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A LINHA DO HORIZONTE: UMA METÁFORA MAL-RESOLVIDA DOS AFRICANOS NO FILME CHOCOLAT DE CLAIRE DENIS
Afro-Ásia, núm. 58, pp. 97-118, 2018
Universidade Federal da Bahia

Articles


Recepção: 27 Abril 2017

Aprovação: 11 Janeiro 2018

Resumo: No filme Chocolat, de Claire Denis (1989), os colonizadores fazem alusão constante a uma linha do horizonte aparentemente banal; um discurso que corrobora as complexidades do poder paralelo e a singularidade cultural entre os africanos e os colonizadores/ocidentais. Este trabalho argumenta que a inter-relação colonial de europeus e africanos se incorpora na alusão do filme à linha do horizonte, uma metáfora, com o seu fim visível mas restritivo, inacessível e inexistente. Por um lado, a linha do horizonte significa um lamento da apreciação interna de autocondenação do colonizador - uma característica raramente percebida no discurso do colonizador. Por outro, a linha do horizonte simboliza a pouca profundidade dos colonizadores, o que sugere suas limitações e sua incompetência na tentativa de sustentar o poder colonial. Pela sua insensibilidade e seu desinteresse em procurar conhecer os africanos como seres com quem se podia contar, os colonizadores/ocidentais acabaram não descobrindo, nem dominando completamente, os africanos. A nossa tese é a de que a linha do horizonte motiva uma inadequação que representa a inadequação e a incapacidade dos ocidentais para compreender a personalidade dos africanos.

Palavras-chave: colonizador/ocidental, poder, conhecimento, ilusão, africanos.

Abstract: In Claire Denis’ Chocolat (1989), the colonizers make references to the seemingly banal line of horizon; a discourse which underpins the complexities of parallel power and cultural uniqueness between Africans and colonizers/Westerners. This paper argues that the colonial interrelation between Europeans and Africans are embedded in the film’s reference to the line of horizon, a metaphor, with its visible yet limiting, inaccessible, and inexistent end. On one hand, the line of horizon signifies a lamentation of the colonizer’s inward judgment of self-condemnation - a feature rarely seen in colonizers’ discourse. On the other hand, the line of horizon symbolizes the colonizers’ shallowness, which hints at their limitations and incompetence to maintain colonial power in perpetuity. Rather than learning to know Africans as forces to reckon with, this article shows that colonizers/Westerners do not discover, and cannot forever dominate the former.

Keywords: colonizer/Westerner, power, knowledge, illusion, Africans.

Nos últimos tempos, uma grande variedade de estudos literários, históricos e teóricos sobre impérios e discursos dos colonizadores reconhecem a reavaliação contínua dos fatos e a fantasia do imperialismo em diversas partes do mundo. Na Europa, na França em particular, esse estudo faz com que seja revisitada a sua grandeza como um poder ex-colonial. Esse passado histórico fundamentado em idée coloniale (‘ideia colonial’) torna-se acessível por meio da literatura e do cinema contemporâneos, cuja representação do discurso imperialista sustenta ou desmente a ideologia colonial. Duas palavras de ordem ‘o conhecimento’ e ‘o poder’, entrelaçadas e interdependentes são de uso fundamental para o discurso. São ferramentas de subjugação política, econômica e social com as quais os colonizadores franceses contavam em suas relações com os africanos subsaarianos franceses.1

Uma pergunta pertinente vem à mente: “Até que ponto os colonizadores conheciam os colonizados para poder governá-los?”. Este artigo, apoiado na metáfora da linha do horizonte no filme Chocolat, de Claire Denis (1989), é uma tentativa de delinear o impacto da limitação do conhecimento dos europeus e afro-americanos2 sobre os africanos continentais. Enquanto Chocolat é uma das obras de Denis mais discutidas por estudiosos, as referências específicas feitas à linha do horizonte têm merecido um manto de silêncio nos estudos. Este estudo focaliza, então, um discurso colonialista, embora seja um desvio que examina as inter-relações coloniais a partir de uma nova perspectiva, por meio da metáfora de autoavaliação do colonizador que aborda a derrota dos conceitos binários entre os colonizadores e os colonizados, ocidentais e africanos.

Em Chocolat, a narradora, France, a filha de Marc Dalens, um comandante de distrito colonizado, visita os Camarões onde havia morado na sua infância. O seu encontro com William Park, cujo apelido era Mungo, e o seu filho mais novo provoca uma recordação das observações diárias de France, aos oito anos, no posto avançado onde trabalhavam seus pais - Aimée e Marc - em Mindif, Camarões, no final dos anos 1950. Uma das recordações mais notáveis de France é a sua amizade íntima com o empregado da sua família, Protée. A família se inter-relaciona em níveis diferentes com os seus companheiros europeus, inclusive com Nansen, um padre, com Jonathan Boothby, um colonizador inglês, com um colono francês, Luc, e os passageiros de um avião acidentado (por exemplo Védrine, Courbasol, Machinard e a sua esposa Mireille) etc. No clímax da história, os desejos sexuais de Aimée dirigidos a Protée destruíram a relação cordial entre ele e France. O que pretendemos focar, no presente trabalho, é o fato de que Marc Dalens, em diferentes ocasiões, lançou avisos discretos mas ignorados, codificados na metáfora da linha do horizonte inexistente, sobre a incapacidade de a hegemonia colonizadora conhecer e subjugar o colonizado, que até então fora responsável pela perda do império africano dos colonizadores.3

Teorizando o discurso do colonizador

No seu discurso para justificar a colonização da África, os colonizadores inventaram mitos e diversas percepções eurocêntricas sobre os africanos e a necessidade de impor-lhes o imperialismo. Em termos binários, os colonizadores salientaram a sua capacidade de dominar os colonizados pela sujeição estereotípica, descrevendo-os como fundamentalmente diferentes - bárbaros, preguiçosos, não inteligentes, sensuais, fracos etc. -, características que marcam nitidamente o contraste com a autoimagem do colonialista. Além disso, os colonizadores interpretam os colonizados como marcados por traços descobertos, conhecidos e previsíveis, simplesmente para provar que os colonizados são maleáveis e fáceis de subjugar. No seu discurso, os colonizadores apropriam o seu poder imperialista, a “compreensão sendo uma pré-condição pelo controle e o controle constituindo uma evidência adequada de entender o colonizado”.4 Desde a época colonial, os colonizadores apresentaram justificativas morais, políticas e econômicas do seu conhecimento e do resultante domínio da África, não considerando a singularidade cultural de cada povo. Independentemente do fim do imperialismo, o modelo de deturpar os africanos permanece na visão dos ocidentais.

Uma característica importante do discurso colonial é a de ser, ao mesmo tempo, seletivo e bem reducionista e, nesse processo, impedir a objetividade na sua escolha da representação do Outro. Um discurso dessa natureza cai sob o escrutínio de muitos críticos das relações coloniais. É o que descreve Jan Mohamed, quando afirma que:

[...] as representações imaginárias do povo indígena tendem a unir o significante com o significado. Ao descrever a ação dos nativos, assuntos como a intenção, a causalidade, as circunstâncias atenuantes e outros tantos são completamente negligenciados, [...] o seu [do colonizador] psique e texto tendem a ser mais próximos e são frequentemente ocultados pela ideologia do seu grupo.5 (grifo meu)

A fim de sustentar o ideal do colonialismo, o discurso colonialista permite ao colonizador reapresentar e reconstruir o colonizado para satisfazer o objetivo da ideologia europeia nas relações coloniais com os africanos. Muitos séculos de tal ideologia europeia fazem com que os colonizadores percam o reconhecimento e o conhecimento profundo do colonizado. No meio disso, os colonizadores negligenciam a humanidade e os sinais do empoderamento dos colonizados, dois conceitos que desmontam o colonialismo. Considerando-se o fato de que o objetivo principal do discurso dos colonizadores é tirar os colonizados da história de originalidade da civilização, a objetividade é de pouca importância na sua representação dos colonizados.

Examinando o discurso colonialista a partir de outra perspectiva, Achille Mbembe observa que esse discurso não é unidirecional; um dos seus aspectos indiretos se encontra no uso da metáfora discursiva para desconstruir a humanidade dos colonizados. Muito tempo depois da colonização, a África ainda permanece uma das metáforas por meio da qual os colonizadores constroem e integram a sua autoimagem.6 A autoimagem permite, assim, a construção das diferenças culturais existentes entre eles e os africanos. Como em toda metáfora, nem sempre é um discurso direto, e integra essa imagem em um conjunto de significantes. A fim de preservar a sua autoidentificação como colonizadores, os brancos devem conservar a sua concepção sobre os africanos exibindo-os como objetos descobertos e conhecidos. Entretanto, o grau de conhecimento que possui um colonizador sobre os colonizados representa um quebra-cabeça e é objeto de debates em diversas áreas de estudos pós-coloniais. No discurso dos colonizadores, a África é semelhante àquele “Outro com O maiúsculo”7 de Jacques Lacan. Em Chocolat, tal inacessibilidade é mais bem percebida a partir da linha do horizonte, caracterizada pela incapacidade de os colonizadores e outros ocidentais conhecerem, predizerem e conseguirem uma dominação total dos africanos.

Para atingir o objetivo do presente estudo, usamos o discurso indireto dos colonizadores e a natureza obstrutiva que interessa às pesquisas de Mbembe e Jan Mohammed para justificar a ideia da "linha do horizonte” como uma metáfora apreensível em Chocolat. Em termos literários, o horizonte é uma linha na qual o céu parece tocar a terra. Na verdade, tal linha sofre uma limitação fundamental, pois é inacessível, evasiva e não existe em realidade. A linha do horizonte é, simultaneamente, objetiva e subjetiva, visível e invisível, fora do assunto, sem evidência concreta (linear) de existência. Daniel Novak estuda a natureza dupla da linha do horizonte e classifica-a como algo que "produz uma variedade de usos metafóricos pela forma do horizonte - [é] ao mesmo tempo subliminarmente belo e opressivo, um símbolo da expansão colonial e uma lembrança da limitação nacional e familiar [...] um sinal da derrota moral”8 em contraste com a suposição do colonizador de conhecer e subjugar o colonizado. O conceito ou a percepção de conhecer e entender o colonizado tornam-se problemáticos ao considerar-se a realidade questionável da confiança dos europeus na sua ideologia de interpretar relações interculturais entre o colonizador e o colonizado, ocidentais e africanos. A incapacidade dos ocidentais de entender os africanos causa a autodecepção dos colonizadores, além da sua limitação, um assunto que se espelha no filme pelo uso metafórico da linha do horizonte, uma linha enganadora e inexistente. Mais importante é a sua natureza misteriosa se se interpretam tais relações a partir da perspectiva de um olhar em direção à linha do horizonte no céu, como foi descrita por Marc em Chocolat.

A linha do horizonte como foi analisada neste trabalho traz à tona termos semelhantes como limitação, conhecimento inexistente, algo inacessível, evasivo e enganoso em relação aos africanos. O horizonte em Chocolat refere-se à França e também a uma criança, mas, no filme, o conceito está fortemente carregado na sua interpretação metafórica das relações coloniais.9 Essa discussão torna-se pertinente na avaliação da narrativa de Denis sobre a linha obscura e a compreensão dos africanos pelo colonizadores/ocidentais.

A linha do horizonte como metáfora em Chocolat

Em duas cenas distintas do filme Chocolat, o administrador colonial, Marc Dalens, inicia o discurso sobre os traços não descobertos dos africanos em suas menções ao conceito do horizonte, enquanto fala com a sua filha, France. A segunda menção, perto do fim do filme e citada em tom baixo, é muito importante e contém lições metafóricas da linha do horizonte em termos de relações coloniais interculturais. Marc, cansado e em um estado melancólico, explica o horizonte à sua filha France que parece esmagada.

Você ainda quer saber o que significa a linha do horizonte? Quando a terra e o céu se encontram, isso exatamente é a linha do horizonte. Amanhã de manhã, preciso te mostrar alguma coisa. Quanto mais você se aproxima dessa linha, mais ela recua. Se você caminha na direção dela, ela se afasta de você, ela foge de você. Preste atenção ao que vou te explicar. Veja bem, essa linha que está vendo, ela não existe.10 (grifos meus)

A terceira menção à linha do horizonte, que não inclui os colonizadores, vem após o fim da amizade entre France e Protée. Não há diálogo. Como se verá adiante, Protée olha em direção ao horizonte de um céu africano.

Por enquanto, examinaremos a linha do horizonte da perspectiva de Marc. Como descobriremos a seguir, a metáfora no discurso de Marc culpa a hegemonia; o discurso é comparável à luta de Jean-Baptiste (um oficial francês) pela libertação dos asiáticos colonizados no filme Indochine (1991), de Régis Wagnier, mas dele difere.11 Uma leitura atenta de Chocolat mostra que cada personagem ocidental manifesta alguma forma de limitação de não saber quem são os africanos. Eles veem os africanos, mas não os entendem e, assim, perdem o poder de prever e de controlá-los.

A ilusão do poder dos colonizadores

Ligamos a limitação da apreensão dos africanos pelos colonizadores à metáfora da linha do horizonte, vista de longe, mas ao mesmo tempo, irreal, uma ilusão e, portanto, não conhecida, não apreensível. Por exemplo, Jonathan Boothby apenas conseguiu entender minimamente os seus empregados africanos, sem conhecê-los profundamente. A cena de abertura da sua visita à casa da família Dalens mostra a grandeza da posição colonial de Jonathan quando a câmera se movimenta à esquerda num semicírculo para revelar o seu séquito de vários empregados que o cercam em sua alta posição ao lombo do cavalo, acentuando, assim, a sua grandeza. Obviamente, o objetivo dessa cena é mostrar a superioridade do colonizador e demonstrar como os africanos o serviam com admiração.

No entanto, apesar de sua aura de importância, o que Jonathan significa para os seus serventes africanos fica claro quando ele foi parodiado por Marie-Jeanne (a única empregada da família Dalens). Com a ajuda de France, Marie-Jeanne sentou-se sobre uma escada, de onde ela ridiculariza Jonathan e fala mal dele. A câmera a filma de um ângulo elevado, quando ela o olhava através da janela do quarto dele. Marie- Jeanne, em cima de uma escada, sugere que ela esteja num observatório em que assume a posição de uma “matriarca-observadora”, uma posição semelhante à dos antigos colonizadores masculinos, nas palavras de Mary Louise Pratt.12 Marie-Jeanne observa Jonathan que estava praticamente nu, dando assim uma nova dimensão à metáfora da linha do horizonte em Chocolat, enquanto ela o ridiculariza:

Marie-Jeanne: Se os ombros dele são peludos, certamente as suas nádegas também estão cobertas de pelos (risada). O seu inglês é mais bonito quando está vestido.

France: Ele não é o meu inglês!

Marie-Jeanne: Você já viu as pernas dele, querida? Parecem palitos (risada).13

Sem que Jonathan perceba, a posição de Marie-Jeanne lhe permite vê-lo quase nu, uma posição vulnerável que sugere que ele tem pouco valor, é uma homem vazio tendo sido desnudado de sua farda de colonizador, um símbolo de sua autoridade. Essa cena torna-se pertinente em identificar a metáfora do horizonte, pois tudo o que Jonathan pode ver é o seu empregado africano que o veste, enquanto uma empregada africana não percebida ridiculariza o seu corpo. Antes da sua nudez ser coberta pelo seu servo, os comentários de Marie-Jeanne apresentam uma comparação que desfaz e desnuda Jonathan. Ela o subjuga e o leva a um processo redutivo caracterizado pela sua degradação simultânea; todavia, ele não tem consciência disso, o que leva a seu destronamento e simboliza a sua perda de poder. Sendo inconsciente da sua destituição simbólica, Jonathan sofre uma limitação, desce ao nível de um homem inepto e vazio, apesar de detentor do poder.

Ademais, a referência de Marie-Jeanne à presença de pelos em todo o corpo de Jonathan reforça a sua queda, pois posiciona o seu corpo entre o de um humano e o de um animal. Lado a lado com o seu empregado africano que, em seu traje, possui um corpo íntegro, o corpo nu de Jonathan representa um objeto de importância reduzida, em contraste com a sua posição de chefe. Como um texto que se focaliza na limitação do colonizador, essa cena apresenta o colonizador como um mestre incapaz. Denis expande a comparação sutil que condena o colonizador/ patrão, cujo corpo nu, peludo e mal-apanhado fornece precisamente uma reprovação indireta do seu domínio animalesco. A ironia de tudo isso é que, com a presença do seu empregado africano, Jonathan tem confiança em si, irradia-se sob a ilusão de um império intato, sob o seu controle rigoroso. A ilusão dos colonizadores dentro da metáfora da linha do horizonte torna-se mais evidente quando Marie-Jeanne ridiculiza o corpo de Jonathan, acentuando a sua perda de poder sobre o colonizado.

A ilusão da supremacia religiosa dos europeus

Outra análise nítida da metáfora do horizonte encontra-se em Nansen, o padre norueguês. Aimée Dalens, a esposa de Marc e mãe de France, aconselha Nansen a voltar para a Europa, pois os membros da sua família não pareciam confortáveis morando em Camarões. No entanto, o padre insiste em ficar: "Mas tenho de evangelizar os africanos. Eu sou soldado de Deus. Está tudo bem”.14 Essa resposta significa que ele vive sob a ilusão de evangelizar os africanos. Primeiramente, a resposta sugere uma reverberação da oposição binária dos missionários coloniais europeus que, sem conhecer as outras culturas, monopolizaram as definições do ‘santo’ europeu contra os ‘pagãos’ africanos. Aparentemente sob a sua interpretação de Deus, Nansen anda às cegas como os antigos missionários, que eram aliados e colaboradores dos imperialistas - como se pode ver em L’amour et la mort (1891) de Paul Vigné d’Octon. Esses missionários aproveitaram-se da religião para subjugar as mentes dos personagens africanos na intenção de torná-los dóceis para assegurar uma colonização firme. Os escritores africanos denunciaram essa imagem em Une vie de boy (1956) e Le pauvre Christ de Bomba (1956), nos quais o cristianismo incita a subjugação do africano colonizado. Note-se que a supressão das práticas culturais nativas, incluindo a religião, faz parte essencial da missão civilizadora - a propaganda para colonizar os africanos. A resposta de Nansen, que se situa nos finais dos anos 1950, ou seja, às vésperas da descolonização, parece atrasada e sublinha a ilusão da religião imposta ao colonizado naquele momento específico.

Denis deu uma impressão sarcástica da perda de adesão religiosa com a incapacidade de Nansen de distinguir entre o conceito de evangelismo no início e no fim do colonialismo. Nansen não entende que os africanos, no fim dos anos 1950, o período contemplado pelo filme Chocolat, são diferentes dos estereótipos pré-coloniais quando se acreditava que [a África] era ‘sem deus’ antes da introdução do cristianismo pelos europeus.15. As cenas que mostram os africanos praticando outras formas de religião sem o conhecimento de Nansen testemunham, suficientemente, a limitação de sua percepção da força da fé dos africanos colonizados.

De fato, em Chocolat, diversas religiões africanas são profundamente enraizadas entre os nativos e, por isso, a fé africana invalida a afirmação de Nansen do entendimento cultural e religioso dos europeus de que os africanos eram incrédulos. O fato de a fé africana não ser visível para Nansen se manifesta quando, dentro do próprio quintal, Protée marca as mãos de France com sangue de animal,16 simbolizando uma forma de iniciação na fé africana. Marcando-a com sangue, Protée desmente a afirmação de Nansen de que evangeliza os africanos, indicando uma ironia dramática da sua evangelização e, assim, uma ridicularização da política cultural de assimilação do colonizador. O papel de Protée juntamente com a aceitação da iniciação por parte de France demonstram a ineficácia da religião de Nansen e da sua asserção de evangelizar os africanos que se baseiam na sua imposição religiosa. De fato, o ato de Protée mostra o ledo engano de Nansen ao inverter os papéis do proselitismo na África. É Protée, um africano, que assume o papel de converter France, uma europeia, para a religião africana. De alguma maneira, o seu papel imita o que Tracey E. Hucks17 descreve como uma aceitação da religião tradicional africana que continua a ganhar terreno no Ocidente.

Com a iniciação de France na religião africana, Nansen perde o seu poder e a sua importância como o decano religioso do cenário. Avaliando-se o papel de Protée, Nansen não é mais um missionário que ganha almas, mas aquele que as perde, sendo enganado por subestimar os africanos. Do mesmo modo, o fato de um africano mudar a religião de France prova que Protée - como os outros personagens africanos - rejeita a religião de Nansen e também simboliza, efetivamente, uma rejeição da supremacia europeia. Como a linha de horizonte engana, o papel de Protée indica que a vaidade de Nansen é uma decepção do seu conhecimento, que acaba esvaziando a sua afirmação de evangelizar a África. A incapacidade de Nansen de converter os africanos ao cristianismo destaca a base fraca da religião dos colonizadores, ao mesmo tempo em que sublinha a viabilidade das crenças africanas.

J. P. Daughton dá uma ideia da derrota da religião do colonizador, pois, às vésperas da descolonização - período em que se desenrola o filme Chocolat -, ficou revelado que a missão religiosa de Nansen estava "cheia de inconsistências, conflitos e contradições, a população indígena evitava, desafiava e resistia à autoridade francesa [europeia] - religiosa e oficial".18 No filme, não está em evidência o processo da evangelização: não há cenas na igreja, Nansen não prega. O fato de os personagens africanos ou europeus não praticarem o cristianismo é uma prova de que Nansen precisa rever e fazer uma análise profunda da sua evangelização que, na verdade, é semelhante à metáfora do horizonte - vista mas não viável.

Os africanos como um enigma para os colonizadores

As percepções dos colonizadores baseadas num horizonte limitado também se manifestam entre os visitantes de Marc - os passageiros do avião sinistrado. Por exemplo, quando Mireille, uma dos passageiros, adoeceu durante a noite, Marc foi buscar Dr. Prosper, o médico africano da sua família, para tratá-la. O marido de Mireille, Machinard, ficou atordoado e perguntou: “Não pode ser, Dalens, não tem outra pessoa para tratá-la? Minha esposa precisa de um médico de verdade19 (grifos meus). Sua indignação contra o fato de Dr. Prosper ser africano incita a repulsa de Luc e de outros passageiros que expressam conjuntamente o seu desprezo por Dr. Prosper e a sua desaprovação. Essa cena vem da ideologia do imperialista de subestimar a inteligência do colonizado. Porém, a presença de Prosper não somente desafia a superioridade dos colonizadores, mas também os intimida. Isso é verdade porque, sendo tácita a desaprovação a um colonizado inteligente, é uma confirmação da inferioridade de um colonizador. Tais papéis incitam a oposição binária que sustenta o colonialismo. Na superfície, Machinard e outros colonizadores somente consideram Dr. Prosper como um médico ignorante e inexperiente dentro do cenário sociopolítico, pois, sendo africano, o fato de Prosper ter tratado os Dalens no passado nada importa para os passageiros do avião.

No entanto, Frantz Fanon, no seu discurso, visualizou a cegueira de Machinard e outros colonizadores sobre o médico africano: “Como a cor da pele é o sinal exterior mais evidente de raça, torna-se o critério único para julgar as pessoas sem levar em conta suas conquistas escolares e sociais.20 (grifos meus)

Essa declaração é útil para entender como a visão pobre de Luc e de outros passageiros incita a sua incapacidade de olhar além do que se pode ver, ou seja, a competência de Prosper, um conceito que concorre com a competência de qualquer outro colonizador bem-sucedido, que é, intencionalmente, minada e rejeitada pelos hóspedes de Marc.

Pela desaprovação da competência médica de Prosper, uma especialidade que confere grande honra, a intencional percepção limitada dos colonizadores possibilita a Denis criar uma ligação entre eles e a política colonial contraditória de “missão civilizadora”, considerando-se o fato de que uma pessoa colonizada como Prosper foi instruída pelo sistema colonial francês de educação. Observando-se a sua formação, vê-se que a erudição de Prosper supera a da maioria dos colonizadores presentes na cena. Surpreendentemente, eles não podem perceber esse fato porque têm uma compreensão limitada dos africanos, interpretados por eles, erroneamente, como medíocres. Também os colonizadores não entendem a metáfora na interpretação literal do nome de Prosper - que se origina do verbo francês “prospérer” (‘prosperar’) - que o marca como uma pessoa colonizada bem-sucedida, colocando-o no mesmo nível dos colonizadores.

Quand Luc grita a Prosper "Negro nojento! Você, um médico?",21 sugerindo que ele seja incapaz de ser um médico, nenhum dos passageiros sabe que Marc encontrou Prosper em uma reunião noturna com outros homens colonizados. Eles não têm consciência do encontro dos homens colonizados que discutem sobre a governança autônoma nacionalista que desmontará, finalmente, a colonização. Nesse cenário, as elites africanas se escondem sob o manto da noite para encontrar-se e determinar o fim do governo opressivo do colonizador. A reunião de Prosper ainda reforça a metáfora da linha do horizonte para os colonizadores, pois eles não têm conhecimento do que se passa no seu entorno. Na escola, local da reunião em que se encontrou com Prosper, Marc mostra a sua ignorância ao perguntar a Protée o que Prosper e os outros fazem ali, no meio da noite. E Protée responde: “Eles estão conversando, senhor”.22 Ira Berlin esclarece a resposta de Protée mostrando que as reuniões noturnas são a estratégia usada pelos oprimidos para criar a autoconfiança e buscar maneiras de sair da escravidão.23 Apesar de Marc ser um oficial do distrito, a sua pergunta deve representar todos os colonizadores que não têm ideia do caráter dos africanos que eles governam. O conhecimento, a sabedoria, o respeito pelos outros parecem ser os valores que Denis acha importantes para os chefes colonizadores. Lamentavelmente, esses traços estão ausentes nos personagens brancos de Chocolat. O bloqueio é necessário para que a ignorância dos colonizadores seja enfatizada. A incapacidade de Marc de perceber o real objetivo da reunião de Prosper precipita a sua rejeição e reforça o não conhecimento dos colonizadores do plano das elites africanas que estavam tramando a saída dos colonizadores.

Os colonizadores não somente demonstram a limitação de sua opinião sobre os africanos, mas também as perspectivas da paisagem africana são afetadas na sua incapacidade de entender a atitude evasiva do poder colonial na África. Por exemplo, a festa de despedida de Machinard, que foi comemorada na casa dos Dalens, tem como cenário o imperialismo decadente simbolizado pela noção da ligeira inclinação do poste da bandeira francesa contraposta com a gigante montanha africana fálica que aponta para o céu. O poste da bandeira, símbolo do governo colonial, é frágil e sugere a fraqueza do poder colonial; em contraposição, vê-se a imensa montanha africana que representa um símbolo da tenacidade dos africanos colonizados. Como ambos os símbolos apontam para o céu, é importante que apenas a montanha africana mostre uma sólida base ampla sugerindo a sua imutabilidade na terra.

Na cena, enquanto Marc e Machinard ouvem o toque da corneta do exército francês, eles ignoram a montanha africana e escolhem focar-se na bandeira, o emblema da presença e da autoridade francesa, elevada no mastro frágil. Sem dúvida, eles não têm consciência da fragilidade do mastro que simboliza a fraqueza do poder colonial. Apesar disso, o som vibrante da corneta incentiva-os a acreditar falsamente na durabilidade do império. É interessante notar também que o mesmo som vibrante da corneta é enganador, e os faz negligenciar a importância da montanha africana como um ícone potencial e simbólico do poder dos africanos. O mastro da bandeira e a corneta bloqueiam a percepção dos colonizadores da montanha africana que simboliza a visível - embora para eles imperceptível - linha do horizonte no cenário. Consequentemente, o mastro frágil demostra o poder decadente dos colonizadores, que logo será destruído pela imensa montanha africana que se eleva sobre Marc, Marchinard e a sua bandeira.

A negligência de Marc e Machinard em relação às mudanças situacionais e à perda iminente do império na África ressoa em outro trabalho recente de Denis, White Material.24 O aviso escondido no horizonte direcionado à incapacidade de Marc e Machinard de ver e apreender a África pode ser comparado ao aviso de evacuação do país africano devastado pela guerra em White Material, que foi rejeitado muitas vezes pelo protagonista francês Marie Val, arriscando a sua família e a economia. Nos dois filmes, os papéis de Marie, Marc e Machinard refletem o de chefes imprudentes que sofreram as consequências da sua incapacidade de descobrir o território que administram, ou seja, a África. De modo particular, Marc e Machinard contam apenas com o seu poder político, o que representa a sua vaga segurança na África.

De diversas maneiras, Denis usa a metáfora da linha do horizonte por meio da percepção limitada do colonizador em Chocolat. O papel desempenhado por Luc não é menos importante. O fato de ele pertencer ao grupo hegemônico o faz xingar os africanos, não obstante a sua posição social ou seu nível de educação, como se vê na tentativa de humilhar Dr. Prosper ou o servo Protée. Acreditando aparentemente na perpetuidade do poder colonial, o papel de Luc é codificado com uma promessa falsa de poder que aponta uma linha do horizonte metaforicamente ausente. Sendo embriagado pelo poder, Luc não está consciente da capacidade de criar limites às suas práticas excessivas, e, então, insulta Protée enquanto ele realiza as suas tarefas. Numa briga, Protée o empurra do ponto elevado de um pátio.25 A queda de Luc torna-se importante, pois a briga significa um alerta para ele, que tem se enganado com a linha do horizonte ao pensar que o império colonial e o poder dos colonizadores não pode ser contestado.

A queda de Luc indica a expulsão do imperialista, uma situação que apoia o seu fraco poder e prevê o fim das relações interculturais no regime colonial. A luta resolve, finalmente, a fixação de fronteiras territoriais que Luc, o medíocre mas grande agressor, atravessa constantemente no cenário. A sua partida, que acontece sem cerimônia, não somente prefigura a derrota da hegemonia entre a camada social em Chocolat, mas também testemunha sua incapacidade de apreender a força real dos colonizados dos anos 1950 - época de ativo nacionalismo anticolonial - que confirma que Protée não é realmente um empregado, mas pode disputar normalmente com qualquer colonizador. O fato de Luc não olhar além da linha do horizonte não o faz perceber que a relação binária do poder imperial entre o centro e a margem não é sustentável. Esse obstáculo indica um meio desconstrutivista pelo qual Denis reescreve a história do encontro intercultural contra a insolência dos colonizadores.

Enquanto a disputa do poder colonial é uma luta masculina,26 as relações interculturais entre o colonizador e o colonizado incorporam, também, as questões do gênero e os conflitos de geração entre os colonizadores em Chocolat. Aimée, por exemplo, vive sob a ilusão do império eterno como os seus outros colegas masculinos. Ela controla e domina os seus empregados colonizados mesmo sem ter consciência do estado mental deles. Pensando nos africanos somente pela linha do horizonte ilusória, Aimée não tem como conhecer as suas capacidades. Por isso, as interações dos empregados com ela revelam o seu conhecimento limitado, um ato que desafia o seu domínio sobre os servos. Robespierre, o jardineiro africano, tendo tolerado os gritos e as ordens confusas de Aimée, joga fora as suas ferramentas de trabalho no momento em que ela vira as costas no jardim.27 Quando ela dá ordens confusas na preparação das refeições, ela fala em inglês incoerente, o que faz com que Enoch, um camaronês anglófono ria-se dela.28 Enoch coloca em xeque as suas ordens ao repreendê-la de uma maneira que sugere uma inversão da sua posição, induzindo o fato de que suas ordens não podem mais intimidá-lo. As atitudes de Aimé indicam a sua incompetência em entender o colonizado sob a sua jurisdição. Sua insensibilidade para com eles representa sua opinião obscura da capacidade dos colonizados, e coloca nela a ilusão que prediz a perda inevitável do poder francês na África colonial.

O clímax da ignorância de Aimée a respeito dos colonizados se manifesta quando ela acaricia a perna de Protée, e ele responde, puxando-a rudemente da sua posição curvada.29 O ato prova que ela não conhece totalmente Protée; a incapacidade de reconhecer o seu potencial explica sua malsucedida tentativa de dominar o desejo dele, mas ele resiste. Já que ela não conhece a dignidade do colonizado, não pode mais controlar Protée, o que leva à queda dela da escada do poder, que se torna uma forma de castigo que também julga o colonizador em suas relações com o colonizado.

Após esse erro, France visita Protée no abrigo do gerador de energia, onde ele se refugiou. Ela pergunta a ele, referindo-se ao gerador: “Pode queimar?”.30 Como resposta, Protée segura o cano quente, convidando France a fazer o mesmo. Contando com a amizade que prova que ela conhece Protée, ela segura o cano e se queima. Como os mais velhos do seu clã, ela subestima a capacidade de Protée e queima-se por ficar na linha do horizonte metafórica. Denis puniu a criança colonizadora mostrando a ela a oposição e não a aliança revelada no empregado africano. Independentemente da sua amizade, a palma de sua mão queimada a faz criar outra opinião sobre o empregado africano que ficara até então escondida dela. A queimadura fala muito da identidade escondida de Protée aos observadores; ele um amigo, um protetor, um empregado e um amo torna-se um fogo desconhecido que queima o passado feliz entre ele e France. Então, as suas mãos queimadas representam um ato simbólico: as duas mãos - símbolos de iniciação religiosa e do aperto de mão de outrora que significa a amizade - agora queimadas por iniciativa do africano - mostram a real animosidade que não fora descoberta pela companheira branca até aquele momento.

O que nos vem à mente são as maneiras agressivas com que alguns países africanos romperam com o governo colonial francês. Entre outros, a descolonização sangrenta na Argélia e na Guiné de Sékou Touré exemplificam a separação entre Protée e France em Chocolat. A última inter-relação entre Protée e France mostra, de novo, a limitação do colonizador em saber o que, quem e como os africanos querem que seja o fim da era de colonização.

Nesse ponto, é bom abordar uma análise crítica da terceira menção à linha do horizonte - a cena calma, no fim da retrospectiva, em que Protée, vestido de camisa branca e short, senta-se numa elevação imensa da montanha e, estoicamente, olha para o horizonte que tem um foco amplo de câmera no céu.31 Essa cena parece ser uma mensagem importante para os telespectadores decifrarem. Sem a presença de um colonizador, a cena, com aquela posição da câmera, não é acidental nem ambígua; requer, portanto, mais análise. Em primeiro lugar, a toga de Protée cria uma afirmação de Protée, a julgar-se pela maneira como ele se sentou com uma aparente autoconfiança, olhando um pouco para o oeste. A cena também é uma apelo para que os telespectadores igualem Protée, um africano, com a linha do horizonte à vista.

A sua posição dominante significa um empregado transformado e, por implicação, o colonizado cuja identidade misteriosa foge, todo o tempo, à compreensão dos colonizadores. A sua postura nessa cena indica, ainda, que a impressão do colonizador de conhecer e dominar o colonizado nada mais é que um ledo engano. Na percepção dos observadores, a posição de Protée iguala-se ao horizonte amplo e simboliza a metáfora de um transformando-se no outro. A sutileza entre os dois faz com que os observadores vejam o que está escondido ao colonizador, que está intencionalmente ausente nessa cena em que o colonizado fica no mesmo nível com a linha evasiva do horizonte. A ausência do colonizador na cena constitui uma limitação da sua opinião/poder. É importante como essa cena - uma ironia dramática - reforça a existência do seu poder percebido e a incapacidade de ver o império se desmoronando. Além disso, o fato de que os africanos ocupam aquela linha do horizonte metafórica indica que a descoberta das capacidades dos africanos por parte dos colonizadores nas relações interculturais não está clara. Como ainda não terminamos a interpretação da linha do horizonte nesse filme, vamos argumentar que a cena sob consideração é outra ferramenta usada por Denis para ligar a retrospectiva ao presente do filme.

Os ocidentais e seu engano contínuo a respeito dos africanos na era pós-independência

Na primeira cena de Chocolat, quando France, adulta, retorna aos Camarões, encontra-se com um homem, Mungo, e o filho dele na praia e acredita que são camaroneses. Mais tarde, quando viaja com eles, Mungo compartilha charadas africanas com o seu fi semelhantes ao que Protée compartilhava com France quando eram crianças. As charadas de Mungo enganam ainda mais a adulta France, que chegou a acreditar que ele era africano. Na verdade, essa cena sublinha a natureza da linha do horizonte que causa decepção e representa a opinião dos ocidentais sobre a história conjunta dos africanos. A identidade de Mungo permanece escondida até o fim do fiashback, quando se apresenta como William Park, cujo apelido era Mungo, um afro-americano que tinha ido à África em busca das suas raízes. Na perspectiva de France, o fato de Mungo não ser um camaronês apoia o nosso debate sobre a incapacidade de os europeus/ocidentais conhecerem os africanos, conforme o sentido simbólico da inexistente linha do horizonte. A sua incapacidade de identificar Mungo e seu filho cria uma outra camada de enigma para a adulta France, salientando a sua complexidade em mal-entender a identidade intercultural africana.

Como afro-americano, Mungo perde a oportunidade e não consegue descobrir a natureza dos africanos. Ele fala da sua “chegada em casa", ou seja, do seu retorno definitivo para a África: "No dia em que cheguei à África... Eu queria abraçar os agentes da imigração africanos meus irmãos. Eu me dizia: ‘É isso aí, cara! Você chegou em casa’. Eu dizia meus irmãos para cá, meus irmãos para lá...”32

Mas os africanos afastam-se dele, exatamente como a linha do horizonte afasta-se de quem dela se aproxima. Mesmo que o relato de Mungo não seja sobre a sociedade norte-americana, a sua história é semelhante à estrutura daquela sociedade. A história de Mungo não somente evoca a metáfora da sua limitação e rejeição pelos africanos, mas a sua experiência também segue a realidade autêntica da limitação. É especialmente marcante que a crença de Mungo em voltar para a África carrega e faz recordar um dos ecos do “Movimento Volta para a África”. Em particular, o assunto da realidade da inexistente linha do horizonte para a campanha dos afro-americanos de voltar à África continua em Chocolat na maneira como o diretor usa a decepção de Mungo na África para encarar a preferência de Keith B. Richburg (um afro-americano) pela América, considerando a disparidade extensa entre a África e a sociedade americana ocidentalizada.33 É interessante notar que a romantização da África pelos afro-americanos somente existe no nível imaginário, uma vez que a África, que eles consideram como a sua raiz, não é um lugar a que eles devem voltar, pois eles sempre continuarão ocidentais.

William Park, chamado de Mungo pelos africanos,34 é um ocidental cujo sobrenome Park e o apelido Mungo são os mesmos do famoso explorador escocês Mungo Park (1771-1806) que veio para a África Ocidental a fim de descobrir a fonte do Rio Níger. Ele chegou ao continente, mas morreu antes de alcançar seu destino.35 Como Mungo Park não conseguiu penetrar o coração da África, (William) Mungo Park, em Chocolat, não pode também penetrar o coração dos africanos, e isso simboliza a sua rejeição pelos africanos. Mungo é, afinal, um ocidental cujo nome já o identifica como tal, e isso impede qualquer interação com os africanos. Essa impossibilidade de ele descobrir a África torna-se mais clara quando os mesmos africanos com os quais ele gostaria de se conectar rejeitam-no na verdade, dando-lhe o apelido, Mungo, fazendo com que os telespectadores percebam que Mungo, em Chocolat, é um explorador condenado ao fracasso - do mesmo modo que seu xará, que não conseguira descobrir a África -, pelo fato de que a percepção de William Mungo Park da África é imbuída de engano da inexistente linha do horizonte metafórica, mesmo antes de ele pisar o solo da África.

Considerações finais

As cenas estudadas do filme Chocolat demostram que quanto mais os personagens ocidentais procuram conhecer os africanos e a África, mais eles se enganam e mais sua ignorância se evidencia. A metáfora da incapacidade de conhecer os africanos se manifesta sempre no fim de cada relacionamento ou encontro entre os africanos e os ocidentais. Castigando os colonizadores e os ocidentais por serem incapazes de descobrir a verdadeira natureza dos africanos e da África, a suposta superioridade cultural dos colonizadores torna-se desafiada e condenada. Desse modo, a oposição binária da superioridade orgulhosa de si sobre o outro permanece inválida, se se considera o fracasso de personagens ocidentais em entender a realidade ideológica dos africanos. Além disso, o resultado de cada encontro entre os africanos e os ocidentais indica que esses últimos não conheciam nem chegaram a descobrir os africanos, mesmo depois do fim do imperialismo. A incapacidade de descobrir os africanos justifica, necessariamente, o uso da linha do horizonte por Denis e aponta para sua preferência metafórica que impede os ocidentais de controlar as relações sociais e culturais entre eles e os africanos.

Apesar disso, Chocolat apresenta um microscópio fascinante para estudar os detalhes das inter-relações entre os africanos e o Ocidente. É muito importante destacar que uma criança foi escolhida como narradora desse relacionamento. A sua inocência como criança dá ao público a oportunidade de fazer uma avaliação imparcial dos papéis verdadeiros de cada lado do poder - colonizador / colonizado, africanos / ocidentais. Essa responsabilidade indica uma mudança de paradigma da representação do Outro pelo Ocidente; indica, também, uma nova orientação dos escritores franceses e diretores de cinema em avaliar as relações binárias entre o Ocidente e o Outro. Porém, a parte mais assustadora desse trabalho é o fato de que a narradora, a pequena France, tem o mesmo nome da França - o grande colonizador. O nome dela, os seus papéis e as suas avaliações da longa relação provocam algumas perguntas. Por que tal trabalho que condena os crimes dos colonizadores foi lançado quase quatro décadas após o fim da colonização? Por que Denis escolheu uma criança como a narradora do filme para representar sem remorso a hipocrisia e as mentiras do colonizador? Em Chocolat, o estilo de Claire Denis e seu objetivo apelam para um novo olhar sobre a veracidade de si e do Outro. Este estudo sugere, assim, uma reavaliação das perspectivas dos escritores/diretores franceses nas suas representações do colonizador e do colonizado, dos africanos e dos europeus/ocidentais.

Notas

1 Ver Bill Ashcroft, Garreth Griffiths e Helen Tiffin, "Introduction", in Bill Ashcroft, Garreth Griffiths e Helen Tiffin (orgs.), The Post-Colonial Studies: Reader (New York: Routledge, 2006), pp. 1-6.
2 Nesse filme, os personagens franceses desempenham papéis preponderantes. Os papéis do personagem inglês, do norueguês (ambos europeus) e do afro-americano também permitem um olhar profundo na perspectiva dos africanos — isso explica o uso do termo ocidentais para sinalizar uma interseção das perspectivas dos europeus da África. Quando for necessário, vou delinear a origem das três últimas etnicidades nesta obra crítica.
3 Isso não serve para falar do tema da resistência em Chocolat. Em vez disso, o foco crítico está no impacto da linha do horizonte no poder colonial sobre os personagens colonizados. Em geral, esse debate mostrará que a incapacidade dos ocidentais em reconhecer a ineficácia do binarismo das relações interculturais leva à derrota da hegemonia na África colonial.
4 Chinua Achebe, "Colonialist Criticism", in Bill Ashcroft, Garreth Griffiths e Helen Tiffin (orgs.), The Post-Colonial Studies: Reader (New York: Routledge, 2006), p. 74.
5 Abdul R. JanMohamed, “The Economy of Manichean Allegory”, in Bill Ashcroft, Garreth Griffiths e Helen Tiffin (orgs.), The Post-Colonial Studies: Reader (New York: Routledge, 2006), p. 20.
6 Achille Mbembe concorda com Edward Said a respeito da continuidade pós-independência do Orientalismo como uma empresa acadêmica sobre o Oriente e o oriental. Ver Edward Said: "Orientalism", in Bill Ashcroft, Garreth Griffiths e Helen Tiffin (orgs.), The Post-Colonial Studies: Reader (New York: Routledge, 2006), p. 20.
7 Achille Mbembe, On the Postcolony, Berkeley: University of California Press, 2001, pp. 2-3.
8 Daniel Novak, “Horizons of the Visible”, Novel: A Forum on Fiction, v. 34, n. 1 (2000), pp. 123-5.
9 A primeira menção do horizonte é evocada depois que France viu o avião de passageiros voando no céu. Ela fez uma pergunta inocente de criança pedindo se aviões caem nas montanhas. O seu pai respondeu, “Non, les avions ne tombent pas dans la montagne. Ils volent au délà de l’horizon.” [Não, os aviões não caem na montanha. Eles voam além do horizonte]. Essa referência somente aponta à segunda e mais detalhada explicação do horizonte que é de interesse superior nesse estudo. As traduções são todas minhas assim como os grifos usados ao longo deste texto.
10 "Tu veux toujours savoir ce que c'est, la ligne d'horizon? [...] Quand la terre touche le ciel, exactement, c’est l’horizon. Demain quand il fera jour il faudra que je te montre quelque chose. Plus tu t’approches de cette ligne, plus elle s’éloigne. Si tu marches vers elle, elle s’éloigne, elle te fuit. Ça aussi il faudra que je t’explique. Tu vois cette ligne, tu la vois, elle n’existe pas.” Claire Denis, Chocolat, New York: Orion Home Video, 1989, 01:26:21-01:27:24.
11 Marc em Chocolat e Jean-Baptiste em Indochine são colonizadores simpáticos. A semelhança entre os dois personagens explica como o cinema contemporâneo sobre as colônias usa a imitação não somente para historicizar o colonialismo, mas também para condená-lo quando for necessário. Ver Dina Sherzer, Cinema, Colonialism, Postcolonialism: Perspectives from the French and Franco- phone Worlds, Austin: University of Texas Press, 1996, p. 9. A referência de Marc sobre o horizonte sugere um aviso destinado aos colonizadores, ao passo que a defesa aberta de Jean-Baptiste dos asiáticos colonizados é mais de um rompimento intervencionista da violenta administração francesa.
12 Mary Louise Pratt, Imperial Eyes: Travel Writing and Transculturation, New York: Routledge, 2006, p. 9.
13 “Marie-Jeanne: S’il a des poils sur les épaules, il a des poils aux fesses (rire). Ton Anglais, il est plus beau quand il est habillé. France: Ce n’est pas mon Anglais. Marie-Jeanne: Tu as vu ses jambes, ma fille, on dirait des brindilles." Denis, Chocolat, 40:1-40:46.
14 “Mais je dois évangéliser les gens ici. Moi, soldat de Dieu, tout va bien.” Denis, Chocolat, 29:34-29:40.
15 William Baldridge, "Reclaiming Our Histories", in Bill Ashcroft, Garreth Griffiths e Helen Tiffin (orgs.), The Post-Colonial Studies: Reader (New York: Routledge, 2006), p. 529.
16 Denis, Chocolat, 29:56-30:08.
17 Tracey E. Hucks, “From Cuban Santería to African Yorùbá: Evolutions in African American Òrìsà History, 1959-1970”, in Jacob Kehinde Olupona e Terry Rey (orgs.), Devotion as World Religion: The Globalization of Yorùbá Religious Culture (Madison: University of Wisconsin Press, 2008), p. 345.
18 J. P. Daughton, An Empire Divided: Religion, Republicanism, and the Making of French Colonialism, 1880-1914, New York: Oxford University Press, 2006, p. 263.
19 “Ce n’est pas possible? Dalens, vous n’avez personne d’autre pour la soigner? Ma femme, il lui faut un vrai docteur.” Denis, Chocolat, 01:14:45-01:14:50.
20 Comme la couleur est le signe extérieur le mieux visible de la race, elle est devenue le critère sous l’angle duquel on juge les hommes sans tenir compte de leur acquis éducatifs et sociaux.” Frantz Fanon, Peau noire, masques blancs, Paris: du Seuil, 1971, p. 97.
21 “Sale nègre! Docteur, toi?” Denis, Chocolat, 01:15:07-01:15:11.
22 “Ils parlent, monsieur”. Denis, Chocolat, 01:13: 15-01:13:16.
23 O encontro à noite deu-se em um período em que os oprimidos discutem como lutar contra a subjugação da hegemonia, como também se vê na história e na literatura afro-americanas. Como maneira de resistir à repressão da hegemonia branca dos escravos urbanos, o encontro noturno é um dos momentos de autoconfiança no qual os afro-americanos discutem como sair da escravidão. Ver Ira Berlin, Generation of Captivity: A History of African American Slaves, Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press, 2009, p. 79.
24 Claire Denis, White Material, Irvington, New York: The Criterion Collection, 2010.
25 Denis, Chocolat, 01:24: 07-01:24: 32.
26 Christopher Miller, Nationalists and Nomads. Essays on Francophone African Literature and Culture, Chicago: University of Chicago Press, 1998, p. 122.
27 Denis, Chocolat, 33:42-33:44.
28 Denis, Chocolat, 30:26-31:53.
29 Denis, Chocolat, 01:25:36- 01:26:09.
30 “Est-ce que ça brûle?” Denis, Chocolat, 01:31:57- 01:32:21.
31 Denis, Chocolat, 01:29:51- 01:30:02.
32 “Le jour de mon arrivée en Afrique… J’avais envie d’embrasser les douaniers mes frères. Je me disais ça y est man, tu es rentré chez toi… je me suis dit mes frères par ci mes frères par là...” Denis, Chocolat, 01:36:16-01:37:26.
33 Keith B. Richburg, Out of America: A Blackman Confronts Africa, New York: Basic Books,1997, p. xx.
34 Denis, Chocolat, 01:35:38-01:35:47.
35 Mungo Park (1771-1806), um cirurgião britânico veio para explorar a África no final do século dezenove com patrocínio da Associação para a Promoção da Descoberta das Regiões Interiores da África. O seu objetivo era descobrir a fonte do Rio Níger, um rio principal que corre por cinco países diferente na África Ocidental. Ele morreu na Nigéria, longe da fonte do rio que é localizada no norte da África Ocidental, na região do Futa Djalom. Ver Guy Arnold, World Strategic Highways, New York: Routledge, Kindle Edition, 2000, p. 98.


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