Resumo: Este artigo se propõe a analisar os significados da liturgia da morte católica, redimensionada pela Nobre Nação de Benguela, reinado desenvolvido no interior da Irmandade do Rosário de São João del-Rei, com o objetivo de potencializar a caridade aos seus irmãos mortos de nação. Por meio da encomendação de sufrágios para o livramento dos seus parentes das penas do purgatório, difundiu-se, nesse reinado, uma devoção peculiar às almas milagrosas, reconhecidas nas almas dos parentes de nação filiados à Nobre Nação. Ao longo da exposição, apresenta-se a herança da ancestralidade centro-africana, enquanto elemento dinâmico capaz de fornecer suportes para a reconstituição de identidades atlânticas. Para isso, utilizamos o Livro de Missas da Nobre Nação, os depoimentos testamentários, os assentos de óbitos, os relatos de missionários e a documentação confrarial da Irmandade.
Palavras-chave: ancestralidadeancestralidade,diáspora atlânticadiáspora atlântica,identidades e liturgia da morteidentidades e liturgia da morte.
Abstract: This article aims to analyze the meaning of the liturgy of the Catholic death, resized by Noble Nation of Benguela, reign developed inside the Rosary Brotherhood of São João del Rei in order enhance the charity to his brothers nation dead.. Through the commendation of the votes for the release of their relatives from the pains of Purgatory, has spread this reign, a peculiar devotion to the miraculous souls; those recognized in the souls of the nation’s relatives affiliated with Noble Nation. Throughout the exhibition, we will present the heritage of the Central African ancestry, while dynamic element capable of providing supports for reconstituting atlantics identities. For this, we use the Mass Book of Noble Nation, the testamentary depositions, deaths seats, the reports of missionaries and brotherhood documentation of the Brotherhood.
Keywords: Ancestry, atlantic diaspora, identity and liturgy of death.
Articles
O CULTO DOS MORTOS DA NOBRE NAÇÃO DE BENGUELA NA EXPERIÊNCIA DEVOCIONAL DO ROSÁRIO DOS HOMENS PRETOS SÃO JOÃO DEL-REI, MG (1793-1850)*
Recepção: 28 Setembro 2017
Aprovação: 07 Março 2018
Juro aos Santos Evangelhos que disse uma missa na Capela de N. Sra. do Rosário desta Vila pela alma de Joaquina Preta Angola escrava que foi de José Batista da Silva recomendada pelos pretos parentes da mesma falecida dos quais recebi a esmola de meia oitava de ouro [...] Vila de S. João, 21 de maio de 1812. Manoel Francisco Campos.1 (grifos nossos)
Em São João del-Rei, os irmãos do Rosário recebiam, de acordo com a norma estatuária, dez missas em sufrágio. Assim que a notícia do falecimento chegava até a igreja, o andador se incumbia de avisar todos os confrades com o tanger de sua campainha pelas ruas da vila. Ao saírem todos paramentados com suas opas brancas e incorporados com velas e tochas nas mãos, os irmãos acompanhavam o esquife que conduzia o corpo. O capelão saía à frente comandando a comitiva, com sua capa de asperge e cruz alçada, também acompanhado pelo juiz ou pelo rei. Chegando ao lugar de destino do corpo, o sacerdote providenciava as últimas encomendações e orações.2 Durante o cortejo, os irmãos recitavam terços e ladainhas; em algumas de suas congêneres, havia exigências para que os associados recitassem o rosário para a alma do defunto.3
Não obstante, o assento de missa em sufrágio oferecido à alma da escrava Joaquina Preta Angola pelos seus pretos parentes nos faz pensar como o sepultamento e as práticas mortuárias cristãs se tornaram elos significativos de pertencimento e solidariedade entre os escravos e libertos na experiência da diáspora atlântica. Essa afirmação se pauta no fato de que a insatisfação com a quantidade de sufrágios, oferecidos para a salvação no além pela devoção do Rosário, levou os irmãos benguelas4 - reunidos em um reinado de cunho étnico e religioso, autorrepresentados como Nobre Nação de Benguela - a potencializar a liturgia da morte, aumentando o número de missas fúnebres.
A existência desse reinado foi identificada pela localização do Livro de Certidões de Missas, esmolas e doações da “Nobre Nação”, aberto em 1803, cujo documento se encontra alocado no Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de São João del-Rei. Nesse manuscrito, foram registrados os assentos dos sufrágios dos irmãos falecidos, o nome do celebrante, o número de missas intencionadas a cada defunto e o valor de esmola recebido para a celebração. Seu surgimento remonta pelo menos à última década do século XVIII, quando João Ladino mandou celebrar, em 1793, missas intencionadas às almas de Ana e Mariana Lopes, sob a regência do Padre Luiz Pereira Gonzaga.5 Nota-se, ainda, a presença de reis, duques, marqueses, conselheiros, tesoureiros e procuradores, enquanto membros diretivos da organização voltada para a assistência aos irmãos vassalos defuntos, isto é, na distribuição de missas votivas e na realização do féretro, além das concessões de esmolas habituais à Virgem do Rosário.
Assim como a irmã Joaquina Angola recebeu amparo no post- mortem pelos seus parentes pretos, muitos outros confrades do Rosário foram assistidos antes, durante e após a morte, desde o surgimento da Irmandade, que, de acordo com a memória local, remonta aos primeiros tempos de existência da vila. Em 1708, antes mesmo da instalação do Santíssimo Sacramento (1711), a devoção do Rosário já ocupava um altar anexo à antiga capelinha de “taipa e de cobertura de palha” dedicada à Senhora do Pilar. Geraldo Guimarães, um memorialista da cidade, considera a atuação do preto forro Lourenço da Mota decisiva para a instalação da imagem no primeiro templo do arraial. Depois de comandar uma companhia de escravos e forros armados no cerco do povoado ao lado dos reinóis pelo domínio das jazidas minerais, envolveu o capitão em uma campanha direta para edificação da devoção protetora dos homens pretos na Vila de São João del-Rei.6
Por volta de 1720, a devoção da Virgem dos pretos já possuía 7seu templo próprio, alocando, com o tempo, outras imagens em seus altares laterais:8 Nossa Senhora dos Remédios, São Domingos, Santa Catarina de Siena, São Lourenço, São Vicente Ferrer, São Libório, São Tomás de Aquino e as santidades leigas franciscanas - Santo Antônio de Catalagerona e São Benedito.9 No entanto, esses nichos laterais se dinamizavam conforme as demandas devocionais do cotidiano e a necessidade dos irmãos. Prova disso foi a construção de um espaço exclusivo no interior da irmandade dedicado à sufragação das almas do purgatório.10 Alguns irmãos de origem africana centro-ocidental, como os angolas, morumbas, ganguelas e seus descendentes também aderiram à solidariedade às almas compatriotas que um dia serviram como vassalas da Nobre Nação de Benguela.11
Nesse aspecto, fica evidente a construção de uma acepção de parentesco com sentido mais coeso em relação ao próprio parentesco confraternal ou familiar consanguíneo.12 Nessa forma de pertença, os irmãos benguelas e seus vassalos,13 sob a proteção do Rosário, se reconheciam espiritualmente e fortaleciam, continuadamente, seus vínculos com seus parentes de nação, pelo redimensionamento da ancestralidade viabilizado pelo culto das almas na liturgia católica.
Neste artigo, nos centramos em esmiuçar as liturgias da morte e seus múltiplos olhares no interior da devoção do Rosário. Buscamos enfocar como as memórias centro-africanas, voltadas para o culto das almas, foram recriadas no interior da associação, mais especificamente no âmbito da Nobre Nação de Benguela. Para esse fim, foram analisadas as missas encomendadas pelos “parentes da Nobre Nação” e, a partir de estudos etnográficos desenvolvidos na região do sul da Angola, estabelecemos um diálogo com as memórias africanas recriadas pelos benguelas e suas nações vassalas e o culto das almas estabelecido no interior da irmandade.
Sendo assim, o interesse crescente do reinado da Nobre Nação em aprimorar o culto das almas benditas levou à mobilização dos seus “parentes” espirituais em investir, por meio da aquisição de esmolas, na compra de uma propriedade que serviria aos devotos como recinto sagrado para aprimorar a liturgia católica do bem morrer, em prol da salvação das almas dos irmãos da Nobre Nação.
A casa particular, comprada em nome de dois forros libertos (João Machado Fontes e João Tomaz Ferreira Guimarães) recebeu a denominação de Palácio Real da Nobre Nação de Benguela, em razão do aspecto religioso atribuído à Corte de Benguela, considerada representante e mediadora entre os compatriotas vivos e mortos. O imóvel, contraído à custa e finta dos irmãos benguelas, não poderia ser vendido, trocado ou usado para fins pessoais desses dois pretos forros, em virtude de o recinto servir de abrigo da realeza negra, como sugere o trecho abaixo:
Termo de Entrega das Casas:
João Machado Alves Fontes e João Thomaz Ferreira Guimarães Pretos Forros que servimos nesta Nobre Nação de Benguela [ilegível]. Certifico e por termos fé em como estas casas é da Nobre Nação de Benguela, declarando que os ditos compradores João Machado Alves Fontes e João Thomaz Ferreira Guimarães compraram estas casas com o dinheiro das esmolas que tiramos entre forros e cativos e do que está estabelecida por Palácio Real de toda Nação Benguela e por seus ditos compradores serem forros é que estão por cabeça desta compra, não porque fazem donos e possuidores como seus, porque foi a custa e finta entre todos que consistem cativos desta Nobre Nação e não poderão dispor nem vender as ditas casas sem a Nação toda junta fazerem Mesa e haver bem e para a clareza de todos que achamos presente mandemos lavrar o presente termo em que se assinaram os da dita Nação que se acham presente dado e passado em o Real Palácio. Aos 30 de novembro de 1803 anos. Eu Euzébio José Assis (?) Pereira da Silva, escrivão que escrevi e assinei com os ditos, como em frente: João Henrique da Costa, o Duque da Nação [...]14(grifos nossos)
Como o fragmento sugere, a propriedade foi ressignificada como espaço sagrado para acolher a corte benguela, corte imaginária recriada com significados inéditos durante o contexto da diáspora atlântica. Nesse sentido, ao tratarmos de identidade atlântica assentada pelo parentesco étnico de alcunha benguela, não nos reportamos a uma ideia de transferência cultural das identidades étnicas em seu “sentido puro, originário” da pré-travessia, mas a um processo de reinvenção de memórias e de tradições, reinterpretadas a partir dos aspectos situacionais da diáspora atlântica. Sendo assim, essa redefinição de códigos da pré-travessia foi o fator mor para a reorientação identitária dos sujeitos apartados num contexto de adversidade e de pressões da sociedade escravista.
Desse modo, procuramos entender as heranças culturais centro-africanas, assentadas na ancestralidade e no culto dos mortos projetadas na experiência do Rosário, não como reminiscências estanques, fossilizadas mas, sobretudo, como elementos ativos na redefinição identitária desses grupos diaspóricos, reorientados pela vivência de uma solidariedade étnica e espiritual. Sendo assim, a referência a “palácio” como espaço sagrado reporta-se a uma reinterpretação dos valores centro-africanos pari passu as apropriações15 dos parâmetros de poder do antigo regime (adaptados às estruturas políticas da colônia).
Nas culturas bacongas,16 as hierarquias nobiliárquicas foram amplamente incorporadas na distribuição de títulos de nobreza entre os prestadores de serviços ao rei. Além disso, o palácio, na qualidade de sede do governo, era tradicionalmente reconhecido como centro político e cerimonial religioso, pois o rei não só comportava o significado de representante divino, como também chegava a ser confundido com a própria força sobrenatural pela qual representava a unidade na continuidade da linhagem dos ancestrais.17
De acordo com Oliveira e Brügger,18 em consulta à obra de Georges Balandier, o palácio bacongo, “era visto como réplica simbólica do universo”. Os rituais ali praticados, desde sua fundação, orientavam a purificação do local para receber o edifício sagrado. Por seu turno, a crença na violação desses espaços nobres - enquanto elemento impulsionador da desventura coletiva - estava presente no imaginário centro-africano, assim como a representação do rei, como espécie de curador e de mediador entre o “mundo dos vivos e o mundo dos mortos”. Nessa perspectiva, o aparato assistencial que se estabeleceu no palácio da Nobre Nação redimensionou o culto dos mortos e a ancestralidade africana, haja vista que as almas cativas do purgatório assumiram as feições dos antepassados e entes finados, reconhecidos como as almas penitentes dos irmãos compatriotas.
Em comemoração litúrgica do dia de finados do ano de 1803, os rosários da Nobre Nação sancionaram a existência e as intenções do grupo ao lavrarem a abertura do livro no qual se registrariam as esmolas levantadas durante os peditórios ou folguedos da praia.19 Durante vários anos, esses irmãos benguelas realizaram peditórios na forma de folguedos em benefício das almas dos seus compatriotas. Os folguedos da praia,20 como assim eram chamados, aconteciam provavelmente nas proximidades do Córrego do Lenheiro, área vulgarmente denominada de Prainha pelos registros memorialistas. No local, situava-se o oratório dedicado às Almas Milagrosas do Purgatório.21
Presumimos que a escolha desse local não foi aleatória, haja vista que a principal finalidade da Nobre Nação consistia no zelo à encomendação dos sufrágios às almas dos irmãos de nação, por meio de missas católicas. Os locais preferidos para a invocação dos seres do mundo invisível, segundo o imaginário popular na colônia, situavam-se em encruzilhadas, cruzeiros, adros de igrejas e oratórios.22 Não obstante, a mobilização festiva para fazer girar a caixinha de esmolas das almas benguelas ocorria em pontos considerados estratégicos ao universo cultural banto e católico: próximo às águas e ao Oratório das Almas.
A água sempre teve um papel primordial na cosmologia banto, no espaço sagrado que divide e unifica, ao mesmo tempo, vivos e mortos; esse elemento remetia ao significado de morte e renascimento, vinculado, portanto, às acepções criadas pela experiência da travessia da Kalunga.23 Já o Oratório das Almas ou das Alminhas tornou-se muito popular em Portugal durante a religiosidade barroca. Em inúmeros locais, eram mantidos, do lado de fora das igrejas, murais desenhados ou altares improvisados ao culto das santas almas protetoras dos homens.24
Robert Slenes, ao descrever as representações construídas acerca das agruras e o impacto psicológico vivido pelos deportados na experiência da travessia, sintetiza a complexidade do termo Kalunga.25 Em uma de suas versões, a terminologia passa a designar a percepção de morte desses indivíduos da cultura bacongo sobre suas permanências nos porões dos navios negreiros. A expressão remetia também à terra dos mortos representada pelo espelho d’água, isto é, uma superfície reflexiva que servia como “ponto de interface e de comunicação entre o mundo dos mortos e o dos vivos”.
No universo desses africanos centro-ocidentais, não havia uma fronteira nítida entre o mundo material e o mundo espiritual. Os espíritos ancestrais atuavam intensamente sobre a vida dos vivos, atravessando a superfície reflexiva da Kalunga. Desse modo, a cosmologia bacongo centralizava na ancestralidade o elemento explicativo para o entendimento da fundação do mundo, dos fenômenos naturais, da construção das linhagens e do funcionamento das estruturas políticas e sociais. Consoante Slenes:
[...] o culto aos ancestrais na África tem um significado amplo, político, social e religioso, especialmente no caso da homenagem feita aos “ancestrais fundadores” que, como os africanos dizem “deram origem a nossa vida e nos trouxeram às terras onde vivemos”. Mais especificamente, podemos ter certeza de que entre os ovimbundu e no reino de Loango, como de fato acontecia na terra dos bakongo, a ratificação de um novo chefe político envolvia um ritual que o aproximava dos ancestrais originários do grupo e que simbolicamente recriava o próprio ato de fundação destes.26
Sendo assim, a noção de pertencimento familiar também era ampla, evocando as linhagens consanguíneas e os entes espirituais dos antepassados; manter esse diálogo frequente definia uma das obrigações centrais dos viventes para perpetuar a harmonia espiritual, caracterizada pelo estado de ventura, impedindo, portanto, o infortúnio (desventura) causado pela ação malévola de espíritos ou ações dos viventes por meio da feitiçaria.
Por seu turno, a saúde corporal e espiritual, a fartura de alimentos, o sucesso com as colheitas, o afastamento de epidemias, desastres naturais e guerras dependiam, necessariamente, do bom relacionamento entre vivos e mortos; caso contrário, as entidades ofendidas, não assistidas devidamente em seus ritos de passagem, poderiam se vingar. Essas perspectivas de crenças certamente influenciaram nos modos desses estrangeiros vivenciarem suas percepções de mundo e nos comportamentos diante da morte dentro da experiência devocional do Rosário, especialmente no investimento de assistência às almas dos seus parentes étnicos da Nobre Nação.
Nessa linha de raciocínio, o reino da Kalunga - personificado no simbolismo das águas e nas memórias da travessia - também passou a fazer parte das representações imaginárias dos irmãos dedicados ao bem morrer católico no interior do Rosário sanjoanense. Segundo a assistência religiosa dos confrades,27 a sagração dos mortos se desenvolvia durante os “folguedos da Praia”, onde os vassalos da Nobre Nação - com seus cânticos e tambores - invocavam a proteção dos seus parentes mortos nas proximidades do Oratório das Almas.
As águas também se reportavam à narrativa mítica acerca do resgate da imagem da Virgem do Rosário28 e à cosmologia bacongo, em que as crenças nas “superfícies reflexivas” separavam, de modo geral, “o mundo dos vivos do mundo dos mortos”.29
No item a seguir, procuramos abalizar sobre os significados atlânticos construídos em torno da simbologia do fogo na liturgia da morte católica em interação com os códigos culturais bacongos de ancestralidade.
A simbologia do fogo se fez presente no catolicismo pós-tridentino, tanto na iconografia da religiosidade barroca, como nos textos de missionários católicos dedicados à feitura dos manuais da boa morte e aos sermões voltados para a escatologia dos fins últimos do homem, também conhecida como “pedagogia ou doutrina do medo”. Joseph Boneta (1638-1741), um padre aragonês dedicado aos suplícios do além, alertou em seus “Gritos del Purgatório y medios para acallarllos” sobre a perversidade alcançada pelo flagelo gerado pelo fogo purgativo junto a seus suplícios presentes no imaginário católico acerca do mundo intermediário.
Segundo o religioso, “ainda que o fogo é o instrumento que comumente se diz tormento no Purgatório, é por ser esse Elemento conhecido por mais ativo e voraz [...]”.30 Para o pregador, o fogo purgativo representa o poder de “queimar sem consumir” e, por isso, conforme os ensinamentos de Tertuliano, São João Crisóstomo e São Cipriano, suas labaredas tinham capacidade de “lavar as manchas do espírito.” Jean Delumeau reforça esse aspecto purgativo do elemento ígneo ao mencioná-lo como o instrumento mais rigoroso presente no imaginário cristão, empregado pela justiça divina a fim de agir, por milagre, “sobre as substâncias espirituais”.31
Nesse sentido, os martírios tenebrosos no além intermediário (purgatório) causados pelo elemento ígneo confundiam-se com os tormentos infernais, no entanto, a diferença estava na durabilidade e no propósito; o fogo purgativo era redentor, ao passo que o do inferno, condenatório. Esses flagelos poderiam ser “de dano” - causados pela privação angustiante de Deus - ou “dos sentidos”, correspondentes aos suplícios corporais como as sensações de fome, sede, açoitamentos, queimaduras e outras “agonias”. Adalgisa Campos desenvolve uma análise pertinente sobre a ambivalência da simbologia do fogo dentro da mitologia cristã. Ao tratar sobre o fogo sagrado, a autora diz que as chamas purgativas possuem propriedades para punir e, ao mesmo tempo, rejuvenescer e salvar para a eternidade; ao passo que o fogo infernal carrega a mácula do maligno, e sua função consiste em degenerar as almas condenadas ao suplício da danação eterna.32
Essa simbologia plural do elemento ígneo dentro do imaginário cristão, marcada pela ambivalência do fogo transitório/redentor e do fogo eterno/condenatório, recebeu apropriações peculiares pelo contexto multicultural da diáspora atlântica. Para ratificarmos essa observação, podemos citar os rituais dos caxambus desenvolvidos na Casa do Rosário situada no termo da Vila de São João del-Rei (Distrito de Tamanduá),33 espaço sagrado em que havia reuniões periódicas de escravos fugidos, libertos e cativos para a realização de quimbetes34 e caxambus.
Segundo Stanley Stein, ao descrever as festividades dos caxambus no Rio de Janeiro, o fogo possui um papel fundamental para o desenvolvimento do ritual:
Nos dias que antecediam a dança, os escravos tratavam de fazer circular nas vendas, nas roças e nas estradas a notícia da festa. No dia combinado, acendiam uma fogueira no meio do terreiro e a festa se iniciava com o chamado de um tambor denominado o “chamador do povo” [...]. Presidindo a seção havia o rei e uma rainha, que recebiam as homenagens dos participantes. O rei, depois de cumprimentar os tambores, iniciava o caxambu. (grifos nossos)35
A dança descrita consistia, portanto, em um ritual sagrado de origem banto com algumas apropriações do catolicismo. Seu ritmo cadenciado por tambores, acompanhado por movimentos circulares no sentido anti-horário, reunia muitos dos elementos sagrados presentes na consagração do Rosário por meio dos reinados e dos próprios folguedos realizados em prol das almas benguelas.36 Nesse ritual, estavam envolvidos os usos do fogo no centro da roda dos dançantes, a presença de reis e rainhas, além dos toques de tambores que anunciavam a comunicação direta entre os praticantes e os espíritos dos seus ancestrais. A execução da dança e dos cânticos demarcava o ponto alto dos caxambus. Os movimentos do corpo expressavam o encontro da força divina com a confraternização festiva promovida por seus devotos.
A importância do elemento ígneo nas comunidades centro-africanas da diáspora reportava-se à necessidade de se manter contato com os ancestrais para, assim, assegurar-se o estado de ventura, bem-aventurança e fortuna dos povos, conforme se pregava na cosmologia banto.37 Nessa mesma diretriz, os caxambus da Casa do Rosário expressavam tanto a devoção pela Mãe dos pretos, como o apego à ancestralidade e à africanidade. Ao mesmo tempo em que os dançantes se comunicavam com os espíritos a partir dos cânticos e tambores, poderiam se ver reintegrados com o mundo dos mortos por meio do fogo sagrado.
Já na Corte Benguela, o fogo possuía função primordial, uma vez que, pelo suplício das chamas purgativas, as almas dos parentes atingiriam o seu estado de graça, para, assim, interceder pelos vivos, garantindo o “estado de ventura” e de equilíbrio espiritual entre vivos e mortos. Outro indício que reforça nossa hipótese acerca da releitura da representação simbólica do fogo diz respeito aos significados construídos pelos ascendentes, falantes de quimbundo, provenientes da África Centro-Ocidental, especialmente da região de Ndongo, antigo território de Angola e de Benguela.
Segundo Slenes,38 os grupos étnicos deportados pelo porto de Benguela (sul da atual Angola)39 compartilhavam os códigos culturais banto. Nessa cosmologia, o fogo correspondia a um dos elementos sagrados de contato e de comunicação com os ancestrais. Nas moradias, deveria estar permanentemente aceso, herança essa recriada na diáspora, pois, nas choupanas das senzalas, havia a preocupação em se cultivar esse hábito com o objetivo de dar continuidade ao culto aos mortos. No interior dessas habitações ou dos “lares negros”, “ardia um fogo mantido permanentemente aceso mesmo nos dias quentes”; além dos benefícios práticos, como manter o ambiente aquecido durante as noites frias, espantar os insetos e evitar a presença de cupins no ambiente, a fumaça produzida servia como elo de comunicação entre os moradores e os espíritos dos mortos, uma vez que o uso simbólico do fogo representava uma prática largamente difundida pelas culturas bacongo na África Central.40
Nessa perspectiva, na região de Benguela, segundo o antropólogo Luiz Figueira, nas “habitações dos ovimbundos, geralmente acanhadas, pequenas, feitas de pau-a-pique” havia, em seu espaço interno, uma pequena fogueira mantida acesa até que houvesse a troca do soba provincial (chefe político). Consoante o autor, “por cada soba que vai ao poder se renova o fogo nos povoados onde superintende. Apagam-se as fogueiras antigas, extermina-se o fogo velho”.41
Durante a cerimônia de passagem do fogo, a investidura do poder do chefe dependia, necessariamente, desse elemento simbólico; depois da posse do novo líder, distribuíam-se as brasas do fogo sagrado entre a comunidade, para que fossem usadas nas casas a fim de acender o novo fogo doméstico, em sinal da renovação do poder político e da continuidade do grupo. Nesse sentido, o fogo representava uma espécie de nkisi ou minkisi, por ser um instrumento utilizado durante o culto aos ancestrais, remetendo, concomitantemente, à linhagem dos sistemas de parentesco. O chefe religioso, também chamado de ganga bakulu, recebia a insígnia real da coroa durante o cerimonial de transmissão do fogo sagrado. A partir desse ato, o chefe ungido se tornava o responsável pela mediação entre seu povo e seus ancestrais, exercendo, assim, os rituais de cura e de possessão.
Ao consultarmos os depoimentos de João Antônio Cavazzi,42 é possível apreender como os ovimbundos valorizavam o lume aceso nas moradias. O hábito milenar estava diretamente associado à preservação da boa ventura e, a depender da intensidade de sua labareda, o elemento ígneo poderia indicar a proximidade dos espíritos ancestrais no interior do lar. Antes de construir e morar em qualquer uma dessas palhoças, os futuros moradores “lançam os alicerces sob o patrocínio de um ídolo, pois o seu dono não se atreveria a habitá-la se antes o feiticeiro não morasse nela algum tempo”. Os sacerdotes (quitomes) - também considerados chefes supremos - interpretavam o fogo mantido em suas casas “dia e noite como coisa sagrada” e, por isso, o elemento deveria ser distribuído a todos que lhe pediam, em troca de alguma prenda, “como se fosse potentíssimo remédio contra qualquer desgraça”.
No Congo cristão, observa John Thornton, “cuidar dos ancestrais era algo tipicamente familiar [...] em troca, receberiam [os praticantes] boa sorte e saúde, mas, se fossem negligentes, doenças e má sorte”.43 O uso do lume era também fundamental para manter a conexão entre a ancestralidade e os entes terrenos. No catolicismo popular, disseminou-se a crença generalizada em almas penadas ou vagantes que se mantinham nesse estado, caso não tivessem recebido, nos instantes agonizantes, o tratamento adequado previsto pelos rituais de separação.44 Por seu turno, tornaram-se comuns, em muitas regiões da Europa, os relatos de visões em sonhos ou aparições das almas atormentadas que ardiam no fogo do purgatório sem receber orações e a assistência dos seus afetos vivos.45
Em São João del-Rei, as heranças ligadas à utilização do fogo foram diretamente recriadas como instrumento de culto aos ancestrais pela Nobre Nação. A interpretação dada ao fogo purgativo - veículo necessário para a purifi das almas dos parentes de nação condenados ao suplício transitório - pode ser considerada como chave explicativa para o entendimento das zonas de contato entre os imaginários banto e católico, ressignificados nas mediações culturais da diáspora atlântica.
Desse modo, nas memórias da pré-travessia, o componente ígneo tinha por objetivo transmitir o poder sagrado do rei reestruturando, assim, as composições políticas, familiares e religiosas de uma sociedade, pela representatividade que tal liderança possuía mediante o reino dos mortos. Já no Palácio da Nobre Nação de Benguela, o fogo sagrado foi responsável pelo processo de acrisolamento e consagração das almas ancestrais ao posto de entidades milagreiras e provedoras da cura e da bem-aventurança dos parentes de nação vivos.
Essas almas dos compatriotas, ao atingirem o estado de graça, conforme postulava a liturgia da boa morte apropriada pelos devotos, tornavam-se capazes de interceder pelo estado de boa ventura dos viventes, garantindo-lhes - pelo contato contínuo entre os “irmãos vivos e defuntos” - a prosperidade e a extensão da linhagem étnica, recriada na diáspora, pela transmissão da realeza e da assistência permanente aos irmãos vassalos falecidos.
O termo benguela reporta-se diretamente à nomenclatura do tráfico em referência ao presídio construído pelos portugueses no século XVII, ao sul do rio Kwanza, cuja finalidade consistia em expandir o mercado de escravos na parte meridional do Reino de Ndongo.46 Os primeiros contatos entre os exploradores lusitanos e africanos ocorreram mediante a experiência de conversão do Congo. Essas interações com os congoleses constituíram, na visão de Selma Pantoja, “uma trajetória singular se comparada aos demais reinos do continente africano”,47 em função do seu processo de cristianização ter se dado a partir da miscigenação cultural e africanização dos códigos católicos.
Já na atual região de Angola (Reino de Ndongo), os contatos foram mais beligerantes, em vista das guerras entre os colonizadores contra os povos ambundos representados pela Rainha Jinga ou Nzinga Mbandi - principal representante da resistência contra os colonizadores na região. Do mesmo modo, as ambivalentes alianças forjadas pelos guerreiros imbangalas com os portugueses definiram um contraponto nas relações políticas da África Central, colocando em xeque a governabilidade de Luanda, então aliada do poder régio lusitano.48
Para Roquinaldo Ferreira, “em lugar de um rígido controle colonial, a dinâmica sociocultural de Luanda e Benguela, assim como dos presídios (centros administrativos e comerciais) interioranos, era altamente fluida”.49 Por isso, a dinâmica diferenciada dependente, fundamentalmente, das alianças efetuadas entre os representantes régios e os poderes locais, fez de Benguela um ponto estratégico para o comércio direto entre o Rio de Janeiro e o porto centro-africano. Essa aproximação das duas praças mercantis foi responsável pelas remessas crescentes de escravos dessa região angolana e transporte de farinha e mais víveres para o abastecimento das famílias de negociantes brasileiros e afro-lusitanos. As transações e os laços clientelares forjados nos dois lados do Atlântico viabilizaram a circulação não só de mercadorias e mão de obra compulsória, mas de códigos culturais, contribuindo para a ascensão de uma cultura atlântica, onde os elementos tidos como “europeus” vieram principalmente do Brasil e não de Portugal.50
A mobilização dos contatos culturais entre as duas praças do Ultramar se tornou intensa quando Benguela deixou de ser apenas uma referência subsidiária de Luanda e se firmou como principal entreposto mercantil no final dos Setecentos. Nessas mesmas circunstâncias, aquele centro comercial apresentou seus primeiros sinais de crise com a expansão de epidemias, secas e mortes endêmicas, além de enfrentar a acirrada disputa estrangeira pelo monopólio das rotas do tráfico. James Sweet acrescenta ainda que as fortes correntes marítimas ao norte da linha do Equador serviram como elemento facilitador de comunicação direta entre as duas praças atlânticas.51
Ademais, o mercado de São Felipe de Benguela passou a ser visto como oportuna alternativa ao comércio da Costa da Mina, “onde os ataques de navios holandeses e a concorrência de ingleses e franceses pareciam afetar o comércio da Bahia com a Costa de Benim”.52 No período entre 1762 e 1795, pelo menos 209.253 escravos foram transportados pelo porto meridional de Ndongo.53 Mariana Candido estima que “mais de 760.000 escravos” saíram de Benguela ao longo do período colonial, fazendo desse mercado o “terceiro maior porto escravagista da costa africana”, perdendo somente para Luanda e Ouidah, cujos portos traficaram o maior número de pessoas nos trezentos anos de tráfico transatlântico.54
Em São João del-Rei, estimamos a importância dessa procedência étnica ao constatarmos uma participação de 14,4% entre os africanos falecidos assentados na Matriz do Pilar entre 1782 e 1850.55 Juntamente com os minas (14,4%), os benguelas se viam superados somente pelo contingente angola (31,3%).56 Na Irmandade do Rosário, esse grupo étnico chegou a representar o primeiro segmento mais frequente entre os africanos, com o percentual de 22,6% no período de 1782 a 1850, seguido dos congos (22,1%) e dos angolas (16,2%).57
Não obstante, essa superioridade numérica não se converteu em uma proporcionalidade condizente com a composição dos quadros administrativos da confraria, pois os congos, os nascidos no Brasil e os minas tiveram uma inserção maior na direção da irmandade, embora os benguelas representassem a maioria entre os africanos. Segundo Brügger e Oliveira, pioneiros na análise da atuação desse segmento em São João del-Rei: “os benguelas, como o grupo mais recente da região e na irmandade, teriam maiores dificuldades de exercer pressão e de angariar recursos”. Tal indício poderia explicar a 58necessidade de construir um segmento devocional que “pudesse servir como mecanismo a reforçar sua identidade e permitir a ocupação de cargos de prestígio que não conseguiram ocupar na direção da Irmandade”.59
Não só a menor inserção nos quadros administrativos teria levado esses irmãos a se organizarem em torno desse agrupamento devocional específi o, mas a necessidade em reforçar a liturgia da morte, concorrendo para a salvação das almas dos seus parentes de nação. Esses irmãos do Rosário, ligados por um redimensionamento identitário em torno da morte, se fi iaram em um reino à parte da Nobre Nação de Benguela a fim de garantir o maior número de sufrágios aos seus parentes ou compatriotas benguelas.
A experiência de fronteirização étnica no interior do Rosário de São João del-Rei deve ser entendida como um processo de ressemantização identitária ocorrida nos quadros da diáspora atlântica, pois os agrupamentos culturais procedentes da África Centro-Ocidental se autodefiniram como súditos de um reinado comum - a “Nobre Nação de Benguela”. Surgido no interior da irmandade do Rosário, pelo menos desde os fins do século XVIII,60 a Nobre Nação apresentou uma estrutura interna organizada bem desenvolvida.
O poder administrativo desse segmento se distribuía entre os cargos nobiliárquicos do reinado (reis, duques, marqueses, conselheiros), todos componentes de uma corte diferenciada da realeza da confraria. Além disso, esse reinado possuía seus próprios vassalos identificados em grupos menores como as gentes ganguelas, angolas, congos, os quais também se tratavam por “parentes de nação”. Como mencionado acima, a realeza benguela tinha por finalidade dar assistência às almas dos parentes da Nobre Nação, bem como oferecer subsídios financeiros aos rituais mortuários e sepultamento cristão aos seus filiados. Sua distribuição de cargos demonstra ter sido relativamente independente da irmandade do Rosário, pois possuía, além do palácio sagrado, uma mesa diretiva própria com escrivão, tesoureiro, procuradora, todos assinalados como oficiais da Nobre Nação, com exceção de Caetano José de Souza Vieira e de Manoel José de Oliveira, declarados oficiais do Rosário.61
No item a seguir, procuramos explorar as releituras atlânticas acerca dos sufrágios e o uso intensivo desse recurso como instrumento de salvação post-mortem e de reconstrução da ancestralidade, por meio do culto das almas. O objetivo é traçar um percurso analítico capaz de abranger as “zonas de contato” e de ressemantização dos símbolos católicos e das heranças culturais da pré-travessia, considerando os contatos prévios produzidos pela africanização dos símbolos católicos no além-mar, apresentados nessa discussão.
As esmolas adjacentes dos peditórios, realizados por meio dos folguedos da praia, tinham por objetivo concorrer para a salvação das almas dos parentes. Por intermédio do instrumento, considerado pela doutrina do bem morrer o mais misericordioso para atender os mortos, a corte benguela procurava atender aos irmãos falecidos por meio da concessão dos sufrágios católicos. Ao todo foram assistidos 28 homens e 19 mulheres do total de falecidos filiados à Nobre Nação.62 Desses sufragados, 25 eram escravos (19 mulheres e 6 homens), dois eram forros e 31 almas não tiveram sua condição social relacionada nos assentos. Das procedências mencionadas nos registros, a maioria representava as nações benguela ou angola, e apenas um era camondongo entre os registrados nos pedidos de missas.63
Em relação aos encomendantes, identificamos a “senhora” Tereza,proprietária de Isabel de Nação Angola, que encomendou de uma missa pela alma da dita escrava em 29 de dezembro de 1819.64 Mariana Lopes, também senhora, procurou a Nobre Nação para assegurar o refrigério da alma de sua escrava Ana, sufragada em primeiro de fevereiro de 1799.65 O mestre da Nação, Francisco Coelho, igualmente proprietário, lembrou da alma de sua cativa Francisca Preta, ao intencionar-lhe uma missa em sufrágio em 14 de março de1809.66 A esmola costumeira variava entre meia a uma oitava de ouro por cada celebração oferecida. Quando não havia identificação nominal dos intercessores terrenos, tornou-se comum nos registros o uso da expressão “encomendada pelos pretos parentes do mesmo(a) falecido(a) ou pelos “seus patriotas/ parentes de nação”.67
Alguns foram mais beneficiados na “contabilidade do além”, como ocorreu com o caridoso João Ladino que, ao intencionar missas aos escravos Miguel, Roque e Domingos, pôde receber em troca dos seus parentes 24 sufrágios por intenção de sua alma.68 Numa demonstração patente de solidariedade e de reciprocidade entre vivos e mortos, João Ladino é um arquétipo convincente dessa interdependência apropriada pelos centro-africanos, com a finalidade de diminuir o estado de infortúnio e de restabelecer a harmonia entre a esfera terrena e o mundo espiritual.
A mesma solidariedade se estabeleceu entre Joaquim da Cunha e seus irmãos de nação. Em 27 de setembro de 1800, o preto encomendou, pela esmola costumeira, uma missa em intenção da alma de Estevão de Nação Angola ou Benguela.69 Três anos depois, o mesmo encomendante - representando as espórtulas dos “homens pretos da mesma Nação” - intencionou uma celebração em sufrágio da alma de Pedro Angola ou Benguela.70 Nas décadas seguintes, identificamos o nome de João da Cunha Preto como beneficiário do sufrágio intencionado por Francisco Coelho.71
A referência ao nome de Francisco Coelho de Nação Benguela também é feita em depoimento testamentário de Joana de Freitas Preta Forra, como marido da mesma. Joana teve seu corpo sepultado no Rosário, e seu enterro foi feito sob a exigência de ser regido por cerimonial solene, com o acompanhamento de seis reverendos na celebração de sua missa de corpo presente.72 Em declaração de suas últimas vontades, a testadora pediu a seu marido (testamenteiro) que mandasse dizer 20 missas em sufrágio de sua alma. Francisco - membro da Nobre Nação e irmão do Rosário, juntamente com sua esposa falecida - cumpriu as recomendações feitas por Joana. Além disso, seu nome esteve na lista de intenções aos encomendantes de missas da Nobre Nação em 1805, quando designou o sufrágio em benefício da alma de Manoel da Silva Guimarães. Depois da morte de Joana, o liberto contraiu novas núpcias73 com Luzia Marques Pinto e, na ocasião do seu falecimento, teve seu corpo sepultado na igreja do Rosário.74
Outra irmã do Rosário de Nação Benguela, Tereza Joaquina Nunes preta forra, teve, ao falecer, seu corpo envolto pelo hábito de Nossa Senhora do Carmo e foi sepultada na capela de sua devoção.75 Tereza Joaquina confiou a seus testamenteiros, o Padre Manoel da Paixão e seu sobrinho João Justiniano da Silva, que mandassem dizer 50 missas por sua alma e 10 pela do seu filho João Nepomuceno.76 A forra possuía casas, móveis, algum ouro lavrado e roupas brancas e de cor. Terminou de quitar a liberdade de sua escrava Tereza de Nação, a quem deixou também “toda roupa de seu uso” por tê-la acompanhado em sua enfermidade.77 Tereza faleceu dez anos depois da redação do seu testamento, foi “encomendada e acompanhada solenemente na capela do Rosário”. A mesma liberta pode ter sido responsável por encomendar os sufrágios pela Nobre Nação de Benguela oito anos antes da sua morte em 1819, quando intencionou uma missa pela salvação da alma de Ana Monteiro.78
A próxima alma a ser beneficiada pela Nação Benguela foi a do liberto João Henrique de Souza Preto da Costa - “escravo que foi de José Anastácio de Souza” - sufragado em 1814, a pedido de João Numba.79 O mesmo nome do beneficiário foi identificado em testamento de Tereza de Souza Benguela, como marido falecido da testadora.80 A viúva forra disse ser proprietária de uma morada de casas “coberta de telha” sita à rua de S. Francisco da Vila de São João del-Rei. Como não possuía herdeiros diretos, em função dos dois filhos do casal (Maria e Matias)81 não terem “vingado” e terem falecido quando ainda eram inocentes, a liberta nomeou como testamenteiro e herdeiro universal o preto forro Caetano José da Siqueira. Ao falecer em 1821, a viúva foi encomendada e sepultada na mesma igreja em que estava o corpo do seu marido - João Henrique de Souza, que teve seu assento de óbito aberto em 21 de janeiro de 1793, quando recebeu todos os sacramentos ministrados pelo vigário Joaquim Pinto da Silveira Aguiar.82
Por meio da exposição desses fragmentos, podemos notar o anseio maior dos confrades benguelas em garantir a salvação da alma dos seus parentes de nação, ao abrirem um livro próprio para o lançamento das certidões de missas intencionadas a seus vassalos e irmãos. Não satisfeitos com dez missas asseguradas pela filiação à irmandade do Rosário,83 esse grupo étnico, em aliança com outras nações,84 decidiu pela potencialização dos sufrágios e da caridade para com os mortos, mediante a concessão de mortalhas e sepultamentos dignos aos parentes de nação.85
Sendo assim, a expressão “parentes de nação” reporta-se a uma reformulação do sentido de parentesco que não se reduz à consanguinidade, abrangendo, portanto, a dimensão étnica e espiritual. Nesse sentido, as linhagens familiares, baseadas em redes consanguíneas longínquas na qualidade de fundamento da ancestralidade, foram redimensionadas para atender aos aspectos circunstanciais dessa identidade organizacional que se firmava na outra margem do Atlântico.
Se as estruturas políticas, sociais e religiosas ancoradas nas linhagens de parentescos não foram transplantadas para o contexto da diáspora - em função do estilhaçamento e da ruptura causadas pelo tráfico e pela instituição escravista - o sentimento de parentesco foi adaptado à nova realidade. Desse modo, os pares construídos pela classificação do tráfico se transformaram em parentes e irmãos espirituais num sentido mais profundo do que o parentesco espiritual forjado na adesão da própria confraria do Rosário.
Os vassalos benguelas, em resposta à segregação - enfrentada mediante as hierarquias centrais da confraria - construíram uma identidade mais coesa em paralelo aos postos de poder da irmandade, pela segmentação devocional direcionada ao culto das almas dos seus parentes.86 Isso ocorreu quando os mesmos se organizaram para edificar um palácio próprio (espaço sagrado e ritual), contando, também, com as esmolas entesouradas em um cofre para o sustento de uma corte autônoma (reis, duques e marqueses). Além disso, os rosários benguelas de São João del-Rei desenvolveram um sentimento de pertença à Nobre Nação quando aprimoraram os sinais diacríticos identitários, utilizando-se de uma leitura própria dos signos católicos do bem morrer e das reminiscências africanas de ancestralidade e parentesco cujas noções adquiriram contornos inovadores na diáspora.
Nesse sentido, a afirmação devocional direcionada ao culto dos ancestrais não se opôs à crença católica voltada para o poder milagroso das almas penitentes.87 Dizemos isso em função do processo de catequização ter se desenvolvido por meio de uma linguagem de negociação e de trocas simbólicas, viabilizada por certo nível de compatibilidade de estruturas culturais cognitivas permitindo, assim, a analogia desses sistemas religiosos. Com efeito, os irmãos da Nobre Nação de Benguela redimensionaram o culto aos seus antepassados a partir do paradigma interpretativo baseado na reciprocidade entre vivos e mortos. Isto é, quanto mais sofredoras, mais próximas estariam essas almas do alcance do estado de graça garantindo a capacidade de atender pelos chamados dos vivos.
Neste ínterim, o purgatório - ícone emblemático da escatologia católica - foi eleito, dentro desse imaginário, como o lugar privilegiado de assistência aos irmãos falecidos de nação, bem como o elo fundamental de solidariedade entre os mundos terreno e espiritual. Ademais, as almas milagrosas deixaram de ser anônimas na perspectiva dos desterrados, ao adquirem a referência nominal dada nas certidões de missas votivas, passando a cumprir - nessas intenções de sufrágios e manifestações festivas - o papel de parentes protetores. Com isso, os laços entre os vassalos vivos e defuntos da Nobre Nação foram reiterados continuadamente, fortalecendo o pertencimento identitário e a família ritual/espiritual dos confrades do Rosário dedicados à assistência das almas dos seus entes patriotas.
No item a seguir procuramos dar continuidade aos significados tecidos em torno dos sufrágios, ao abalizarmos os parâmetros fundamentados pela catequese tridentina acerca do ritual do santo sacrifício da missa como um dos principais veículos de salvação das almas penitentes. Logo em seguida, retomaremos as apropriações e representações elaboradas no seio dessa segmentação étnico-religiosa voltada para a assistência dos mortos dentro da irmandade do Rosário.
O Livro Segundo do Direito Canônico - em seu Título I “Do Santo Sacrifício da Missa...” - orienta os clérigos e seus fiéis sobre a importância do sacramento pelo qual o fiel “revive” o mistério da Paixão de Cristo, podendo auxiliar o seu processo de redenção durante o julgamento individual. Nesse sentido, “não só aproveita este sacrifício aos vivos por quem se aplica, mas também aos fiéis defuntos, por virtude do qual são livres do Purgatório”.88
A mesma legislação eclesiástica lembra aos fiéis que as missas dos defuntos deveriam ser celebradas pelo menos uma vez ao mês durante as horas canônicas. Quanto às exéquias e aos ofícios dos mortos,89 não poderiam ser realizados em dias santos ou domingos, em razão das datas comemorativas no calendário litúrgico e pelo fato de o domingo representar o dia da ressurreição de Cristo. Em casos de falecimentos nesses dias, permitiam-se “dizer as vésperas e noturnos”, o anúncio dos ofícios a serem realizados na data seguinte. Em relação aos escravos maiores de 14 anos, se não tivessem “fazenda bastante para todos os sufrágios costumados” receberiam, ao menos, a “missa de corpo presente” e um ofício de três lições, com despesas paga pelo senhor ou pela piedade cristã do pároco e de seus fregueses.90
Caso pertencesse a alguma irmandade, a assistência fúnebre constituía uma das prerrogativas garantidas aos irmãos que mantiveram suas obrigações e anuidades em dia. No Rosário de São João del-Rei, o corpo do defunto deveria ser conduzido em esquife próprio da associação e acompanhamento à sepultura, feito pelo Reverendo capelão e pela irmandade incorporada.91 As dez missas eram ditas “com maior brevidade de tempo possível”.92 Quando falecesse algum irmão em estado de miséria, a mortalha passava a ser encomendada por piedade cristã, e os sufrágios realizados “conforme a utilidade” do falecido ou “feitos inteiramente”, de acordo com a análise da mesa diretiva.93
Adalgisa Campos, em seu estudo sobre as irmandades de São Miguel em Minas, assevera que a “crença na missa como fonte de salvação” se desenvolveu como traço característico da religiosidade barroca mineira. O fortalecimento do dogma eucarístico, tão propagado pela reforma tridentina,94 ajudou na crença em que podia auxiliar na remissão da culpa dos vivos e aliviar as penas veniais dos mortos. Sendo assim, a ideia da reconciliação com Deus se iniciava com o processo de confissão, penitência e contrição e se prolongava para além das fronteiras do além-túmulo, quando o sacrifício eucarístico dos vivos era intencionado em memória dos defuntos para o refrigério de suas almas em estado de purificação. Consoante Campos, “nunca se celebrou tanto nas Gerais em louvor a Deus e com os olhos na imortalidade, quanto no século XVIII”.95
Não obstante, as abstrações ou imposições teológicas acerca do Santíssimo não eram tão simples de serem compreendidas pelos fiéis, tão mergulhados naquele caldeirão multiétnico da colônia. Desse modo, a adoração ao Santíssimo recebeu inúmeras interpretações,96 e o Divino Espírito Santo adquiriu acepções populares independentes do discurso ortodoxo.97 Durante a Semana Santa, por exemplo, a veneração ao mistério eucarístico ganhou força nas celebrações da quinta-feira litúrgica. Já em outras ocasiões, como as festas aos santos padroeiros, a exposição do Santíssimo se transformou em um dos pontos altos das festividades das confrarias.
Laura de Mello e Souza, em sua obra O diabo e a Terra de Santa Cruz,98 apresenta uma série de roubos de hóstias para a confecção das “bolsas de mandingas”, instrumento sagrado muito utilizado pelos africanos ocidentais e mestiços para proteger e fechar o corpo. Como se vê, o dogma da transubstanciação de Cristo recebeu tratamentos mágicos adequados às idiossincrasias dos grupos culturais.
De acordo com as Constituições, a frequência à confissão e à eucaristia deveria ocorrer pelo menos uma vez ao ano, durante o período que ficou convencionado como desobriga.99 Desse modo, os escravos também deveriam se confessar e receber o sacramento, segundo as prescrições canônicas. Para isso havia a necessidade do batismo e o conhecimento elementar de que Deus constituía um ser uno e, ao mesmo tempo, formado por três pessoas sagradas: Pai, Filho e Espírito Santo, conforme a Breve Instrução dos Mistérios da Fé.100
Por outro lado, apesar do culto eucarístico ser intenso nesse período de implementação da reforma católica na colônia, a comunhão não se tornou tão acessível em todos os períodos do ano. Segundo Campos, a participação nas missas não significou imediatamente uma regularidade ao sacramento da Eucaristia, pois “no catolicismo barroco [...] confessava-se e comungava-se por ocasião da quaresma”.101
Desse modo, nem em toda celebração havia espaço para a Eucaristia. As missas, em geral, dividiam-se entre rezadas (mais simples) e cantadas (cerimônias solenes). As primeiras - realizadas no período matutino (de preferência do “romper d’alva até às nove horas”) - tinham duração curta de 20 a 25 minutos.102 O sacerdote responsável por celebrá-la deveria estar em jejum e contar com o auxílio de pelo menos um acólito. Quanto ao altar, precisava estar devidamente arranjado (com velas acesas) e coberto com toalhas brancas e limpas. Assim, as missas tridentinas, pela sua curta duração, reservavam as homilias para os dias solenes.
Nessas ocasiões, as cerimônias eram mais sofisticadas, pois as missas cantadas se destacavam pelo “espetáculo ornamental” tanto visual, quanto sonoro. O ritual, conduzido por, no mínimo, um sacerdote, acompanhado de diácono, subdiácono e alguns acólitos, contava com a participação de músicos e orquestras especializadas. Justamente pelo aparato dispendioso, essas cerimônias ocorriam somente durante as datas comemorativas do calendário litúrgico, como as festas dos santos patronos, Semana Santa, Quaresma, Corpus Christi, Dia de Todos os Santos, etc.103 Via de regra, as missas rezadas faziam parte do cotidiano dos fiéis associados em confrarias. No Rosário de São João del-Rei, por exemplo, as missas se realizavam aos domingos e dias santos pelo capelão em intenção aos irmãos vivos e defuntos em altar de Nossa Senhora.104
Para o entendimento da apropriação da liturgia católica acerca dos sufrágios, como instrumento capaz de redimir e de purificar as almas pecadoras para, assim, elegê-las como entidades milagreiras, intercessoras dos viventes, é preciso pontuar os significados em torno das acepções cosmológicas de vida e de morte das sociedades banto. Em território da antiga Angola, mesmo diante de uma diversidade de crenças e costumes religiosos, havia um consenso amplamente aceito de que “os mortos iriam para uma vida após a morte de onde poderiam influenciar os vivos”.105 Nesse sentido, as principais forças espirituais veneradas pelos povos ovimbundos eram os ancestrais, chamados ma-bamba (as almas dos familiares, no Congo recebiam o nome de bisimbi) e as divindades territoriais (kilundu), também interpretadas como ancestrais longínquos.
Além dessas duas categorias espirituais, havia os espíritos inferiores (desapegados às famílias), como os nzumbi, zumbi ou cazumbi, provenientes de pessoas de má índole ou de vítimas de morte violenta ou, ainda, daquelas sepultadas de maneira imprópria.106 Essas forças espirituais inferiores poderiam ser acionadas em uso de amuletos (iteques) ou em rituais de magia e feitiçaria (quimbanda).
Não obstante, acima dessas divindades e espíritos familiares, havia o criador do universo Nzambi-Mpungu, traduzido pelos missionários cristãos como o Deus do Ocidente. No entanto, a devoção mais frequentada não se dirigia diretamente à Nzambi ou Zambi, mas aos ancestrais (mabamba) e kilundu. Essas divindades territoriais em Ndongo possuíam seus altares próprios (kiteki), conhecidos no Congo como nkisi. Esses locais sagrados, situados em templos que o colonizador denominou “casa dos ídolos,” abrigavam estátuas com figuras humanas mantidas em miniaturas de casas de madeira ou expostas em cemitérios.107
No Congo cristão e em Ndongo, as divindades territoriais, juntamente com os ancestrais, dividiram espaço com os símbolos católicos, pois muitos congoleses batizados passaram a frequentar a missa sem deixar de visitar o túmulo dos seus antepassados e homenageá-los com oferendas e outras práticas consideradas pagãs pelos missionários. Em vista desse trânsito de símbolos centro-africanos apropriados ao culto cristão, os missionários capuchinhos se sentiram ameaçados, partindo, muitas vezes, para a agressão direta dos ícones africanos, mediante a prática de incêndio dos templos sagrados e a destruição dos ídolos para tentar provar a inabilidade dos seus deuses.108
O culto aos mortos, baseado nos ritos de possessão, constituiu outro ponto incompreensível aos missionários; a conversa direta com os seres do além por meio do transe espiritual foi interpretada pelos relatos como manifestação demoníaca.109 Cavazzi,110 em suas andanças pelos reinos do Congo, Matamba e Angola, demonstrou muitos rituais de possessão que, na sua interpretação, consistiam em manifestação demoníaca. Pela observação do missionário, os túmulos representavam, para os africanos centro-ocidentais, importantes centros de culto aos ancestrais e de comunicação com os mortos. Neles se colocavam oferendas, realizavam-se sacrifícios em homenagem ao defunto e, em dias de celebração anual da morte, organizavam-se banquetes rituais, aplacando, assim, o anseio de veneração das entidades.
Segundo a cosmologia banto, a negligência aos defuntos - no que se refere aos rituais de passagem para o além e aos cultos post-mortem - significava a principal causa do desencadeamento do desequilíbrio e do infortúnio entre os vivos. Já o declínio físico e a morte na juventude eram entendidos como resultado das forças espirituais destrutivas, ao passo que a saúde designava um sinal evidente de poder espiritual.111
Nessa acepção, vivos e mortos formavam “uma só comunidade” ancorada em obrigações e dádivas recíprocas. Quando esse elo se rompia, havia a deflagração de infortúnios, epidemias e desgraças individuais e coletivas. Os humanos integravam seres de dois níveis: o “invólucro exterior”, o corpo físico; e a força vital, a alma. Para manter essa força, os centro-africanos apelavam para a invocação da proteção dos mortos, mediante os rituais de apaziguamento, como as celebrações em sua honra, os julgamentos rituais e a comunicação por meio do transe ou das possessões.
No entendimento de Sweet,112 a comunicação dependia dos sacerdotes especializados nessa mediação entre o mundo terreno e o além-túmulo banto. Os mais proeminentes recebiam os nomes de xilingas ou ngangas, em Angola, e quitomes, no Congo. No Brasil, ficaram conhecidos como calundeiros, praticantes do calundu, uma cerimônia associada à dança, ao transe, à cura e às oferendas aos espíritos. Consoante o africanista:
As cerimônias de adivinhação que envolviam possessões humanas eram normalmente conhecidas no Brasil pela corruptela calundú. Em Angola, o quilundu era o nome genérico para qualquer espírito que possuísse os vivos. Os espíritos dos antepassados possuíam os vivos por várias razões, mas normalmente com o objetivo de os castigar pela falta de veneração e respeito adequados. Acreditava-se que o castigo se manifestava através de uma série de doenças, que podiam debilitar e até matar a pessoa possuída, devorando-lhe a alma até a morte.113
Nesta perspectiva, o quilundu centro-africano tinha por objetivo restaurar a harmonia espiritual e a saúde física do indivíduo por meio da satisfação dos anseios dos mortos. Esse ritual também poderia ser usado para prever acontecimentos futuros e prevenir quanto aos problemas cotidianos e infortúnios temporais. A infusão de raízes, as bebidas alcoólicas, as comidas sagradas e os sacrifícios foram utilizados como instrumentos de apaziguamento e de reconciliação com os entes ancestrais, e a dança e o atabaque serviam como veículos de facilitação do encontro com o sagrado via transe espiritual. De acordo com Sweet, “a grande maioria das cerimônias de calundu era conduzida de forma a determinar a causa das doenças”, em razão de os centro-africanos não acreditarem na falência física fora da velhice como resultado de causas naturais.114
Ainda em solo africano, podemos notar o movimento dessas trocas culturais entre o catolicismo e os cultos nativos, a partir dos depoimentos de Cavazzi,115 mesmo que seu discurso apresente claras hostilidades em relação aos costumes africanos. Excetuando-se os juízos de valor do missionário, é possível localizarmos o processo de negociação de símbolos, principalmente no que se refere ao culto dos mortos e às práticas fúnebres. Segundo o capuchinho:
Os cristãos do Congo, embora não tenham esquecido completamente os ritos dos gentios (sendo imprudente reformar aqueles abusos que não ofendem a religião) merecem louvor de muito pios e zelosos para com os finados. Além de serem solícitos em enterrá-los nos cemitérios ao pé das Igrejas e nos lugares onde a Cruz e outras Santas imagens despertam nos vivos a lembrança deles, insistem também na anual celebração de orações e exéquias e onde não houver padres, em vez de sacrifícios, são esmolas aos pobres para que rezem pelo defunto.116 (grifos nossos)
Em caso de morte de reis ou nobres, o funeral era considerado a maior solenidade do reino. O cadáver do soberano recebia panos europeus, e dois escravos ficavam responsáveis pela vigília noturna da campa. Se o velório ocorresse aos sábados, “dia dedicado à Gloriosa Virgem padroeira daquelas almas”, as orações deveriam ser intensificadas por meio da recitação de rosários.117 De acordo com Thornton, a meditação dos mistérios na língua quicongo tornou-se costume arraigado nas cidades e vilarejos do interior da África Central. Utilizada também em funerais, a recitação do terço antecedia o ritual da missa fúnebre.118
Conforme os relatos registrados pelo franciscano Rafael Castelo de Vide - missionário no Congo entre 1779 e 1785 -, os cânticos de louvor, as novenas, as ladainhas e os rosários a Nossa Senhora eram proferidos em quicongo e passaram a ser ensinados por mestres e também mediadores linguísticos dos missionários católicos. Essa autonomia dos mestres119 na evangelização da segunda metade do século XVIII pode ter contribuído para o desenvolvimento da africanização dos preceitos católicos. Consoante o franciscano:
À noite se ajuntou o Povo a cantar o Terço de Maria SS.ma na sua língua, e a Ladainha como se costuma, a que nós assistimos, animando-os nesta santa Devoção; para que lhe pus diante uma devota e perfeita imagem de Nossa Senhora da Conceição, que trazia na minha companhia, que eles não se saciavam de ver, porque não tinham no seu pobre oratório mais do que uma pouco [sic] perfeita imagem do N. P. Francisco, e advertia aqui, e para diante serem estes Povos devotos de Nossa Senhora, pois lhes ouvia de noite, e muitas vezes de madrugada, entoar os seus louvores, os quais eu muitas vezes acompanhava animando-os com algumas prática.120 (grifos nossos)
O mesmo missionário disse ter o costume de cantar aos sábados - “revestido de capa de asperges” - os louvores de “Salve”, feitos na mesma língua nativa, à maneira particular dos povos do Congo, conforme aprendeu a partir dos costumes católicos mantidos pelos mestres locais.121 Em contrapartida, o franciscano ensinava a esses líderes os ofícios em latim, principalmente aqueles em que acreditava ter eficácia contra as pestes e os infortúnios daquela região.122
No entanto, a troca de fazeres e saberes nem sempre ocorreu de forma amigável; muitas vezes, os missionários empregaram a força e a agressão física e material aos símbolos sagrados dos nativos.123 Por seu turno, essa liturgia católica reequacionada aos “costumes e leis do Congo” teve entrada e alcançou legitimidade naquele território principalmente pela assistência fúnebre acrescentada à cultura bacongo ancorada na veneração e reciprocidade dos ancestrais.
Na região de Angola, os relatos do século XVIII expressam o intercâmbio cultural entre o culto nativo e o catolicismo-congolês. Muitas expedições à região de Ndongo, como mencionado, partiram do Reino do Congo e enfrentaram muitas resistências até a conversão de Njinga.124 Os relatórios enviados à Coroa, consultados por Linda Heywood,125 descrevem como os “ritos não cristãos” vieram a dominar as práticas celebradas dentro das igrejas católicas.
Um deles chamou atenção pelo tom de denúncia com que os missionários alertaram às autoridades régias sobre a participação de brancos em ritos pagãos. Na realização dos rituais de puberdade (casas de uso), dos sepultamentos de tambos (entambes), das adivinhações com os xinguilas, os portugueses adoravam os ídolos, praticavam a circuncisão e adotavam a poligamia como hábito de vida.126 Já por volta de 1790, Silva Correa descreveu a presença de “práticas africanas coexistindo no coração dos rituais da Igreja.” Em casamentos, sepultamentos e nas próprias missas havia “tambores demorados” e a dança conhecida genericamente por batuque.127
Décadas antes, em 1722, o capitão de Benguela, Antônio de Freitas, foi acusado de feitiçaria por encomendar um entambe para apaziguar a alma de sua mulher falecida. O capitão, já bastante enfermo, recebeu orientações do ambundo (feiticeiro), que, ao diagnosticar o seu estado, o aconselhou a tratar da alma de sua esposa que vagava “sem sossego”, como um zumbi. No cerimonial realizado a mando do capitão, foram encomendados atabaques, oferendas e danças, e muitas pessoas da comunidade participaram do ato, inclusive os filhos do capitão, morto (por causas naturais) quatro meses depois da denúncia do bispo Manoel de Santa Catarina. Em São Paulo de Luanda e em outras partes do reino de Angola, o ritual de sepultamento perdurava dias e contava também com a celebração de missas, recitação do rosário e ladainhas a Nossa Senhora, além das danças, sacrifícios, possessões e oferendas costumeiras.128
Não obstante, os depoimentos de missionários demonstram, com riqueza de detalhes, como se desenrolava esse complexo ritual de passagem, antes mesmo de receber influência dos costumes católicos. Segundo Arthur Ramos, a partir de Ladislau Batalha, nesses cerimoniais angolanos conhecidos por entambes/itambi, “chora-se, dão-se tiros em sinal de tristeza, mas simultaneamente jogam, brincam, comem e embriagam-se”. Por fim, a família do falecido oferece o banquete ritual aos convidados. Em alguns funerais, praticava-se também o costume de cum bandama, isto é, “quando um dos cônjuges falece, o sobrevivente tem de dormir uma noite com o cadáver e com ele coabitar!”.129
No ato da inumação, enterrava-se o corpo em posição sentada, outras vezes na horizontal e, em sua sepultura, tinha-se por hábito depositar “toda variedade de comida” a fim de alimentar a alma do falecido. Uma exposição muito próxima apresentada por Arthur Ramos foi identifi em Cavazzi, quando esse religioso chamou a atenção para os rituais de passagem impressos em práticas como oferendas, danças, banquete e transe espiritual:
Conhecendo-se a morte de uma pessoa, logo amigos e parentes se preparam para celebrar conjuntamente o tambo, como é chamada a cerimônia dos funerais. [...]
A festa começa pela madrugada e, durante todo o tempo que durar aquele infernal tripúdio, ficam atordoados todos os arredores até a distância de uma milha. Os dançarinos, com grande admiração de quem os vê, giram como peões sobre um único pé; depois invencilhados [sic] entre si, dão voltas precipitadamente, levantando vozes confusas, sem que ninguém possa compreender se eles falam, cantam, choram, riem, se queixam ou se alegram pela morte daquela pessoa. [...] Entretanto, não se esquecem de si mesmos, comendo para retomar o vigor, nem do defunto, julgando que ele precisa igualmente da comida. Então saciados quanto ao ventre, lançam o resto da comida e da bebida sobre o cadáver [...].130(grifos nossos)
Em estudo etnográfico na região de Benguela, Augusto Bastos apresenta a ocorrência de práticas muito similares a essas descritas acima. Em uma das cerimônias mortuárias, a mobília e os trastes do morto eram retirados do quarto, em seguida, lavava-se o cadáver para que seu corpo recebesse o vestuário especial para o sepultamento (mortalha).
Após o arranjo da casa mortuária, no início do escurecer, quando todos se viam recolhidos, retirava-se o cadáver do quarto, depois este era colocado em uma tipóia e conduzido até o local da cerimônia. O feiticeiro [começava] então a perguntar ao morto qual foi a causa da morte, se devido a feitiço ou espírito.
A depender da qualidade distintiva do falecido, o funeral poderia durar de três a dez dias; durante as exéquias, havia “danças, cantos, bebidas, matando-se dias a dias um porco para comerem”. Antes da inumação, prossegue Augusto Bastos:
[...] vai um mensageiro apregoar ao redor do cemitério que vai ser enterrado fulano de tal filho de fulano, rezando a genealogia e qualidades do morto. No cemitério é morto outro boi, cujo sangue é vazado na sepultura, depois colocam nesta também, a cabeça inteira do boi morto, servindo de almofada à cabeça do morto. Depois destas cerimônias é que procede inumação.131
Após o sepultamento, a carne do boi era distribuída entre os presentes no cemitério. As pessoas participantes do ritual presenteavam o morto com “galinhas, porcos, aguardente e quimbombo” (bode). Entre os ganguelas, perdurou-se o hábito de enterrar os defuntos nobres com escravos vivos, como sinal de distinção social do morto, obedecendo à crença de que os cativos sacrificados o serviriam no mundo pós-túmulo. Quanto aos rituais de possessão - atribuídos por Bastos a fenômeno de “magnetismo”, isto é, “a encarnação dos espíritos no cérebro do indivíduo” -, tinham por objetivo aplacar as enfermidades e adivinhar “as causas e os efeitos dos males”. Os mortos, quando invocados nesse ritual, exigiam, segundo a crença, “alguma coisa que era preciso cumprir”, precisamente um funeral adequado, orações, sacrifícios e homenagens para o apaziguamento do seu estado de perturbação no reino dos mortos.
Nas Minas Gerais, o banquete fúnebre era realizado, segundo Dom Antônio de Guadalupe, principalmente pelos “escravos da Costa da Mina” que, ao fazerem “ajuntamento de noite com vozes e instrumentos em sufrágio de seus falecidos”, costumavam levar “várias comidas e, depois de comerem lança[vam] os restos nas sepulturas”.132 No Rio de Janeiro, a proximidade dos rituais funerários com os entambes centro-africanos foram retratados pelos pronunciamentos de Debret. Segundo o viajante francês, o préstito que levava o filho de um rei negro até as igrejas das irmandades negras (velha Sé, Lampadosa e de N. Sra. do Parto) se compunha pelo mestre de cerimônias, porta-bandeira, capitão da guarda, além dos tocadores de caixa, crianças, familiares e conhecidos.
Acompanhado de muitas palmas, rojões, cânticos africanos, batidas de caixa à maneira africana de reverenciar os mortos, o cortejo funerário demonstra, pelas impressões do naturalista, suas feições híbridas. Ao recorrerem ao funeral cristão, os negros da diáspora faziam uso da água benta, do pano mortuário, da mortalha, da sepultura sagrada, somada ao aparato sonoro, garantindo, assim, a seus defuntos uma passagem segura, aplacando os anseios dos espíritos em estado de desligamento.133
Já nas irmandades do Rosário, os quitutes dos tabuleiros das negras forras eram muito apreciados pelos festeiros durante os banquetes em homenagem à santa padroeira. As bebidas espirituosas, embora fossem estritamente proibidas pelo regimento estatuário, também não podiam faltar para o regozijo dessas celebrações. Muitas vezes, o efeito provocado pelo álcool auxiliava no processo ritual de iniciação ao transe religioso. Até hoje, muitos congadeiros134 de São João del-Rei utilizam beberagens com mistura de ervas e cachaça para fins de proteção sagrada ou de curas espirituais antes de comporem a chegança do Rosário.135 Ulisses Passarelli reitera que, ao lado das comilanças do Rosário, outro costume praticado para o sustento das almas consistia no hábito de deixar doces ou outros alimentos à beira da janela, ou em lugares de paragem das almas como encruzilhadas, cemitérios, portas de igrejas, cruzeiros e outros pontos para que as benditas sofredoras recebessem a oferenda antes da passagem da Procissão das Almas na Vila.136
Certamente, as reminiscências centro-africanas foram significativas para a reconstituição identitária daqueles que se estabeleceram como reis, vassalos, duques, marqueses e de todos os parentes de nação da Nobre Nação de Benguela, num contexto de situação limite da escravidão. Esses devotos do Rosário desenvolveram uma fronteira étnico-religiosa no interior da confraria dos homens pretos, demarcaram espaços de autonomia e ressemantizaram suas noções de parentesco, família, ancestralidade e vida post-mortem a partir da liturgia católica do bem morrer.137 A edificação do palácio como recinto sagrado e os folguedos aos irmãos defuntos, realizados às margens do córrego, demonstram as releituras das representações acerca da simbologia do fogo, da água, da vida e da morte em dimensões atlânticas da diáspora.
Em vista do que foi exposto, é razoável afirmar que o purgatório se estabeleceu como crença efetiva presente no imaginário de muitos segmentos da sociedade escravista, ocupando, principalmente, um lugar privilegiado entre os segmentos escravizados e libertos provenientes da diáspora atlântica. A devoção das almas em estágio de purgação foi bem aceita entre os estrangeiros no exílio e seus descendentes em razão da valorização dada à assistência aos mortos e da sua capacidade em atuar a favor dos vivos. A partir da noção de estruturas cognitivas dialogáveis, constatamos a presença de parâmetros culturais similares no sistema religioso das sociedades banto.
Desse modo, a intensificação dos sufrágios, promovida pelos irmãos benguelas dentro da confraria do Rosário, condiz com a profusão do culto aos mortos a partir de uma perspectiva plural em que os contatos culturais atribuíam sentidos inéditos aos paradigmas católicos e às heranças recriadas no universo atlântico. Com efeito, a identificação dos antepassados ou da ancestralidade nas feições sofredoras das almas milagrosas fez com que os fundamentos de crenças da pré-travessia centralizados na assistência dos espíritos familiares fossem redimensionados para atender às necessidades circunstanciais da diáspora e, em parte, ao projeto de catequização no Novo Mundo.