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A IMPORTÂNCIA DO CAFÉ PARA SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE FRENTE À PROIBIÇÃO DO COMÉRCIO DE ESCRAVIZADOS PELA INGLATERRA
THE IMPORTANCE OF COFFEE FOR SÃO TOMÉ AND PRÍNCIPE IN VIEW OF THE PROHIBITION OF SLAVE TRADE BY ENGLAND
A IMPORTÂNCIA DO CAFÉ PARA SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE FRENTE À PROIBIÇÃO DO COMÉRCIO DE ESCRAVIZADOS PELA INGLATERRA
Afro-Ásia, núm. 63, pp. 40-67, 2021
Universidade Federal da Bahia
Recepção: 11 Agosto 2020
Aprovação: 24 Novembro 2020
Resumo: Este artigo aborda a cultura cafeeira em São Tomé e Príncipe durante o período imediatamente posterior à proibição inglesa do comércio de escravizados em 1807. Considerada a cultura capaz de desenvolver a agricultura no arquipélago, o café, apesar da resistência inicial ao seu cultivo, manteve o interesse e a presença de embarcações estrangeiras quando da interdição inglesa e da isenção de ancoragem concedida pela Coroa portuguesa a todos os navios do Brasil que comercializavam na Costa da Mina; desde que fossem recolhidos os direitos aos portos onde ocorreram as barganhas comerciais. Beneficiando-se da demanda existente e da qualidade, o grão aos poucos conquistou o interesse e foi apontado como a cultura que ajudaria a superar o cenário de proibição do comércio de sua maior receita alfandegária até então, o comércio de escravizados.
Palavras chave: Café, São Tomé e Príncipe, Tráfico de escravizados.
Abstract: This article addresses coffee farming in São Tomé and Príncipe just after the English ban on the slave trade in 1807. Considered a key crop for of the development of agriculture in the archipelago, despite initial resistance to its cultivation, coffee maintained foreign commerce when the English ban and the anchorage exemption granted by the Portuguese crown to Brazilian ships trading in the Costa da Mina provided rights to the ports where the commercial bargains occurred. Benefiting from the demand for quality coffee beans, the crop gradually won the interest of local producers seeking to overcome the negative economic impact of the ban on the islands’ largest source of customs revenue: the commerce in enslaved people.
Keywords: Coffee, Sao Tomé and Príncipe, Slave trade.
Considerado como centro de “experimentação” da colonização, São Tomé e Príncipe teve o povoamento de seu território desabitado realizado por dois grupos: europeus e africanos escravizados, originando, mais tarde, uma população mestiça e livre.1 O arquipélago localizado no Golfo da Guiné ( Figura 1 ) ganhou destaque econômico com a cultura da cana-de-açúcar ainda no século XVI2 e com a reexportação de escravizados,3 que até os anos finais da década de 18204 apresentava-se como a principal receita alfandegária.

Durante a primeira metade do século XIX, o empobrecimento era constantemente relatado nas comunicações entre os governadores do arquipélago com a metrópole. Mas o declínio já era noticiado desde o Seiscentos. Francisco Tenreiro, ao descrever o estado de “decadência” da ilha de São Tomé no século XVII, afirmou que “a governação central embaraçada com a colonização do Brasil, numa política de autêntico sacrifício das posições africanas” somada à falta de recursos “não tinha possibilidades de acudir às gentes de São Tomé”.5
A situação se agravou a partir da ocupação mais efetiva da colônia portuguesa na América e, principalmente, com a produção de açúcar de melhor qualidade, que ocasionou a emigração de muitos envolvidos no fabrico da especiaria para a “nova colônia”. Se os produtores açucareiros da possessão emigraram para o Brasil levando seus engenhos e mestres, séculos depois, em finais do XVIII, o Brasil exportaria para o arquipélago culturas como café e cacau,6 que durante parte da primeira metade do Oitocentos ganhariam destaque na exportação, com o café tornando-se o principal produto agrícola das ilhas.
O cultivo do café, inicialmente, sofreu resistência de diferentes partes, do governador, de escravizados, de africanos livres e de mulatos.7 Entretanto, o café e, posteriormente, o cacau8 foram os responsáveis pelo renascimento econômico do arquipélago gerando a “prosperidade que havia desaparecido”.9 No início do Oitocentos o café foi “uma das alavancas impulsionadoras da renovação agrária”,10 o que demonstra a importância alcançada pela cultura na possessão.
Não diferente do que aconteceu nas colônias francesa, holandesa e portuguesa na margem oposta do Atlântico, em São Tomé e Príncipe tratou-se também de uma agricultura baseada no trabalho escravizado. A lavra cafeeira no arquipélago beneficiou-se, segundo Carlos Agostinho das Neves, da existência de uma infraestrutura escrava ou impulsionada pelo tráfico.11
Composto por colonos europeus e os chamados “brancos da terra”,12 grupo fundiário do arquipélago disputava entre si o protagonismo13 e controlava o “resgate de escravizados” que seriam aplicados na agricultura. Os “brancos da terra”, também conhecidos como as “filhas das ilhas”, mestiças ou “brancas da terra”, pertenciam “a grupos familiares há muito enraizados no arquipélago”.14 De qualquer modo, esse grupo destacava-se no resgate de escravizados e como proprietário de terras e escravos.15
Se a elite local era “moldada” pela disputa de espaço no resgate de escravizados e o arquipélago era abastecido com gêneros de primeira necessidade pelas embarcações estrangeiras, a proibição inglesa ao comércio de escravizados foi uma das responsáveis pela retração da atividade comercial.16 Naquele momento, mesmo sem apresentar maiores resultados, o café, em razão de sua qualidade, era o produto capaz de manter parte do interesse estrangeiro na possessão. Entretanto, em janeiro de 1808 a escassez sentia-se com a queda acentuada nos “ramos de comércio, agricultura, e que se acha[va] quase extinto”.17
Outro ato que prejudicou economicamente a região e acentuou a diminuição do número de embarcações no arquipélago foi a isenção de “tocar” na possessão concedida pela Coroa portuguesa a todos os mestres de navios do Brasil que comercializavam na Costa da Mina, desde que fossem recolhidos os direitos aos portos a que pertencem, ou seja, aos portos onde foram realizadas as barganhas comerciais.18 O ofício do governador das ilhas que apresentava as consequências da proibição inglesa e da concessão feita aos navios do Brasil foi datado em 1º de abril de 1809 e ponderou a desobrigação da ancoragem das embarcações como o mais “considerável” e o que “traria a inteira e absoluta e imediata ruína delas [São Tomé e Príncipe]”.19
Os motivos apresentados foram cinco, mas, possivelmente, o principal foi a falta de gêneros de primeira necessidade que as embarcações utilizavam para o resgate de escravizados.
1º em não ter o cofre real outras rendas, senão os direitos que estes navios pagavam para satisfazer aos filhos da folha; 2º na falta de venda dos mantimentos que tais navios se prestavam; 3º em não haver mais Europeus e Brasileiros para casarem com as mulheres brancas e pardas; 4º em acabar de uma vez, e não tornar a aparecer mais nenhum grão de Ouro para as compras dos gêneros comerciais e 5º finalmente na falta de gêneros de primeira necessidade que estes navios importavam para o resgate de escravos.20
No entanto, as alegações do governador não foram consideradas. Posteriormente, foram ordenadas providências para promover os ramos do comércio e da agricultura, que, segundo informações repassadas à Coroa, se encontravam em forte queda.
Contra-argumentando, o governador apresentou a situação da possessão até meados de 1808. Luís Joaquim Lisboa (1805-1817) ofereceu vários mapas sobre a entrada de embarcações nos portos da possessão desde a época do governo de João Baptista da Silva, ou seja, de agosto de 1799 até outubro de 1808. Vejamos os dados relativos ao comércio de escravizados nas tabelas a seguir:
A partir da Tabela 1 , observa-se que no período São Tomé importou 8.332 escravizados e exportou 4.782, o que possibilita interpretar que 43% tiveram como destino a própria ilha, ou seja, foram utilizados na agricultura local. É evidente que com a diminuição do número de embarcações inglesas a ilha sofreu não só o impacto negativo na exportação de escravizados, mas na oferta e reposição da mão de obra de sua agricultura. Esse fato foi uma das questões apresentadas pelo governador em sua resposta sobre a “decadência” da possessão. Contudo, após analisar os dados encaminhados pelo governador Luís Joaquim Lisboa, percebe-se uma retomada do comércio de escravizados. Ocorre que, desde a segunda metade do século XVIII, a Costa da Mina já não contava com uma forte presença de traficantes portugueses, conforme observou Carlos Agostinho das Neves.22 O que buscava o governador com a apresentação das informações sobre a importação e exportação de escravos, então, era mostrar que, mesmo com a decadência, o seu governo estava comercializando mais escravos em comparação aos dois últimos governadores; logo, Luís Joaquim Lisboa empenhava-se pela reposição da mão de obra da agricultura.

Já a situação da ilha do Príncipe nessa mesma época, de acordo com os dados encontrados nos mapas da alfândega, era pior. Se em São Tomé um pouco menos da metade dos escravizados importados ficaram na ilha, em Príncipe a totalidade importada era absorvida pelas atividades locais ( Tabela 2 ).23 Ponderamos a impossibilidade da totalidade de escravizados importados não se destinar à própria ilha do Príncipe, no entanto, a documentação analisada não fornece dados sobre a exportação deles a partir da ilha. Salientamos, ainda, que as informações são sobre as importações e exportações de escravizados, isto é, não se referem ao quantitativo de escravos existentes no arquipélago.24

Se o abastecimento da mão de obra dependia, em grande parte, das mercadorias adquiridas nas negociações principalmente com as embarcações inglesas, americanas e brasileiras, a proibição do tráfico pela Inglaterra e a isenção concedida aos navios do Brasil impactaram negativamente São Tomé e Príncipe. Para além desses fatos, observa-se ainda a importância da comercialização de escravizados para a arrecadação das alfândegas. O total dos direitos recolhidos nas duas ilhas foi de 96:897$483 réis e o valor dos direitos reais sobre a importação de escravizados alcançou 90:626$878 réis. Isto é, 93,52% de toda a arrecadação, o que demonstra a exploração e o desenvolvimento à base do tráfico e do sistema escravista.
Quanto ao valor do escravizado em São Tomé e Príncipe, encontramos a cotação de 3$500 réis. Ao compararmos com Angola, que tinha como principal ramo comercial a exportação de africanos, encontramos grande diferença. A alfândega de Luanda registrava o valor de 8$700 réis por “cabeça” e 4$300 réis por “cria de pé”.25 Diante da importância econômica do tráfico para o desenvolvimento da possessão, quais foram as sugestões para a saída e superação da nova conjuntura a partir de 1808?
O café como opção para a recuperação econômica
Uma primeira proposta foi apresentada pelo governador Luís Joaquim Lisboa que apostava na lavoura de café, tendo em vista a qualidade e o interesse inglês e americano pelo grão produzido. Mas haveria outra?
Outra possibilidade era tirar proveito dos portos que antes eram de domínio dos ingleses, como o porto de Calabar no Golfo da Guiné. Nesse sentido, foi apresentada a ação de Manoel Marques Camacho, morador da ilha de Príncipe, que comprou “duzentos e dezoito escravos” em Calabar. A citação da compra realizada visava incentivar os “negociantes dos Portos do Brasil a frequentarem o Comércio daquele Porto donde sai maior número de Escravos que de todo o Continente de Angola e Benguela”.26
Contudo, ao menos inicialmente, essas propostas não foram consideradas como esperava o governador. O Brasil manteve Angola como principal fornecedora de escravizados, enquanto São Tomé e Príncipe continuava a enfrentar as perdas advindas da proibição inglesa do tráfico e da isenção concedida às embarcações do Brasil, buscando superá-las com a lavoura do café, que dependia do interesse externo para alcançar maior desenvolvimento.
Percebe-se, ainda, que a queda econômica em São Tomé e Príncipe não era relacionada à ausência produtiva. Como não havia mais a mesma presença de embarcações estrangeiras, a produção era perdida por não ter a quem vender. De acordo com o governador, “há tanto mantimento, que os lavradores perdem todas as suas colheitas, o que por nenhum modo sucedia se continuasse o referido Comércio dos Escravos”. E continuava: “apesar de haver […] tais produções [farinha de mandioca, milho, feijão, inhame, azeite de palma, coco e café] da Agricultura, estes mesmos se arruínam totalmente em poder dos Lavradores em prejuízo deles e mesmos dos dízimos Reais”.27 O café, em razão da demanda do mercado, seria atrativo para gerar maior presença de embarcações estrangeiras na possessão, dinamizando a agricultura.
Ainda sobre a escassez comercial após o fim do tráfico imposto pelos ingleses e a isenção dada às embarcações do Brasil, salientava-se que a total falta de comércio não era oriunda somente da exiguidade de navios estrangeiros, mas também por “não virem a esta ilha embarcações nacionais comprar produções”. A possessão quase não exportava para a metrópole em razão da alta taxa28 de entrada no reino, e também por não haver uma efetiva comunicação.29
O café em São Tomé e Príncipe atenuaria, de uma só vez, dois problemas. Ao negociar sua produção, as ilhas atrairiam maior interesse de embarcações estrangeiras, que, por sua vez, supririam, em parte, a ausência de barganha com o reino. A cultura cafeeira foi introduzida no arquipélago em 1789 pelo capitão-mor João Baptista da Silva que trouxe sementes e mudas do Brasil,30 mas sofreu resistência do então governador João Resende Tavares Leote (1788-1797) por “ser rentável a muito longo prazo”.31 Esse ponto parece ter sido o principal problema ou barreira para a expansão da cultura – em média o café apresentava o primeiro retorno só após quatro anos –, além da existência do comércio de escravizados. Outro ponto que parece ter gerado discussão foi a dependência do trabalho escravizado, que, segundo Tenreiro, gerou “perturbações sociais violentas, que giram quase sempre em torno do problema da mão de obra”.32
Mas, para Augusto Nascimento, a produção ou a prosperidade trazidas pelo café em São Tomé e Príncipe ocorreram em razão “do acesso à mão de obra e o menor custo das terras”.33 Todavia, conforme salientado pelo próprio Nascimento, o impulso cafeeiro ocorreu na “sequência da revogação em 1808 dos navios negreiros a operar no golfo da Guiné”,34 ponto que conflui com a argumentação de Eyzaguirre sobre o estabelecimento de plantações pelos comerciantes de escravizados por não poder reinvestir no tráfico.35
Nessa mesma época, o Golfo da Guiné vivenciava um período de estímulo à agricultura. Antes da proibição do tráfico pela Inglaterra, entre os anos de 1802 e 1803, a Dinamarca havia proibido o comércio de escravizados na Costa do Ouro, onde desde 1796 passou a incentivar a agricultura para estabelecer uma colônia com renda alternativa ao comércio de africanos.36 Mas essa “alternativa” esbarrava na questão econômica de ser mais lucrativo exportar escravizados do que utilizá-los em África.37 Um segundo ponto era as correntes marítimas do Atlântico, que favoreciam as navegações para as Américas, ou seja, era mais fácil chegar ao novo continente do que à Europa a partir de África.38
Somando todos esses fatores à “impossibilidade” tributária de exportar para o reino, São Tomé e Príncipe tinha no comércio de escravizados sua principal via de escoamento da produção agrícola. Em razão da proibição inglesa e da utilização de escravizados nas roças, em pouco tempo o café começou a despertar o interesse estrangeiro. Segundo Carlos Agostinho das Neves, desde 1795 os ingleses de Serra Leoa buscavam adquirir plantas de café de São Tomé.39
O comércio com os estrangeiros foi essencial para o desenvolvimento da agricultura no início do século XIX, em especial para o café. Utilizado como moeda de troca nas barganhas com as embarcações estrangeiras, o grão terminava por possibilitar o acesso a produtos necessitados pelo arquipélago. Contudo, o café tornou-se uma condição de importação crescente de escravizados;40 e, embora sofresse com a concorrência da reexportação dos cativos e, posteriormente, com a proibição inglesa, a cultura cafeeira se manteve em crescimento durante toda a primeira metade do Oitocentos. A partir de 1825, o mapa da receita da real Fazenda de São Tomé passou, numa coluna específica, a fornecer dados sobre a recolha de direitos sobre a comercialização do café, denominada “Do Café exportado em Navios Nacionais e Estrangeiros”.41
Possivelmente, após sua introdução, a cultura e, por conseguinte, os “brancos da terra” beneficiaram-se não só do comércio com os navios negreiros ou das ações de comerciantes,42 mas principalmente de um mercado com maior demanda que oferta após a revolução de São Domingos.43
Lavradores(as) proprietários(as) de escravizados(as)
É evidente que alguns envolvidos no comércio de escravizados também se apresentavam como lavradores no arquipélago.44 Assim, cruzamos os nomes de moradores proprietários de embarcações envolvidas no resgate de escravizados com a listagem dos principais lavradores da possessão e o consequente plantel de escravos. Os dados recolhidos são relativos aos mapas elaborados no ano de 1808. Na relação referente à ilha de São Tomé, encontramos três são-tomenses: Thomé Ferreira Neto, Silverio Jozé de Mattos e Manoel Pires do Sacramento,45 dos quais dois, Thomé Ferreira e Silverio Jozé, constavam na relação dos principais lavradores da ilha. Insta salientarmos que a elaboração da relação dos lavradores pautou-se sobre o número de escravizados e não sobre os produtos cultivados; assim, foram listados 26 lavradores com o total de 1.394 escravizados ( Tabela 3 ).46

No que concerne à ilha de Príncipe, havia sete moradores proprietários de embarcações envolvidas no resgate de escravizados, dos quais quatro figuram entre os principais lavradores, a saber: António Henriques Nogueira, Jozé Xavier Gonzaga de Sá, Brás Luis Borges de Mesquita e Jozé Ribeiro […] Gastão. Numa relação de 35 lavradores foram contabilizados 2.477 escravizados ( Tabela 3 ).
Chamou-nos a atenção o número de mulheres lavradoras-proprietárias e a quantidade de escravas. Em São Tomé as lavradoras Thomazia de Brito Porto, D. Thereza Maria de Jezus, D. Margarida Ferreira, Izabel Vas, D. Maria do Nascimento e D. Maria Fernandes Gabriel eram proprietárias de 227 cativos, dos quais 124 eram escravas. Por sua vez, a ilha de Príncipe apresentou oito proprietárias, a saber: Antonia Leocadio, D. Roza Maria, D. Anna Gomes Salvada, D. Anna Joaquina, D. Maria Pinta, D. Jozefa Maria, D. Maria dos Santos e D. Anna Mendes, “donas” de 620 escravizados, dos quais 341 eram escravas.47
Se em relação aos proprietários homens torna-se um pouco complicado informar a origem, para os agricultores responsáveis pela cultivação do café é mais fácil afirmar que a maioria era composta pelo grupo de “brancos da terra”. De acordo com Augusto Nascimento, foi a “indigenização do cultivo do café” o principal fator para o sucesso das plantações no arquipélago;48 e continua o historiador: “a cultura de exportação – então a do café – não foi imediatamente desenvolvida em grandes propriedades, antes esteve a cargo de pequenos proprietários”.49
Em relação às mulheres proprietárias, a explicação dava-se em razão da prática de casamento das “filhas da ilha” com europeus, em especial com aqueles que tinham ligações com o alto funcionalismo régio.50 Assegurados o prestígio social da “filha” e a riqueza ao marido, em caso de falecimento do homem ou pela obtenção de herança, a mulher tornava-se “cabeça do casal”.51 Assim, em muitos casos, passava a controlar as atividades comerciais. Possivelmente, essa é a explicação para o expressivo número de lavradoras-proprietárias encontradas em 1808, para além do fato de a presença de mulheres proprietárias ser uma referência na história do arquipélago.52
Um segundo aspecto observado é o quantitativo de mulheres escravizadas sob propriedade dos lavradores e lavradoras de São Tomé e Príncipe. Nesse sentido, concordamos com a argumentação de Daniel B. Domingues de que a proibição inglesa fez aumentar a procura por escravizadas do sexo feminino,53 mas também há outros dois pontos que podem contribuir para a explicação do alto contingente de mulheres escravizadas. O primeiro é uma maior valorização do trabalho feminino pelos africanos; o segundo é a imprescindibilidade do trabalho da mulher para a agricultura na África Centro-ocidental.54
Provavelmente, a mão de obra feminina foi de grande importância para o avanço da cultura cafeeira em São Tomé e Príncipe num período de baixa transação comercial em razão da parca presença de navios estrangeiros. O café manteve o interesse estrangeiro, e essa presença estimulou a cultura que se destacou ao longo de toda a metade inicial do século XIX. Afora a importância do trabalho feminino para a roça do café, importa salientarmos esse aspecto que diferenciava o trabalho no arquipélago daquele empregado nas lavouras do Brasil, majoritariamente masculino.55
Dois anos depois, em 1810, foi apresentada uma nova lista com treze embarcações e seus respectivos proprietários. Novamente foi possível observar a atuação de comerciantes de escravizados na agricultura do arquipélago. Em São Tomé, Thomé Ferreira Neto e Silvério Jozé de Mattos mantinham a posição entre os principais lavradores da ilha;56 contudo, mesmo tratando-se de comerciantes de africanos, não apresentavam grande plantel de escravizados. Thomé F. Neto possuía treze homens e dezoito mulheres, já Silvério Jozé, oito homens e dezoito mulheres.57
Na ilha de Príncipe os donos de embarcações com destaque entre os grandes lavradores se mantiveram: Antonio Henriques Nogueira, Jozé Xavier Gonzaga de Sá, Brás L. Borges de Mesquita e Jozé Ribeiro […] Gastão, que apresentavam grande plantel de escravizados, exceto Brás L. Borges de Mesquita, com apenas dezessete homens e 21 mulheres.
Jozé Xavier Gonzaga de Sá possuía 138 homens e 145 mulheres, Antonio H. Nogueira apresentava o quantitativo de 71 homens e 56 mulheres e, por fim, Jozé Ribeiro […] Gastão com 75 homens e 51 mulheres.58 Ao somar apenas o quantitativo de escravizados desses negociantes-lavradores encontramos o total de 631 escravizados, dos quais 309 eram mulheres (48,96%).
A (des)conexão da economia de São Tomé e Príncipe com Portugal
A produção cafeeira do arquipélago sofreu consequências em razão da proibição inglesa com a falta de comercialização do produto ou a presença de embarcações estrangeiras; mas, aparentemente, trata-se de algo pontual, um desdobramento imediato da interdição. De qualquer forma, o governador Luís Joaquim Lisboa comunicou a ausência de embarcações e o impacto na comercialização do café produzido.
Decadência na falta da compra do Café, que as embarcações Americanas a […] vinham a estas ilhas permutar por Ouro e gêneros comerciáveis na Costa de África, e de que resultavam grandes interesses ao Cofre Real e aos Agricultores. […] por causa da extinção do Comércio dos Escravos, por ser certo que o grande número de Embarcações Americanas que aportavam a estas ilhas vinham directamente negociar aquelas Fortalezas e com o Ouro que lá recebiam e com os gêneros que lhes restavam que faziam Compra do Café produzido nestas colônias […].59
Ainda sobre o café, o governador declarou ser ainda “de pouca vantagem por falta igualmente de exportação Nacional, e senão conhecia alguma utilidade até o presente senão fossem alguns Ingleses, Americanos dos Estados Unidos por meio tão bem de trocas, o terem exportado alguns anos para os seus interesses”.60
O envio de café para Lisboa estava inviabilizado pela morosidade das comunicações e pelos elevados direitos reais;61 assim, interpretamos a falta de exportação nacional como ausência de comércio com o reino. Problema comum às possessões do Atlântico, por exemplo, Cabo Verde em 1803, por meio das instruções enviadas ao novo governador, já “sofria” a cobrança para estimular a navegação direta com o reino, no entanto, o estímulo ficava a cargo dos comerciantes.62
Segundo Augusto Nascimento, a conexão da economia da ilha de São Tomé com a do reino dependia da oferta de café, dos encargos alfandegários e dos fretes.63 Todavia, mesmo com todas essas questões, a cultura do grão se expandia e também já apresentava algumas consequências negativas sobre outras culturas na ilha de Príncipe.
Esta abundância por de grãos tem sido sempre em diminuição até o presente tempo em que o Alqueire de farinha tem chegado a dez tostões e a doze e, às vezes, nem por este preço se achava a que se precisava de que tem resultado fugirem os navios desta ilha, e irem à ilha de São Tomé e […] outros fazerem as suas viagens em direto. Esta decadência deve necessariamente ter algumas causas, que a produzam e a primeira parece ser ou é a mesma cultura do Café, pois não há novos braços que nela se empreguem deve forçosamente enfraquecer-se nos outros artigos.64
Contudo, diante do contexto antitráfico inglês que, de acordo com Augusto Nascimento, ocasionou aos “ilhéus […] maiores dificuldades na continuação do seu envolvimento com o tráfico”, “a possibilidade de exportação de café aparecia como um substituto para os [comerciantes] como empreendimentos económicos que, até então, tinha sustentado os ilhéus”.65
Devido ao embaraço na importação de escravizados para a agricultura e à guerra francesa na Europa, o comércio decaiu e as embarcações portuguesas “apenas aparecia[m] por estas ilhas […] por efeito de alguma grande urgente necessidade, pois antes se quererem pôr no risco de perderem as suas nações, por fome, e sede, do que virem a alguma destas ilhas”. O desdobramento pelo abandono da relação comercial com as possessões era a inutilidade “da maior parte dos artigos da agricultura por falta de consumo”.66
Diante desse contexto comercial confuso e de impacto negativo sobre a produção de outros gêneros, as ilhas de São Tomé e Príncipe não tinham, segundo a opinião do governador Luís Joaquim Lisboa, “outro socorro mais que agricultura do café que sua qualidade chama a estas ilhas os Ingleses, Americanos que não carregam mais porque não há”.67
Mesmo tratando-se de uma cultura recomendada pelo governo central desde a segunda metade do século XVIII, a produção de café em São Tomé e Príncipe, ao menos na década inicial do século XIX, parece-nos ter sido fruto da ação do governador da possessão que enxergou no grão a possibilidade de obter uma maior troca comercial, e, por conseguinte, o abastecimento de gêneros necessitados pelos habitantes.
Se a proibição inglesa do tráfico, com o passar dos anos, fez diminuir a presença de navios negreiros, o café manteve, mesmo que em número inferior, o interesse de estrangeiros pelo arquipélago em razão de sua qualidade68 e da existência de um mercado ansioso pelo grão após a queda na oferta depois da revolução de São Domingos.
Ainda que negociado a preço inferior, apesar da qualidade superior,69 o café das ilhas durante a primeira metade do Oitocentos foi cotado, em média, a 2$300 réis, enquanto em Luanda o valor alcançava 4$800 réis a arroba;70 de qualquer modo, o grão era apontado como uma cultura que “poderia enriquecer os seus habitantes e aumentar as rendas Reais”, mas não era possível a São Tomé e Príncipe “adiantar sem a ajuda de fora”.71 O socorro externo mencionado pelo governador Luís Joaquim Lisboa referia-se ao interesse e à presença de embarcações estrangeiras; possivelmente, para manter e aumentar a frequência de abertura dos portos, seria necessária a modificação da relação econômica entre São Tomé e Príncipe e o reino, como a publicação de leis e alvarás que incentivassem a produção ou com tarifas que beneficiassem a exportação. Todavia, não foi o que ocorreu.
Em 1810, a anuência portuguesa em cooperar para a proibição do tráfico, presente em tratado de aliança assinado com a Inglaterra no Rio de Janeiro, agravou a situação dos domínios que tinham no comércio de escravizados sua principal receita financeira. A arrecadação alfandegária sobre o comércio de escravizados, mesmo em queda, manteve-se como a principal renda, alcançando 85,17% de toda a arrecadação do período entre 1809 e 1815,72 sendo que antes fora 93,52% (entre agosto de 1799 e outubro de 1808).73 Mas quando foi possível observar o impacto da proibição inglesa na arrecadação alfandegária de São Tomé e Príncipe?
Percebe-se que o impacto da proibição inglesa na arrecadação alfandegária de São Tomé e Príncipe foi mais forte a partir de 1812, mas ainda com variações ( Figura 4 ). Todavia, como mencionado anteriormente, o declínio econômico da possessão já era percebido nos anos finais do Setecentos. De acordo com Neuma Brilhante, “a franca decadência econômica e populacional” já existia quando D. Rodrigo de Souza Coutinho assumiu a Secretaria de Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos.74

O ano com maior impacto foi 1813, momento no qual o saldo das alfândegas de São Tomé ficou negativo e com acentuada queda no saldo da ilha de Príncipe ( Figura 5 ). Foi também em 1813 que se verificaram quedas na receita das alfândegas ( Figura 3 ) e na arrecadação sobre o comércio de escravizados ( Figura 4 ). Provavelmente, vivenciando o que seria constatado em 1813 e em razão das “hostilidades” dos navios ingleses frente às embarcações negreiras portuguesas,75 os cidadãos de São Tomé e Príncipe encaminharam uma representação em 12 de março de 1812, na qual relataram: “o triste estado em que se acham estas colônias, o diminuto número de gentes que nelas existem e sem negócio por falta de comércio, principalmente, faltando-nos este único giro que nos servia de proveito, tanto na nossa agricultura como na remessa de alguns ao Brasil”.76


O documento assinado por 28 moradores, entre os quais o procurador da câmara, o juiz de órfãos, dois juízes ordinário e três vereadores.77 Os assinantes solicitavam a manutenção da graça de comercializar o resgate de escravos desde a ilha de Fernando Pó até o reino do Congo, “assim como nos portos da Costa da Mina, Benim e Onim ou ao menos nestes podermos comerciar em Panos, Marfim, Cera e Azeite […] na confirmação da Graça implorada constantemente da mesma certidão por quanto nestas ilhas não podemos passar sem escravos principalmente”.78
Dois pontos merecem destaque na representação enviada pelos moradores. Primeiro, a ausência do café no pedido. Se considerarmos a cultura do café como uma condição para a importação de escravizados,79 provavelmente, a não citação desse produto na representação ocorreu mediante a impossibilidade do “resgate de escravos”. O segundo é, mais uma vez, a dependência do comércio de escravizados, que não só movimentava economicamente a possessão, como também era responsável pelo abastecimento da mão de obra utilizada na agricultura e, por conseguinte, pela produção que começava a sofrer com o desinteresse dos lavradores frente à dificuldade de obter “braços”. Segundo o governador, “alguns habitantes que tiraram todos os seus interesses da cultura dos mantimentos e víveres que […] permutavam por gêneros que depois em pequenas embarcações conduziam aos portos da Costa da Mina, Benim e Gabão a resgatar escravos que importados para estas ilhas”.80
Conclusão
Frente ao declínio econômico vivenciado desde os finais do Setecentos, o café foi apresentado como “alavanca” para a renovação necessitada em São Tomé e Príncipe. Mesmo com certa resistência a sua implantação, a cultura logo no início do século XIX passou a ser um dos sustentáculos econômicos do arquipélago mantendo a visitação de embarcações estrangeiras num período de aumento da demanda pelo grão.
O café, entretanto, não foi suficiente para conter a decadência econômica que se fez sentir, principalmente, a partir de 1813. O abatimento evidenciou a baixa contribuição portuguesa para sua superação, com parca presença de navios “nacionais” e alta taxa para a entrada de produtos oriundos das possessões em África na metrópole. Assim, num cenário de proibição do comércio de escravizados, o café tornou-se o principal atrativo para manter o interesse das embarcações estrangeiras pelo arquipélago, que terminavam por garantir o abastecimento de gêneros de primeira necessidade.
Com produção baseada na mão de obra escrava e tendo grande quantitativo de trabalho feminino – o que a diferenciava da colônia portuguesa na América –, a lavoura cafeeira no arquipélago se expandiu frente à retração do tráfico e devido ao baixo custo da terra. Percebe-se ainda que os principais lavradores, categorizados pelo quantitativo de escravizados e não a partir da produção agrícola, não foram os encarregados imediatos pelo cultivo do café - plantio desenvolvido pelos pequenos proprietários.
Com o café assumindo a função de substituto econômico dos negócios que sustentavam os habitantes do arquipélago81 e a conexão econômica da possessão com a metrópole passando pela oferta do grão,82 os produtores de café, ou seja, os pequenos proprietários foram fundamentais para o desenvolvimento do processo de exportação, por conseguinte, pela visitação das embarcações estrangeiras e pelo abastecimento dos gêneros mais necessários. Dessa forma, foram os responsáveis diretos por iniciar o processo de retomada do vigor na relação comercial com a metrópole.
Notas