Resumo: Este artigo busca, a partir da análise de indícios da presença da capoeira no Maranhão nas duas últimas décadas do século XIX, traçar um breve e inicial panorama dessa prática no Estado, entre 1880-1900. Discute, ainda, partindo de um paralelo com a capoeira do Rio de Janeiro e da Bahia do mesmo período, algumas similaridades e diferenças dessa prática nesses locais.
Palavras-chave: capoeiracapoeira,MaranhãoMaranhão,século XIXséculo XIX.
Abstract: Starting from the analysis of evidence of capoeira in Maranhão in the last two decades of the 19th century, this article traces a brief and initial panorama of this practice in the state, between 1880-1900. It also discusses, starting from a parallel with the capoeira of Rio de Janeiro and Bahia of the same period, some similarities and differences of this practice in these places.
Keywords: capoeira, Maranhão, Nineteenth century.
Articles
MARINHEIROS, MOLEQUES E HERÓIS: ALGUNS PERSONAGENS DA CAPOEIRA DO MARANHÃO DE FINS DO SÉCULO XIX (1880-1900)*
Recepção: 12 Junho 2017
Aprovação: 17 Fevereiro 2018
Esta pesquisa sobre a capoeira do Maranhão nas duas últimas décadas do século XIX, em conformidade com o que afirmam Vieira e Assunção, parte de uma perspectiva dessa manifestação enquanto prática integrante de um “contexto mais amplo das manifestações culturais afro-brasileiras, ou mesmo afro-americanas”.1 Ademais, importa observar, ainda de acordo com esses autores, que a capoeira desse período referia-se
[...] então a um conjunto de técnicas de combate que envolvia tanto o uso de uma grande variedade de armas (facas, sovelões, navalhas, cacetes, estoques até pedras e fundos de garrafa) quanto o uso de golpes com as pernas ou a cabeça.2
A capoeira ou capoeiragem, como era comumente conhecida até meados do século XX, manifestação cultural criada pelos africanos no Brasil,3 tem sido objeto de muitas pesquisas nos últimos anos. Contudo, apesar do avanço, particularmente no campo da História, ainda existem grandes lacunas a serem preenchidas. Em boa parte dos estados do Brasil, há uma grande carência de estudos.4 E mesmo em estados onde as pesquisas se encontram em patamar mais adiantado, como Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, a pesquisa histórica em muitos períodos ainda é incipiente.
Pretende-se, com este trabalho, traçar um breve panorama da capoeira no Maranhão, nas duas últimas décadas do século XIX, partindo da análise de indícios de sua prática entre os anos de 1880 e 1900. O recorte temporal proposto tem como referência o ano de 1890, quando entra em vigor o primeiro Código Penal da República, que criminalizou a prática da capoeiragem.5 A partir desse marco, pretende-se abordar os dez anos antes de sua tipificação como crime e os dez posteriores.
Apesar da edição do referido Código, até o momento, a partir do levantamento realizado para esta pesquisa, não foi encontrado qualquer processo judicial ou inquérito policial envolvendo diretamente a prática da capoeira no período, no Maranhão. Ao abordar esta ausência, no caso da capoeira baiana de fins do século XIX, Antonio Liberac Pires aponta a falta de leis locais que criminalizassem a capoeira.6 Segundo o autor, foram editadas, no Rio de Janeiro, várias posturas municipais voltadas a reprimir a capoeira, o que gerou processos como consequência.
Deve-se levar em conta, todavia, que as leis, como as posturas, não surgem do acaso. São, na verdade, reflexo de uma situação concreta, estrutural ou conjuntural, que propicia sua criação. Ao que parece, a ausência de leis locais de repressão à capoeira pode revelar o fato de que essa prática, nesses locais, não chegava a representar um problema tão grande, a ponto de tornar-se necessária uma lei específica para reprimi-la, como ocorreu no Rio de Janeiro.
A despeito da carência desse tipo de fonte, esta pesquisa utilizará como fonte histórica primordial, não única, contudo, jornais que circularam no Maranhão, no período: Pacotilha e Diário do Maranhão, dois dos que mais referências trazem à prática da capoeira no Estado; e ainda: O novo Brazil, Publicador Maranhense e O Paiz.
No decorrer da análise, levam-se também em conta os estudos mais adiantados sobre a capoeira no Rio de Janeiro e na Bahia, no mesmo período. Tais estudos serviram como parâmetro de comparação no sentido de compreender melhor e tentar completar, a partir da observação das semelhanças e diferenças, as lacunas da pesquisa sobre a capoeira no Maranhão. Resta observar que não há qualquer pesquisa acadêmica relevante sobre a capoeira do Maranhão no século XIX.
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A imprensa escrita tem sido, nos últimos anos, uma das mais valiosas fontes de pesquisa para se escrever a História da capoeira em séculos passados. Como aponta o pesquisador Frederico José de Abreu, ao se referir ao caso da capoeira baiana,
[...] com relação à imprensa, ressalva-se que felizmente dia após dia novas notícias sobre a capoeira vão sendo descobertas, deixando de ser “alguma exceção” para se constituir, hoje, na principal fonte de informações para o estudo da capoeira no século XIX na Bahia.7 (grifo nosso)
O caso da capoeira maranhense parece se enquadrar nesse modelo. Folheando alguns dos principais jornais que circulavam no Estado, no período apontado, encontram-se, mesmo que de forma esparsa, notícias que fazem alguma referência, direta ou indireta, à “capoeiragem”, “capoeira”, ou aos “capoeiras”, ou mesmo a termos identificados como característicos dessa arte, como alguns de seus movimentos, a rasteira e a cabeçada, por exemplo.
De um modo geral, são bem poucas as fontes históricas disponíveis. Essa carência de registros, contudo, não deve ser vista com estranhamento, pois, como aponta Carlo Ginzburg:
[...] a escassez de testemunhos sobre o comportamento e as atitudes das classes subalternas do passado é com certeza o primeiro - mas não o único - obstáculo contra o qual as pesquisas históricas do gênero se chocam.8
A capoeira, como prática oriunda das “classes subalternas”, não foge a essa regra. Às vezes, no caso da capoeira no Maranhão, não se encontra, em anos inteiros, sequer uma referência nos jornais. Diante desse silêncio das fontes, poder-se-ia supor que a prática havia desaparecido, o que seria, contudo, ledo engano, pois, da falta de referências escritas ou de sua presença limitada, não se pode deduzir a sua inexistência.
Em muitos casos, muitos conflitos - e a capoeira, nesse período, está indissociavelmente ligada a conflitos, brigas de rua, tumultos, atos esses que, muitas vezes, desembocam em lesão corporal, assassinatos, etc. - acabam não deixando rastros, indícios, quaisquer pistas de que um dia ocorreram.
Apesar disso, muito do que se tem registrado acerca da capoeira neste período está publicado, além de em ocorrências policiais, em notas de jornais, em colunas que tratam de escaramuças do dia a dia, etc. Trata-se, em sua maioria, de reclamações, súplicas, pedidos de providências recheados de achincalhes, redigidos na imprensa e direcionados às mais diversas autoridades: delegados de polícia, intendentes, governadores, etc.
Essas notas, aparentemente insignificantes, dizem, na verdade, muita coisa. Não são simples pedidos de socorro de pessoas “de bem” cobrando das autoridades que façam cumprir a lei e mantenham a ordem pública; trata-se, na verdade, de “percepções do social”, de “representações” construídas sobre a prática da capoeira da época.9 Importa frisar que essas representações, como afirma ainda Chartier,
[...] não são de forma alguma discursos neutros, produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outras, por elas menosprezadas, a legitimar um projeto reformador, ou a justificar, para os próprios indivíduos, suas escolhas e condutas.10
Tais representações são retrato de um tempo, de seus conceitos, preconceitos, valores morais, culturais. E são, também, um registro daquela sociedade, escrito no calor da hora; um registro, dentre outras coisas, do que uma parcela daquela sociedade - letrada e de melhores condições socioeconômicas - julgava digno ou condenável e, no último caso, legítimo de repressão.
Tais registros, mesmo que profundamente “contaminados” pela parcialidade, não deixam de ser importantes. Como afirma ainda Ginzburg: “O fato de uma fonte não ser ‘objetiva’ (mas nem mesmo um inventário é objetivo) não significa que seja inutilizável. Uma crônica hostil pode fornecer testemunhos preciosos [...]”.11
Desse modo, a partir desses parcos registros notadamente “hostis” e não “objetivos” que ficaram para a posteridade, tentar-se-á compreender a capoeira no período.
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Décadas antes de ser enquadrada como prática criminosa, a capoeira já preocupava as autoridades e era assídua nas seções policiais dos jornais. Com a aproximação do fim do século, em meio a uma conjuntura conturbada que envolvia os anos finais da monarquia, a abolição da escravidão e os imensos problemas decorrentes de uma sociedade que se transformava de escravocrata em livre sem modificar suas estruturas econômicas, a capoeiragem assombrava a população.
A partir das pesquisas que existem até o momento, percebe-se que o epicentro da capoeiragem no Brasil, no século XIX, era, sem dúvida, o Rio de Janeiro.12 Todavia, como apontam diversos estudos, sua prática não se restringia à Corte.13 A capoeiragem estava presente nos mais diversos pontos do Brasil, como São Paulo, Pará, Pernambuco, Bahia, assim como no Maranhão, dentre outros.
Traçando um paralelo, a partir do levantamento feito para esta pesquisa nos jornais que circulavam no Maranhão, pode-se afirmar que, nos anos que antecedem a edição do Código Penal de 1890, a capoeiragem nessa então província não era tão comum quanto no Rio de Janeiro, nem causava tantos problemas. Contudo, não era uma prática desconhecida, muito menos tolerada.
Os periódicos estudados registram diversos episódios envolvendo turbulentos “capoeiras” que cruzavam a área urbana da cidade de São Luís, envolvidos em confusões pelas ruas, em tavernas e festas. Eram marinheiros, moleques, valentões, heroes, como eram chamados, então, pela imprensa local, os “fora da lei”, que, vez por outra, figuravam nas páginas dos jornais.
O primeiro registro a ser analisado veio à tona pela tradição oral. Em entrevista ao autor deste artigo, o juiz federal Alberto Tavares Vieira da Silva, antigo desportista e personagem relacionado com a história da capoeira no Maranhão, afirmou que seu pai relatava a presença de uma “Canhoneira da Marinha de Guerra do Brasil, chamada Lamego”, estacionada em São Luís no fim do século XIX, e que, ainda segundo ele, dentre seus tripulantes, também chamados “lamegos”, havia muitos capoeiras.14
A pista apontada pelo magistrado foi o ponto de partida para trazer à tona, ao se buscar nos jornais da época pela referida canhoneira e seus tripulantes, diversos personagens envolvidos com capoeiragem.
As canhoneiras eram embarcações de guerra, de pequeno e médio porte, da Marinha. A canhoneira Lamego foi construída no Rio de Janeiro e lançada ao mar pela primeira vez no ano de 1869.15 A partir de duas pequenas notas da imprensa da época, constatou-se que ela ficou estacionada no Maranhão de 1879 a 1887.16
Esses oito anos foram suficientes para os tripulantes da canhoneira Lamego não passarem despercebidos em São Luís e se tornarem personagens recorrentes das páginas da imprensa local. Vários periódicos registraram, nas seções policiais, casos de “agressões”, “espancamentos”, “distúrbios”, “desordens”, etc., promovidos por eles, em diversos pontos da área urbana da cidade.
Em alguns desses episódios registrados, há referência direta à presença de capoeiras entre os marinheiros, como no relato a seguir, publicado pelo jornal Pacotilha de 05 de setembro de 1883:
Soldados que patrulhavam a rua 28 de Julho, no canto da rua Direita intimaram uns incorrigíveis trovadores que não continuassem quebrando o sossego público com infernal gritaria á horas mortas da noite. Dentre os tipos um, que é praça de bordo da canhoneira “Lamego”, perguntou-lhe se queria ceiar ferro (navalha). Os mantenedores da segurança pública prendendo o herói à ordem do exm. sr. dr. Chefe de polícia tornaram o espetáculo mais ridículo, pois a praça naval meteu-se em brios e, executando dificílimas posições de capoeiragem tomou o boné a um, não obstante estarem de rifles desembainhados. Os soldados avançavam, porém o homem do “Lamego” punha-se em guarda e atirando também o seu golpe, fazia a patrulha recuar vergonhosamente. Já distante do lugar da intimação, umas trinta braças e a pedido não só dos soldados que nessa ocasião davam as mais evidentes provas de heroísmo, mas também de muitos espectadores foi que o valentão com o mais solene desprezo entregou-lhe o boné, arrojando-o ao chão, e retirou-se provavelmente com o firme proposito de adiante dar igual lição á tão heroicos soldados.17 (grifos no original)
Tem-se aqui um caso em que um destemido capoeira sozinho, desobedece, enfrenta e faz recuar toda uma guarnição de soldados de “rifles desembainhados”. Além disso, para maior vergonha destes últimos, o capoeira da Lamego se retira após lançar ao chão o “boné” do soldado e não é sequer detido. Um fato dessa envergadura certamente ficou gravado, não apenas nos jornais, mas na memória dos “muitos espectadores” que devem ter se encarregado de divulgar o acontecido, perpetuando a fama dos tripulantes da canhoneira Lamego para a posteridade.
Ademais, somando-se à referência direta ao fato de o marinheiro executar “dificílimas posições de capoeiragem”, a presença da navalha, o símbolo da capoeiragem na segunda metade do século XIX, segundo Soares,18 não deixa margem para qualquer dúvida. Além disso, no Maranhão, dos incidentes levantados envolvendo capoeiras, desordeiros e valentões, nota-se que a navalha era uma arma muito frequente.
Contudo, as peripécias dos tripulantes da canhoneira Lamego não se limitaram a esse episódio; pelo contrário, desenvolveram-se ao longo dos vários anos em que estiveram na cidade. Em 1882, por exemplo, pelas páginas de o Publicador Maranhense, o comandante da canhoneira Lamego era informado de que o marinheiro Florêncio José encontrava-se “preso, por ter ido, armado de uma navalha, e provocando distúrbios desafiar uma patrulha o que já não é a primeira vez que acontece”.19
É importante observar, que os dois fatos narrados se assemelham e têm em comum o mesmo modus operandi: o ultraje aos “mantenedores da ordem”, que, também nesse caso, resultou, possivelmente, em algum tipo de luta - haja vista que o marinheiro foi preso -, e o uso da navalha. Além disso, não se pode descartar a possibilidade de ter sido o marinheiro Florêncio José o protagonista dos dois embates com a polícia, pois, como afirma a nota, tratava-se de um reincidente.
Por sua vez, apesar da falta de referência direta à capoeiragem nesse caso, deve-se destacar que muitos incidentes como esse têm em comum o que Pires chama de “cultura da capoeiragem”.20 Trata-se de características presentes em meio ao universo dos capoeiras: o desafio à ordem, o envolvimento em “distúrbios”; as armas utilizadas, como a navalha, faca e o cacete; os ambientes frequentados, como tavernas, “chinfrins”, etc.; os movimentos de corpo, golpes característicos, como a cabeçada ou a execução de “exercícios de agilidade”. Tudo isso compõe o universo da “cultura da capoeiragem”, sendo indícios de sua presença.
A conduta dos tripulantes da canhoneira Lamego, por outro lado, ao contrário do que poderia parecer, não era nada incomum, em se tratando dos homens do mar. Como aponta Soares,
[...] desde muito, marinheiros eram tidos como notórios arruaceiros e fator de desordem nas cidades costeiras. Acostumados a um regime de extrema violência a bordo, estavam calejados para enfrentar a truculência cotidiana da Polícia quando desembarcavam de folga. A capoeira deveria ser um instrumento eficiente para lidar com magotes policiais que circulavam pela cidade à noite.21
Consoante ao que aponta o historiador nessa observação, nota-se, nos diversos incidentes envolvendo os tripulantes da Lamego, que os marinheiros estavam de folga, divertindo-se pela cidade. Nesse ínterim, muitas vezes se envolveram em confrontos físicos com a polícia, regados a golpes de capoeira.
Essa assertiva pode ser confirmada a partir de uma reclamação publicada pelo jornal Pacotilha em 22 outubro de 1886. Queixavam-se, alguns moradores, de “um grande chinfrim que florescia ontem às dez e meia da noite na rua da Calçada, [no qual] desenvolveu-se um formidável “rôlo” que terminou por pancadaria grossa e insultos a valer [...]”.
A nota apontava como autores
[...] do “rôlo” cinco mulheres de vida livre, que hoje de manhã deram entrada triunfal no ameno palacete do largo dos Amores, e alguns praças da canhoneira lamego, que após o “rôlo”, retiraram-se armados de cacete, passando formados e de braços com as damas pela frente da guarda que antes recusara-se a contê-los. Parece que foram propositalmente afrontá-la.22 (grifos nossos)
Um fato curioso, presente nos registros, é que, diante de tantos confrontos, desafios e brigas, já havia, ao que parece, uma espécie de rixa entre os “lamegos” e os “mantenedores da ordem”. Isso fica claro no trecho citado, quando o autor afirma que, ao se retirarem, os “lamegos” passaram “de braços com as damas pela frente da guarda”, o que lhe causou a impressão de que tinham o propósito de afrontá-la.
As diversas evidências indicam ainda que, diante da presença de capoeiras entre os “lamegos” e de seu envolvimento em inúmeros conflitos, a imagem que se tinha a respeito deles à época, ou pelo menos a imagem que os periódicos difundiram a seu respeito, era a de que os “lamegos” eram capoeiras.
Isso é o que se pode depreender, por exemplo, de uma nota publicada no dia 15 de outubro de 1883, pelo jornal Pacotilha, segundo a qual “um soldado de polícia encontrando ontem, lá pela rua da Viração, um marinheiro da canhoneira “Lamego”, entendeu que devia de entrar em exercícios de capoeiragem. O marinheiro porém, entendeu o contrário. Não quis brigar”23
O que levaria um soldado a pensar que devia “entrar em exercícios de capoeiragem”, ou, em outras palavras, lutar capoeira, ao avistar um “lamego”? Talvez, esse soldado, em particular, reconhecesse, de algum incidente anterior, o marinheiro em questão como capoeira, daí desafiá-lo para uma luta de capoeiragem. Ou também é possível que, por algum motivo desconhecido, talvez a fama de capoeira dos “lamegos”, ele associara a imagem desses marinheiros à de capoeiras, já que a nota não indica nenhuma animosidade em particular entre os dois. Do mesmo modo, não seria também o soldado um capoeira, haja vista que desafiara o “lamego” entrando em “exercícios de capoeiragem”? Essas são algumas conjecturas possíveis diante da limitação das informações. A nota conclui afirmando que um outro “soldado do 5º” apareceu e satisfez a vontade de briga do policial, dando-lhe “uma pancadaria boa”.
Dos diversos incidentes registrados nos jornais sobre os marinheiros da Lamego, é importante destacar, ainda, várias notas,24 algumas detalhadas, publicadas a respeito de um processo judicial relativo ao homicídio do marinheiro Antonio Custódio Alves, vitimado em uma grande confusão “na rua da Madre Deus”, em 11 de julho de 1886. Contudo, o processo, que enriqueceria certamente a pesquisa, não foi encontrado até o momento.
Por outro lado, o caso dos marinheiros da canhoneira Lamego já mencionado, chama a atenção para outro aspecto, que diz respeito à origem dos capoeiras que circulavam no Maranhão. Levando-se em conta que a embarcação era originária do Rio de Janeiro, há uma grande possibilidade de que seus tripulantes fossem da antiga capital federal. Não se pode descartar, contudo, a possibilidade de que os capoeiras da Lamego tivessem outra origem, já que, à guarnição inicial, vinda do Rio de Janeiro, poderiam ter se juntado outros marinheiros, de outros portos por onde a embarcação teria passado, incluindo marinheiros de São Luís.
Os conflitos envolvendo os “lamegos”, muito além de serem meros registros de capoeiragem no Maranhão do fim do século XIX, podem ser vistos, também, como indícios da movimentação da capoeira pelo Brasil,25 facilitada, nesse caso, pelo trabalho itinerante dos marinheiros, além de revelar o intercâmbio das “várias capoeiras” existentes no país.26
Note-se que a canhoneira Lamego saiu originariamente do Rio de Janeiro, esteve certo tempo em Belém do Pará,27 estacionou, posteriormente, em São Luís e, dessa capital, partiu para Recife,28 tendo percorrido áreas reconhecidamente importantes como focos de capoeiragem no período. Desse modo, a passagem atribulada dos marinheiros da Lamego por São Luís justifique, talvez, uma pesquisa específica, o que não é o caso deste trabalho.
Por outro lado, além dos homens do mar, outros grupos compunham essa turba de desordeiros/capoeiras que circulava pelas ruas estreitas da São Luís do fim do século XIX, causando transtornos diversos e inúmeras reclamações nos jornais. Dentre eles estavam os “moleques”, que transitavam por toda a cidade e eram personagens recorrentes da imprensa.
Segundo Abreu, a palavra moleque
[...] na sua origem, talvez fosse pronunciada com a carga pesada do preconceito racial. Moleque era o “negrinho”. Por extensão moleque também poderia ser seus “vizinhos” sociais: os quase negros, os quase brancos, que devido à pobre condição econômica eram considerados como os deserdados da sorte. Poderiam ser os filhos das putas, crianças abandonadas, meninos criados soltos. Gente das camadas populares.29
Não seria possível estipular a quantidade de moleques que circulavam em correrias, arruaças, quebrando vidraças de casas, empinando pipas, jogando pedra uns nos outros, incomodando o “sossego público” das ruas da cidade de São Luís; todavia, levando-se em conta a quantidade de reclamações e notas de pedidos de providência publicados nos jornais contra eles, pode-se supor que seu número era considerável.
Para se ter uma ideia de sua presença no cotidiano da cidade, segundo nota publicada no Diário do Maranhão: “A toda hora do dia é rara a rua onde não se encontra maltas de vadios, meninos e moleques, na maior gritaria, sem que a polícia contenha ou evite tão escandalosa prova de retrogradação moral”.30
Esses “moleques”, dentre outros lugares, eram vistos à frente de procissões pelas ruas da cidade, de modo semelhante ao dos capoeiras pernambucanos que percorriam as ruas de Recife à frente de bandas de música, soltando contra o ar golpes de capoeira. Como aponta Marques, “A prática da capoeira à frente das bandas militares ou civis seria uma das características marcantes da capoeira no Recife”.31 No mesmo sentido, ao se referir ao Rio de Janeiro do século XIX, Vieira e Assunção afirmam que os capoeiras:
Ganhavam maior visibilidade, porém, durante as festas públicas, ou seja, as procissões, as paradas militares e o carnaval. Nestas ocasiões se agrupavam à frente da procissão, dos batalhões ou dos préstitos, e, segundo os seus detratores, promoviam “distúrbios” ou “correrias”, que resultavam frequentemente no ferimento de terceiros.32
Ao que parece, a presença de capoeiras à frente desses eventos era algo comum em diversos lugares do Brasil. No Maranhão, ainda que não haja uma referência direta à presença de capoeiras nas procissões, um registro feito pelo Diário do Maranhão, ao festejar o desaparecimento dos “moleques” nesses eventos, deixa certa desconfiança no ar. Não seriam capoeiras esses moleques?
Segundo uma pequena nota publicada no referido jornal, em 10 de março de 1874: “Não sabemos quais as medidas tomadas pela polícia para evitar a algazarra dos moleques adiante das procissões, o que é certo é que nem na dos passos, nem nesta eles apareceram, e não deixaram saudades”.33
De modo semelhante ao que ocorria em Pernambuco ou no Rio de Janeiro, haveria capoeiras entre os moleques que acompanhavam as procissões em São Luís? Embora isso não se possa deduzir a partir da nota citada, outra pequenina nota do jornal Pacotilha denunciava a presença de capoeiras entre os moleques que tanto perturbavam o sossego da cidade. Trata-se de uma reclamação e de um pedido de providências por parte da polícia. A nota diz que “é praxe reunirem todas as noites na rua do Sol, canto com a rua de Sant’Aninha uns molecotes que aí fazem exercício de capoeiragem impedindo, por vezes, o livre trânsito”.34
É importante observar que, como na nota referente ao incidente com o marinheiro da canhoneira Lamego, percebe-se, também, a ausência de qualquer estranhamento para com a prática da capoeira. Ela é abordada como se fora algo corriqueiro, vez que denuncia-se a presença dos moleques em “exercício de capoeiragem” como uma prática habitual, de “praxe” naquele trecho. Os “molecotes”, grife-se, “todas as noites” se reuniam para fazer exercícios de capoeiragem. Não restam dúvidas de que se tratava de uma prática recorrente. Percebe-se, ainda, pela pequena nota, que eram vários os “moleques” que participavam dos “exercícios de capoeiragem”, pois chegavam, “por vezes”, ao ponto de “impedir o livre trânsito”. Seria a movimentação daqueles “moleques” uma espécie de roda de capoeira primitiva? Ou eles apenas exercitavam-se em busca de perícia para os seus movimentos?
Longe de qualquer resposta que leve a uma comparação anacrônica entre aquela capoeira praticada no século XIX e a dos dias atuais, o que se pode levantar como hipótese é que, como circulavam por toda a cidade, não seriam aqueles “molecotes” da “rua do Sol”, ou alguns deles pelo menos, os mesmos que corriam à frente das procissões em estripulias que tanto incomodavam? Embora seja difícil confirmar, não seria, de todo modo, improvável.
Os “moleques”, “molecotes”, como diversos outros grupos de negros, livres ou escravos, faziam das ruas seus espaços de lazer, lugares de brigas, “correrias” e também local da realização de pequenos serviços, “bicos”, de onde pudessem tirar o seu sustento e, no caso dos escravos, também o sustento de seus senhores.
Como afirma Josenildo Pereira, ao se referir ao cotidiano dos escravos:
No século XIX, na cidade de São Luís, as ruas, as esquinas e os becos eram lugares para muitas coisas. Os trabalhadores escravos os constituíam como território para as suas experiências de trabalho, intriga, vingança, mas também para viverem a paixão e o lazer. Com esse propósito reuniam-se em lugares que achavam apropriados para tocarem tambor e dançarem reproduzindo folguedos que trouxeram de sua terra nativa: a África. Do ponto de vista das autoridades públicas municipais e de donos de escravos, esses encontros era uma “algazarra infernal” que perturbava o sossego público.35
Essa concepção, sustentada pelas “autoridades públicas municipais” e pelos “donos de escravos”, como apontado, era compartilhada por todo um setor da sociedade, detentor de melhores condições socio-econômicas, que lia os jornais e escrevia neles.
Pelo que se depreende da observação de Pereira, esta “representação” negativa e preconceituosa exposta nos periódicos não era restrita à capoeira, mas ao conjunto das manifestações de origem africana que se desenvolviam na cidade. Como afirma Pires: “a repressão contra os trabalhadores escravos e livres esteve voltada para o controle de suas práticas culturais”.36
Consoante isso, em 1890, lia-se, no jornal Pacotilha do dia 09 de julho, uma denúncia de que, na rua da Saúde, havia um conhecido cortiço chamado Gruta de Camões, habitado por gente “desordeira, perturbadora do sossego público, entregue à vagabundagem”, gente que não podia ver “com bons olhos os agentes da força pública”. Por lá, ainda segundo o jornal, em um dia de “pagodeira”, surgiu um conflito que trouxe à tona às páginas dos jornais, um capoeira chamado Vicente, o qual, como muitos outros que aparecem nos jornais do período que analisamos, não era um vadio, como sugere a denúncia, tinha ocupação: era militar, praça da armada, e sua qualificação era corneteiro. Conta ainda o referido jornal que
[...] ontem à noite reinava um chinfrim marusco na Gruta, formado por praças da armada e as beldades do cortiço, a pagodeira estava no auge quando uma das bailarinas correndo da parte da rua disse assustada: “Ali no canto tem dois poliça! Se não se botar eles daí pra fora tudo vai preso.37
Ao apelo da “bailarina”, acudiu o “herói” capoeira, Vicente, que saiu em defesa dos que se divertiam, afugentando os “poliça” com uma navalha. Como prossegue o relato do jornal,
Vicente, que dizem ser corneteiro da Cabedello, encheu-se de entusiasmo, e de navalha em punho atirou-se aos soldados numa capoeiragem valente. O ferro de Vicente escalou a farda de um soldado, o que foi o bastante para que tanto ele como seu companheiro de ronda descem sebo às canelas, num carreirão doido e debaixo de uma vaia formidável do mulherio do cortiço.38
Quando, mais tarde, “uma força da policia apareceu á rua da Saúde” tudo já estava em paz, “pois Vicente e os companheiros haviam mudado o acampamento para uma outra festança à rua das Creoulas”, informa ainda a nota.
Além da referência direta a “capoeiragem”, utilizada por Vicente para afugentar os policiais, é importante notar o ambiente da contenda. Não era por acaso que muitas delas ocorriam em cortiços, tavernas, festanças. Conforme explica Pires, ao se referir aos capoeiras do século XIX: eles “reuniam-se geralmente em tavernas, de suas respectivas freguesias, além de igrejas, praças, festividades públicas variadas e em seus lugares de treinamento.”39 Alguns outros incidentes registrados em locais desse tipo, em São Luís, envolvendo capoeiras, indicam que essa característica da capoeiragem do século XIX era comum também à capoeira do Maranhão.
Alguns anos depois, o Pacotilha denunciava que outro militar da Marinha causava transtornos “as famílias e burgueses pacatas da rua da Paz”, no centro de São Luís. Tratava-se do “bravo marinheiro de 1ª classe do transporte de Guerra ‘Carlos Gomes’, Raimundo Itaqui do Norte, que perdera a sua licença para estar em terra ‘quando fazia capoeiragem na rua da Paz’”.40 Pelo relato do periódico, não é possível saber-se, com precisão, se o naval estava de passagem pela cidade ou era nativo. Consta, ainda, no relato, que a polícia estava nas imediações, mas solicitada a prestar auxílio, “se recusou, talvez por se tratar de um bravo marinheiro”. Seria ele já conhecido da polícia? Teriam ocorrido outros incidentes com o capoeira Raimundo Itaqui? A nota não permite maiores conclusões.
Apesar do grande número de praças da armada entre os capoeiras do Maranhão, havia também entre eles diversos outros personagens “fora da lei”, alguns dos quais, como visto, os jornais chamavam de forma jocosa de heroes, geralmente turbulentos, valentões já conhecidos pela sociedade ou pelas autoridades.
Este, por exemplo, foi o caso de Meio-Kilo, um personagem bastante conhecido da polícia, morador do “bairro das Barraquinhas”, nas proximidades de onde fica hoje o Mercado Grande de São Luís, no centro da cidade. Meio-Kilo, que, por certo, devido à sua compleição raquítica, recebera essa alcunha nada garbosa, era conhecido como um “célebre turbulento” que comumente andava à frente de um grupo de desordeiros. Certo dia, sem motivo aparente,
[...] às nove horas da noite, no soturno largo da Fonte das Pedras, sem mais cerimônia, apareceu à frente de um grupo de desordeiros e aplicou o cacete que trazia no lombo de Izidoro e com tal gana que o lançou por terra. Aos gritos da vítima o dono de uma quitanda vizinha veio em seu auxílio, mas o Meio-kilo, desenvolvendo capoeiragem e arrotando valentia, atirou-se ao quitandeiro que conseguiu a custo tomar o cacete.41
Esse caso, em particular, expõe um capoeira que, diferentemente dos acima citados, não age sozinho, mas à frente de “um grupo de desordeiros”, a realizar distúrbios e correrias pela cidade, armados de cacetes, talvez navalhas, facas, canivetes, criando problemas, resolvendo intrigas a golpes de capoeira, sendo preso, solto e reincidindo.
Partindo para algumas conjecturas: estando Meio-Kilo à frente de um “grupo de desordeiros”, não haveria, entre eles, outros capoeiras? Como não imaginar que Meio-Kilo, nas horas vagas de sua vida vadia, não ensinava os passos da capoeiragem para os seus companheiros? E, indo um pouco além, poder-se-ia perguntar: este “grupo de desordeiros” não seria uma malta de capoeiras?42 Essas possibilidades, apesar de meras conjecturas, não podem ser completamente descartadas.
De volta ao mencionado incidente, vê-se que, apesar de ser capoeira afamado, um “célebre turbulento”, “herói bastante conhecido da polícia”, Meio-Kilo não deveria ser dos mais habilidosos capoeiras da cidade, pois deixou-se dominar pelo dono da quitanda e, ao perceber que não levaria vantagem desarmado, “deu sebo ás canelas, sendo perseguido na fuga” pelo comerciante. O fato narrado pela pequena nota do jornal concluiu-se com a prisão do protagonista.
Os jornais apontam, ainda, a existência de diversos outros heroes como Gil Braz, “um valentão distinto em exercícios de capoeiragem” que “aboletava-se à rua Direita”,43 ou Luiz Relâmpago, um “ex mantenedor da ordem pública” que, após ser expulso da polícia, se envolvia frequentemente em desordens. De acordo com o Pacotilha, Relâmpago bebia em uma quitanda na Rampa do Comércio quando “travou razões” com um rapazote à rua da Calçada e, depois de fazer “um escarcéu enorme”, pulou “para a rua desenvolvendo um saracoteado de capoeira [...]”.44A briga dos dois personagens só terminou com a chegada da polícia, que os fez fugir em disparada.
Tomando-se como referência os casos analisados, percebe-se, de maneira geral, que se trata de incidentes envolvendo pessoas em situações comuns, do dia a dia. A capoeiragem caracterizava-se, naquele momento, como uma prática do ambiente das ruas e era retratada nas páginas policiais da imprensa, onde figuraria ainda por muitos anos.
Contudo, neste mesmo contexto, pelas mãos de um literato pouco conhecido nos dias de hoje, a capoeira subiu aos palcos do teatro, em São Luís e em Recife, entre 1899 e 1900.45 O autor da peça era Américo Azevedo, irmão mais novo e menos conhecido de Artur e Aluízio Azevedo. Os jornais do fim do século XIX o apontam como funcionário da Alfândega e “festejado comediógrapho” de São Luís.
A peça, Os milagres de São José de Riba-mar, foi escrita em 1889 e representada, na capital maranhense, nos teatros “Provisório, ao Largo da estação” e “São Luís”, hoje teatro Artur Azevedo. Percebe-se, pelos jornais, que houve ampla divulgação do espetáculo.46
Trata-se de uma “comédia de costumes, em 3 actos e 4 quadros”. Ambientada em São Luís e São José de Ribamar, hoje cidade vizinha a São Luís, cujo enredo gira em torno de um casal: Romão, um homem bruto que espanca constantemente sua mulher, Maria, uma deficiente física, que o sustenta com o dinheiro de esmolas. Além desses, outros personagens de destaque são seus vizinhos: Gertrudes e Anthero; Luiza, irmã de Gertrudes; e Manezinho, um capoeira carioca que corteja Luiza e promete casar-se em breve com ela. Embora a moral da história gire em torno de Romão, que, ao final, é castigado pelo santo, ficando cego, enquanto Maria é curada, Manezinho direciona toda a trama. Desde o início ele se declara capoeira, ao afirmar que “não há filho do Rio que não entenda um pouco de capoeiragem”. Algumas páginas adiante, declara literalmente: “Ah! Eu cá sou carioca da gema e capoeira que entende do ofício. Duvido que haja alguém que eu não estire no chão com uma rasteira. Sujeito a quem eu passar a perna, esse pode jurar que fica de papo para o ar”.47 Além disso, em diversas outras cenas, Manezinho menciona movimentos da capoeiragem como cabeçadas, rasteiras e pontapés. Todavia, a presença da capoeira não é apenas declarada verbalmente pelo personagem. Na cena VI, Manezinho, ao narrar sua própria ação, “faz uns passos de capoeiragem, atirando sem querer o soldado ao chão.”48
Provavelmente, a peça de Américo Azevedo, se não foi a primeira, foi uma das primeiras exibições da capoeira em forma de espetáculo de que se tem notícia. Note-se, ainda, que o capoeira Manezinho não é o vilão da estória. Pelo contrário, ele figura como antagonista de Romão e, em determinados momentos da leitura do texto, tem-se a sensação de que Manezinho vai dar-lhe uma surra utilizando-se de sua capoeiragem. Todavia, o autor deixa o castigo final de Romão para o santo. Outro detalhe que não passa despercebido é a caracterização do capoeira Manezinho como carioca, o que certamente se deve à fama que, à época, a capoeira tinha no Rio de Janeiro.
A peça teve mais de doze representações na capital maranhense e, após a morte precoce de Américo Azevedo, aos 40 anos, em 1900, foi encenada novamente no Teatro São Luís. O capoeira Manezinho foi representado pelo ator J. Braga, sobre quem não há mais informações.
Por outro lado, saindo do mundo das artes, não se encontrou até o momento, nos jornais pesquisados, qualquer situação em que os capoeiras despontem em ações de natureza eminentemente política, ou que tenham envolvimento em movimentos políticos, apesar de os anos finais do século XIX terem sido, inclusive no Maranhão, perpassados de intensa agitação. Essa observação é necessária pois, no Rio de Janeiro, no mesmo período, houve uma intensa participação política de capoeiras em diversos âmbitos. Para se ter uma ideia, na segunda metade do século XIX, segundo Pires:
Os capoeiras aparecem na documentação tanto literária, quanto policial com uma série de identidades relacionadas às práticas políticas do período. Eles exerceram funções de guarda-costas, cabos eleitorais e capadócios chegando a ser comparados aos boxers na Inglaterra, que teriam exercido tais funções políticas.49
A implantação da República, no Maranhão, ou a adesão dessa província à República, em conformidade com o que ocorreu nacionalmente, não trouxe grandes transformações no âmbito econômico e mesmo no político. Segundo diversos pesquisadores, as mudanças foram bastante tímidas. O historiador José Murilo de Carvalho, ao se referir a uma perspectiva mais ampla, afirma que “A República, ou os vitoriosos da República, fizeram muito pouco em termos de expansão de direitos civis e políticos [...] Pode-se dizer que houve até um retrocesso no que se refere a direitos sociais”.50
De modo semelhante ao ocorrido no Rio de Janeiro e em São Paulo, Godóis, ao se referir aos republicanos no Maranhão, afirma que todos eles, “a exceção do Dr. Paula Duarte que havia meses se declarado republicano, todos os outros seus membros eram monarquistas até a data da revolução”,51 o que revela uma certa continuidade na estrutura política e econômica do Estado, ou seja, os setores que detinham o poder antes da República continuaram com as rédeas do Estado em suas mãos.
Todavia, isso não quer dizer que não tenha havido conflitos no processo que levou à implantação da República e à adesão de algumas províncias. Ferreira, em seu artigo sobre o advento da República no Maranhão, ao tratar de algumas conferências republicanas em São Luís, afirma que “os republicanos foram apedrejados pelos libertos de 13 de maio (denominados capoeiras) insuflados pelos monarquistas”.52 Essa referência aos “libertos de 13 de maio” leva a uma alusão direta à atuação da Guarda Negra na província do Maranhão. Ratificando essa perspectiva, Petrônio Domingues,53 ao tratar da expansão do raio de atuação dessa organização, composta em grande parte por libertos, registra a sua presença nessa província; todavia, a carência de estudos sobre o tema impossibilita maiores conjecturas.
Tudo indica que, no Maranhão, do mesmo modo que em diversas províncias do Brasil, ocorreu um processo de intensa disputa entre monarquistas e republicanos que, além de figurar nas páginas dos jornais, refletiu-se nas ruas, em confrontos abertos, como o apontado.
Flávio Gomes, ao discutir a participação política dos libertos na disputa entre republicanos e monarquistas, demonstra que, longe de uma apatia diante dos acontecimentos, “Muitos ex-escravos perceberam rapidamente que os seus ex-senhores trocaram suas roupas de fazendeiro por fardas republicanas. O discurso da indenização muitas vezes cheirava a reescravização”.54 Daí a tomada de partido por parte dos libertos, em diversos lugares do país, como no incidente ocorrido no Maranhão. Tal posicionamento político se concretizou em ações diretas contra os republicanos que, naquele contexto, personificavam, para muitos libertos, os inimigos da Monarquia que havia abolido a escravidão.
No incidente citado anteriormente por Ferreira,55 nota-se a identificação dos “libertos do 13 de maio” como “capoeiras”. A referência, contudo, dá margem a uma dupla interpretação, pois, não é possível depreender com precisão se houve, de fato, a participação de capoeiras no incidente tratado ou se, por conta da intensa participação de capoeiras em âmbito nacional na dissolução de comícios republicanos - vide Rio de Janeiro e Bahia -, o autor procedeu à identificação dos libertos como sendo capoeiras. Ao consultar os jornais utilizados como referência pelo autor, apesar do registro dos protestos, não foi encontrada qualquer referência relativa à participação de capoeiras no incidente.56
Meirelles, por sua vez, faz referência a um conflito ocorrido no Maranhão, após a chegada da notícia da implantação da República. Segundo ele, com a notícia de que a monarquia havia acabado, “negros recém libertados”, temerosos de que o novo regime trouxesse de volta a escravidão, desceram às ruas, rumo a sede do jornal republicano O Globo, “vivando a Redentora”.57 Tal incidente resultou em várias pessoas mortas e algumas gravemente feridas. De acordo com a bibliografia consultada, assim como no caso dos jornais que noticiaram o incidente, não há referência à participação de capoeiras neste episódio.58
A falta de registros, contudo, não quer dizer que não tenha havido, no Maranhão, participação de capoeiras em movimentos políticos, como os contrários à República. Não se pode esquecer que nessa província, como ocorreu no Rio de Janeiro e na Bahia,59 os “libertos do 13 de maio” tiveram uma participação política expressiva no período e, em seu meio, havia uma forte presença de capoeiras.
Esses diversos incidentes mencionados até aqui são uma demonstração cabal de que a capoeiragem figurava como prática conhecida, denunciada e recriminada no Maranhão dos últimos vinte anos do século XIX. Dos indícios apresentados, apesar de seu caráter sucinto e carregado de lacunas, é possível tirar informações importantes sobre a capoeiragem no Estado.
Longe de pretender traçar qualquer conclusão sobre o tema aqui estudado a partir das fontes utilizadas para esta pesquisa, podem-se tecer algumas considerações a serem aprofundadas em outro artigo ou pesquisa similar.
Primeiramente, é importante observar que, como os incidentes apontados ao longo do artigo, que denunciam a presença “incômoda” da capoeira ou da “cultura da capoeiragem” nas duas últimas décadas do século XIX no Maranhão, existem dezenas de outros, que, devido aos limites do artigo, não puderam ser analisados. Essa constatação pode indicar que a presença da capoeiragem foi significativa na época.
Alguns dos personagens denunciados nos jornais, por exemplo, como capoeiras em algum incidente particular, envolvem-se em vários outros casos de brigas e tumultos pela cidade; todavia, nem todas as notas que denunciam o ocorrido trazem referência à prática da capoeiragem. Como os envolvidos eram capoeiras, seria demais depreender que a capoeira estaria presente nesses episódios?
No que tange à prática da capoeira no período, não houve, no Maranhão, ao que parece, uma mudança significativa entre o período anterior e o posterior à edição do Código Penal de 1890. Não foi possível perceber qualquer tipo de mudança na abordagem feita pelos jornais sobre a capoeiragem após a entrada em vigor do referido código. Assim como não houve uma maior incidência de denúncias nos jornais a partir da criação da referida lei, muito menos se pode afirmar que sua prática desapareceu com a repressão legal. Ademais, não foram criadas leis locais visando à repressão de tal prática.
Por outro lado, consoante ao que ocorreu no Rio de Janeiro e na Bahia, dentre os diversos personagens-capoeiras que surgem nas páginas dos jornais aqui enumeradas, é notória a presença de membros dos aparatos militares,60 em particular da Marinha. Devido ao caráter sucinto das notas dos jornais e, também, à grande circulação de marinheiros pelo país, algo característico de sua profissão, não se pode ter uma precisão acerca da origem de parte dos capoeiras envolvidos nos diversos incidentes examinados neste artigo, particularmente os marinheiros.
No que tange à área de atuação dos capoeiras, é notório que os incidentes encontrados foram todos circunscritos ao perímetro urbano da cidade, que, até meados do século XX, se estendia até o Canto da Fabril. Todos os casos encontrados foram registrados nas proximidades da área portuária da cidade, no bairro da Praia Grande e adjacências.
Desmistificando a concepção da capoeira como uma prática nascida na zona rural, nas senzalas, no Quilombo dos Palmares, no mato ralo das capoeiras, muitos historiadores têm apontado, nos últimos anos, para a sua origem urbana. Como afirma Soares,
Documentos históricos brasileiros são insistentes em mostrar a capoeira como fenômeno urbano da cultura escrava. As indicações documentais mais antigas remontam ao século XVIII, quando da gênese da vida urbana na colônia.61
Note-se que os jornais cobriam fatos também ocorridos no interior do Estado, inclusive casos policiais, assim como acontecimentos de outros estados do país. Todavia não se encontrou, dentro do recorte temporal abarcado por este artigo, qualquer menção a incidentes envolvendo capoeiras na zona rural de São Luís ou no interior do Maranhão.
Do mesmo modo, como apontado por Pires em seu estudo sobre a capoeira baiana,62 no Maranhão, no período abordado, não se encontrou qualquer registro, nos jornais consultados ou em processos-crime disponibilizados no Arquivo Público do Tribunal de Justiça do Maranhão, de casos de pessoas presas pelo crime de capoeiragem. No mesmo sentido, diferentemente do que ocorreu no Rio de Janeiro, onde este autor aponta que foram editadas várias posturas municipais visando à repressão da capoeiragem, no Maranhão, conforme o caso, as leis editadas no período não fazem qualquer referência à capoeiragem.63
De modo geral, a carência de fontes é algo notório e um empecilho para se construir uma história social da capoeiragem no Maranhão. Contudo, das fontes disponíveis, a maior parte advinda de jornais que noticiavam de forma pejorativa a presença da gente “desordeira, perturbadora do sossego público, entregue à vagabundagem”, que habitava as ruas da cidade de São Luís, é possível, aos poucos, preencher diversas lacunas e conhecer um pouco mais sobre a capoeira.