborda a vida e a obra de Beatriz Nascimento (1942-1995). Revisitando a discussão sobre o conceito de quilombo da década de 1970 e 1980, quando militantes negros enxergavam o quilombo como indiscutível exemplo da identidade negra, Beatriz Nascimento, além disso, apontava o quilombo como um modelo antiestatal de organização social negra, como verdadeiro espaço de libertação negra. Outras reflexões exploradas por Christen Smith referem-se às discussões de Beatriz Nascimento sobre a condição interseccional (embora ela não usasse este conceito) da mulher negra e suas reflexões sobre esta e o amor. Essas e outras reflexões desenvolvida pela pensadora a colocam como integrante de um feminismo negro radical, ao lado de outras feministas negras transatlânticas que levantam suas vozes contra o capitalismo, o heteropatriarcalismo e o racismo.

A biografia e o pensamento de Lélia Gonzáles (1935-1994) são abordados no Capítulo 18 por Alex Ratts e Flávia Rios. Ao mesmo tempo que apontam ser o pensamento de Lélia devedor da rede de movimentos sociais da década de 1970, os autores destacam as contribuições dela a uma abordagem interseccional e da sua contribuição ao diálogo e teorização da diáspora negra a partir do conceito de Améfrica – a América negra. Nas palavras dos autores, a antecipação da ideia de interseccionalidade aparece em três planos nos escritos de Lélia:

entre as categorias de análise (raça, sexo e classe, entre outras), os fenômenos sociais de opressão e discriminação (racismo, sexismo e segregação, entre outros) e na articulação de movimentos sociais (negro, feminista e homossexual, por exemplo). (p. 395).

Já o conceito de Améfrica, produto da inserção internacional de Lélia, permite reconhecer a experiência fora da África como central e, diria, sem a centralidade do movimento negro dos Estados Unidos. Tanto na antecipação de uma análise interseccional, mesmo sem ter utilizado esse termo, quanto no desenvolvimento do conceito de Améfrica e nas suas abordagens sobre a mulher negra, especialmente a figura da mãe preta, Lélia não fixou a população negra no lugar da vítima, do alienado, acomodado, senão de agentes de resistência e transformação.

Milton Santos (1926-2001), um dos mais renomados intelectuais brasileiros do século XX, é o tema do Capitulo 19, escrito por Diogo Marçal Cirqueira. O autor dedica-se a analisar a presença da questão étnico-racial na vida e na obra do geógrafo, visitando momentos de sua trajetória em que a condição racial se impôs, como, por exemplo, quando se candidata, em 1962, a presidente da Associação de Geógrafos Brasileiros e houve uma tentativa de impugnar sua candidatura devido ao fato de ser negro. A questão étnico-racial, entretanto, se colocaria com mais intensidade entre as décadas de 1980 e 1990, quando, em debates com o movimento negro e nas reflexões sobre cidadania, Santos vislumbrou duas escalas distintas e articuladas que envolviam as relações étnico-raciais no Brasil: a corporeidade e a formação sócio-espacial. Para ele, era impossível pensar a questão negra fora dessa formação, uma vez que a corporeidade definia sociabilidades, a própria individualidade, bem como a cidadania.

O último capítulo, uma entrevista com o ex-integrante da Associação Cultural do Negro, Oswaldo de Camargo, que, em 2007, criou polêmica ao divulgar uma fotografia associada a Mario de Andrade (1893-1945), onde este aparece com traços negróides. Esse é o ensejo para lembrar que Mario de Andrade, falecido em 1945, participou, em 1938, das comemorações do cinquentenário da abolição, ocasião em que escreveu o seguinte no artigo “A superstição da cor preta”:

Se qualquer de nós, Brasileiros, se zanga com alguém de cor duvidosa e quer insultá-lo, é frequente chamar-lhe: — Negro! Eu mesmo já tive que suportar esse possível insulto, ser chamado de negro. (p. 431).

Se Mário de Andrade era negro ou não, este não é o ponto central da discussão. O que interessa é a polêmica acesa entre a intelectualidade brasileira, em pleno século XXI, em torno da simples possibilidade de ele ser negro.

Podemos perceber muitos méritos no livro organizado por Sidney Chalhoub e Ana Flávia Magalhães Pinto, entre eles o de colocar - juntamente com a coleção em que foi publicado - à disposição do público um material de qualidade que poderá integrar ementas de formação de professores e professoras, bem como poderá inspirar outras formas de representação da produção intelectual negra, como, por exemplo, filmes (Por que ainda não temos o nosso 8 anos de escravidão, baseado na vida de Luiz Gama?). Certamente, quem se aventurar na leitura desta coletânea ficará estupefato com as intervenções múltiplas e transdisciplinares dos intelectuais negros e negras ali presentes. Para este resenhista, a obra, como mencionamos acima, constitui um importante esforço para inserir a contribuição de intelectuais negros e negras no diálogo transatlântico.

Notas

1 O livro faz parte da Coleção UNIAFRO 2015, coordenada por Antônio Liberac Cardoso Simões Pires.
2 Ranajit Guhat (org.), A Subaltern Studies Reader (1986-1996), Minneapolis: University of Minnisota Press, 1997.
3 Gayatri Chakravorty Spivak, “Can the Subaltern Speak?”, in Patrick Willians e Laura Chrisman (orgs.), Colonial Discourse and Post-Colonial Theory: A Reader (Hemel Hempstead: Havester Wheatsheaf, 1994), pp. 66-111
4 Anibal Quijano, “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”, in Edgardo Lander (org.), A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais - perspectivas latino-americanas (Buenos Aires: Clacso, 2005), pp. 107-130.
5 Joaze Bernardino-Costa e Ramón Grosfoguel, “Decolonialidade e perspectiva Negra”, Revista Estado e Sociedade, v. 31, n. 1 (2016), pp. 13-22.
6 A dissertação foi publicada: Virgínia Leone Bicudo, Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo, São Paulo: Editora Sociologia e Política, 2010.


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