BIBLIOTECA DE CLÁSSICOS
Recepção: 22 Janeiro 2018
Aprovação: 20 Junho 2018
Resumo: Neste texto, Michel-Rolph Trouillot (1949-2012) procede a uma revisão bibliográfica crítica da produção caribeanista, focando, sobretudo, em trabalhos publicados em língua inglesa entre meados da década de 1970 e 1992. O ensaio se organiza em torno de três grandes temas e suas ramificações: heterogeneidade, historicidade e articulação, este último relativo à natureza e aos limites das unidades de observação ou de análise. No artigo, Trouillot trata tanto do Caribe, tal como visto pela antropologia, quanto da antropologia, tal como vista a partir do Caribe, e discute, também, a questão do estatuto epistemológico dos discursos nativos na disciplina.
Palavras-chave: teoria cultural, sociedades complexas, história, vozes nativas, unidades de análise.
Abstract: Michel-Rolph Trouillot’s (1949-2012) article is a critical review of Caribbeanist studies, with special focus on works published in English between the 1970s and the early 1990s. His arguments turn on three major themes and their repercussions: heterogeneity, historicity and articulation - the latter relating to the nature and limits of the unit of observation or analysis. Trouillot engages both the Caribbean, from an anthropological perspective, and anthropology, from a Caribbean perspective, and also considers the matter of the epistemological status of native discourse.
Keywords: culture theory, complex societies, history, native voice, units of analysis.
Michel-Rolph Trouillot (1949-2012), nascido no Haiti, em família de intelectuais, ainda jovem radicou-se nos Estados Unidos, após perseguições do regime ditatorial de François Duvallier aos intelectuais de seu país no final dos anos 1960,1 obtendo seu doutorado, em 1985, na University of John Hopkins, no Programa de História e Cultura Atlântica, fundado por outros dois proeminentes caribeanistas, Sidney Mintz e Richard Price. Trouillot lecionou na Duke University (1983-1988) e na John Hopkins (1988-1998), antes de tornar- se professor do departamento de antropologia na University of Chicago, onde lecionou até ter tido sua carreira prematuramente interrompida por graves problemas de saúde em 2002, que acabaram resultando em seu falecimento dez anos depois.2 Ao longo de sua relativamente curta carreira acadêmica, chegou a ocupar, possivelmente, o posto de intelectual caribenho mais lido e discutido por antropólogos especialistas e não especialistas na região. Corporificando a heterogeneidade caribenha sobre a qual trata, Trouillot escreveu livros em kreyòl haitiano, francês e inglês, para não falar nos mais de quarenta artigos que publicou entre 1981 e 2002.3
Trouillot ganhou notoriedade sobretudo após a publicação de Silencing the Past: Power and the Production of History.4 Nessa obra, analisa os dividendos das partições ontológicas e políticas pressupostas nas reflexões de intelectuais euro-americanos sobre a Revolução Haitiana. A ação revolucionária de pessoas escravizadas, sua ação política e as consequências de seus atos, bem como a indissociabilidade da Revolução no Haiti com sua contraparte na França, revelam a incapacidade do pensamento ocidental de entender a revolução haitiana em seus próprios termos. Os contemporâneos da revolução, dentre os quais eminentes pensadores iluministas, só podiam ler as notícias sobre a revolução com categorias preconcebidas.5 Desse modo, a revolução haitiana era impensável em seu tempo, em vista dos pressupostos das categorias de análises mobilizadas para pensar esse evento, que acabava por ser compartimentalizado em ordens discursivas que lançavam mão de categorias com pretensão de universalidade, mas que, na prática, originaram-se da experiência histórica provincial da Europa.6 Em resumo, o problema não é só que o passado é fruto de políticas do presente, mas, antes, que toda e qualquer forma de conhecimento histórico não escapa ao condicionamento das políticas passadas de criação e transmissão de ‘fatos’ históricos.7
Silencing the Past traz a marca de um estilo (e intervenção) de pensamento próprios a Trouillot. Por meio de análises de casos específicos, Trouillot não só subverte interpretações consolidadas sobre certos eventos - seja a revolução haitiana, seja a história do campesinato da Dominica,8 para ficar apenas com dois exemplos - como procede a um exame crítico do aparato teórico-conceitual-metodológico mobilizado por disciplinas das humanidades, notadamente a história e a antropologia. Nesse sentido, os dispositivos conceituais de compartimentalização e enquadramento de processos políticos, econômicos, sociais e históricos - como os conceitos guarda-cancelas esmiuçados no artigo aqui traduzido, a prática de situar ‘nativos’ em “compartimentos selvagens”9 - são escrutinados pelo autor: longe de circunscrever seu interesse a uma área do globo, Trouillot oferece contribuições teóricas à disciplina.
Note-se, de passagem, que a questão das fronteiras - tão central no artigo aqui traduzido - coloca em cheque dicotomias consolidadas na tradição intelectual das ciências sociais no mesmo movimento em que repensa o próprio quadro temporal no qual as análises de pensadores euro - americanos se sustentam. Nesse tocante, o pensamento de Trouillot ecoa, por certo, as intervenções críticas de eminentes pensadores caribenhos, como Eric Williams, Fernando Ortiz, Aimé Césaire, C. L. R James, acerca da modernidade. Como notou Palmié,10 é somente ignorando o genocídio de populações autóctones, a escravização e o tráfico de africanos e os efeitos duradouros do complexo agroindustrial da plantation, que as ciências sociais euro-americanas podem representar, de modo crível, a modernidade como um fenômeno europeu endógeno.
Esse pano de fundo ajuda-nos a situar “The Caribbean: an Open Frontier in Anthropological Theory" em um quadro de reflexões mais amplo. De fato, passaram-se mais de 25 anos desde que essa revisão bibliográfica da produção antropológica sobre o Caribe foi escrita por Trouillot e publicada no Annual Review of Anthropology. De lá para cá, o texto tornou-se um clássico entre os caribeanistas, uma das mais aguçadas reflexões sobre as questões que movimentaram estudos feitos sobre e no Caribe. Ademais, trata-se de um dos mais bem-acabados exemplos que conhecemos de revisão bibliográfica de uma produção regional, em parte por incluir um nível metateórico que enfrenta a questão de como uma "região etnográfica" toma forma no encontro entre uma disciplina acadêmica e um espaço historicamente delimitado.
Apesar da importância e do impacto do artigo, 25 anos não deixa de ser um tempo considerável. Cabe perguntar, portanto, em que medida o texto de Trouillot continua relevante no âmbito dos estudos caribenhos. Mais importante, cabe interrogar quais as contribuições que tal texto pode trazer para um público brasileiro não especialista na região. Para tanto, destacamos a relevância mais ampla - extracaribeanista, digamos - do texto em seu contexto original de publicação. O foco da revisão de Trouillot foi a bibliografia anglófona produzida sobre o Caribe, sobretudo ao longo dos anos 1970 e 1980, e parte do objetivo do autor era divisar em que medida a produção caribeanista - e, a fortiori, o próprio Caribe - colocaria desafios à antropologia no que concerne ao enfrentamento de problemas teóricos, metodológicos, políticos e epistemológicos que se apresentavam à disciplina no início da década de 1990.
A disciplina lidava, então, com os efeitos da explosão pós-moderna e sua violenta crítica ao estilo literário, retórico e científico presentes na disciplina desde Malinowski. Críticas feministas e pós-coloniais consolidavam-se e propunham não apenas epistemologias descentradas, mas também modificações na divisão do trabalho acadêmico - como demonstrava o crescimento dos programas de pós-graduação focados não em disciplinas mas em “estudos de área” (area studies). O mundo tentava entender as mudanças nos processos de mobilidade e transmissão de informação, bem como os efeitos de novos desenhos das cadeias produtivas e de novos papéis dos estados-nação sobre as pessoas de todo o mundo - globalização e neoliberalismo eram alvo de crescente reflexão acadêmica e política. Dicotomias clássicas como tradição/modernidade passavam por reexames à medida que, em todos os continentes, ressurgências étnicas e fenômenos congêneres apresentavam novas formas de ser “nativo”. Em suma, formas de complexidades e heterogeneidade que, até então, podiam ser largamente ignoradas pelos métodos e teorias antropológicos estabelecidos ganhavam o centro do palco.
O Caribe parecia oferecer algumas possíveis pistas sobre como lidar com esses dilemas.11 A região fora - e talvez continue sendo - uma espécie de laboratório da empreitada colonial europeia, no qual todas as potências coloniais tiveram presença em algum momento. Diversas formas de trabalho escravo e servil foram experimentadas, diversos esquemas de governamentalidade e de relação colônia-metrópole, fazendo emergir uma diversidade de formas de vida, muitas das quais resultantes da resistência e da criatividade dos que supostamente eram subjugados pelas potências europeias. Variadas formas de vida coexistiam, às vezes muito próximas umas às outras, e as formas de relações entre elas sempre foram igualmente diversificadas - fronteiras ganharam no Caribe usos e formatos que não correspondiam nem a como a Europa imaginava a si mesma, nem a como a mesma imaginava seus Outros ditos “selvagens”. Como coloca Trouillot, “esses não eram exatamente lugares para se procurar primitivos. Sua própria existência questionava a dicotomia Ocidente/não-Ocidente e a categoria de nativo, premissas sobre as quais a antropologia se baseava”.12 Os autores que tentaram escrever sobre o Caribe - norte-americanos, europeus, mas também muitos nascidos na região - raramente foram capazes de utilizar os modelos teórico-metodológicos oferecidos pela antropologia sem que os mesmos passassem por algum tipo de reformulação radical. No momento em que a antropologia buscava reformular radicalmente seus modelos - em razão de críticas à sua história colonial e à sua epistemologia eurocentrada e, também, a mudanças geopolíticas percebidas -, o Caribe se configurava enquanto contraponto aos modelos teóricos consolidados da disciplina.
Uma ancoragem forte da teoria social na história, que serviria de alternativa aos modelos sincrônicos então enfraquecidos. Reflexões críticas sobre a ideia de modernidade e seus efeitos sobre as populações excluídas das narrativas e dos benesses dessa “Grande Transformação”. Conceitos - como hibridez, mestiçagem e crioulização - que buscavam dar sentido a heterogeneidades e complexidades, notadas desde sempre no Caribe e cada vez mais no resto do mundo. Formas heterodoxas de pensar os contornos das “comunidades” ou outras unidades de análise tidas como dadas na metodologia antropológica modernista. Eis algumas questões que cientistas sociais trabalhando no Caribe desde o início do século XX vinham pensando e que pareciam ser de interesse crescente no campo das humanidades, nos primeiros anos da década de 1990. Os debates de caribeanistas dos anos 1970 e 1980, de acordo com Trouillot, pareciam alcançar um grau de maturidade suficiente para que servissem aos interesses mais amplos da “guilda” ou “corporação” antropológica. A partir da percepção de uma eminente mudança na relação entre centros e periferias, o Caribe, região que merecera interesse periférico por parte do cânone antropológico, parecia então atrair os olhos do centro.
Trouillot, entretanto, não se contenta em apresentar tais características do Caribe como autoevidentes, tampouco redunda num construtivismo ingenuamente radical que ataca a imagem acadêmica do Caribe por não guardar quaisquer relações empíricas relevantes com as realidades estudadas e vividas. Mesmo quando fala de fatos e temas “inescapáveis” no estudo do Caribe - historicidade, colonialismo, heterogeneidade -, o autor busca desenredar o fio entre descrição de um objeto empírico e construção desse mesmo objeto pelo discurso científico o fio que faz emergir teorias distintas de diferentes regiões etnográficas Talvez uma das frases mais lapidares do texto seja sua abertura: “O encontro entre a teoria antropológica e qualquer região do globo diz tanto sobre a antropologia quanto sobre essa região”.13 Tal frase pode soar quase óbvia, mas é um manifesto e posicionamento críticos que demonstram capacidade de síntese invejável.
É em parte esse tipo de fineza na análise que torna o texto de Trouillot relevante ao público brasileiro, mesmo 25 anos depois. O autor não soa em nada datado, ao discutir, com um pé no Caribe e outro na antropologia, questões perenes para qualquer disciplina - como a das unidades de análise -, ou ao formular perguntas fundamentais sobre o “estatuto epistemológico” e a “relevância semiótica” do discurso nativo. O que faz as palavras do autor reterem seu frescor talvez seja a capacidade de evitar tanto construtivismos quanto reificações. Ademais, esperamos que seja patente que as questões candentes para a antropologia dos anos 1990, que sublinhamos nos parágrafos acima, estejam longe de terem ganhado respostas satisfatoriamente consensuais na nossa ou em qualquer outra disciplina. O conhecimento da produção feita no e sobre o Caribe ainda pode beneficiar o leitor, em particular o leitor brasileiro, para quem os casos caribenhos apresentam muitas possibilidades comparativas. As semelhanças e diferenças entre o passado e o presente brasileiros e caribenhos - no que tange à raça, ao gênero, à colonização, ao trabalho, à religião e à família, apenas para ficar nos exemplos mais óbvios - são de extrema potência heurística, mesmo para investigadores que nunca colocaram os pés no Caribe.14 Aliás, Trouillot encerra seu texto propondo um programa de possíveis comparações intracaribenhas pouco óbvias, nas quais podemos nos basear para gerar comparações extracaribenhas igualmente instigantes.
Assim, com a tradução deste texto de Trouillot, esperamos fornecer uma pequena contribuição para preencher a lacuna que promove entre nós a ignorância sobre o que se passa e o que é escrito sobre essa região tão fascinante das Américas,15 uma debilidade promovida por certas formas de produção e circulação do conhecimento, ainda muito centradas nos interesses aos euro-americanos, é preciso dizer. Como diz o autor, o Caribe, enquanto conjunto complexo, é um desafio à ciência social ocidental, e à antropologia, em particular. Nossa esperança é que o desafio seja encarado por cada vez mais estudiosos.
A REGIÃO DO CARIBE: UMA FRONTEIRA ABERTA NA TEORIA ANTROPOLÓGICA*
Michel-Rolph Trouillot
O encontro entre a teoria antropológica e qualquer região do globo diz tanto sobre a antropologia quanto sobre essa região. A antropologia caribenha é um bom exemplo. Essa região, em que demarcações são notoriamente imprecisas, há tempos tem sido a fronteira aberta da antropologia cultural: nem centro nem periferia, mas uma espécie de terra de ninguém onde pioneiros se perdem, onde alguns pernoitam a caminho de melhores oportunidades, e onde outros ainda logram criar seu próprio “Novo” mundo, em meio à indiferença do Primeiro Mundo. Por consequência, o objetivo deste ensaio é duplo: escrevo aqui sobre o Caribe tal como visto por antropólogos e, também, sobre a antropologia tal como vista do Caribe. Essa revisão bibliográfica repousa sobre a coincidência entre algumas zonas de debilidade da teoria antropológica e áreas de interesse de caribeanistas. Não reivindico nem exaustividade nem representatividade estatística ao tratar da literatura, e minhas delimitações são arbitrárias e vagas. Enfatizo um presente que abrange a maior parte dos últimos 20 anos, mas minha abordagem - para não falar da ausência de qualquer foco no Caribe nos volumes anteriores da Annual Review of Anthropology - justifica incursões em passados mais remotos. Concentro-me em trabalhos disponíveis em inglês, língua predominante da etnologia caribenha, mas tal ênfase não deixa de ser arbitrária. Mais importante, uma vez que estou me dirigindo tanto a especialistas quanto a leigos, eu aplainarei algumas arestas e não darei a devida atenção a alguns segmentos desse corpus, particularmente à antropologia da cura e da religião, e aos estudos urbanos.1 Temáticas da linguística crioula, da etnografia e da política da linguagem no Caribe geraram muitos estudos sólidos e merecem tratamento separado, assim como a literatura sobre migração. O leitor pode consultar outros ensaios bibliográficos sobre tópicos específicos ou períodos anteriores, outros levantamentos bibliográficos, ou bibliografias de bibliografias.2
O ensaio está organizado em torno de três grandes temas e suas ramificações: "heterogeneidade", "historicidade" e do que chamo de “articulação” (questões relativas a níveis e demarcações, à natureza e aos limites da unidade de observação ou de análise). Não vejo tais temas como agrupamentos óbvios de um corpus caribenho autocontido, mas como marcadores que ressaltam o encontro entre os estudos caribenhos e a antropologia, como postos dispersos na fronteira aberta.
Uma região indisciplinada
O desembarque de Cristóvão Colombo no Caribe em 1492 forneceu à então nascente Europa o espaço material e simbólico necessário para estabelecer sua imagem do Outro Selvagem.3 Não é de se estranhar que foi nas ilhas caribenhas e nas porções continentais do entorno que surgiu um certo tipo de etnografia comparativa no século XVI, com os escritos de estudiosos espanhóis.4 Mas o Caribe foi também o primeiro local em que a Europa realizou a sistemática destruição do Outro, com o genocídio dos caribes e aruaques das Antilhas. Quando o Iluminismo retornou ao mito do nobre selvagem, reciclando, violentamente, os debates sobre antropologia filosófica que marcaram a Renascença, a maior parte das Antilhas era povoada por populações africanas que haviam atravessado o Atlântico acorrentadas, e por seus descendentes afro-crioulos, também escravizados. Muitos desses escravos trabalharam em plantations5 dirigidas por europeus orientados para o lucro, em termos bastante “modernos”.6
A escravidão acabou no Caribe mais ou menos no mesmo período em que as ciências sociais se afastavam do direito e da história na Europa e nos Estados Unidos; mas já então o Caribe havia se tornado uma excentricidade para a academia ocidental. O rápido extermínio das populações ameríndias, a precoce integração da região ao circuito internacional do capital, as migrações forçadas de africanos escravizados e de trabalhadores asiáticos contratados,7 a abolição da escravidão via emancipação ou revolução; tudo isso significava que o Caribe não se encaixaria nas divisões emergentes da academia ocidental. Com uma população predominantemente não branca, o Caribe não era “ocidental” o suficiente para se adequar aos interesses de sociólogos. Todavia, não era "nativo" o suficiente para se encaixar totalmente no compartimento selvagem8 no qual os antropólogos buscavam seus objetos de estudo favoritos. Quando E. B. Tylor publicou o primeiro manual de antropologia geral em língua inglesa, em 1881, Barbados já era “britânico” há dois séculos e meio, Cuba já era “espanhola” há quase quatro séculos, e o Haiti já era um estado independente há três gerações - após um longo século de domínio francês durante o qual fora responsável por metade do comércio exterior da metrópole. Esses não eram exatamente lugares para se procurar primitivos. Sua própria existência questionava a dicotomia Ocidente/não Ocidente e a categoria de nativo, premissas sobre as quais a antropologia se baseava.
Todo o corpus da antropologia cultural do Caribe, das décadas iniciais do século XX ao presente, pode ser lido sob o pano de fundo dessa incongruência básica entre o objeto tradicional da disciplina e a inescapável história da região. Sob esse viés, muitos enigmas do encontro se encaixam, incluindo a relativa evitação do Caribe pela antropologia norte-americana.9 Até os anos 1940, acadêmicos nativos do Haiti, de Cuba ou de Porto Rico estavam mais dispostos do que estrangeiros a aplicar as ferramentas da análise antropológica ao estudo de seus conterrâneos. Posteriormente, à medida que a antropologia caribenha desenvolvia seus interesses específicos, algumas das zonas mais frágeis da teoria antropológica se sobrepuseram a preocupações das quais os caribeanistas não podiam escapar totalmente. Mesmo o crescente interesse na antropologia afro-americana no início da década de 197010 fracassou em conferir total legitimidade ao Caribe junto à corporação. Hoje, enquanto a antropologia continua a nutrir um legado de tropos e conceitos aprimorados por meio da observação de sociedades antes tidas como “simples” (senão “primitivas”), outsiders11 continuam a confrontar-se com o fato de que as sociedades caribenhas há muito são estranhamente, mas certamente, “complexas” (senão “modernas”).
Sem cancelas na fronteira
Três aspectos relacionados dessa complexidade sustentam as linhas de tensão entre o discurso antropológico e a etnologia caribenha. Em primeiro lugar, as sociedades caribenhas são inescapavelmente heterogêneas. Se os selvagens de outros lugares chegaram a parecer iguais entre si para a maioria dos antropólogos, o Caribe tem sido, há muito tempo, uma área em que certos povos marcadamente distintos entre si vivem próximos uns aos outros. A região - e, dentro dela, territórios particulares - há muito é multirracial, multilíngue, estratificada e, alguns diriam, multicultural.12 Em segundo lugar, essa heterogeneidade é reconhecidamente resultado da história, ao menos em parte. As sociedades caribenhas são inescapavelmente históricas, no sentido de que partes de seu passado distante são não apenas conhecidos, mas reconhecidamente distintos de seu presente e, ainda assim, relevantes para os entendimentos desse presente, tanto para observadores quanto para nativos.13 Não há consenso sobre em que medida o passado é relevante, mas alguns dos primeiros ataques à "falácia do presente etnográfico"14 vieram do Caribe.
Seguramente, o Caribe não é a única região na qual a heterogeneidade e a historicidade assombraram os praticantes de uma disciplina que fizera da profundidade histórica um atributo exclusivo das sociedades ocidentais. Em outros lugares, entretanto, a investigação dessa complexidade foi muitas vezes bloqueada pelos antropólogos ao proporem conceitos guarda-cancelas (gatekeeping concepts15): hierarquia na Índia, honra e vergonha no Mediterrâneo etc.16 Tal manobra, em minha visão, refletiu também a hierarquização ocidental de determinados Outros. Cancelas antropológicas à parte, a “sinologia” tende a ser tomada como um campo separado, e qualquer reunião de “orientalistas” tende a ser entendida como uma reunião acadêmica. Essas especialidades não costumam ser entendidas como similares a corpos ou instituições de conhecimento - e poder - que lidam com várias outras partes do mundo. Alguém abrirá a caixa de Pandora ao sugerir que tais classificações implícitas são baseadas em critérios “objetivos”?
Ainda assim, “guardar cancelas”, enquanto uma estratégia antropológica específica, teve relativo sucesso em muitas sociedades complexas fora do Caribe, porque antropólogos que trataram dessas regiões podiam fazer referências vazias à história enquanto usavam-na como barreira de proteção contra a investigação histórica.17 Com a história mantida a uma distância segura, antropólogos podiam simultaneamente resgatar o “nativo” e renunciar ao primitivo. Conceitos guarda-cancelas são traços ditos "nativos", mistificados pela teoria de modo a aprisionar o objeto de estudo. Eles agem como simplificadores teóricos que restabelecem o presente etnográfico e protegem a atemporalidade da cultura.
A prática de guardar cancelas nunca teve sucesso no Caribe. Aqui, os temas da heterogeneidade e a historicidade abriram novos panoramas, desviando energias para longe da simplificação teórica. Cada um desses temas aponta a seu modo para uma terceira característica da paisagem sociocultural: o fato de que as sociedades caribenhas são inerentemente coloniais. Não se trata, apenas, do fato de que todos os territórios caribenhos foram conquistados por alguma potência ocidental. Nem apenas dos fatos de que são as mais antigas colônias do Ocidente, e que tal colonização foi parte do processo material e simbólico que fez emergir o Ocidente tal qual o conhecemos. Trata-se do fato de que suas características sociais e culturais - e, há quem diga, as idiossincrasias individuais de seus habitantes18 - não podem ser compreendidas, ou mesmo descritas, sem referência ao colonialismo.
Essa característica inescapável inviabiliza o resgate do nativo, mesmo quando o colonialismo não é evocado explicitamente. Aqui, não há modo de satisfazer a obsessão antropológica com culturas “puras”.19 Mesmo populações como os “Karib das Ilhas” de Dominica e St. Vincent, ou os garifunas continentais são reconhecidamente produtos de complexas misturas.20 Enquanto a antropologia prefere situações de “pré-contato” - ou fabrica situações de “não contato” -, o Caribe não é nada além de contato.
Compreensivelmente, as barreiras disciplinares são bastante flexíveis. Antropólogos envolvem-se com historiadores, economistas e formuladores de políticas públicas;21 e muitos publicam tanto em periódicos regionais e históricos quanto em publicações organizadas pela corporação. Temas guarda-cancelas nunca conseguem reunir, na disciplina, um número de seguidores grande o bastante para permitir fermentação. Os principais tropos da antropologia duram relativamente pouco na fronteira, na medida em que tópicos rivais esgueiram-se pelos campos abertos e estabelecem novas linhas de troca. Sozinha, a teoria não consegue enclausurar o objeto de estudo, não porque a realidade do Caribe seja mais confusa que qualquer outra, mas porque a teoria antropológica ainda necessita acertar contas com a confusão gerada pelo colonialismo, empregando ferramentas tão convenientes quanto honra e vergonha, o sistema de castas, ou a piedade filial. Ainda assim, também em parte por causa do colonialismo, as delimitações empíricas não são tão nítidas nessa região de enclaves pré-fabricados e fronteiras abertas, onde a própria “unidade de existência empírica”22 - para não falar da unidade de análise - é uma questão aberta a controvérsias.
Heterogeneidade
Se a complexidade é o que primeiro impressiona o antropólogo quando olha para sociedades caribenhas, e se a heterogeneidade é ao menos um dos marcadores dessa complexidade, o que, então, mantém essas sociedades unidas? Michael G. Smith sustentou consistentemente sua resposta a essa questão ao longo dos anos. “O monopólio de poder por uma seção cultural é a condição essencial para a manutenção da sociedade total em sua forma atual”,23 escreve o autor, citando a si mesmo após 24 anos. Para M. G. Smith, as sociedades caribenhas são “plurais”: exibem estratos antagônicos com culturas diferentes. Elas permanecem como essencialmente entidades políticas ocas - preenchidas com sistemas de valores justapostos e incompatíveis, com diferentes conjuntos de instituições -, mantidas unidas tão somente pelo poder vertical do estado.24
O debate sobre o uso que M. G. Smith faz do conceito de “sociedade plural” foi extenso - extenso demais, alguns diriam.25 Caribeanistas de várias convicções não enxergam o mesmo muro intransponível que M.
G. Smith erige entre seus grupos corporados. Além do mais, a distinção entre sociedades plurais e não plurais nunca pareceu convincente para o restante da corporação, e poucos acadêmicos26 adotaram a abordagem de Smith. Não obstante sua inflexibilidade, Smith eloquentemente levanta a questão da relação entre heterogeneidade e poder, uma questão que ainda merece ser levada mais a sério por antropólogos, no Caribe e em outros lugares. Pois Smith acerta ao sugerir que ao menos no caso do Caribe não se pode presumir “cultura”, se a tomamos enquanto um princípio de homogeneidade criado como que ex nihilo, que permitiria de alguma forma localizar seu paralelo em uma entidade igualmente delimitada chamada de “sociedade”.
Citação, louvor ou paráfrase?
M. G. Smith destaca os lugares de nascimento, as nacionalidades e as raças de seus diversos oponentes. O próprio Smith nasceu na Jamaica, e depara-se frequentemente com insinuações de que sua aplicação do conceito de sociedade plural é uma ideologia de classe média disfarçada de teoria social.27 Infelizmente, a séria questão acerca do estatuto do discurso nativo permanece somente nas entrelinhas desse debate. Embora muitos acadêmicos de origem caribenha questionem, com razão, alguns dos pressupostos da abordagem da sociedade plural, é necessário perguntar por que abordagens que enfatizam a segmentação étnica ou cultural constituem uma corrente que atravessa gerações de estudos e literaturas caribenhos.28 Essas abordagens são especialmente efetivas quando traduzidas para o âmbito das políticas estatais de etnólogos autodidatas como o haitiano François Duvalier, de “nativos” autoproclamados como o guianense Forbes Burnham ou o dominicano Balaguer,29 ou de dissidentes e potenciais líderes golpistas no Suriname e em Trinidad. Em uma óbvia referência ao poder persuasivo de sua própria perspectiva, M. G. Smith afirma que "quem participa nesses processos e é mais diretamente afetado por eles” implicitamente sabe qual é o lado certo.30 Esse argumento ao estilo “no frigir dos ovos” não convence aqueles que acreditamos na possibilidade das ciências sociais, e que Goebbles não necessariamente oferece a melhor análise do nazismo. Entretanto, o fato de que o ponto de vista de M. G. Smith efetivamente é um reflexo da ideologia da elite jamaicana não muda em uma vírgula o fato - igualmente “óbvio” - de que a pressuposição de ordem e homogeneidade, marca característica da ciência social ocidental, é, em si, o reflexo da consciência euro-americana dominante, um subproduto da invenção ideológica do Estado-Nação.
Essa não é uma questão trivial. Mesmo uma investigação superficial revela que os enunciados de caribenhos de diversas origens há muito são transportados aos relatos antropológicos com valores agregados desigualmente. Recentemente, Richard Price tem conduzido sistematicamente o registro das vozes e narrativas do e sobre o passado dos maroons saamaka,31 apresentando-as ao público acadêmico.32 Price sobressai-se na invenção intelectual de formas de citação, novos modos de marcar, na página publicada, tanto as delimitações quanto os diálogos entre vozes; mas, prudentemente, ele se mantém afastado de questões epistemológicas. Avançando sobre o caminho aberto por First-Time, o livro Alabi’s World mistura, magistralmente, quatro vozes na página. R. Price nos oferece pistas sobre como “ouvir” três dessas vozes (de missionários morávios, proprietários de plantations neerlandeses e de saamaka nativos), mas nenhuma pista sobre como ler sua própria prosa e “trechos de outros acadêmicos”. Ainda assim, seria proveitoso perguntar qual filosofia do conhecimento devemos utilizar para avaliar discursos sociológicos ou históricos nativos, ou, aliás, de qualquer participante.33 Como lidamos com as sobreposições e incompatibilidades entre juízos de participantes e da produção acadêmica euro-americana?34 Como a antropologia lida com as similaridades entre, digamos, discursos porto-riquenhos sobre virilidade e nacionalismo e o construto de Peter Wilson sobre reputação e respeitabilidade? Como ela lida com as afinidades entre a crítica social de acadêmicos haitianos na década de 1930 e a noção de “ambivalência socializada" em Herskovits? Identificar acadêmicos independentemente da autoctonia35 reabre questões epistemológicas que poderíamos desejar adiar. Ainda assim, mesmo deixando de lado a questão do conhecimento enquanto verdade, quem é o outsider que confere relevância semiótica diferenciada a vozes nativas alternativas?36 E quem, afinal, outorga autoctonia?37 No Caribe, não há ponto de vista “nativo” no sentido suposto por Geertz,38 não há ombro privilegiado no qual se apoiar. Essa é uma região em que o pentecostalismo é tão “nativo” quanto o rastafarianismo, em que alguns “negros do mato” [Bush Negros] já eram cristãos muito antes dos texanos se tornarem “americanos”, em que indianos39 [East Indians] encontram conforto em rituais “africanos” do Shango.40
A antropologia como um todo precisa ainda atingir um consenso acerca do estatuto epistemológico e da relevância semiótica do discurso nativo. O discurso nativo é uma citação direta, uma citação indireta, ou uma paráfrase? De quem é a voz, uma vez que ela adentra o campo discursivo dominado pela lógica acadêmica? Seu valor é referencial, indicial, fático ou poético? O problema é agravado no Caribe pela dominação colonial, cuja duração e alcance intelectual desafiam a maior parte dos entendimentos sobre autoctonia. Ao menos alguns intelectuais residentes no Caribe há muito têm sido interlocutores de debates europeus sobre a região.41 Nenhum campo discursivo é integralmente “nosso” ou “deles”. É emblemática a sugestão de Diane Austin42 de que a antropologia caribenha é marcada por uma antinomia analítica entre, de um lado, o par resistência-dominação e, de outro, pela integração-dominação, pois dualidades dessa ordem reverberam no discurso intelectual caribenho.43 Porém, tais dualidades sustentam-se somente se nós não tentamos situar cada autor em um polo ou outro.
Em todo caso, o verdadeiro debate não é sobre se a heterogeneidade existe, mas sobre onde situá-la e, literalmente, o que fazer com ela. A resposta a essa questão liga-se a ideias sobre o que são as sociedades caribenhas e, igualmente importante, liga-se a teorias sobre cultura e sociedade. Isso é o que quero dizer quando afirmo que o fato inescapável da heterogeneidade caribenha coloca questões fundamentais à teoria antropológica que a maior parte dos antropólogos resolveu ignorar. Raymond T. Smith, um dos primeiros oponentes intelectuais de M. G. Smith, já o disse há muito tempo, embora em termos mais suaves e em um contexto diferente.
Gênero, organização social e o mundo mais amplo
Em um artigo bibliográfico de 1963 sobre estudos de parentesco e família no Caribe - então o tema dominante na etnologia caribenha -, R. T. Smith afirmou:
[...] o maior problema é o que sempre tem sido: relacionar padrões familiares e de escolhas de parceiros conjugais e sexuais a outros fatores nos sistemas sociais contemporâneos e às tradições culturais dos povos em questão. Aqui o progresso é menos impressionante porque nós ainda não temos clareza sobre a natureza dessas sociedades.44
A preocupação de R. T. Smith não deve ser lida somente como reflexo da busca funcionalista por princípios estruturantes. Por mais que pareça convincente em casos de aparente homogeneidade, o pressuposto de que o trabalho de campo irá, de alguma forma, revelar a natureza da entidade sob estudo desmorona completamente na fronteira. A afirmação de Smith demonstra como as manifestações inescapáveis da complexidade direcionam o olhar do antropólogo a um horizonte mais amplo. A afirmação sugere o porquê de a fartura de estudos de parentesco não ter conduzido a conceitos guarda-cancelas duradouros na antropologia caribenha: a heterogeneidade do conjunto impossibilitou que a unidade doméstica, a família matrifocal ou a atribuição de papéis de gênero gerassem simplificações teóricas, apesar de uma onda de publicações que reciclaram um número restrito de temas.
Não posso fazer justiça a esse abundante corpus (mais de 200 títulos entre 1970 e 1990) que desencadeou, por sua vez, várias antologias, bibliografias e revisões.45 As correntes são múltiplas, embora elas tendam a se entrecruzar em torno do papel, ou do fardo, das mulheres enquanto mães, criadoras e responsáveis por filhos, e enquanto cônjuges. À sua maneira, os estudos de parentesco caribenhos sempre foram estudos de gênero e sempre insistiram em que o gênero é uma via de mão dupla. Isso tem a ver, ironicamente, com uma preocupação precoce com políticas públicas da parte de funcionários do governo que encaravam as famílias afro-caribenhas como “desviantes”, simplesmente por não se enquadrarem no modelo de consciência ocidental de família nuclear.46 Tal como nos Estados Unidos, as visões desses burocratas foram ecoadas por cientistas sociais que queriam explicar - ou justificar - tais “anormalidades”, como, por exemplo, os “pais ausentes”.
Dois estudos pioneiros continuam a influenciar a tônica da pesquisa: My Mother Who Fathered me, de Edith Clarke, e The Negro Family in British Guiana, de Raymond T. Smith.47 O legado de R. T. Smith talvez seja, para seu desgosto, a frequentemente mal-empregada noção de matrifocalidade. Smith insiste que cunhou o termo não no sentido de famílias lideradas por mulheres ou mesmo de famílias consanguíneas, como outros creem, mas para sublinhar o papel de mulheres enquanto mães.48 O legado de Clarke segue mais na direção da patologia social. Mais recentemente, o construto de Peter Wilson da “reputação e respeitabilidade”, que amarra papéis de gênero à sociedade mais ampla, quase se tornou o tropo central da antropologia caribenha, precisamente por não tratar o doméstico como um domínio fechado. Criticando o fato de a “organização social” ter sido um codinome para estudos limitados do puramente “doméstico”, Wilson postulou uma oposição pan-caribenha entre um sistema de valor interno (“reputação”) - que enfatiza a igualdade, a virilidade e as normas de classes baixas - e um sistema de valor externo (“respeitabilidade”) - que enfatiza a hierarquização, a feminilidade e a respeitabilidade elitista.49 Esse esquema é mais engenhoso do que a maioria das dualidades que assolam os estudos caribenhos, daí seu impacto duradouro na literatura.50 Porém, é tão bem amarrado que gera desconforto, daí a relutância da maioria dos caribeanistas em utilizar essa oposição como simplificador geral. A polarização de Wilson requer fortes modificações quando o observador aborda as particularidades históricas e sociais de territórios específicos, especialmente no que tange às relações entre gênero, o sistema dual de valores, e o colonialismo.51
Novos paradigmas ainda estão para emergir, apesar da abundância de abordagens renovadoras sobre gênero e família. Posso tão somente mencionar algumas: o apelo pela incorporação de uma abordagem êmica às etnografias sobre "organização social";52 por distinções mais cuidadosas entre o núcleo doméstico e a família;53 ou pela reconceituação do núcleo doméstico consanguíneo;54 o apelo por estudos mais sistemáticos acerca do amplo espectro de responsabilidades femininas;55 ou pela delineação das propriedades, esferas ou domínios ligados ao gênero à luz dos papéis econômicos.56 As duas últimas estratégias nem sempre apontam para divisões simplistas que alocam as mulheres na casa e deixam o mundo para os homens. Nem entre os maroons relativamente isolados do Suriname, nem em Barbados, possivelmente uma das ilhas mais ocidentalizadas, ideais culturais e a aplicação de papéis de gênero replicam totalmente os padrões ocidentais dominantes.57 Ademais, o argumento sobre domínios - materiais ou simbólicos - centrados em mulheres é, em geral, ancorado em bases mais sofisticadas do que em um modelo de base/superestrutura no qual o gênero replicaria a divisão do trabalho.58 Além disso, a própria divisão do trabalho nem sempre opera como a maior parte dos ocidentais esperaria. A especialização em atividades econômicas independentes, notadamente a compra e venda de produtos, frequentemente faculta a mulheres de origem rural certas entradas ao mundo mais amplo.59 Homens podem ocupar esquinas e dedicarem-se a comportamentos libidinosos em contextos não familiares,60 mas o mundo da mulher não é, de forma alguma, “privado”, tal como a palavra é entendida por norte-americanos.61 Os dados não provam que a igualdade de gênero seja um fenômeno difundido no Caribe, mas indicam, sim, formas e projetos autóctones de autonomia feminina. Nesse contexto, a independência feminina não necessariamente significa a ruptura com laços tradicionais; pode significar o fortalecimento de certas práticas de criação de redes.62 Tampouco a modernização sempre significa a morte de um patriarcado "feudal" putativo. Pelo contrário, incursões ocidentais recentes frequentemente criam ou renovam formas de desigualdade de gênero. Indústrias off-shore, igrejas cristãs, profissionalização, monetarização ou remessas de imigrados podem reduzir a autonomia feminina tradicional ou agravar riscos ligados a gênero.63 A complexidade dos papéis de gênero descrita por etnógrafos caribeanistas implicitamente exige que a teoria feminista desocidentalize ainda mais suas premissas.
As análises sobre parentesco e gênero no Caribe continuam invadindo o mundo mais amplo. A preciosa etnografia de Sally Price sobre os saamaka demonstra como a produção e a circulação da arte reflete e reforça entendimentos culturais sobre gênero.64 Em estudo igualmente aclamado sobre padrões de escolha de parceiros em Cuba no século XIX, Martinez-Alier concentra-se nas relações entre valores sexuais e desigualdade social. Ela argumenta convincentemente que as batalhas entre sexos, raças e classes se entrelaçam e, em última instância, é “a natureza hierárquica da ordem social”65 que gera códigos sexuais, assim como papéis e relações de gênero. Não se pode resumir adequadamente a esplêndida exposição desses argumentos por Martinez-Alier. Apenas noto aqui que, ao cabo, eles ecoam a sugestão inicial de R. T. Smith de se observar “a natureza” dessas sociedades. O quão reveladora é, então, a relação entre a fronteira caribenha e a disciplina, a ponto de uma teórica feminista de ponta achar necessário afirmar, cinco anos atrás, que "análises do parentesco devem ser baseadas em análises de sistemas sociais totais”.66
Se o estudo de Martinez-Alier permanece sendo o critério palpável para estudos que buscam atrelar casamento e família ao sistema social total, Raymond T. Smith permanece sendo o mais consistente defensor de estudos que atendam a esse critério. Para ele, a crítica mais consistente às análises do parentesco caribenho, incluindo seu trabalho pioneiro na Guiana, é aquela que põe abaixo as ligações que o pesquisador estabelece entre família e sociedade.67 Smith repetidamente enfatiza que as relações de parentesco não são meramente derivadas de uma estrutura social maior e, especialmente, que não são epifenômenos ou consequências da ordem econômica.68 Antes, o autor vê a organização doméstica atrelada ao mundo mais amplo por meio de múltiplos subsistemas (núcleos domésticos, papéis sexuais etc.), cada qual podendo ser explorado mais sistematicamente enquanto potenciais ligações à totalidade.
As visões de R. T. Smith sobre a totalidade e sobre os modos de lidar com ela refletem mudanças de ênfase e uma capacidade de incorporar influências múltiplas. Detecta-se uma mudança que sai da estrutura e da estratificação rumo à cultura69 e, às vezes, um movimento menos evidente da cultura à cultura-história. O segundo movimento está imbuído no recente ensaio de Smith sobre raça, classe e gênero nas Américas, um de seus mais poderosos escritos até hoje.70 No primeiro e mais familiar movimento, Smith distingue a cultura como um sistema analiticamente reconhecível de símbolos e significados, mas ele substitui o nível cultural “conglomerado” de David Schneider por um plano de “ideias em ação”, as “normas que medeiam” (ao invés de governarem) o comportamento. Smith tende a situar, então, em um nível intermediário os dois campos nebulosos que chamo aqui de historicidade e heterogeneidade.
Heterogeneidade e hegemonia
O nível intermediário serviu como a saída de emergência das ciências sociais desde pelo menos Talcott Parsons. Se R. T. Smith tenta não tratá-lo como residual (e este é um mérito seu), foi necessária uma nova geração de pesquisadores para dar o devido tratamento antropológico à heterogeneidade incorporada nesse nível. Lee Drummond, baseado em trabalho de campo realizado na Guiana, questiona a homogeneidade da cultura e da linguística que trata de línguas crioulas para propor uma “metáfora crioula” que postula um conjunto de intersistemas sem regras uniformes, sem propriedades invariantes e sem relações invariantes entre categorias.71 A proposta é renovadora à luz da predominância de modelos ocidentais de senso comum sobre homogeneidade cultural na teoria antropológica, mas o contínuo cultural de Drummond, como nota Brackette Williams, é unidimensional e negligencia a hierarquia. Para Williams, que também fez trabalho de campo na Guiana, a construção de hierarquias mistas é um problema prioritário, e a complexidade multidimensional, um decisivo teste teórico. A multidimensionalidade é o que faz do até então chamado nível intermediário - onde hierarquias putativas evaporam, onde nem o pensamento nem a ação constituem uma rede imperturbável, e muito menos um sistema harmonioso - tão fundamental quanto acessível ao estudo. A estratégia de Williams, ao pesquisar a etnicidade (parcialmente matizada por lentes gramscianas), enfatiza o processo de homogeneização das culturas nacionais.72
Williams parece não conhecer o trabalho de Andrès Serbin sobre etnicidade e política na Guiana, publicado na Venezuela, em 1981. Esse desconhecimento confirmaria que vários antropólogos que estão, hoje, abordando a relação entre heterogeneidade e poder no Caribe consideram Gramsci um interlocutor estimulante, uma vez que o tratamento de Serbin sobre a Guiana é explicitamente gramsciano. Ainda assim, se tanto Serbin quanto Williams concordam no que concerne aos limites, na Guiana, da hegemonia (no sentido gramsciano), Serbin insiste nos mecanismos estatais que encorajam “ideologias étnicas” dominantes e contradominantes, e Williams documenta as disputas culturais em um movimento de mão dupla entre a “comunidade” e o cenário nacional.
Raça, classe, poder - e Gramsci - também estão presentes no trabalho de Austin-Broos. As reformulações teóricas da autora incluem a distinção entre cultura (valores e suas encarnações) e ideologia (a interpretação dessa cultura em um campo de contestação); uma rejeição das antigas oposições entre ideologia e conhecimento, e entre o simbólico e o prático-estrutural.73 A comparação etnográfica de duas vizinhanças jamaicanas expõe uma situação na qual o confl é contido por uma ideologia dominante (e, em sua visão, hegemônica) da educação.74
A conjunção entre cor, classe, poder e a ficção do Estado-Nação também aparece em meu livro sobre o Haiti duvalierista, baseado em uma reavaliação da noção proposta por Benedict Anderson da nação enquanto “comunidade imaginada”, e em mais uma leitura de Gramsci que enfatiza o papel do estado.75 A nação não é uma ficção política, mas uma ficção da política, é a cultura-história projetada sob o pano de fundo do poder estatal. Tanto no Haiti como na Dominica, o estado é parte do que está em jogo e, por vezes, pode ser um ator que simultaneamente contribui na definição do que está em jogo e compete nesse jogo.76 A lacuna necessária entre o estado e a nação cria um campo em que tanto a homogeneidade quanto a heterogeneidade são simultaneamente criadas e destruídas.
O argumento segundo o qual a semelhança e a heterogeneidade necessariamente se entrelaçam em sociedades ditas “complexas” nem sempre foi algo dado na prática antropológica. Tampouco é uma premissa explícita da maior parte das estratégias antropológicas contemporâneas. Portanto, que a antiga busca por desemaranhar as raízes da heterogeneidade tenha permanecido por um longo período fora da órbita do discurso antropológico aparece como ilustração adicional da relação ambígua entre a fronteira caribenha e a disciplina. Análises individuais de The people of Puerto Rico variam,77 mas, quando Julian Steward e seus colaboradores lançaram esse seminal projeto, tratou-se de uma extraordinária tentativa de ir além do estudo de comunidades singulares, tratando uma sociedade inteira enquanto um todo estruturado e complexo. Ademais, apesar de suas contradições intelectuais, o livro coletivo efetivamente expôs uma proposição central aos temas que estruturam minha revisão bibliográfica: comunidades necessitam ser estudadas em referência a um “contexto mais amplo” que inclui redes de instituições locais, mas também o desenvolvimento de colônias e impérios.78 Em resumo, a heterogeneidade não pode ser apreendida sem uma efetiva referência à história.
Historicidade
Não foi o projeto Porto Rico que introduziu a historicidade nos debates sobre culturas caribenhas, ainda que dois de seus participantes, Sidney Mintz e Eric Wolf, tenham se tornado proponentes bem conhecidos de uma antropologia historicamente orientada.79 O acadêmico neerlandês Rudy Van Lier, um pioneiro dos estudos caribenhos no século XX, também se apoiou na história em seus estudos sobre a heterogeneidade do Caribe, tal como faria posteriormente seu compatriota, H. Hoetink.80 Nos anos 1920 e 1930, muitos escritores nascidos no Caribe, como Price-Mars no Haiti e Pedreira em Porto Rico, viam o estudo da cultura como inevitavelmente ligado à história.81 Em 1940, antecipando em alguma medida o trabalho de Sidney Mintz, o escritor cubano Fernando Ortiz82 viu na história dos produtos agrícolas de exportação a base a partir da qual poderia observar padrões socioculturais em Cuba.
Nos Estados Unidos, em meados da década de 1930, Melville Jean Herskovits também concluíra que a heterogeneidade do Caribe tornava o uso de materiais históricos “quase obrigatório”.83 Herskovits via as Américas Negras e, em especial, os territórios caribenhos como laboratórios ideais para antropólogos que suspeitavam dos pressupostos teóricos subjacentes às análises de sociedades “simples”. A partir do quadro dado pelos estudos de aculturação, antropólogos poderiam mapear a evolução diferencial de traços africanos e europeus nas Américas e, em última instância, descobrir a natureza da cultura, entendida como processo contínuo de retenção e renovação.
Esse programa de pesquisa seguia em paralelo a uma agenda política marcada pela experiência estadunidense. Herskovits ansiava demonstrar que legados culturais eram atributos inatos de todos os seres humanos, não propriedade exclusiva dos brancos - como acreditava o grande público -, nem um estranho apetrecho de alguns ameríndios - como demonstrado pelos antropólogos.84 Herskovits via a cultura-história como um dos mais poderosos antídotos ao racismo norte-americano. É justo dizer, entretanto, que, apesar desse objetivo político e apesar da atenção explícita aos mecanismos da cultura sob pressão, o modelo em si não dava conta do acesso diferencial ao poder que condicionou o encontro entre europeus e africanos nas Américas - dava conta somente das consequências. Assim, a investigação da cultura escrava pode adquirir vida própria. A descrição de traços culturais passados ou presentes (ou sua atribuição a raízes africanas, europeias ou crioulas) pode tornar-se um fim em si mesmo.
Até onde caribeanistas ainda se empenham em exercícios desse tipo, e até onde são capazes de evitar os problemas do modelo herskovitsiano, depende muito de suas visões sobre a região, mas também de suas perspectivas tanto sobre o racismo quanto sobre a natureza e o papel da teoria cultural.85 Holland e Crane86 baseiam-se mais na industrialização do que no passado para estudar desenvolvimentos recentes no Shango de Trinidad. Para Roger Abrahams e John Szwed,87 a visão de descendentes de africanos nasAméricas enquanto indivíduos mal-adaptados, desprovidos de sua herança cultural, está muito viva e deve ser desafiada em bases herskovitsianas. Acompilação de Abrahams e Szwed de relatos de viajantes e de diários de residentes do Caribe Britânico demonstram africanos escravizados e seus descendentes diligentemente construindo uma cultura afro-americana distintiva, moldada a partir de modelos africanos. Os fragmentos cobrem vários aspectos da vida escrava, com ênfase em religião, em padrões de performance e em continuidades expressivas.88 Algumas dessas ênfases retornam em trabalhos publicados ao longo dos anos 198089 - veja-se, porém, Stephen Glazier90 para uma exceção à influência de Herskovits, e Dirks91 por uma abordagem materialista mais estreita de um ritual de escravos.
A rigidez do modelo de Herskovits tornou-se um segredo público após desenvolvimentos da historiografia da escravidão nos anos 1960 e 1970, mas poucos antropólogos antes de Sidney Mintz e Richard Price92ousaram revisar esse esquema. Rejeitando a busca passada da retenção de formas supostamente africanas, Mintz e Price argumentam que a influência africana em culturas afro-americanas é mais bem definida nos termos de valores subjacentes e orientações ”gramaticais”, e que a cultura-história das Afro-Américas deveria repousar no conhecimento histórico das condições concretas sob as quais escravos operavam e interagiam com europeus. Embora não encarem frontalmente o papel do poder na construção das culturas afro-americanas, caribeanistas de várias disciplinas que tratam da questão das continuidades africanas e europeias no Novo Mundo devem agora levar em consideração a influente reavaliação feita por Mintz e Price do modelo de Herskovits.93 A abordagem metodológica de Mintz e Price para o estudo do contato cultural também tem importantes implicações para a corporação, agora que antropólogos admitem, mais prontamente do que na época de Herskovits,94 que nós vivemos em uma aldeia global. O trabalho subsequente de Richard Price, frequentemente em colaboração com Sally Price, avança consideravelmente nosso conhecimento sobre o passado afro-americano.95
A reavaliação explícita de Herskovits e a reavaliação implícita de Steward nos adendos - e contradições - do livro de Porto Rico são as linhas de intersecção com as quais Sidney Mintz recorta seu espaço na fronteira caribenha. Para Mintz, a heterogeneidade não pode ser compreendida sem a história (enquanto conhecimento), pois a heterogeneidade é o produto da história (enquanto processo). O conhecimento histórico não é apenas uma sucessão de fatos - embora suas bases empíricas devam ser sólidas -, nem pode ser tomado como explicação - embora ilumine padrões e tendências.96 Em vez disso, a história fornece o único contexto dentro do qual é possível dar sentido aos seres humanos enquanto sujeitos.97 Assim, o estudo histórico da emergência simbólica e material do açúcar no mundo moderno fornece o contexto dentro do qual se observa a conexão entre cultura e poder.98 O que é verdade para uma mercadoria global também é verdade para uma religião localizada: "O vodu não pode ser interpretado separadamente de sua significação para o povo haitiano e para a história haitiana”.99
A visão de historicidade em Mintz abrange o sentido consciente que os nativos dão ao passado, como enfatizado por R. Price, e o “fato condicionador da historicidade”, como enfatizado por Alexander Lesser,100 sem deixar de lado os movimentos amplos tão bem capturados por Eric Wolf.101 O historicismo de Mintz nos faz lembrar C. L. R. James e E. P. Thompson (note-se que o primeiro influenciou o último), na medida em que toma as grandes correntes da história102 tão seriamente quanto os pequenos detalhes de vidas individuais.103 Mas indivíduos manifestam-se somente sob vestes culturais e no interior das restrições de papéis sociais historicamente definidos. De fato, a posição social pode direcionar o emprego dos mesmos materiais culturais em direções opostas.104 Mintz repetidamente utiliza a escravidão afro-americana enquanto a instituição mais repressiva e influente da história ocidental recente, a fim de destacar a necessária dialética entre instituições e indivíduos, sistema e contingência, adaptação e resistência, estrutura e criatividade.105 “O escravo doméstico que envenenou a família de seu senhor colocando vidro moído na comida primeiro teve que se tornar cozinheiro da família”.106
Desse ponto de vista, a história nunca trata somente do passado; isto é, o processo histórico nunca se encerra. A história é, de modo geral, parte da antropologia, parte daquilo que a antropologia estuda, e parte do por que a antropologia importa; ela é material, ferramenta e contexto do discurso antropológico. “Se for, de todo, para ser entendida, a cultura deve ser vista historicamente”.107 A cultura é, ela própria, despida de pressuposições a-históricas de homogeneidade. Mintz concorda com Wolf que “cultura” e “sociedade” não são nem “perfeitamente coerentes em si mesmas, nem necessariamente congruentes uma com a outra”.108 Um eixo privilegiado para seguir a relação entre o social e o cultural é o complexo plantation-campesinato. Mintz vê os campesinatos caribenhos e os padrões culturais que recriaram, desenvolveram ou renovaram ao longo do tempo como um dos signos de resistência mais vibrantes dos povos caribenhos (especialmente afro-caribenhos) contra um sistema imposto de fora e dominado pela plantation capitalista.109
Infelizmente, muitos dos insights metateóricos que Mintz esboça a partir do Caribe e que lhe servem tão bem ao estudo do complexo plantation-campesinato estão espalhados por mais de cem trabalhos, a maior parte deles publicados em espaços que extrapolam limites disciplinares. Ele raramente apresenta sua teoria em um formato apto para consumo imediato.110 Compreensivelmente, alguns estudiosos do Caribe adotam livremente qualquer combinação dos temas que ele refinou ou gerou: o protocampesinato, compra e venda de produtos por escravos e seu impacto na organização social etc. Outros seguem direções similares, mas por caminhos paralelos. Todavia, o complexo campesinato-plantation é um grande tema na antropologia da região, em parte por conta do trabalho de Mintz. Historiadores, sociólogos, geógrafos e antropólogos continuam a levantar questões cognatas sobre a transição da escravidão ao trabalho livre no Caribe, sobre a relação entre o cultural e o social antes e depois da escravidão, e sobre a relação entre sistemas agrários e tradições culturais.111 Acomodação e resistência são os temas que organizam o estudo monográfico de Karen Fog Olwig em St. John, um trabalho que abarca três séculos e combina de maneira eficaz história oral, pesquisa em arquivos e trabalho de campo etnográfico.112 Marilyn Silverman113 reconstitui as políticas de facções em um vilarejo arrozeiro indo-guianense ao longo de um período de 70 anos. Meu livro sobre a Dominica cobre mais de dois séculos, combinando pesquisa histórica e etnográfica para situar um campesinato caribenho em um mundo em mudança. Explicitamente, faço uso do caso como contribuição aos estudos de campesinato e à teoria social.114 De modos diferentemente enriquecedores, Jean Besson, Hymie Rubenstein e Drexel Woodson olham para formas consuetudinárias de posse da terra e para a percepção da terra na Jamaica, em St. Vincent e no Haiti. O trabalho de Woodson115 é bem fundamentado na história e explora a dialética de similaridade e dissimilaridade na medida em que se relaciona com a pessoa, o lugar e as formas de posse da terra. Besson enfatiza a “terra familiar” enquanto instituição de resistência em Martha Brae, Jamaica. Mas Carnegie, por sua vez, vê as formas consuetudinárias de posse como prováveis retenções africanas.116 As contribuições de Rubenstein117 ao campo são numerosas. Sua monografia de uma aldeia em St. Vincent utiliza-se prioritariamente de dados etnográficos para dialogar com a bibliografia, tanto do Caribe quanto geral, de temas como modos de subsistência, parentesco, estrutura doméstica e vida social extrafamiliar. Porém, como Robert Manners118 há muito insistia, mesmo estudos de comunidade no Caribe devem ter conhecimento do passado e utilizar-se de materiais de arquivos.
Delimitações e articulações
Uma vez introduzida, a historicidade é o pesadelo do etnógrafo, o constante lembrete de que os conjuntos que se tende a tomar como dados são criações humanas, resultados em mutação de processos passados e em curso. A etnografia do Caribe há muito confronta a questão das delimitações de observação e análise,119 mas essa preocupação aumentou ultimamente com a maior consciência sobre a história. Discordo da afirmação de Rubenstein120 segundo a qual a etnografia do Caribe tem sido marcada por muita teoria embasada por poucos dados descritos. Etnógrafos do Caribe não são piores do que outros nesse aspecto. O que ocorre é que a complexidade da fronteira torna simplista a aplicação de muitos dos modelos herdados da corporação - uma constatação frequentemente freada em outras regiões do globo pela prática de guardar cancelas e pela adoção de unidades não problematizadas. À busca de Radcliffe-Brown por uma “localidade conveniente de tamanho adequado”, Baber121 responde: “delimitações sociais nunca podem ser uma questão de conveniência”, sua configuração é crucial na análise de situações multiculturais. Em outro texto, Baber122 adverte que a noção de drama social de Turner pode ser enganadora, caso não se preste suficiente atenção ao contexto no qual esse drama é encenado.
No Caribe, entretanto, o contexto nunca é uniforme, e o ator individual - unidade básica do individualismo metodológico - não é uma entidade óbvia cujas delimitações são conhecidas, mesmo quando o individualismo possa ser evidente.123 Desde o influente artigo de Comitas,124 a antropologia caribenha tem tentado lidar com a “multiplicidade ocupacional”, o envolvimento simultâneo ou sequencial em várias atividades econômicas. Evidentemente, há razões óbvias que explicam por que pobres do meio urbano e rural, mulheres que chefiam grupos domésticos, migrantes e outras pessoas que trabalham duro para obter o sustento sob pressão econômica e social, optam pelo ceticismo e apostam em múltiplas estratégias adaptativas.125 Ainda assim, suspeito que o que chama atenção da maioria dos etnógrafos está além do gerenciamento de risco. Em primeiro lugar, a sistematicidade com a qual as pessoas mantêm a multiplicidade ocupacional é difundida o bastante para que os observadores a coloquem não em termos do movimento entre papéis ou tipos, mas em termos de tipos ou papéis que incluem movimento.126 Em segundo lugar, os povos caribenhos parecem ter comparativamente menos problemas em reconhecer a nebulosidade e a sobreposição de categorias - e a multiplicidade não é confinada ao âmbito econômico ou apenas aos pobres. O que parece para alguns serem lealdades políticas, econômicas ou sociais divididas tem uma longa história na fronteira.127 Indivíduos de classe média se envolvem com comportamentos similares às estratégias econômicas dos pobres - ainda que pesquisas complementares sejam necessárias, posto que poucos antropólogos aprofundaram nosso conhecimento sobre as classes médias caribenhas.128 Ainda assim, o que parece estar em jogo é um modo de vida que o pós-Iluminismo ocidental chama (e que a antropologia aceita acriticamente) de unicidade individual. Os comentários de Herskovits sobre a “ambivalência socializada” haitiana parecem se basear na pressuposição da univalência universal, e boa parte da antropologia simbólica também tem como premissa a unicidade individual.
Parafraseando Manners,129 a pressuposição de um microcosmo não é fácil de manter ao se estudar uma “comunidade” na fronteira. A tradição de aldeia130 das monografias antropológicas torna-se problemática no Caribe, onde a linha divisória entre rural e urbano não é bem demarcada.131 Os antropólogos têm notado a escassez de estudos de comunidade monográficos na região.132 Essa deficiência não é apenas o reflexo das políticas da corporação; é também um sinal saudável de que as etnografias caribenhas frequentemente percebem que a estória que buscam não se encerra em sua aldeia. Como se faz para integrar a etnografia com tal percepção? Williams atrela suas descrições de Cockalorum ao espaço nacional da Guiana. Rubenstein admite que sua aldeia é aberta para o mundo,133 mas não chega a esboçar, a partir dessa confissão, qualquer mudança fundamental no escopo descritivo. Ainda assim, Rubenstein avança muito mais do que o previsível capítulo sobre história e a nação. Ele leva 78 páginas para chegar à sua aldeia e, uma vez lá, retorna à história para a introdução adequada de sua unidade central de observação. Woodson134 também rejeita a introdução histórica perfunctória: em sua tese, capítulos históricos que cobrem o espaço haitiano surgem após a introdução etnográfica de sua comunidade e antes de sua análise institucional. Meu estudo sobre Dominica também se ocupa dos temas contíguos da historicidade e das delimitações. Eu utilizo três unidades de descrição e análise: a Nação, o Mundo e a Aldeia - três pontos de vista estratégicos para observar os camponeses dominiquenses. A história gera a primeira unidade; a economia política ajuda a dar sentido à segunda; o leitor adentra o âmbito da etnografia da aldeia somente após transcorridos dois terços do livro.135
O emprego simultâneo de múltiplas unidades de análise pelo mesmo autor ou grupo de autores é uma das muitas estratégias que revelam a busca de muitos caribeanistas por um modo de atrelar suas unidades de observação imediatas ao mundo mais amplo.136 A esmagadora evidência da intrusão de forças externas torna os antropólogos caribenhos atentos (mesmo que nem sempre acríticos) à teoria do sistema-mundo, à teoria da dependência, ou a abordagens congêneres que os permitam ler seus dados para além das tradicionais delimitações dos estados nacionais ou coloniais.137 Mas, uma vez que o mundo é reconhecido, deve-se lidar com a “resposta local”, da qual o Caribe é um poderoso exemplo precisamente por ser tão colonial.138 Possíveis metodologias incluem análises que se movem de cima para baixo, em círculos concêntricos, do nível do sistema mundial a uma unidade tão diminuta quanto a plantation por meio de unidades cada vez menores, como a região ou o território.139
Felizmente, no nível da região, a conceitualização de unidades e delimitações está bem avançada. O panorama de Mintz sobre o Caribe permanece sendo uma das mais sofisticadas conceitualizações de uma área sociocultural na literatura antropológica. Nem uma lista de particulares necessários, nem uma referência dissimulada a uma essência imanente, sua visão é duplamente aberta. Em primeiro lugar, liga o Caribe ao resto do mundo, especialmente às Américas continentais, e à Europa e à África por meio do Atlântico. Em segundo lugar, não sobrepõe a homogeneidade sobre suas unidades internas, e, sim, enxerga os territórios caribenhos ao longo de um contínuo multidimensional informado pela história. Dominação colonial, substratos africanos, limites ecológicos, formas de extração do trabalho, ambiente ideológico e cultural, e, agora, dominação estadunidense misturam-se nesse esquema, que leio como uma forma exemplar de “semelhanças de família”, à la Wittgenstein.140
A preocupação com uma metodologia regional de múltiplos níveis é explícita no Projeto Mulheres no Caribe (Women in the Caribbean Projec), um estudo multidisciplinar que abrange diversos territórios caribenhos. Tal projeto foi foco de dois números especiais de Social and Economic Studies,141 e já estimulou a publicação de um livro.142 Infelizmente, assim como a maioria dos estudos publicados ou patrocinados pela Universidade das Índias Ocidentais (University of the West Indies), o projeto concentra-se em territórios em que a língua oficial é o inglês,143 um fio condutor tênue, caso levemos a sério a ideia de semelhanças de família. O que torna Guadalupe similar a St. Lucia não é o que torna a Dominica similar a Antígua; o que torna Barbados similar a Cuba não é o mesmo que a torna parecida com a República Dominicana. E mesmo o excepcionalismo haitiano é, em grande medida, um mito.144 Há bases sólidas para argumentar que comparações entre mulheres no Haiti e na Jamaica seriam tão interessantes quanto comparações entre mulheres em Trinidad e na Jamaica. Há bases sólidas para sugerir que podemos entender melhor em que medida Barbados é britânico se também olharmos para a Martinica. Há boas razões para supor que estudos da consciência local em Curaçao podem iluminar o nacionalismo porto-riquenho. Mais importante, tudo o que sabemos sobre cada um desses territórios confirma uma coisa: é enquanto um conjunto complexo que o Caribe apresenta um desafio estimulante à ciência social ocidental e, em particular, à antropologia.
Conclusão
A dominação do inglês nos estudos caribenhos reflete e reforça delimitações e classificações herdadas do passado colonial, bem como a atual dominação estadunidense. É também uma carência acadêmica que amplifica o paroquialismo intelectual nas esferas disciplinar, linguística ou colonial, e restringe o espectro de comparação e o número de territórios estudados (Jamaica, Barbados, Guiana, Trinidad) em nome de similaridades superficiais. Poucos estudiosos da cultura caribenha (em especial nascidos no Caribe ou acadêmicos afro-americanos) ousam cruzar fronteiras linguísticas ou coloniais, com poucas exceções nos últimos anos.145 Poucos ousam trazer à disciplina, de forma explícita, as lições políticas ou metateóricas aprendidas na fronteira.146 Ainda menos ousam comparações que atravessem delimitações linguísticas.147 Ainda assim, enquanto a língua concede a pesquisadores de campo a impressão de estarem em um território familiar, as chances aumentam para que estejam com a guarda baixa e para que ignorem trabalhos feitos em outras línguas.
No entanto, acadêmicos neerlandeses continuam a produzir um pequeno mas regular fluxo de trabalhos sobre o Caribe, dos quais somente alguns poucos estão disponíveis em inglês.148 Na década de 1970, teses de doutorado sobre o Caribe defendidas nos departamentos de sociologia e antropologia dos Países Baixos superaram numericamente aquelas que tratavam de quaisquer outras regiões não ocidentais.149 Trabalhos em neerlandês e em outras línguas são cobertos no levantamento anual sobre estudos caribenhos do Boletín de Estudios Latinoamericanos y del Caribe. Alguns títulos escritos por historiadores em espanhol150 e vários em francês sobre as Antilhas Francesas, Haiti e Guiana Francesa são de interesse para antropólogos de língua inglesa.151 Sem dúvida, enquanto os neerlandeses tendem a igualar os norte-americanos em seu empirismo, trabalhos em francês e em espanhol raramente são baseados no tipo de trabalho de campo etnográfico exigido pela maioria das universidades dos Estados Unidos. Por outro lado, estes últimos trabalhos tomam parte, frequentemente, em um debate antigo e fundamental sobre a natureza das sociedades caribenhas e sua relação com o Ocidente. Alguns escritores (em sua maioria linguistas e críticos literários escrevendo em francês, muitos dos quais nascidos no Caribe) fazem perguntas sobre a créolité, ou o que significa para os caribenhos ser parte de sociedades e culturas nascidas do contato.152 O periódico multidisciplinar Études Créoles vai além das questões técnicas da linguística crioula e liga o Caribe a sociedades e culturas da África e do Oceano Índico. Em resumo, as preocupações que destaquei aqui como postos dispersos pela fronteira não são domínio exclusivo dos antropólogos caribenhos, nem são expressas exclusivamente em inglês. Muitos intelectuais e acadêmicos, que escrevem em ao menos quatro línguas, lidaram de diferentes modos com aquilo que chamei aqui de heterogeneidade, historicidade e articulação. O fato de alguns considerarem esse esforço possível sem a antropologia revela suas preferências e preconcepções intelectuais. Contudo, também sugere alguns limites da teoria antropológica, pelo menos do ponto de vista da fronteira.
Agradecimentos
Agradeço a Flor Ruz, Sara M. Springer e, especialmente, a Paul Kim por auxiliarem na pesquisa. Sou grato a Suzan Lowes, Sidney W. Mintz e Drexel G. Woodson por seus comentários a uma versão anterior do manuscrito. Sou totalmente responsável pela essência do argumento e pela versão final do texto.
Notas