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O MEDO

O MEDO
Afro-Ásia, núm. 56, pp. 249-254, 2017
Universidade Federal da Bahia
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Resenhas

O MEDO

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Brasil
Afro-Ásia, núm. 56, pp. 249-254, 2017
Universidade Federal da Bahia

CARDOSO, Edson Lopes. Negro, não! A opinião do jornal Ìrohìn. Brasília: Brado Negro, 2015. 230 p.

Reunidos em volta de um fumegante prato de maniçoba, discutíamos em junho de 2015, em Cachoeira, no Recôncavo da Bahia, o papel do intelectual na emancipação racial. Ou na revolução. Meu interlocutor, um maduro pesquisador afro-americano, semeava duvidas impertinentes em meio a garfadas ancestrais na Praça 25 de Junho. Os limites da prática acadêmica e a relevância ou irrelevância do trabalho não apenas acadêmico, mas intelectual, para o avanço da liberdade e da justiça, dependeriam, não de uma afetação ideológica, mas da reconstrução de um laço prático com os deserdados do mundo. Ou da assunção consciente de uma posição de sujeito, imersa na materialidade do mundo, como o descentramento das epistemologias ocidentais dicotômicas.

Ora, o livro de Edson Lopes Cardoso, Negro, não! – a opinião do jornal Ìrohìn, nos oferece a oportunidade de considerar a atuação corajosa de um intelectual, jornalista e homem de letras que devotou décadas de sua vida ao enfrentamento do racismo na sociedade brasileira. Edson Cardoso nasceu em Salvador em 1949 e, como ele próprio comenta, estudou no Colégio da Bahia, o “Central”, onde iniciou sua atividade política em 1968. Em Brasília a partir de 1981, travaria maior contato com o Movimento Negro. Entre 1984 e 1987, atuou no Partido dos Trabalhadores, onde foi editor do jornal Raça & Classe. Destacou-se ainda como assessor parlamentar, trabalhando junto a políticos do PT. Foi chefe de gabinete de Florestan Fernandes, então deputado, entre 1992 e 1995, do mesmo modo assessorou o deputado Paulo Paim, quando este era secretário da mesa diretora da câmara. No Senado assessorou o mesmo Paim na primeira vice-presidência, entre 2003 e 2005.

Um dos temas principais que destacaríamos do livro – uma coleção de editoriais publicados no jornal Ìrohìn (na versão impressa e online), do qual Cardoso foi editor entre 1996 e 2009, com um intervalo entre 1999 e 2004, além de palestras e entrevistas – seria justamente sua atuação institucional junto ao Estado e aos partidos políticos, um tema palpitante e central nos debates sobre a emancipação racial, nos dias de hoje, justo hoje, quando nos defrontamos com o imenso e ruidoso colapso das promessas que a esquerda institucional fez, não só para os negros, mas para os pobres em geral e para a sociedade brasileira de modo mais amplo. Nas palavras do autor, escritas em 2004: “é necessário nos acautelarmos contra os riscos inerentes da absorção institucional.” (p. 22) E, por óbvio, ele sabe muito bem o que fala, em vista do histórico de atuação institucional em defesa da promoção da “igualdade racial”, tendo sido assessor especial na Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), na gestão Luiza Bairros, já sob o governo da presidenta Dilma Rousseff. O tema é fundamental e o autor volta a ele diversas vezes, temperando sua arguta inquirição crítica com a experiência concreta no mundo do poder em Brasília. Diversos editoriais se detêm sobre as dificuldades de aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, suas idas e vindas, mutilações e, principalmente, sobre os obstáculos dos setores organizados da população negra para conseguir articulação e força suficiente para impor uma agenda política ao Congresso Nacional. De modo que os limites efetivos para a atuação politica de agentes negros organizados parece se definir por uma margem diminuta ou irrisória:

A ausência de um Movimento Negro estruturado nacionalmente, com autonomia e vigor militante [...] é a maior tragédia da história política do Brasil. (p. 29)

Para não falar das dificuldades eleitorais – que o autor atribui mais ao sistema político do que ao racismo inerente ao eleitorado. A que se referem, então, as fragilidades do Movimento Negro e a baixa capacidade de mobilização política, algo já apontado por outros autores?

O poder de pressão do Movimento Negro é quase nulo no Congresso. Bancada rala e ineficiente, mobilização precária. Basta um editorial de “O Globo” e outro da “Folha de São Paulo”, como tem ocorrido com frequência, para os poucos aliados tremerem na base. (p. 83)

Mas estas dificuldades se referem também à incapacidade da esquerda de compreender, efetivamente, a “questão racial.” A esquerda costuma atribuir as provações que negros e negras sofrem no Brasil a fatores de classe, de natureza supostamente mais universal, para não falar do seu oportunismo e manipulações vulgares, já também insistentemente apontados, desde pelo menos Abdias do Nascimento.1

O problema, entretanto, é mais profundo e penetrante, e tem a ver com a condição do negro enquanto ator político e sua relação com a esfera pública – nossa vinculação, precária ou inexistente, ao mundo da chamada sociedade civil, câmara de ressonância de contradições para sujeitos humanos, usual e historicamente concebidos como o homem branco, proprietário e heterossexual.

Michael Hanchard discute, nesse sentido, a esfera pública brasileira como essencialmente racista e excludente. De sua perspectiva, negros no Brasil têm uma cidadania “contingente e parcial [...], obtida apenas como resultado de sua próprias lutas políticas, que ultrapassaram os limites do discurso liberal”, enquanto a identificação entre a condição de branco e cidadania parece natural e uma consequência da modernização.2

Mais recentemente, o sofisticado debate sobre “morte social” e “antiblackness/antinegritude” no contexto norte-americano tem impulsionado essa compreensão rumo à radicalização, no sentido de que identifica a condição negra com o status do escravo e, seguindo o sociólogo Orlando Patterson, insiste na definição da escravidão como “morte social”, o que desautoriza categoricamente a habilitação do negro para sua atuação na esfera pública ou na sociedade civil, por definição reservada aos sujeitos humanos plenos, o que não seríamos em um mundo antinegro:

Vamos colocar isso de modo mais preciso: a violência contra o corpo negro é a pré-condição para a existência da entidade singular Gramsciniana, “o moderno estado burguês”, com o seu aparato dividido, sociedade política e sociedade civil. Isso para dizer que a violência contra pessoas negras é ontológica e gratuita em oposição ao meramente ideológico ou contingente. Além disso, nenhum momento mágico [...] transformou de forma paradigmática a relação do corpo negro com essa entidade. A este respeito, os avanços hegemônicos no interior da sociedade civil feitos pela esquerda não preveem mais possibilidades para a vida negra do que a reação coercitiva da sociedade política.3

Ironicamente, a relação do Estado com a sociedade civil deu ocasião para que um amargo debate emergisse na internet opondo dois velhos companheiros. Edson Cardoso tem apontado por diversas vezes – e nas páginas do livro que resenhamos chama a atenção e expressa sua revolta – contra a escandalosa matança de jovens negros nas periferias e quebradas brasileiras. Em editorial publicado em 12 de fevereiro de 2007, comenta a Marcha Contra o Genocídio do Povo Negro, organizada pela campanha Reaja ou será Morto, Reaja ou será Morta, sob a liderança, dentre outros, de Hamilton Borges. Dois anos antes escreveu:

Temos de introduzir no debate sobre políticas públicas a prioridade de assegurarmos, por todos os meios, a continuidade de vida para o povo negro no Brasil. (p. 25)

Ora, em 2015, Cardoso publicou, no site do Geledés-Instituto da Mulher Negra, um artigo com título provocador: “Não precisava cuspir no prato”, acusando a campanha Reaja, dentre outras coisas, de “violenta negação de si mesmo e de sua história recente.” 4 E mais: acusando-a de agredir intelectuais negros com comentários “pequenos e mesquinhos.” Fundamentalmente, Cardoso salienta que “tivemos também que ouvir que a inserção institucional, a presença negra na administração pública, é sinal de picaretagem!” Esse é, obviamente, o ponto crítico nessa polêmica, porque, para além da mágoa produzida entre velhos companheiros, o que se debate de fato é o lugar da atuação política dos negros brasileiros. E o que esperar, ou solicitar, do Estado e das instituições do mundo branco.5

Hamilton Borges respondeu a Edson Cardoso, alguns dias depois, num artigo publicado no mesmo Geledés: “A marcha contra o Genocídio do Povo Negro incomoda os inimigos.”6 Borges, dentre outra coisas, acusa ativistas como Cardoso, de não conhecerem aluta fora desse prédio institucional que abriga o racismo.” A natureza dessa dissenção, que como dissemos não se resume a uma divergência pessoal, ou “treta”, se configura como um debate crucial sobre o futuro possível para a emancipação negra no Brasil.

O outro ponto fundamental abordado, e com o qual concluiremos esta resenha, se refere à encarniçada luta desempenhada por intelectuais contra ou a favor da adoção de cotas raciais como política pública, na universidade e outros setores. E com isso voltaríamos, de outra forma, à referência inicial sobre o papel do intelectual diaspórico.

Cardoso, ainda em meio ao debate sobre o Estatuto da Igualdade Racial, insiste na importância das cotas raciais e ataca duramente intelectuais e artistas que se opuseram a estas em nome da ordem republicana. Ou, como sugeriram os signatários do constrangedor manifesto contra as cotas (encaminhado ao Senado Federal em 2006 por intelectuais, pesquisadores e artistas de grande legitimidade pública):

A verdade amplamente reconhecida é que o principal caminho para o combate à exclusão social é a construção de serviços públicos universais de qualidade nos setores de educação, saúde e previdência, em especial a criação de empregos. Essas metas só poderão ser alcançadas pelo esforço comum de cidadãos de todos os tons de pele contra privilégios odiosos que limitam o alcance do princípio republicano da igualdade política e jurídica.7

Ora, essa “verdade” está longe de ser amplamente reconhecida, e hoje sabemos muito bem, com base em diversos estudos8 que “a construção de serviços públicos universais” não é a garantia de superação de desigualdades, ao contrário, usualmente contribui para a reprodução de desigualdades. Porém, o mais importante nesse debate é aquilo de Cardoso capturou muito bem, uma dimensão irracional, pré-reflexiva, da ordem dos afetos ou da “economia libidinal.” O que se traduz como “o medo”: “um processo muito louco de manipulação intelectual, cujas dimensões irracionais são amplificadas a um ponto máximo.” (p. 157)

Quando a revista Veja publica matéria associando ativistas negros a nazistas e a queima de livros, invertendo, como faz Aleluia, o papel de vítimas e algozes, cúmplices e rebeldes, ela mobiliza esses recursos “irracionais” e o faz contra a pessoa negra, historicamente o catalizador de todo medo e ódio em sociedades (pós)coloniais como as nossas. Quando mobiliza a voz e a imagem respeitável de Yvonne Maggie para ressaltar esse medo, julga estar cometendo o crime perfeito. “A Professora Yvonne Maggie está com um medo que havia muito não sentia.” (p. 93) O medo da antropóloga, em uma sociedade que tolera massacres e chacinas, humilhações e injustiças, uma sociedade na qual a taxa de homicídios contra negros é mais que duas vezes superior à que atinge brancos, cumpre a sua função de garantir ao negro o lugar de eterna negação. Edson Cardoso:

Uma coisa era o escravo, outra coisa a cor do escravo. Sinal indelével é isso mesmo, que não se dissipa, indestrutível. A televisão, a cultura, os partidos, as vanguardas as retaguardas, o mundo que nos é familiar se encarrega de disseminar a repulsa e a rejeição e a favorecer e estimular a ação criminosa de assassinos, fardados ou não. Criou-se um consenso de larga memória, cruel e sanguinário: negro, não! (p. 198)

Material suplementar
Notas
Notas
1 Abdias do Nascimento (org.), O negro revoltado, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
2 Michael Hanchard, “Cinderela negra?: Raça e esfera pública no Brasil”, Estudos Afro-Asiáticos, n. 30 (1996), pp. 41-60. Habermas reconstitui a formação histórica da esfera pública como a formação de uma categoria especificamente burguesa, capaz de conceituar a separação entre Estado e sociedade. Esta esfera, formada dentre outras coisas pelo desenvolvimento da imprensa e do mercado livre, pressupõe a argumentação razoável como forma de administração de interesses. Habermas chama a atenção para o fato de que o status de homem privado embute a idéia de proprietário, inclusive porque o mesmo processo que “ converteu cultura em uma mercadoria [...] estabeleceu o público como um princípio inclusivo.” Quanto ao debate norte-americano sobre a esfera pública negra, a história da escravidão demonstra como africanos e seus descendentes entram no mundo burguês, não como agentes livres, mas como mercadoria, por definição excluídos das discussões públicas, o que implica reconhecer que a esfera pública em países escravistas formou-se pela exclusão inevitável e necessária dos negros. Jürgen Habermas, The Structural Transformationof The Public Sphere: An Inquiry into a Category of Bourgeois Society, Cambridge: The MIT Press, 1998, p. 37.
3 Em inglês no original: “Let us put a finer point on it: violence towards the black body is the precondition for the existence of Gramsci’s single entity ‘the modern bourgeois-state’ with its divided apparatus, political society and civil society. This is to say violence against black people is ontological and gratuitous as opposed to merely ideological and contingent. Furthermore, no magical moment […] transformed paradigmatically the black body’s relation to this entity. In this regard, the hegemonic advances within civil society by the Left hold out no more possibility for black life than the coercive backlash of political society . Frank Wilderson, III, “Gramsci’s Black Marx: Whither the Slave in Civil Society?”, Social Identities, v. 9, n. 2 (2003) https://theloon2013.wikispaces.com/file/view/Wilderson+-+Gramscis+Black+Marx.pdf
4 Edson Lopes Cardoso, “Não precisava cuspir no prato!, Geledés – Instituto da Mulher Negra, 2015. https://www.geledes.org.br/nao-precisava-cuspir-no-prato/
5 Convém ressaltar que a campanha Reaja, agora Organização Politica, tem sido alvo de ataques severos, que buscam criminalizar sua atuação política em defesa dos direitos humanos. O vereador de Salvador Alexandre Aleluia, filho do deputado federal José Carlos Aleluia, segundo material publicado no site Bocão News, teria dito: “A intenção de federalizar a ação policial militar que resultou em 12 mortes em confronto no que se costumou chamar de ‘Chacina do Cabula’ demonstra uma tendência atual de criminalizar as forças de segurança e justificar a ação dos criminosos”. “O Reaja quer a destruição da polícia e, assim, da ordem”, diz Alexandre Aleluia, 2017. http://informebaiano.com.br/43447/manchetes/o-reaja-quer-destruicao-da-policia-e-assim-da-ordem-diz-alexandre-aleluia
6 Hamilton Borges dos Santos, “A Marcha contra o Genocídio do Povo Negro incomoda os inimigos”, Geledés – Instituto da Mulher Negra 2015. https://www.geledes.org.br/marcha-contra-o-genocidio-do-povo-negro-incomoda-os-inimigos/
8 Por exemplo: IPEA, “Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas: 120 anos após a abolição”, Comunicado da Presidência, n. 4 (2008), 16 pp..
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