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O "AGRUPAMENTO KISSANGUELA" E A CANÇÃO NO PÓS-INDEPENDÊNCIA EM ANGOLA (1975-1979)1
O "AGRUPAMENTO KISSANGUELA" E A CANÇÃO NO PÓS-INDEPENDÊNCIA EM ANGOLA (1975-1979)1
Afro-Ásia, núm. 60, pp. 213-249, 2019
Universidade Federal da Bahia
Recepção: 27 Fevereiro 2018
Aprovação: 03 Julho 2019
Resumo: Este artigo trata de uma importante fase da música popular urbana de Angola que se dá a partir de 1975. Para tanto, daremos destaque ao surgimento e à produção fonográfica do grupo musical Kissanguela a fim de demonstrar a música como um dos caminhos utilizados para a divulgação dos projetos políticos do Movimento Popular de Libertação de Angola, logo após a independência. As mensagens impressas nas letras das canções gravadas pelo conjunto sinalizam para uma nova época, marcada pelo socialismo e sem reminiscências do passado. Apresentaremos, ainda, as capas dos álbuns, fotografias e depoimentos de membros fundadores do "Kissanguela", fontes ainda inexploradas em nosso país.
Palavras-chave: Angola, pós-independência, MPLA, canção, Kissanguela.
Abstract: This article analyzes an important phase of the urban popular music of Angola that takes place from 1975 on. We focus on the emergence and the phonographic production of the musical group Kissanguela in order to demonstrate that music was one of the paths used for conveying the new political project of the Popular Movement for the Liberation of Angola. We argue that the messages printed on the (lyrics recorded by the group point toward a new era marked by socialism and without linh tothe past. We also present album covers, photographs and testimonies of founding members of the Kissanguela, sources still little explored in our country.
Keywords: Angola, post-independence, MPLA, music, Kissanguela.
Povo angolano, estamos em guerra.
E cada cidadão deve sentir-se, necessariamente, um soldado.
Esmagar a reação e derrubar os grupos fantoches
Neste momento, a principal tarefa: a reconstrução da nossa pátria.
Cada cidadão é e deve sentir-se um soldado,
Fonte: Santos Júnior, Agrupamento Kissanguela.
A canção do músico angolano, Santos Júnior, mencionada na epígrafe deste artigo, foi composta num período bastante peculiar para a história da canção popular urbana de Angola, pós-1975. Para entender a escolha desse ano como um marco temporal importante, é fundamental recuarmos um pouco no tempo: em um cenário marcado por inúmeros conflitos entre os principais movimentos de libertação angolanos e as tropas portuguesas, ocorre, em 25 de abril de 1974, a Revolução dos Cravos, quando um golpe militar do Movimento das Forças Armadas derrubou o regime de Marcelo Caetano. Esse acontecimento gerou profundas alterações no quadro político de Portugal e inaugurou um processo de transição para a independência de Angola. A União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita) foi o primeiro movimento de libertação a assinar um acordo para a suspensão das hostilidades com as autoridades portuguesas, seguido da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) e do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Após a assinatura daqueles acordos, se reuniram, na cidade de Alvor, Portugal, em janeiro de 1975, representantes portugueses e das principais lideranças dos movimentos de libertação supracitados. As decisões decorrentes daquele encontro ficaram conhecidas como o Acordo de Alvor e diziam respeito, fundamentalmente, à formação de um governo de transição para Angola constituído pelos líderes do MPLA, FNLA e Unita que, a partir de então, deveriam governar o país de modo rotativo. Contudo, tal medida não se concretizou. Descumprindo as determinações do Acordo de Alvor, o MPLA declarou, unilateralmente, em 11 de novembro de 1975, a independência de Angola, e passou a ser considerado, internacionalmente, representante do governo angolano.
Se, por um lado, a transferência do poder político de Angola passou para as mãos dos nativos, por outro, marcou o início de uma guerra civil travada entre os três movimentos, que passaram a defender seus próprios modelos de ação e a formar alianças que pudessem garantir melhores condições naquele cenário de grande disputa. Como bem afirmou o historiador Marcelo Bittencourt, "a independência não trouxe o fim dos conflitos entre os principais movimentos de libertação angolanos, mas, mudou o seu enquadramento".3 Assim, independência e guerra civil deram início a uma série de atividades políticas que, cada vez mais, se distanciavam dos desejos e das expectativas de grande parte dos angolanos.
Com a chegada do MPLA ao poder do Estado, a música popular urbana, sobretudo a de Luanda, se tomou uma importante ferramenta de legitimação política e ideológica deste. Como argumenta Marissa Moorman, a música desempenhou, naquele período, um papel importante nas batalhas travadas pela nova nação.4 A canção pode, assim, ser um caminho importante para percebermos a divulgação dos projetos políticos do MPLA, logo após a independência. Músicos, compositores e intérpretes continuaram produzindo música; entretanto, faziam-no sob condições muito diferentes que as verificadas nas décadas anteriores. Todas essas questões são fundamentais para compreendermos o importante papel do Agrupamento Kissanguelaentre os anos 1975 e 1979. Somamos a isto o fato de que o grupo fazia parte da delegação presidencial, acompanhando Agostinho Neto - primeiro presidente de Angola- em todas as digressões que ele fizesse às diferentes províncias do país. Nessa perspectiva, um dos objetivos do grupo era transmitir, através da canção, a fala que os principais representantes do MPLA proferiam em seus discursos. Ademais, como nos recorda Moorman, em 1975 os meios de comunicação, entre eles, a música, auxiliou o MPLA no controle de Luanda e outras doze províncias, das dezesseis que tinha então Angola.5 Com base nas entrevistas realizadas em Luanda, em 2013, encontramos dois significados principais para o nome Kissanguela. De acordo com o músico Santos Júnior, Kissanguela significa, na língua quimbundo, sociedade. Manuelito, por sua vez, explica que a definição seria "os amigos reunidos dos filhos de Angola". Ambos, porém, concordam em atribuir a nomeação do conjunto ao compositor e intérprete angolano Elias Dya Kimuezo. Kimuezo foi um dos nossos entrevistados em Luanda, em 2013. Naquela ocasião, ouvimos, também, os músicos Nito e Calabeto, além de Manuelito e Santos Júnior, ex-integrantes do Agrupamento Kissanguela. Todos foram unânimes ao situar o surgimento do grupo logo após o chamado "período do silêncio". De acordo com eles, esse período teve início com os acontecimentos decorrentes do 25 de abril, em Portugal. A partir daquela data, dá-se o encerramento dos principais estúdios de gravação em Angola e o cenário - antes representado por uma rica fase na gravação e produção de discos; por uma variedade de shows e inaugurações de casas de espetáculos - se modifica. Nas palavras de Manuelito, nome artístico de Manuel Claudino da Silva, tratou-se de "um interregno, pois não havia gravações de discos; não havia espetáculos. Os espetáculos que existiam eram espetáculos à luz da chamada da população para consciencializar as pessoas. Era o que acontecia na época".6Na ótica de Belmiro Carlos (Nito), compositor e principal arranjador do grupo:
O período do silêncio foi dramático para a música angolana. Porque devido à guerra, as coisas complicaram-se. O Kissanguela quase que viveu sozinho durante muito tempo em Angola. Todo mundo só cantava Kissanguela e só se tocava Kissanguela nas rádios. Quem quisesse cantar, tinha que ir pro "Kissanguela" [...].7
Apesar de afirmar que o "período do silêncio" não foi salutar para o "desenvolvimento da música angolana", Nito, em sua fala, enfatiza a exclusividade do conjunto naquele período. Algo semelhante foi dito pelo músico Calabeto, nome artístico de Antônio Miguel Manuel Francisco:
O Kissanguela apresentava-se em tudo que é canto e em toda parte do mundo. Desculpa ter que dizer isso. Não dá pra designar. Naquele período, era o único agrupamento musical. Apresentavase em tudo que é canto, de Cabinda ao Cunene, do mar ao leste, fora do país. O Kissanguela estava em todo o lado.8
Entendemos que nossas memórias possuem um valor social e, nesse sentido, relembrar o passado, como fizeram os nossos entrevistados em Luanda, não significou somente recordações verbalizadas e fragmentadas. Afinal, como sabemos, a memória é, como qualquer outra experiência humana, um campo minado pelas lutas sociais.9 Assim, ao lidarmos com as memórias como um campo de disputa e instrumento de poder, podemos perceber, ainda, como as memórias se constituem, como circulam e como são apropriadas e se modificam nas experiências de nossa vida social. Ao utilizar o conceito de "memórias em disputa", Michael Pollack nos esclarece que na constituição das memórias de movimentos, partidos ou qualquer tipo de organização, há um exercício de "enquadramento" e de manutenção da memória, que consiste em privilegiar acontecimentos, datas e personagens dentro de uma determinada perspectiva.10 Desse modo, quando Manuelito, Nito e Calabeto afirmam que "todo mundo só cantava 'Kissanguela' e só se tocava 'Kissanguela' nas rádios" e, ainda, que "naquele período era o único agrupamento musical", os músicos privilegiam a exclusividade do grupo, eximindo de suas falas a existência de outros conjuntos musicais da época que, mesmo em menor amplitude, também contribuíram para a história da canção de intervenção em Angola. Esse é o caso, por exemplo, dos grupos Angolenses e Fapla-Povo.11 Ao mencionar o conjunto Angolenses, Manuelito assinala:
Os "Angolenses" era um grupo de estudantes do ensino secundário, mas, como eles não tinham suporte, não estavam tutelados a nenhuma estrutura, então, eles também duraram pouco tempo. Fizeram meia dúzia de canções, também de caráter educativo, mas que teve muita pouca duração.12
Críticos e pesquisadores musicais, como o angolano Jomo Fortunato, tendem a estabelecer comparações muito semelhantes entre os conjuntos Angolenses e Kissanguela, não apenas pelo fato de os dois grupos terem surgido na mesma época, mas especialmente pelos temas das canções que compunham e interpretavam.13 O Angolenses foi formado em 1974 por jovens estudantes da então Escola Industrial Oliveira Salazar. Seus membros fundadores foram Armindo Ferreira, Nelson Costa e Vinício Júnior.14 Outro agrupamento que merece destaque é o Fapla-Povo, conjunto formado por músicos que se envolveram na luta em defesa do MPLA e entraram para as forças armadas. Músicos como Santocas, David Zé e Artur Nunes foram alguns dos membros fundadores do grupo que atuou, principalmente, durante os anos 1970. Ao ser questionado sobre o conjunto Fapla-Povo, Santos Júnior é enfático: "Nós éramos mais políticos. Estávamos na JMPLA [Juventude do Movimento Popular de Libertação de Angola] para mobilização" .15 Para Nito,
o Fapla-Povo era, essencialmente, militar, mais dos quartéis. Nós éramos mais abertos; íamos para os quartéis e pra tudo que era sítio. Acho que éramos melhores (risos), tínhamos mais aceitação. Outros grupos tiveram participação na luta também, mas não eram tão intensos quanto o Kissanguela. O Angolenses passa, de certo modo, despercebido. Eram mistos. Faziam música de intervenção, mas, também, cantavam em bailes para dançar. Acho que o Angolenses foi isso, mas, do ponto de vista técnico, não há comparação possível.16
Considerando que a memória é seletiva, percebemos uma linha muito tênue que a liga ao sentimento de identidade;17 o depoimento de Santos Júnior colore essa questão:
Nós íamos sensibilizando a população em tomo da revolução. Nós íamos à frente de combate para mobilizar a tropa para o combate. [...]. Conseguimos mobilizar muita gente que anda por aí, para entrar para o exército para defender esse país. Nós estávamos a ser invadidos por sul-africanos ... E esta música julgou um papel muito importante. Isto fez parte da independência deste país. Nós fizemos o que muita gente não fez, porque as pessoas estavam todas cheias de medo... e nós, de corpo e alma, nos entregamos. [...] daí começamos a fazer trabalhos muito sérios, trabalhos revolucionários.18
As palavras do músico nos remetem ao pensamento de que "ao narrar, as pessoas estão sempre fazendo referências ao passado e projetando imagens, numa relação imbricada com a consciência de si mesmos , ou daquilo que elas próprias aspiram ser na realidade social".19 Nas falas de Nito e Santos Júnior notamos uma valorização da ideia de resistência, na tentativa dos músicos salvaguardarem suas posições nas memórias da luta pela independência em Angola. Isto se toma ainda mais relevante entre o século XX e XXI, período em que muitos músicos da geração de Santos Júnior e de Nito são pouco lembrados e valorizados. Também vale destacar que, assim como observamos na fala de Santos Júnior, os demais ex-integrantes do Kissanguela utilizaram em suas narrativas a primeira pessoa do plural: "Nós íamos sensibilizando a população em tomo da revolução"; "o motivo que nos emocionava era a interpretação de canções políticas porque o momento era extremamente político e de guerra".20 Ora, a memória individual não está inteiramente isolada. Desse modo, a imagem que o indivíduo tem de si mesmo é, portanto, constitutiva e produto de sua experiência social.
Segundo os nossos depoentes, o Kissanguela era formado por, aproximadamente, trinta artistas ligados a vários segmentos, como música, dança, teatro e poesia. Entre os músicos e instrumentistas destacamos Artur Adriano, Beto, Carlos Lamartine, Calabeto, Cristiano Veloso, El Belo, Fató, Filipe Mukenga, Jorge Varela, Nito, Manuelito, Manuel Faria, Santos Júnior, Vivi e Tonito. Numa certa altura, integraram ao conjunto, os músicos Artur Nunes, David Zé e Urbano de Castro. Abaixo, inserimos algumas fotografias do acervo pessoal de Santos Júnior, onde os integrantes do Kissanguela aparecem em apresentações de dança (Figura 1), teatro (Figura 2) e música (Figuras 3, 4 e 5), em apresentações durante a segunda metade da década de 1970. Como já mencionado, o grupo fazia parte da delegação presidencial e um de seus principais objetivos era acompanhar a comitiva de Agostinho Neto, por onde passasse: o Kissanguela "abria" os comícios do presidente, que poderiam acontecer em ambientes abertos, como em ruas e bairros, ou em lugares fechados, como galpões e teatros, como parece ser nas fotografias destacadas nas Figuras 1 a 5.





Sabemos que a fotografia é um documento importante na produção do conhecimento histórico, além disso, é capaz de "informar" e "conformar visões de mundo".21 Fotografias associadas ao Estado, por exemplo, podem dar visibilidade às ações estatais como uma estratégia de persuasão e divulgação de seu poder. Ao atentarmos para essas questões, somos capazes de observar, através da análise dos registros fotográficos gentilmente cedidos por Santos Júnior, aspectos materiais daquele contexto histórico, entre eles: a infraestrutura dos comícios, os instrumentos musicais e as vestimentas utilizadas pelos integrantes do Kissanguela. Na Figura 3, por exemplo, visualizamos as bandeiras de Angola, da União Nacional dos Trabalhadores de Angola (Unta) e da JMPLA. Na Figura 4 podemos observar (apesar da qualidade da foto estar um pouco comprometida) dois quadros pendurados na parede atrás dos músicos: um contendo a insígnia do MPLA e o outro com a imagem do rosto de Agostinho Neto. Mas, o mais significativo, indiscutivelmente, é o fato dos integrantes do grupo usarem camisetas que reproduzem a bandeira do MPLA. Na Figura 5, lemos as palavras de ordem "Vitória é Certa”, um dos principais slogans do MPLA- e também o nome do álbum gravado pelo conjunto -, estampado nas camisetas dos integrantes do grupo. De acordo com Siegfried Kracauer, "todo o processo de produção de sentido, através fotografia, assim como o seu valor cultural, envolve o investimento por parte do sujeito-fotógrafo, na produção de uma imagem que provoque ressonância no campo social no qual desenvolve sua experiência fotográfica" .22 Ora, esse "investimento por parte do sujeito-fotógrafo", de que nos fala Kracauer, é a consequência de um trabalho de produção de sentido, resultante da relação entre o sujeito e o meio do qual ele provém.
Ao compreendermos a fotografia como "experiência histórica", percebemos que aquele indivíduo agrega o valor de suas experiências às suas imagens, representando-as nos produtos de seu trabalho.23 Apesar de as fotografias serem do acervo pessoal de Santos Júnior, elas foram tiradas, provavelmente, por um fotógrafo do Estado. Além disso, elas podem ter circulado na imprensa através dos semanários e panfletos confeccionados e distribuídos pelo MPLA, dessa manei ra, compreendemos que as fotografias buscavam atingir interlocutores específicos ao propagarem valores e sinalizarem as marcas de um ideal pretendido pelo movimento. Ademais, as imagens poderiam desempenhar uma função extremamente relevante, tendo em vista as altas taxas de analfabetismo e a multiplicidade de línguas existente em Angola, naquele contexto histórico.
Voltemos, agora, para um importante instrumento de propagação dos ideais do MPLA logo após a independência: a canção. Marissa Moorman explica que os meios de comunicação, entre eles, a música , foram centrais para que o MPLA pudesse se estabelecer em todo o território angolano; graças a eles e, obviamente, às suas forças armadas, o movimento controlava, em novembro de 1975, a capital e doze das dezesseis províncias do país.24 Além disso, sabemos que músicos são comunicadores habilidosos e influentes formadores de opinião. Certamente, o MPLA reconhecia essas potencialidades. Toda a discografia do Kissanguela foi produzida entre os anos de 1974 e 1979, sendo o primeiro disco produzido em Amsterdam, na Holanda, e os demais pela Companhia de Discos de Angola (CDA). A discografia completa do Kissanguela é constituída pelos álbuns: A Vitória é Certa (primeiro disco gravado), Agrupamento Kisangela , Agrupamento Kissanguela , Rumo ao Socialismo e Progresso, disciplina, produção, estudo - títulos que revelam o compromisso político e partidário do conjunto, assim como algumas das capas dos álbuns , que destacamos nas Figuras 6 a 10.





De acordo com os músicos entrevistados, a criação das capas dos álbuns estava sob responsabilidade de José Agostinho, o primeiro coordenador da JMPLA e um dos integrantes do Duo Misosso, formado pelos músicos José Agostinho e Filipe Mukenga, em 1973. No caso específico do álbum A Vitória é Certa, verificamos , conforme informações contidas na contracapa do disco, que a confecção da arte da capa ficou a cargo do artista holandês Jan Koperdraat. Os diferentes modos de reprodução visual, como as capas de discos, possuem uma força evocativa e podem ser percebidos enquanto signos. Todo signo, porém, representa a realidade a partir de um lugar valorativo , logo , para Mikhail Bakhtin, todo signo é signo ideológico e todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma encarnação material.25 Nesse sentido, podemos pensar, por exemplo, que instrumentos de produção e de trabalho, como a enxada e o facão representados no centro da capa do A Vitória é Certa (Figura 6), podem ser convertidos em signo ideológico , pois adquirem um sentido peculiar naquele contexto: o trabalho da classe camponesa e o início da luta armada em Angola. Aliás, a insígnia presente na capa do álbum é descrita, de acordo com a Lei Constitucional de 1977, da seguinte forma:
A insígnia da República Popular de Angola [é] fom1ada por uma roda dentada e por uma ramagem de milho, café e algodão, representando, respectivamente, a classe operária e a produção industrial e a classe camponesa, a produção agrícola. Na base do conjunto, existe um livro aberto, símbolo da educação e cultura e o sol nascente, significando o novo país. Ao centro, está colocada uma catana e uma enxada simbolizando o trabalho e o início da luta am1ada. Ao cimo figura a estrela, símbolo do internacionalismo e do progresso. Na base inferior do emblema, está colocada uma faixa dourada com a inscrição República Popular deAngola.26
Do mesmo modo que o facão e a enxada, presentes na capa do álbum A Vitória é Certa, a engrenagem , o livro e o milharal (ilustrados na capa do disco Progresso, Disciplina, Produção e Estudo - Figura 9), passam a simbolizar a força do operariado, assim como, a importância do estudo e da produção - todos estes são elementos fundamentais para a construção do "homem novo angolano" e da nova sociedade, pretendida pelo MPLA, no pós-independência. Algo que também observamos refere-se à certa padronização das cores utilizadas nas capas dos discos A Vitória é Certa, Progresso, Disciplina, Produção e Estudo e Rumo ao Socialismo, com o predomínio do vermelho, amarelo e preto que, como sabemos, são as cores da bandeira de Angola e do MPLA. A inserção da estrela, símbolo do comunismo, na capa de dois álbuns gravados pelo grupo, também é algo a destacar, por ser o símbolo presente na bandeira do movimento.
Nas capas dos dois discos intitulados Agrupamento Kissanguela (Figuras 7 e 8), verificamos a intenção de utilizar símbolos que remetessem a elementos tradicionais de Angola. O imbondeiro, por exemplo, não foi escolhido aleatoriamente: a árvore é um dos símbolos mais representativos do país. Os imbondeiros são espécies existentes apenas na região sul da África e em Angola podem ser encontrados na região oeste, como na província de Luanda. A senhora preparando o funge na outra capa do Kissanguela parece apelar para aquele mesmo sentido. O funge é um dos pratos típicos de Angola e assemelha-se muito a um mingau bem espesso, e pode ser feito com farinha de milho ou de mandioca. Ao ser questionado sobre o significado da capa do disco Agrupamento Kisangela (Figura 7), o músico Manuelito responde: "O imbondeiro é símbolo de força. É difícil um imbondeiro tombar. Simboliza força. E é o que o Kissanguela tinha, muita força".27
Assim como as capas dos álbuns do grupo Kissanguela revelam uma força evocativa e significados importantes naquele contexto, as canções presentes nos discos apontam para o mesmo fim. Entendemos que o processo de criação de uma canção envolve uma realidade histórica específica; afinal, como assevera Adalberto Paranhos, "canção alguma é uma ilha mantida em regime de clausura, como se fosse possível cortar os fios que a ligam a outras canções e a mil e um discursos e referências sociais", ou seja, dialeticamente, tudo está em conexão, dialogando entre si.28 Essas questões nos parecem bastante oportunas para pensarmos as canções gravadas pelo grupo angolano, logo após a independência do país.
O álbum A Vitória é Certa é composto pelas faixas: "Tua kua Divua" (interpretação por Fató), "Avante o poder popular" (composição e interpretação por Kalabeto),29 "Invasores de Angola" (composição e interpretação por Santos Júnior), "Ormãla Vanque" (canção popular com arranjo do "Duo Misoso"), "Kitadi kia Ngola" (composição e interpretação por Santos Júnior), "Tchikoloiia" (canção popular com arranjo do "Duo Misoso"), "Poema" (composição e declamação por Jorge Varela), "Enu Ilumba" (composição e interpretação por Kalabeto), "Ministro gatuno" (composição e interpretação atribuída ao grupo), "Estrangeiro" (composição e interpretação por Santos Júnior), "Noite longa" (composição por José Agostinho e Filipe Mukenga) e "Rumo à independência" (composição e interpretação atribuída ao grupo). Em relação a esse repertório, algumas canções foram interpretadas em línguas nacionais (quimbundo, umbundo e tchokwe), e outras em português, caso das composições "Invasores de Angola", "Estrangeiro" e "Avante o poder popular", que descrevemos em seguida:
Avante o poder popular
Se é antagonista ao novo regime governamental
Então cuidado
Se você é branco, preto ou mulato
Não pense nisso e vamos construir
Se é reacionário, pense bem que é uma atitude antipovo.
Mas quem é que manda?
É o povo!
E quem é o povo?
É o MPLA!
Avante o poder popular
Avante!
Abaixo todas as manobras do inimigo.30
Logo nos primeiros versos da canção, Calabeto questiona o leitor-ouvinte, alertando-o para o "perigo" em ser "antagonista ao novo regime governamental". Por outro lado, ser "branco, preto ou mulato" parece não importar, revelando a postura do MPLA em ter-se assumido enquanto um "movimento plurirracial" e "pluriétnico", em que as diferenças deveriam ser diluídas para a construção da nova sociedade que se pretendia formar.31 A partir de 1977, quando o MPLA se converte em Partido do Trabalho (MPLAPT), o Estado assumiria, oficialmente, um discurso marxista-leninista, discurso este "que serviria de base e argumento para justificar que as diversas culturas presentes no território angolano sofressem um processo de 'adequação' com o objetivo de servir à revolução". Ser " reacionário", naquele contexto, simbolizaria uma "atitude anti povo" e, consequentemente, uma atitude "anti-MPLA e anti-Neto", afinal, como nos explica Jean-Michel Mabeko Tali: "Ser 'anti-Neto' - ou como tal considerado - tornou-se, pelo jogo das palavras de ordem - e pelo mecanismo de arrastamento próprio das multidões em tempos de exaltação - sinônimo de ser 'antipovo"'.32
O verso "Avante o Poder Popular", título da canção, faz alusão ao projeto de autogestão popular para Angola, que se tornou fundamental naquela altura. Em Luanda, a questão do Poder Popular fomentou as ações e os discursos empreendidos pelos três movimentos de libertação angolanos, antes mesmo da posse do Governo de Transição. Para os jovens angolanos envolvidos nas ações independentistas , ser favorável ou contrário ao Poder Popular significaria "a escolha entre uma verdadeira independência, na qual o povo estaria no poder, ou o modelo neocolonialista que, através da manutenção dos privilégios de uma minoria, excluiria o povo do poder político" .33 Desde o início, grupos pertencentes a outros movimentos de libertação angolanos, como a FNLA e a Unita, se posicionaram contrários, diferentemente do líder Agostinho Neto que, logo em seu primeiro comício na capital, em 4 de fevereiro de 1975, demonstrou ser favorável ao Poder Popular, ao se aproximar da ideia de um poder condicionado pelo povo.34 Como informa Tali, o "Poder Popular" se tornou, com efeito, uma referência para qualquer modelo de descolonização. Para seus idealizadores, representava a "verdadeira independência, que colocaria "o povo no poder" num sistema de autogestão"; por ouro lado, assim que formulada, a questão gerou uma série de polêmicas, conformada por uma "autêntica batalha ideológica entre os movimentos e, muito particularmente , entre a FNLA e o MPLA".35
Outra canção do álbum "A Vitória é Certa" que gostaríamos de destacar é a composição de Santos Júnior, "Invasores de Angola", cuja letra sinaliza:
Norte-americanos
Invadem o nosso país
Sul-africanos
Invadem o nosso país
Zairenses
Invadem o nosso país.
A convite de Savimbi, Holden e Chipenda
Porque estão sendo varridos
Pelas forças progressistas.
Este trio bandoleiro terá que ser julgado
Após a independência
No campo da revolução.36
A canção "Invasores de Angola" insere-se no contexto da internacionalização da guerra em Angola, particularmente, durante o período da Guerra Fria, quando forças militares estrangeiras passam a integrar o conflito, travado entre os três movimentos de libertação. Naquele período, as alianças estabelecidas poderiam determinar os caminhos do confronto que se instauraria. Durante a disputa, a FNLA recebeu apoio do exército zairense e a Unita, fraca em termos militares, foi auxiliada pelo exército sul-africano, ambos financiados pelos Estados Unidos da América. Na composição, a "invasão de Angola" estaria a cargo do "trio bandoleiro", formado por Holden Roberto, líder da UPA/FNLA, Jonas Savimbi que, naquela altura, era a liderança da Unita e por Daniel Chipenda que, em 1973, conduziu um movimento formado por altas patentes e bases militares contra a direção do MPLA, aliando-se, posteriormente, à FNLA. Gradativamente, o MPLA foi estreitando laços com os países do bloco socialista, particularmente, com Cuba. O número de cubanos em Angola durante os primeiros anos da guerra civil foi altamente expressivo. Segundo dados apresentados por Christabelle Peters, Havana enviou para Angola, em novembro de 1975, quatro mil soldados e, após a campanha militar inicial, aproximadamente 370 mil cubanos participaram da missão.37
Ideia semelhante à de "Invasores de Angola" surge em "Estrangeiro", outra composição de Santos Júnior. Com uma letra contendo mensagens alusivas à confraternização entre os povos de Angola e, ao mesmo tempo, afirmando a necessidade da continuidade da luta, a mensagem impressa na canção destaca a "cobiça" do então presidente do Zaire e aliado da FNLA, Mobutu Sese Seko. Por outro lado, a frase "Tu que estás aqui vivendo" sugere que a música também fazia um alerta para os angolanos que migraram do país vizinho (particularmente, o Zaire) e que, segundo o MPLA, poderiam ser potenciais apoiantes da FNLA.
Estrangeiro
Tu que estás aqui vivendo
Não lances ideias reacionárias.
Se és, na verdade, um irmão
Não maltrate os teus irmãos
Porque Angola é grande
E chega pra todos nós.
Ê, Angola ê!
Angola é tão grande
Seja firme camarada
Que a luta continua.
Se queres viver aqui
Ajude-nos a construir a paz
Estrangeiro.
Ê,Angola ê!
Angola é tão grande assim
Que o fascista Mobutu
Está a cobiçando.38
O álbum Agrupamento Kissanguela, de 1978, contém sete faixas. Grande parte delas foi composta e interpretada em línguas nacionais, salvo "Congresso", uma composição de Nito e Tolinhas, interpretada/declamada em inglês e francês. Outras faixas do LP são: "Nvunda Mu África" (composição e interpretação por Artur Adriano), "Manu Ló Kó Manu" (composição e interpretação por Tolinhas e Marito), "Buá Dima Óh Kidima" (composição e interpretação: Avôzinho), "Maka Manangola" (composição e interpretação por Santos Júnior), "Ekongelo" (composição e interpretação por El Belo) e "Lamento aos heróis que tombaram" na interpretação de Fató que, conforme destacou Nito durante nossa entrevista, era a única integrante feminina efetiva do Kissanguela.39 Fató, nome artístico de Juliana Manuel, nasceu em 22 de dezembro de 1950 na província de Luanda, no município de Sambizanga. Sua primeira aparição pública, enquanto cantora, aconteceu durante a chegada da delegação oficial do MPLA, em Luanda. Naquela ocasião, Fató fez uma participação junto com o grupo Jovens do Prenda. Como integrante do Kissanguela, ela realizou várias digressões artísticas na comitiva do então presidente Agostinho Neto. Em 1976, viajou com o grupo para Moçambique, Guiné-Conacri, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Argélia.40
Agrupamento Kisangela é, também, o título do álbum de 1979. Com supervisão musical de Carlito Vieira Dias, o LP contém as faixas "Hoje é dia de revolução" (composição e interpretação por El Belo), "Áfrika" (composição e interpretação por Marito e Tolingas), "Muvu Wonene" (composição e interpretação por Artur Adriano), "Solidariedade com o povo cabo-verdiano" (canção instrumental composta e interpretada por Nito), "Agricultura" (composição e interpretação por Santos Júnior), "Athu Mu Njila" (composição e interpretação por Santos Júnior e Filipe Mukenga), "Cadência Harmoniosa" (canção instrumental composta e interpretada por Nito), "Nvundu Ya Zimbabwe" (composição e interpretação por Artur Adriano) e "Camarada Nzoki" (Marito). Nesse álbum prevalecem as canções em línguas nacionais de Angola. "Hoje é dia de revolução", composição de El Belo, é a única canção interpretada em língua portuguesa. 41
Hoje eu canto pra Revolução
Revolução nas Américas
Na Ásia
Na África
Oh, África!
África mãe-pátria
Cobiçada pelo mundo imperialista
Quem serve à Revolução não é ser racista
Nem tribalista
Nem oportunista
Mas é consolidar o internacionalismo proletário
Hoje é dia de Revolução.42
A mensagem sinalizada pela canção de El Belo apresenta diversos temas que seriam fundamentais para o projeto de construção do "novo homem angolano". Para a edificação daquele projeto, o "homem novo" deveria abandonar suas características regionais e étnicas em nome de algo maior: o projeto e a construção de um novo país sem marcas de regionalismo, racismo e tribalismo. A constituição do projeto de nação estaria assentada, também, em novos princípios e ações, que seriam conduzidos e alcançados através do trabalho, sobretudo, da classe proletária.
Outro álbum do conjunto Kissanguela que gostaríamos de mencionar é Progresso, Disciplina, Produção e Estudo. Nele constam dez faixas: "Camarada" (interpretação por Mário Silva), " M.P.L.A." (interpretação por El Belo), "Café" (interpretação atribuída ao grupo), "Avante o poder popular" (composição e interpretação por Kalabeto), "Holden Nguma" (interpretação por Tino Diá Kimuezu), "Cada cidadão é e deve sentir-se necessariamente um soldado" (composição e interpretação por Santos Júnior), "F.A.P.L.A., UTENA" (composição e interpretação por Artur Adriano),"Solo no Maqui'' (canção instrumental de composição e interpretação atribuída ao grupo), "Presidente Neto" (composição e interpretação por Artur Adriano) e "Angola" (interpretação por Mário Silva). Grande parte das canções presentes no álbum foram compostas e interpretadas em línguas nacionais. Os títulos em português são "Camarada" e "Cada cidadão é e deve sentir-se necessariamente um soldado", cujas letras descrevemos a seguir.
Camarada tenha atenção
Que a gente quer uma só nação
A luta continua
Na mata e na rua
Camarada.
Quando se fala em Revolução
Devemos contar com a reação
Camarada tenha atenção
Que a gente quer uma só nação
Camarada.43
Povo angolano, estamos em guerra
E cada cidadão é que deve sentir-se, necessariamente, um soldado
Esmagar a reação e derrubar os grupos fantoches
Neste momento, a principal tarefa: a reconstrução da nossa pátria
Camaradas, vigilância às manobras reacionárias
As contradições são secundárias
O aspecto principal é a luta.
Nos é imposto à pele o imperialismo
O inimigo comum dos povos oprimidos
[... ]
Nós venceremos
E a África também
A luta continua
A vitória é certa!44
Conforme já sinalizamos, com a nova etapa da luta, iniciada com a guerra civil entre os três principais movimentos de libertação, o Estado se empenhou na divulgação de canções, como "Camarada" e "Cada cidadão é e deve sentir-se um soldado". Em ambas as letras notamos a preocupação de seus autores em alertar a população para a necessidade de continuidade da luta, seja ela nas cidades ou nas matas. Ao orientar as ações e os comportamentos que os cidadãos deveriam seguir, a letra da canção "Cada cidadão é e deve sentir-se um soldado" incentiva a mobilização da população civil em entrar para o exército com o objetivo de impedir o avanço do "perigo imperialista", representado pela FNLA e dos "grupos fantoches", designação atribuída aos membros da FNLA e da Unita. Canções semelhantes foram compostas e interpretadas por Carlos Lamartine, que também chegou a integrar o grupo Kissanguela. O artista iniciou a sua carreira musical em 1956 ao participar do grupo Kissueias do Ritmo. Entre os anos 1974 a 1977 produziu as canções: "Ene" (Eles), "Ó dipanda wondo tula kiá" (A independência vai chegar), "Zuatenu milela iá xikelela" (Vistam-se de panos pretos), "Kimbemba" (canção dedicada a Agostinho Neto), "Pala ku nu abessa ó muxima" (Venho cantar para vos agradar), "Etu tuana ngola tua solo kiá" (Os filhos de Angola já escolheram o MPLA) e "Ene ando builé" (Eles hão de se cansar). Os títulos das faixas do álbum sugerem temas parecidos aos das mensagens. Parece ser este o caso de "Faço-te este apelo camarada": "Camarada, sei que sentes no sangue, o apelo deste teu camarada; Abandone o tribalismo; Avante a Revolução!; Abandone o regionalismo; Avante a Revolução!; Vem pro seio do MPLA; Vem pro seio do povo angolano".45
O último trabalho do grupo Kissanguela que gostaríamos de destacar é o álbum Rumo ao Socialismo: República Popular de Angola, onde constam as faixas "Olinginini, Olinginani" (interpretação por Tolingas), "Serás livre, mãe" (poema declamado por Jorge Varela), "Kitadi Kiá Ngola" (interpretação por Santos Júnior), "Angola Popular" (interpretação atribuída ao grupo), "Roji Yá Renda" (composição e interpretação por El Belo), "Estrangeiro" (composição e interpretação por Santos Júnior), "l º de Agosto" (interpretação atribuída ao grupo e ao "Duo Misoso"), "Manguxi" (interpretação por Tino Diá Kimuezu), "Enu Ilumba" (interpretação por Kalabeto), "Rumo ao Socialismo" (interpretação: Mário Silva) e "Rumo à independência Total" (interpretação atribuída ao grupo). Nesse projeto são relembradas e homenageadas personagens, como o comandante Roji Yá Renda, que se destacou durante a guerra e morreu em combate, em 1968.46 Todas as canções do álbum foram gravadas em língua nacional (provavelmente em quimbundo), salvo "l º de Agosto" e "Estrangeiro", canção presente, também, no álbum "A Vitória é Certa".
Ao concluirmos que o conteúdo temático de uma canção e sua construção composicional estão ligados a um contexto e às condições de produção específicos , podemos depreender que várias músicas presentes nos cinco álbuns gravados pelo Kissanguela revelam o didatismo do MPLA, tomando-se um importante instrumento de divulgação de seus projetos políticos, no período posterior à independência. Vale acrescentar que aquelas canções foram produzidas por gravadoras estatais (ou a mando delas) e seus registros informam apenas as canções que o governo intencionava recuperar ou divulgar. Aliás, sobre o processo de composição do repertório do Kissanguela, Belmiro Carlos (Nito), esclarece:
O Kissanguela só cantava canções políticas. Era tudo para a mobilização das tropas, para a mobilização da sociedade, da população. Era tudo para exaltar a política, os dirigentes, o MPLA, condenar a guerra, tudo era nesse sentido. Praticamente, não era dançante, era música mais para a mobilização. Aliás, ser dançante não era a nossa preocupação, nossa preocupação era muito a qualidade estética e técnica, o conteúdo47.
Manuelito complementa: "começamos a fazer os nossos ensaios e, naturalmente, fomos sendo solicitados pela estrutura central do partido com o objetivo fundamental de fazer canções políticas; fazer trabalhos com intervenção política".48 As falas de ambos os músicos nos remetem a pensar em algumas questões relacionadas, especialmente, ao processo de composição das canções. Primeiro, apesar de Nito ter sido enfático ao afirmar que "praticamente, não era dançante, era música mais para a mobilização”, não podemos negligenciar o fato de que grande parte do repertório do grupo é composta por canções com o compasso acelerado. Uma hipótese seria a de pensarmos que tornar as canções "dançantes" seria um modo de popularizá-las, algo aparentemente distante de seu objetivo primeiro. O segundo aspecto a destacar seria: teriam os músicos desta fase, entre os anos de 1974 a 1979, "liberdade criativa" para produzirem as suas obras? Sabemos que a música e o ato de fazer música estão sempre permeados pelo político - toda criação artística acontece a partir de uma reação que realmente comova o artista, mediante um contexto específico que o cerca.49 Portanto , o fato de vários músicos cantarem, propagando a importância da vitória e da luta do MPLA, estaria relacionado à orientação partidária oficial de reconstrução nacional? E, ainda, havia, por parte do Estado, um projeto político-cultural específico para os músicos populares? Sobre isto, os músicos Manuelito e Calabeto apontam:
As músicas do "Kissanguela" eram gravadas na Rádio Nacional e eles, por obrigação, tinham que tocar [...] havia subjugações porque o domínio da esfera ideológica do partido orientava a comunicação social em Angola. Assim, o perfil das canções era, essencialmente, canções de intervenção política.50 O Kissanguela albergava todas as camadas sociais desde que você fosse uma pessoa que tivesse uma conduta exemplar, estaria nas condições de trabalhar conosco e ser, também, aceito pelo partido. O perfil das canções era, essencialmente, de intervenção política. Depois de 1974, o motivo que nos emocionava era a interpretação de canções políticas porque o momento era extremamente político e de guerra. [...] De 1974 a 1977 não fazia sentido interpretar outras canções a não ser canções políticas.51
Um caminho a trilhar seria o de pensarmos que as teorias baseadas no marxismo-leninismo apontam o trabalho cultural como uma forma de luta ideológica. Nessa perspectiva, a primeira atitude a tomar, para a criação de uma cultura nacional angolana, seria estatizar as manifestações culturais, que contariam com o apoio oficial para a sua divulgação. Carlos Teles de Menezes Junior consultou os relatórios e as conclusões provenientes do Primeiro Encontro Nacional do Conselho Nacional de Cultura (CNC) e concluiu que coube ao conselho a função de elaborar uma diretriz cultural, que visasse a construção de uma cultura das classes camponesa e, principalmente, operária e que congregasse os valores universais e científicos do socialismo.52 O projeto do CNC teria, ainda, o objetivo de desenvolver, no meio popular, uma transformação cultural que definiria "a contradição entre o velho e o novo, nascendo uma cultura nova de raiz nacional e de projeção internacional, com base na formação de um novo homem".53 Essas características podem ser encontradas, também, em outro importante documento. Trata-se do Relatório do Comitê Central do 1º Congresso Extraordinário do MPLA - Partido do Trabalho, de 1977. Nele, lemos:
Para além da educação política dos membros do MPLA-Partido do Trabalho, é necessária uma maior preocupação com a educação política dos trabalhadores em geral, para que a ideologia do proletariado assuma cada vez mais um papel dominante em todas as esferas da sociedade. Neste sentido é necessário um trabalho conjugado dos vários setores ligados à esfera ideológica: o aparelho de propaganda do Partido, a instituição pública, as instituições culturais, os meios de difusão massiva, a literatura e a arte.54
O documento aponta a necessidade de um trabalho conjunto entre as instituições públicas e culturais. Neste sentido, vale acrescentarmos que um dos objetivos do Departamento Imprensa e Propaganda (DIP), órgão do MPLA, seria a emissão e a produção de discos. Em 1976, por exemplo, foi gravado o álbum Massacre de Kifangondo, sob o rótulo do DIP (Figura 11).
O álbum, cuja capa sinaliza para o contexto da guerra civil em Angola, contém títulos que nos remetem ao mesmo tema. Em Massacre de Kifangondo, encontramos as canções "Massacre de Kifangondo", "Hino da Unta" e "Assim clamava esgotado" e "Havemos de voltar" -os dois últimos, títulos de poemas de Agostinho Neto. Cabe, ainda, referirmos que em Angola, durante os primeiros anos do pós-independência, o líder do MPLA, Agostinho Neto, personifica os ideais e valores do Estado. Inclusive, a propaganda excessiva da figura de Neto era uma estratégia do próprio partido que, recorrentemente, oferecia espetáculos públicos, enaltecendo sua imagem e reproduzindo-o enquanto "herói da população". As capas de discos produzidas naquele contexto também podem ser um caminho interessante para compreendermos esse processo. Parece ser este o caso da capa de disco presente na Figura 12, onde a imagem de Agostinho Neto ganha destaque.

A necessidade de recuperar e reafirmar personagens históricas de Angola foi, aliás, uma característica constante na produção de vários músicos populares angolanos. A produção discográfica de Santocas,56 por exemplo, teve um efeito mobilizador numa época em que os principais movimentos de libertação disputavam, entre si, a conquista do poder no país. Em seu álbum "Glória eterna aos nossos heróis", o músico relembra algumas dessas personagens, como Hoji Yá Renda, N'Gangula e Deolinda Rodrigues. Outros títulos do álbum, que contém doze faixas compostas e interpretadas por Santocas, são: "Zito", "Oportunismo", "Mama Tunda Bukanga", "Namíbia", "Mu Kua Roleta", "Valódia", "OMA", "Kanhala" e "Saúde". Abaixo, descrevemos a letra de duas canções compostas e interpretadas em português: "N'Gangula" e "Valódia"57
N'Gangula morreu
Primeiro, foi torturado
Depois, foi interrogado
E, no final, esquartejado.
Aquele pioneiro sofreu na carne
Quando foi apanhado pelos lacaios
Ele foi torturado
N'Gangula preferiu dar a sua vida
No lugar de seus camaradas.
N'Gangula
Você é o exemplo do nosso povo
O teu nome ficou na história
E, tu, jovem pioneiro,
Siga o exemplo de N'Gangula.58
Bem longe
Ouvi aquele nome inesquecível dos filhos d' Angola
Valódia!
Valódia tombou em defesa do povo angolano
Valódia!
Valódia tombou nas mãos dos imperialistas
Valódia!
[...]
Abaixo o capitalismo
Abaixo o imperialismo
Abaixo o neocolonialismo
Avante o socialismo
A reação não passará
A opressão não passará
A luta continua
Até a vitória final.59
Entendemos que canções como "N'Gangula" e "Valódia" ajudaram a edificar o culto aos heróis nacionais. Na maioria das vezes, esses combatentes foram mortos durante a guerra e acabaram se tornando mártires em Angola. Para Santocas,
essas são canções que fazem parte da história de Angola, senão mesmo, são canções que contribuíram para a vitória do povo angolano porque foram com estas canções que eu consegui sensibilizar a nossa população, na altura, para fortalecer o exército ou as FAPLA, como era chamado na altura o braço armado do MPLA. Essas canções fizeram com que o MPLA pudesse engrossar as suas fileiras em tem10s de forças am1adas; amadureceram muito mais a consciência deste povo para a derrocada total do colonialismo. Essas canções são parte integrante da independência de Angola.60
Em consonância com Marieta de Moraes Ferreira, entendemos que as entrevistas podem ser vistas como memórias que "espelham determinadas representações"; assim, assevera a autora, "as possíveis distorções dos depoimentos e a falta de veracidade a eles imputada podem ser encaradas de uma nova maneira, não como uma desqualificação , mas como uma fonte adicional para a pesquisa".61 Ao nos basearmos nessa perspectiva, compreendemos que quando Santocas afirma: "eu era praticamente o porta-voz a nível deste meu MPLA. Era o porta-voz a nível das populações de Angola. [...] Foi com todas essas canções que conseguimos combater o colonialismo, o neocolonialismo, o racismo, o tribalismo", entendemos que estamos trabalhando com memórias ideológica e culturalmente mediadas, uma vez que a fala do outro é sempre um ato interpretativo de alguma realidade62 no sentido de que "recordar e contar já é interpretar".63 Dessa maneira, Santocas, assim como os nossos entrevistados do grupo "Kissanguela", buscou, em sua fala, valorizar a ideia de resistência como uma maneira de salvaguardar o seu papel nas memórias da luta pela independência de Angola e, especialmente, na história da música popular urbana daquele país.
O 27 de maio e o fim do grupo Kissanguela
O desfecho do Agrupamento Kissanguela deve ser compreendido com base nos acontecimentos decorrentes do 27 de maio em Angola. Em 1977, o MPLA tomou-se um partido de grande dimensão, que abrigava concepções políticas antagônicas. Tais divergências ideológicas contribuíram para tomar ainda mais acirrada a disputa pela hegemonia dentro do movimento. Segundo Tali, o 27 de maio de 1977 foi o culminar de contradições cujas origens devem ser buscadas desde a luta de libertação nacional; nessa data, um grupo liderado por Nito Alves, José Van Dunem e Sita Valles, todos membros do MPLA-PT, empreendeu uma tentativa de golpe contra a direção do partido e a cúpula do Estado. Defensor de uma "ortodoxia marxista claramente pro-soviética", Nito Alves foi o protagonista de uma das mais longas e graves crises políticas e estruturais vividas pelo MPLA. Nas palavras de Tali, "a tentativa de golpe de Estado que daí resulta, o 27 de Maio de 1977, vai marcar de forma indelével não só o próprio MPLA, como toda a vida política da Angola pós-colonial".64
No dia 27 de maio de 1977 os conflitos eclodiram na capital e a repressão foi sangrenta, de modo que qualquer indivíduo que pudesse estar ligado ao "nitismo" ou que fosse identificado como "nitista" (como ficariam conhecidos os indivíduos que apoiaram a tentativa de golpe) estava sujeito à prisão ou execução. Sobre aqueles acontecimentos, Manuelito, músico e ex-integrante do "Kissanguela", recordou:
Em 1977, houve uma revolta que se chamou 27 de maio, dos fraccionistas e, no entanto, nós fomos suspensos, achando que estivéssemos inseridos nessa história. Finalmente, averiguada as coisas, concluiu-se que nós não tínhamos nada a ver com que se estava a passar. Nós fizemos umas poucas atividades, mas já não estávamos mais motivados até que houve a política de reconciliação nacional; fomos inseridos novamente na atividade política como militantes e o conjunto nunca mais apareceu.65
Além de os acontecimentos decorrentes do 27 de maio terem contribuído para a dissolução do Kissanguela, não poderíamos deixar de mencionar que vitimou três nomes importantes da música popular de Angola: Artur Nunes, David Zé e Urbano de Castro. Os três músicos foram assassinados em decorrência do 27 de maio, embora não haja documentos e relatos oficiais publicados sobre suas mortes. Os nomes dos três artistas foram recordados por todos os nossos depoentes do Kissanguelae mencionados como o "trio da saudade". Artur de Jesus Nunes nasceu no município de Sambizanga, província de Luanda, em 17 de dezembro de 1950, e faleceu aos vinte e sete anos de idade. O músico e compositor gravou doze singles ao longo de sua carreira, principalmente, entre os anos de 1972 e 1976. David Gabriel José Ferreira (David Zé) nasceu em 23 de agosto de 1944 em Kifangondo, uma vila pertencente ao município de Cacuaco, na província de Luanda. É possível situarmos sua produção fonográfica em dois momentos distintos. No primeiro deles, de 1967 a 1974, ele grava vários singles com os conjuntos Águias Reais e Jovens do Prenda. A fase de 1974 a 1977 é marcadamente influenciada pelos acontecimentos políticos da época. Nesse período, grava os álbuns Guerrilheiro (CDA, Angola), 1º de Agosto (CDA, Angola) e Mutudi Ua Ufolo / Viúva da Liberdade (CDA, Angola). A trajetória de Urbano de Castro enquanto músico se confundiu com a de guerrilheiro das Fapla. Urbano de Castro produziu vários singles com os conjuntos Kiezos, Jovens do Prenda, África Ritmos, África Show, Águias Reais e Os Merengues, e da sua discografia destacamos o álbum Camarada Presidente (CDA , Angola) de 1975.
À guisa de conclusão
O caminho percorrido por nós revelou um esforço em recuperar, mediante a análise dos depoimentos, das canções, das fotografias e das capas de discos, um pouco da história do Agrupamento Kissanguela, logo após a independência de Angola. Depois do ano de 1977 todas as práticas culturais patrocinadas pelo Estado - e entre elas, a música- assumiram um papel explicitamente revolucionário. A mudança do MPLA para partido exigiu, aliás, uma redefinição da prática musical que deveria, naquele contexto em particular, envolver a juventude do país num projeto de mobilização e valorização de ideais e práticas para a nova sociedade pretendida. É possível percebermos, portanto, o quanto a vinculação política ou a maior proximidade ao partido dirigente impulsionou algumas carreiras e dificultou outras, naquele período específico da história. No entanto, tal proximidade também se demonstrou prejudicial (e mesmo letal) em alguns casos, como nos indicaram as trajetórias dos músicos Artur Nunes, David Zé e Urbano de Castro.
Notas