Resumo: O território jongueiro de Pinheiral é conhecido em todo o Brasil pelo seu jongo e pelas atividades socioeducativas que buscam preservar e transmitir as tradições afro-brasileiras dos habitantes dessa cidade, além de trabalhar a autoestima de jovens e adultos. A memória do tempo do cativeiro na cidade de Pinheiral vem sendo construída pelas lideranças jongueiras a partir da seleção e da valorização de certos elementos, sendo utilizada como uma ferramenta para combater a exclusão social, desenvolver uma nova identidade performativa e estratégias políticas e sociais que busquem garantir os direitos políticos e o acesso a políticas de reparação. Para que isso aconteça, a escravidão é constantemente redefinida e ressemantizada, tornando-se uma fonte de orgulho para os descendentes dos escravizados. O jongo é o ponto de partida para que todas essas ações ocorram. Os jongueiros de Pinheiral conseguiram organizar um ponto de cultura no qual montaram uma estrutura que lhes permite realizar seus projetos.
Palavras-chave: JongoJongo,escravidãoescravidão,memóriamemória,ação afirmativaação afirmativa,tradiçãotradição.
Abstract: The jongo territory of Pinheiral is known throughout Brazil for its jongo and socio-educational activities that seek to preserve and transmit the Afro-Brazilian traditions of the inhabitants of the Pinheiral city, besides improving the self-esteem of young people and adults. The memory of the time of slavery in the city of Pinheiral has been built by the jongueira leaderships from the selection and valuation of certain elements, being used as a tool to combat social exclusion, to develop a new performative identity and political and social strategies that seek to guarantee political rights and access to remedial policies. For this to happen, slavery is constantly redefined and resemantized, becoming a source of pride for the descendants of the enslaved. Jongo is the starting point for all these actions to occur. The jongueiros of Pinheiral managed to organize a point of culture where they set up a structure that allows them to carry out their projects.
Keywords: Jong, slaver, memory, affirmative action, tradition.
Articles
MEMÓRIAS DO CATIVEIRO, JONGO E CIDADANIA EM PINHEIRAL
Recepção: 05 Dezembro 2017
Aprovação: 12 Março 2018
Oi gente,
Eu venho de longe
Oi, eu sou um preto velho cansado
Eu não posso andar correndo
Como vou caminhando devagar
Devagar, devagar
Como eu vou caminhando devagar1
O tema memória nunca esteve tão em voga e relacionado a tantos temas afins como memória dos negros, memória feminina, memória dos grupos marginalizados, memória da infância ou da criança, da cidade, dos trabalhadores, da família, das comunidades rurais.2 Numa sociedade de consumo, a memória entra com força avassaladora enquanto munição em confrontos e reivindicações de toda a espécie. Todavia, para conhecer melhor o campo tão minado da memória, é importante apurá-la em seus traços mais marcantes e definidores que, muitas vezes, são vulgarmente atribuídos para abrir caminho para a sua relação ou distinção com a História. Ulpiano Bezerra de Menezes,3 nesse sentido, tem um olhar mais atento às diversas versões e usos da memória pela história, que dependem, obviamente, do objeto de pesquisa, da relação temporal entre passado, presente e futuro e, sobretudo, da linha de abordagem prescrita na investigação do passado. Dito de outra maneira, “os movimentos de preservação do patrimônio cultural e de outras memórias especificas já contam com a força politica e têm reconhecimento público”, servindo, inclusive, para salientar “a emergência da consciência política” que, “recolhe, organiza e conserva indicadores empíricos preciosos para o reconhecimento de fenômenos relevantes e merecedores de análise e apreensão histórica”.4
Já para o autor francês Pierre Nora, é a percepção global que tem afligido os estudos que entrelaçam a memória e a história, mediante rupturas que instalam na memória seu fim ou, pelo menos, pretendem tal rumo, na medida em que dilui o passado no presente e não lança nenhuma perspectiva sobre o futuro.5 Contudo, a mesma resiste, não se rendendo à sua mutilação. Mundialização, democratização, massificação, midiatização, num contexto apanhado por interconexões que fragmentam, intensificam a individualização, um salto é dado abrindo margem a fissuras que, bem exploradas por determinados grupos sociais, intencionam irromper os silenciamentos e as consequências da colonização. Nas palavras do autor, no próprio interior da descolonização insurgem-se
[...] as etnias, grupos, famílias, com forte bagagem da memória e fraca bagagem da história. Fim das ideologias-memórias, como todas aquelas que asseguram a passagem do passado para o futuro, ou indicavam o que deveria reter do passado para preparar o futuro, quer se trate da reação, do progresso, ou mesmo da evolução. Ainda mais: é o modo mesmo da percepção histórica, que com a ajuda da mídia, dilatou-se prodigiosamente, substituindo uma memória voltada para a herança da sua própria intimidade pela película efêmera da atualidade.6
Levando-se em conta essas questões, o presente artigo pretende problematizar uma temática, cara e complexa ao campo do saber cientifico, relativa aos desdobramentos de práticas culturais que remontam à escravidão no Brasil: o jongo. Interessa-nos, particularmente, em não explicitá-lo em tons temporais de flagelos, impotências e essência. O caminho aqui é outro: apontar a construção de uma entre tantas memórias possíveis, ecoada em meio a contextos de descolonização, cujo canto, dança e ritual jongueiros permitem a montagem de leituras peculiares sobre o passado, bem como a compreensão das condições existenciais por parte de seus integrantes no contexto atual. Tendo isso em voga, este texto tentará compreender de que maneira o jongo tem acenado como espécie de apropriação (com as devidas filtragens) e corporificação da cultura, diante de experiências mistas, híbridas e estratégicas.7 Isso, por si só, evoca a construção de uma memória da escravidão que, em vez de inibir todas as capacidades criativas de se reinventarem no presente, permite a ampliação de um cenário que, nas disputas identitárias, recorre às suas diferenças para ter acesso a certas políticas sociais. Compreender esse processo será a nossa intenção.
Nosso interesse pelo jongo foi despertado por uma apresentação do Jongo da Serrinha8 - grupo de dança formado por moradores do morro da Serrinha, em Madureira, zona norte do Rio de Janeiro - exibida pela TV Educativa em 1993. Desde então, temos percorrido o Estado do Rio de Janeiro, visitando algumas comunidades jongueiras e participando dos seus encontros que são realizados, desde 1997, quando, pela primeira vez, fizemos contato com lideranças jongueiras de Pinheiral. Entre 2005 e 2007, acompanhamos mais de perto o jongo no território jongueiro de Pinheiral, período esse importante na história do grupo, uma vez que suas lideranças decidiram iniciar o processo de demanda por um Ponto de Cultura do Jongo na cidade, demanda que se tornou realidade no final de 2007.
Durante o trabalho de campo no local, produzimos um caderno de campo audiovisual utilizando uma câmera de vídeo. Posteriormente, esse material deu origem ao documentário Eu venho de longe, que registra a história do jongo nessa cidade, o cotidiano dos seus integrantes e o processo que deu origem ao Ponto de Cultura. O roteiro do documentário foi feito em conjunto com os jongueiros e elaborado a partir das imagens e entrevistas registradas durante o trabalho de campo, tendo por base uma simples pergunta: “se vocês fossem produzir um material que apresentasse vocês para quem não os conhecesse, o que vocês mostrariam?”. As respostas selecionaram os temas, locais, espaços, construções e pessoas que aparecem no documentário em questão. O conjunto dos elementos selecionados e elencados deram formato à memória identitária dos jongueiros. Ademais, esse conteúdo permitiu a elaboração de estratégias que valorizassem a expressão cultural do jongo e a sua ligação coletiva com o lugar em que era realizado.
O primeiro aspecto que merece ser observado é que o jongo foi erigido como manifestação de resistência. Por meio dele, os jongueiros de Pinheiral lograram expandir seus espaços ritualísticos, ganhando reconhecimento, estímulos e incentivos dos agentes políticos e dos órgãos do Estado, gerando estranhamento e novas redes de pertencimento. O som e os toques dos tambores, as cantorias, os pontos utilizando poesia cifrada, a roda montada e dançada demarcam formas objetivas e subjetivas de enfrentamentos que remontam à época das grandes fazendas coloniais de café no Sudeste brasileiro. A literatura cientifica que tem tratado do jongo nas duas últimas décadas o aborda, muitas vezes, como um tipo de “expressão desviante”,9 cuja experiência contrariava um projeto de civilidade, ocidentalizado e eurocentrado, que buscava o domínio do corpo, da fala e da mente como pressupostos fundamentais. Não faltam relatos indicando a realização de rodas de jongo em momentos e eventos permitidos pelos grandes proprietários rurais ou em momentos que extrapolavam os horários de trabalho, nos ambientes rurais dos anos oitocentos. Ainda assim, ou talvez por isso, era objeto de perseguição.
O segundo ponto que merece ser enfatizado - e que está diretamente relacionado com o item anterior - é referente ao acesso à visibilidade do jongo em virtude da sua inclusão como Patrimônio Imaterial do Brasil em 2005.10 O jongo é uma referência cultural encontrada na região Sudeste do Brasil, mais especificamente, em todo o território do Estado do Rio de Janeiro, no sul do Estado de Minas Gerais, no norte do Estado de São Paulo e no sul do Estado do Espirito Santo. No final dos anos 1990, os jongueiros dessas regiões criaram a Rede de Memória do Jongo/Caxambu, uma rede de apoio para as suas atividades culturais e políticas, cuja história e papel foram analisados em outro artigo.11 A partir de 2008, essa rede foi substituída pelo Pontão de Cultura do Jongo/ Caxambu, mostrando que a ascensão do jongo no cenário político-cultural nacional não se deu de forma linear e contínua, mas se inscreve em palcos mobilizadores de grandes disputas, inclusive internas. O Pontão de Cultura do Jongo/Caxambu é
[...] um programa desenvolvido pela Universidade Federal Fluminense, em parceria com dezesseis comunidades [sic] jongueiras do Sudeste, e o IPHAN. Enquanto proposta de articulação e fortalecimento das comunidades [sic] jongueiras, o programa procura mediar e atender necessidades e demandas das comunidades pertencentes aos “territórios jongueiros” [aspas no texto original]. Constitui-se como um campo de investigação sobre a cultura e a identidade negra e sobre a construção de um projeto coletivo de salvaguarda de um bem registrado como Patrimônio Cultural do Brasil.12
Essa proposta enfatizou o papel da representatividade afro-brasileira que, colocada no campo legítimo de reconhecimento referencial da cultura popular brasileira, alçou uma referência cultural dos remanescentes dos povos africanos de língua banto - oriundos, principalmente, da região Congo-Angola - à posição de objeto de estudo e de elemento cultural essencial para a formação de uma “cultura brasileira”, mas, acima de tudo, reconheceu esses remanescentes como sujeitos que, em meio a seus agenciamentos, foram fundamentais para os processos históricos em contextos de escravidão ocorridos no Brasil. Essa configuração nos permite identificar as motivações que fundamentaram a escolha do jongo como Patrimônio Cultural Imaterial como resultantes de um diálogo entre a Antropologia e a História. Desse diálogo, surgem estudos que interpretam a relação existente entre o “dever da memória”13 e políticas de reparação que se esforçam para assegurar, minimamente, a efetividade dos direitos humanos. Em outras palavras, o cenário pincelado pelo jongo explicita atores históricos que querem e sabem falar por si próprios não dentro de uma ótica fechada da permanência mas dentro de uma conjuntura mutante dado que
[...] em primeiro lugar, é preciso recusar a ideia predominante de tradição/tradicional, refletindo sobre essas categorias para que não adquiram um caráter essencialista, cristalizado e imobilizador. Em segundo lugar, a identidade é uma resposta politica a um contexto especifico e só faz sentido, se confrontado com outras identidades.14
Mas de que forma se organiza esta arena de disputas identitárias? Refletindo sobre essa pergunta, discutiremos alguns elementos que sinalizam como as lideranças jongueiras em Pinheiral vêm conduzindo suas trajetórias políticas junto à sociedade e aos órgãos governamentais: os espaços elencados, a oralidade e a noção de ancestralidade em seus rituais. Tendo em voga esses três eixos temáticos, as análises terão como suporte, além das observações provenientes da pesquisa de campo, o material já mencionado que corresponde ao documentário Eu venho de longe.15
Começaremos por analisar o “mito de origem” do jongo em Pinheiral. Mesmo que existam pesquisadores que afirmem que as origens do jongo estejam na África,16 a “mitologia” jongueira pinheiralense considera ser ele brasileiro e ter sido criado nesta cidade, crença essa que não é uma unanimidade, posto que não são todas as lideranças jongueiras que acreditam no pioneirismo de Pinheiral no que tange ao jongo. De acordo com os jongueiros, a dança e o ritmo são o resultado da interação social entre escravizados de diferentes regiões da África e de diferentes grupos étnicos africanos. O jongo surgiu do contato entre esses africanos com filhos de africanos nascidos em solo brasileiro, com africanos que já se encontravam há muito no Brasil e de todos esses com a cultura branca hegemônica existente na região. Essa interação ocorreu de maneira intensa durante a realização das tarefas cotidianas nas plantações de café e nos momentos de lazer, quando os escravizados se reuniam no terreiro de secagem de café.
O que pode ser extraído dessa linha de pensamento, por parte de alguns moradores locais, corresponde ao fato de que embora essa referência cultural seja proveniente da diáspora africana, da vinda de uma diversidade de linhagens de pessoas escravizadas submetidas a fortes relações de submissão, o contato cotidiano ocorrido no Brasil - mais especificamente na Fazenda São José do Pinheiro (que deu nome à cidade de Pinheiral) - é que possibilitou a “emergência” do jongo. Enquanto “mito de origem da comunidade”,17 não cabe aqui verificar a veracidade dessas narrativas, tendo em vista que nossa preocupação se aproxima muito mais do sentido histórico dessa leitura, mediante o conceito de negociação e conflito. Obrigados a fazer parte de uma estrutura social coercitiva, o escravizado e seus descendentes não deixavam de interagir socialmente ou de praticar o espaço social ao qual eram lançados. Aliás, esse mesmo espaço era constituído de barganhas, de alianças e, também, de tensões e disputas.
O “tempo histórico” reconstruído nessas narrativas se entrelaça com certos lugares, a exemplo das roças de plantações e do terreiro de secagem do café, que tendiam a ser compreendidos como ambientes de produtividade, de controle, de vigilância e de poder pelos proprietários e demais funcionários das fazendas de café. Quando operados e utilizados, esses ambientes podem propalar outros olhares, menções rasuradas18 de ressignificações particulares da gente que entrava com a força motora de seus braços. Espaços de conflitos mas também de interações. Memórias carregadas de violência e do mesmo modo da luta dos trabalhadores que construiam em suas lembranças uma tela de táticas porosas, fluidas, cambiáveis, em que o lazer quebrava a lógica do domínio completo e total sobre suas vidas. Dentro dessa perspectiva, o jongo deve ser discutido como um ponto de intersecção, em que, para além das práticas dos espaços, existe uma batalha constante por temporalidades acionadas pelos grupos envolvidos, aproximando-se do que podemos chamar de “entre lugares”.19
A ideia de “entre lugares” nos permite perceber que o jongo proporciona a visibilidade de uma aresta na qual os agentes se movimentam, refazendo e reformulando os padrões instituídos, demonstrando que, “entre” uma cultura costumeira e empreendimentos inovadores por parte do Estado ou de seus agentes representativos, as forças desiguais entram em disputas diluindo, para negociar, a criação de novos pontos de modelos sociais. O mais interessante é que, para compreender esse processo, os estudiosos partem de outro foco, modificam a lente, acionam outras escalas, ou seja, desejam compreender tais configurações tendo como base os grupos inscritos na marginalidade. Foi por meio dessa perspectiva da “minoria” - que intenciona traçar e dar legitimidade à sua diferença - que os pesquisadores entenderam que os privilégios autorizados não dependem das persistências da tradição e, sim, da reinscrição dessa mesma tradição, em virtude das contingências e contrariedades que insurgem ao serem praticadas, sendo esses os movimentos que obstruem o olhar dos pesquisadores, dado que
[...] os embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos; podem confundir nossas definições de tradição e modernidade, realinhar as fronteiras habituais entre o público e o privado, o alto e o baixo, assim como desafiar expectativas normativas de desenvolvimento e progresso.20
Uma grande questão que se apresentou ao autor: de que maneira o pesquisador tem condições para perceber esses processos em que transcorrem reinvindicações distintas, as quais, em vez de apaziguar os ânimos dos agentes mobilizados, o corroboram, em certos casos, pelo aprofundamento de tudo o que esteja relacionado com os aspectos "antagônicos, conflituosos e incomensuráveis?"21 Para responder a essa pergunta, Bhabha levantou o primeiro ponto para o qual os intelectuais devem atentar: o modo pelo qual as pretensões concorrentes de comunidades distintas no embate cultural, viabilizadas por meio de antagonismo ou filiações, são produzidas performativamente. Tal performatividade permite intervenções criativas que quebram a lógica da intensificação de polaridades, pontos extremos que fixam identificações. O "além" discutido por Bhabha sugeriu outro lugar. Ele não remete a um vínculo com o passado e com o futuro a partir da interrupção do presente, dado que sua lógica se constitui em instâncias que os ultrapassam. Acenando ao contexto contemporâneo, especialmente às migrações pós-coloniais, o autor reiterou que a própria autopresença imediata, a imagem pública, é colocada em relevo tendo como base justamente a descontinuidade, as desigualdades, as minorias. É dessas linhas de redefinição do sujeito, dessas passagens de mobilizações, desses caminhos morosos que nos aproximamos do autor, na medida em que a totalização da experiência se torna algo inviável. E a performatividade dos jongueiros se esboçam de que maneira?
No próprio processo de teatralização em suas apresentações, que demarcam uma memória nas próprias relações de sociabilidade dessa prática, que incitam um movimento cultural, que desvela o mundo histórico/tradicional, o contemporâneo/vivencial num tempo e espaço que escapa ao convencional, dando-lhe um formato próprio, compartilhado no e pelo indivíduo, no e pelo coletivo. No cenário montado em suas apresentações coletivas, jovens, adultos, idosos coexistem nessa dança, nesse ritmo ou, ainda, num movimento de interação. Ligando essa salada de pessoas aos antepassados do Brasil e da África, a sua prática é sempre uma transposição, um vai e vem, plausível no lugar em que é atuado.
Nesse interstício, há um elemento importante que liga o terreiro de café à escravidão e ao jongo. De acordo com alguns jongueiros, as almas dos antepassados estão sempre presentes nas rodas montadas. Como os escravizados organizavam rodas de jongo no terreiro de café, suas almas ainda se fazem aí presentes e participam das rodas toda vez que as pessoas dançam e tocam. Quando jongueiros organizam uma roda para estudantes ou visitantes no terreiro de café da Fazenda São José do Pinheiro, eles querem criar condições propícias para transmitir conhecimentos da história e dessa expressão popular de Pinheiral para esse público. Some-se a isso o fato de o jongo ter suas origens nesse terreiro, segundo a “mitologia” jongueira já citada, posto que era nele que os escravizados se reuniam para festejar e desenvolver atividades lúdicas diversas em seus momentos de lazer. As lideranças jongueiras de Pinheiral tentam, então, recriar a mesma atmosfera vivida pelos seus ancestrais, dançando e se divertindo, perpetuando, assim, a cultura jongueira, ao mesmo tempo em que divulgam suas lutas e reivindicações. Praticar o jongo faz com que seus dançarinos e dançarinas não quebrem, jamais, sua ligação com a terra que recebe seus pés, com as almas evocadas que sacralizam o lugar, como o peso latente daquela exibição mágica que os liga aos antepassados.
Outro elemento que merece ser ressaltado é o próprio peso da oralidade. Atualizada, mutável e passada de geração a geração, a oralidade seleciona os esquecimentos e as lembranças que devem ser acionadas no arsenal de informações transmitidas aos mais jovens. Para reforçar essas práticas, os jongueiros, quase todos afrodescendentes, desenvolvem projetos e atividades educacionais, tendo como base seus rituais. Nessas reuniões, além das conversas sobre temas cotidianos, fatos históricos sobre a escravidão e histórias ancestrais22 são contadas e recontadas, destinadas a melhorar a autoestima de jovens e adultos, costurando uma rede de ações culturais com comportamentos de cidadania, uma vez que discutem as demandas internas, organizam lutas políticas e pleiteiam direitos em meio a implementações e iniciativas de reparação para todos os afrodescendentes que vivem no Vale do Paraíba.
Todavia, um cuidado especial dado ao conteúdo dessas retóricas pode nos fazer vislumbrar as estratégias dessa transmissão cultural por parte de seus integrantes: mudando a ordem das coisas, em vez de colocar como protagonista o dominador (colonizador) e suas formas de controle do trabalho do escravizado, optam por elaborar deslocamentos que, saindo do plano lde coadjuvantes, se apresentam enquanto atores centrais do palco do qual faziam parte: as fazendas de café. Nesse sentido, não deixam de exibir a importância que tiveram para a economia do país e a estrutura social construída. Conforme os jongueiros, “foram os negros que construíram o Brasil”, esvaziando, dessa forma, o lugar de vítima passiva e inerte no qual foram colocados por muitos estudos acadêmicos. O mais interessante é que, para reivindicarem tais pressupostos, se instrumentalizam de um quesito bastante legítimo no país que é a noção de trabalho. De acordo com suas narrativas, os serviços prestados pelos escravizados estiveram presentes em inúmeras frentes no país durante o período da colonização e perpetuado em períodos posteriores, isto é, o trabalho das pessoas escravizadas foi responsável pela derrubada das florestas, preparação do terreno para as extensas roças de café, plantação de mudas de cafeeiro, limpeza dos cafezais, coleita dos grãos de café e sua secagem; os escravizados ainda os ensacaram e os transportaram para o porto do Rio de Janeiro para exportação. Segundo os jongueiros, seus antepassados construíram a riqueza de Pinheiral. Depois que a escravidão foi abolida no Brasil, afrodescendentes deram prosseguimento à produção da riqueza de Pinheiral e do Brasil, mesmo que continuassem a ocupar posições subalternas e marginais na sociedade brasileira. Sendo assim, as politicas, as ações e os programas de reparação e de ação afirmativa desenvolvidos pelos governos brasileiro e do Estado do Rio de Janeiro são justos e necessários para atenuar a exploração a que os africanos e seus descendentes foram submetidos.
O processo de vitimização aqui instalado encontra-se em outro campo, tendo em vista que os jongueiros não medem esforços para explorar todas as possibilidades dessa condição. Nesse sentido, do ponto de vista da história institucional de um povo vitimizado, a condição de vítima, no âmbito da moral, é certamente mais respeitável; trata-se, se assim podemos dizer, de um “privilégio”, de uma posição que lhe dá o direito de discursar, protestar, enfrentar, reivindicar. Como procura argumentar Todorov,23 “se se puder mostrar de maneira convincente que um grupo foi vítima de uma injustiça, o grupo em questão obtém uma linha de crédito moral infinita". Diz respeito, portanto, a uma categoria que convém manter, conservar. Assim, no âmbito da história institucional do perdedor, ou melhor, do colonizado, fazendo eco às considerações que Ferro24 elabora a respeito, trata-se, muito mais, de modificar o que presumivelmente é vergonhoso em uma reivindicação absolutamente legítima. Como bem salientou Le Goff a respeito da memória coletiva, tudo o que nos alcança “é um produto da sociedade que [a] fabricou segundo relações de forças que aí detinham o poder”.25 É por isso mesmo que a memória - já se disse judiciosamente - não é moralmente neutra. Foi operacionalizando essa circunstância que os integrantes do território jongueiro estudado reiteram o quanto a dívida que o Estado tem com seus ancestrais, e que reverberaram em seus descendentes, ainda está longe de ter sido sanada. E, da mesma maneira, é por isso que, ao falar sobre essas questões, optam por anunciar a tragédia da qual fizeram parte. E falar não pressupõe apenas a presença das palavras mas também a sua seleção e a sua ocultação. Assim, relembrar a tragédia das populações escravizadas é tratar de não ditos, na qual o outro, no caso os escravizados, mesmo que a contragosto, participaram da história. No momento em que foram instadas a escolher elementos simbólicos que representassem os jongueiros e que seriam reunidos em um documentário, as lideranças selecionaram signos e símbolos que exibem a pujança econômica da escravidão,26 assim como o poder e a riqueza dos senhores, emblemático, sobretudo, na casa-grande e na senzala, conforme veremos a seguir. Esses elementos são importantes porque mostram e enfatizam que a antiga fazenda de café São José do Pinheiro era um lugar em que viviam centenas de escravizados27 que pertenciam a um dos mais importantes produtores de café do Brasil no século XIX. Os habitantes afro-brasileiros de Pinheiral são descendentes diretos desses escravizados e, por isso, afirmam ter direito a receber os beneficios assegurados por leis e programas de reparação, em vista dos sofrimentos e das privações a que seus ancestrais foram submetidos.
Não é à toa que a senzala ocupa lugar fundamental nessa formação identitária local. De acordo com as histórias jongueiras, à noite, o capataz da plantação acorrentava os escravizados quando eles iam dormir na senzala, um dos principais locais em que as punições eram infligidas aos negros. Nas imagens da escravidão, esse ambiente é comum e amargamente associado ao castigo, ao sofrimento e à dor. Ademais, é necessário enfatizar que, intuindo reiterar essas marcas do passado, existem algumas sedes de antigas fazendas de café no Vale do Paraíba que oferecem aos turistas passeios pelas suas instalações, incluindo a senzala. Lá os turistas podem ver instrumentos de castigo e tortura, ouvir histórias horripilantes sobre seu uso com o intuito de “amansar” os escravizados, bem como relatos relativos às técnicas de utilização dessas ferramentas. Essas narrativas cumprem a função de criar uma atmosfera propícia à condenação da escravidão e à conquista da solidariedade dos ouvintes para as reivindicações e a luta política dos jongueiros, bem como conquistam a admiração para a cultura dos afrodescendentes, mesmo que a senzala da Fazenda São José do Pinheiro esteja modificada, não podendo mais ser reconhecível enquanto tal, tendo em vista que, ao longo do tempo, ela foi transformada em pequenas e modestas moradias. No entanto, a construção na qual se localizava a senzala continua a desempenhar um papel importante na história da escravidão em Pinheiral.
Se a senzala impinge enredos de tragédias, à casa-grande é reservada outra retórica. Os jongueiros costumam contar que personalidades importantes do século XIX hospedaram-se nela, tais como o rei e a rainha da Bélgica em visita ao Brasil e a Princesa Isabel e seu marido, o Conde d’Eu. Com essas histórias, eles enfatizam a importante posição social ocupada pelo senhor de escravizados, proprietário da Fazenda São José do Pinheiro na sociedade imperial brasileira, durante o século XIX. Reforçando o “mito de origem da comunidade”, reverbera em seus relatos a constatação de que, tratando-se de um plantel tão grande pertencente a um mesmo proprietário reunido nessa propriedade, seria plausível que o jongo pudesse ter surgido nessa cidade, especificamente no terreiro de café dessa fazenda. De Pinheiral, o jongo teria se espalhado para outros locais, para outras fazendas de café, para outros arraiais, para outras cidades. Dessa forma, os jongueiros enfatizam o poder do senhor de escravizados porque lhes permite legitimar a história e as histórias que contam, fazendo jus, assim, a serem identificados como legitimos descendentes dos escravizados, bem como comunidade remanescente de quilombos, reconhecimento esse que ratificaria e reforçaria sua reivindicação pela desapropriação da casa-grande e do terreiro de café para que a ONG criada pelos jongueiros - o Centro de Referência de Estudo Afro do Sul Fluminense (CREASF)28 - possa se instalar nessa construção, uma vez que venha a ser seja reconstruída, e utilizar o terreiro de secar café para o ensino da história da escravidão como também para o ensino da cultura jongueira e a organização de rodas de jongo festivas. O CREASF não dispõe de recursos ou fundos para comprar essas duas construções. No entanto, se eles conseguirem que esses locais sejam certificados como comunidade remanescente de quilombos e se receberem a propriedade desses imóveis, poderão alcançar esses dois objetivos. Uma vez desapropriados, tanto a casa-grande quanto o terreiro de café perdem valor e interesse econômico porque ninguém compraria imóveis submetidos a severas leis e condições que dificultam seu uso e a construção de benfeitorias. Com isso, seu valor de mercado desabaria. Como comunidade remanescente de quilombos, os jongueiros teriam acesso a fundos governamentais ou patrocínios que lhes permitissem adquirir a casa-grande e o terreiro de café a preços mais em conta e restaurá-los e utilizá-los em suas atividades. Para eles, isso seria visto como uma vitória e como uma ação de reparação.
O jongo consegue entrecruzar memórias, lugares, culturas híbridas, iniciativas governamentais em práticas de negociações. Conforme observaram Mattos e Abreu, “o quilombo de Pinheiral emergiu então em um contexto de revitalização de um patrimônio histórico e cultural negro inscrito em uma construção senhorial, representante do poder dos proprietários de terras e escravos do Vale do Paraíba”.29 Para, além disso, seus integrantes defendem a manutenção e o revigoramento de uma memória e história afro-brasileiras na área, marcada pelo jongo e pela escravidão, e têm como objetivo dar visibilidade a um patrimônio cultural imaterial herdado de seus antepassados escravizados e africanos, a partir de outro patrimônio, arquitetônico e artístico, símbolo dos senhores dos velhos vales do café.
Como resultado dessas práticas, foi criada uma nova identidade performativa para os jongueiros e os afrodescendentes de Pinheiral. Essa identidade dá uma forma e um sentido provisórios ao mundo jongueiro que devem ser constantemente atualizados. Ela é performativa porque muda de acordo com as estratégias de luta e com o grupo social com o qual os jongueiros interagem. Para que essas questões fiquem mais explícitas, basta olhar-se com maior cuidado para todos os desdobramentos oriundos das demandas e das revindicações que os próprios jongueiros acionam. No caso, daremos atenção especial a dois quesitos que merecem ser discutidos: o pedido de que a Fazenda São José do Pinheiro seja reconhecida como quilombo e as cotas raciais nas universidades públicas. No tocante ao quilombo, a partir da promulgação da Constituição brasileira de 1988, diversas leis foram aprovadas buscando assegurar novos direitos para os cidadãos afrodescendentes. Dentre elas, o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)30 assegura a posse e a propriedade da terra para os membros das chamadas comunidades remanescentes de quilombos. Tão logo esse artigo foi promulgado, aqueles que vivem em comunidades e territórios passíveis de serem definidos e reconhecidos como remanescentes de quilombos começaram a demandar o reconhecimento oficial de seu status enquanto comunidades remanescentes de quilombos para obter o título legal de suas terras e ter acesso a fundos e verbas governamentais e a todos os direitos que a lei lhes assegura. Em Pinheiral, por exemplo, os jongueiros estão demandando ao Estado brasileiro o reconhecimento da Fazenda São José do Pinheiro como comunidade remanescente de quilombos pelos motivos acima mencionados.
Além do artigo 68 do ADCT, outras leis importantes foram promulgadas, tal como aquela que criou cotas para afrodescendentes pobres nas universidades públicas brasileiras. Em 2001, o Estado do Rio de Janeiro foi o primeiro a aprovar uma lei - A Lei Estadual n° 3708/2001 - que introduziu cotas para afrodescendentes e outras minorias étnicas nas universidades públicas controladas por esse Estado, lei essa que facilitou o acesso de jovens oriundos de territórios jongueiros às universidades públicas estaduais fluminenses. A adoção de cotas para o acesso às universidades públicas brasileiras gerou um amplo debate na sociedade entre aqueles que são contra e aqueles que são a favor de sua adoção. Os que se posicionam contra afirmam que sua adoção vai de encontro ao princípio de igualdade presente na Constituição brasileira de 1988, além de ser uma iniciativa que importaria indevidamente um instrumento jurídico apropriado para a realidade de outros países, mas não à realidade brasileira na qual predomina a “democracia racial”. Com a sua adoção, o Brasil incorreria no risco de ver implantado em seu território relações raciais conturbadas como aquelas que existem na sociedade norte-americana, por exemplo. Outra crítica alega que uma ação mais eficaz que permitiria o acesso dos afro-brasileiros ao ensino superior seria mais investimento no ensino fundamental e médio.31 Por fim, outro argumento contrário alega que a população do Brasil é miscigenada, o que impediria uma definição precisa dos beneficiários do sistema de cotas.32 Os que defendem esse sistema afirmam, entre outros argumentos, que ele é instrumento de promoção da igualdade efetiva e de proteção das minorias.33 Afirmam, também, que a "democracia racial brasileira" não passa de um mito criado pelas classes dominantes para manter os afrodescendentes em uma posição social subalterna e fragilizada e que as cotas desmascaram esse mito e configuram uma ação afirmativa que abre uma perspectiva real de superação das desigualdades sustentadas sobre o racismo e o preconceito racial.
Um importante programa de inclusão social do Governo Federal do Brasil é o Universidade para Todos, o PROUNI, cujo “objetivo é aumentar o número de vagas de ensino superior para alunos de famílias menos abastadas no Brasil”.34 Esse programa, institucionalizado pela Lei nº 11.096, de 13 de janeiro de 2005, permitiu o acesso de estudantes oriundos de famílias pobres a universidades privadas, aumentando o número de afrodescendentes estudando em universidades brasileiras. Os jovens são uma parcela significativa dos habitantes de Pinheiral. A maioria deles não completou o ensino secundário e, por conseguinte, é muito difícil para eles conseguirem empregos formais bem ou mal remunerados. Lideranças desse território têm encorajado esses jovens a estudar. Eles também têm sido incentivados a fazer uso de todas as políticas públicas existentes tais como a lei de cotas e o PROUNI. Dessa forma, os jongueiros velhos estão preparando a nova geração de lideranças jongueiras que irá substituí-los em breve.
As lideranças jongueiras utilizam diferentes estratégias para incentivar os jovens a estudar. Uma delas é a conversa informal buscando explicar-lhes como funcionam as políticas públicas e os programas do governo. Outra estratégia é mostrar e enfatizar a importância do jongo para a construção de uma memória coletiva dos afrodescendentes de Pinheiral, organizando rodas na cidade e fora dela, levando esses jovens para participar de festivais e encontros em que o jongo se faz presente. Outra estratégia consiste em visitar escolas públicas de ensino fundamental e médio e conversar com os alunos sobre a história de Pinheiral, o legado da escravidão, a memória dos afrodescendentes e o jongo (os participantes podem dançar, tocar e cantar jongo ao final dessas conversas), informando e esclarecendo sobre os direitos e as lutas dos afrodescendentes, abordando as politicas públicas que os beneficiam. As lideranças jongueiras também podem convidar crianças para visitar as ruínas da casa-grande da Fazenda São José do Pinheiro e lá lhes transmitirem a tradição jongueira e os conteúdos políticos que julgam importantes.
A memória do tempo do cativeiro na cidade de Pinheiral vem sendo construida e utilizada como uma eficiente ferramenta de combate da exclusão social e de desenvolvimento de uma nova identidade performativa. Lideranças jongueiras selecionam elementos da história da escravidão e “causos” da sociedade escravagista local para construir essa nova identidade, bem como estratégias políticas, culturais e sociais que buscam garantir aos jongueiros e à população afrodescendente local direitos políticos e acesso às políticas de reparação. Para que isso aconteça, a escravidão foi redefinida e ressemantizada, tornando-se uma fonte de orgulho para os descendentes dos escravizados.
O jongo é o ponto de partida para que todas essas ações ocorram. A luta pela cidadania começa e termina com o jongo. Os membros do território jongueiro de Pinheiral têm dançado, cantado e tocado jongo por gerações. No momento em que estão reunidos e celebrando, os jongueiros estão elaborando as estratégias políticas, culturais e sociais que permitirão melhorar suas vidas. Quando alcançam os objetivos estabelecidos, reforçam a unidade do grupo, promovendo rodas de jongo e atividades sociais. O jongo é a fonte da memória, uma ligação com o passado, a base de lutas presentes e o caminho que leva ao futuro. Ele vem caminhando de longe como um preto velho cansado e, como tal, ele conta as suas histórias para os mais novos que, a partir delas, constroem e reconstroem suas tradições, suas identidades e seu passado que dão o rumo para suas estratégias e suas lutas futuras.