Apresentação

PARA ALÉM DA SOCIOLOGIA E DA ANTROPOLOGIA SOCIOCULTURAL: SOBRE O LUGAR DO MUNDO NÃO OCIDENTAL EM UMA TEORIA SOCIAL FUTURA *

Shalini Randeria
Universität Bremen, Alemania

PARA ALÉM DA SOCIOLOGIA E DA ANTROPOLOGIA SOCIOCULTURAL: SOBRE O LUGAR DO MUNDO NÃO OCIDENTAL EM UMA TEORIA SOCIAL FUTURA *

Afro-Ásia, núm. 63, pp. 529-546, 2021

Universidade Federal da Bahia

Se a ciência social é um exercício à procura de conhecimento universal, o “outro” não pode logicamente existir, porque o outro é parte de nós – o nós que é estudado, o nós que se envolve no estudo. 1

Este ensaio procura delinear de forma programática os contornos de uma teoria social globalizada e expor a contribuição do conhecimento sobre o e advindo do mundo não ocidental para essa teoria. O caminho para isso passa por uma emancipação há muito necessária das ciências sociais de seu paroquialismo norte-americano e europeu, pois as experiências históricas e as realidades sociais para além do mundo ocidental devem ser introduzidas de forma ampla na sociologia e na teoria social, caso essas queiram fazer jus à sua reivindicação de universalidade. Essa reivindicação foi posta em questão tanto a partir de “fora” quanto a partir de “dentro” pela teoria feminista e por representantes de minorias étnicas no ocidente. Esse desafio político e epistemológico deve ser incluído em uma concepção ampliada de sociologia, que reflita a diferença sem estilhaçar o mundo em ilhas de particularismos. Para além de uma “irmandade universal” e de uma “alteridade universal”, 2 trata-se de encontrar um terceiro caminho que aponte para as interações e as relações como horizonte de reflexão da teoria social.

A título de exemplo, gostaria de apresentar esse problema com base em reflexões mais recentes sobre a modernidade na antropologia sociocultural e nas abordagens pós-coloniais. Uma mera adição do conhecimento sobre o mundo não ocidental produzido por esses campos de pesquisa às teorias universais da modernidade existentes corre o risco de meramente reproduzir, em um nível mais alto, as conhecidas dicotomias entre o ocidente e o resto do mundo. Do mesmo modo, não é possível o descentramento das perspectivas ocidentais substituindo-as por teorias indianas ou africanas supostamente “autênticas”, na medida em que essas autopercepções não ocidentais estão estreitamente entrelaçadas com o conhecimento ocidental e a representação ocidental do outro, de forma que cada definição do “indiano” ou do “africano” pressupõe de modo mais ou menos explícito o ocidente como ponto de referência. Ademais, na busca por alternativas nativas “autênticas”, as tradições são valorizadas de forma seletiva, além de serem essencializadas e romantizadas. Essa reconstrução de tradições deve ser compreendida como resultado da modernidade, já que se assenta na produção de monoculturas nacionais, internas e homogêneas. Assim, é atribuída às tradições uma “pureza” genealógica que se coloca em clara contraposição à radical “impureza” de processos históricos cuja base é a interação.

Para a abordagem aqui discutida, cabe muito mais esboçar as possibilidades e questões de uma teoria social pluralista e multiperspectivista, que toma a sério as sociedades não ocidentais como objeto de pesquisa sociológica e de teorização, mas igualmente como lugares de produção de ciências sociais. Isso significa incluir a contribuição de cientistas sociais dessas regiões para a crítica do condicionamento cultural e histórico de conceitos e teorias ocidentais, bem como a relativização, o aperfeiçoamento e desenvolvimento desses conceitos e dessas teorias de maneira sistemática em um horizonte de alargamento da teoria social, com vistas a interpelar constructos analíticos, premissas teóricas e métodos das ciências sociais e permitir uma reflexão articulada sobre problemas urgentes de nosso tempo.

Em uma primeira aproximação, a questão central da perspectiva pós-colonial que proponho é a seguinte: como o mundo não ocidental poderia ser incluído em uma sociologia sem que, como tem sido o caso, o “outro” seja colocado “para fora” da história e da contemporaneidade europeias ou que a experiência empírica e teórica da diferença seja tomada, de modo hierárquico e evolucionista, como uma etapa preliminar do ser europeu? A dificuldade dessa tarefa pode ser ilustrada de forma exemplar na seguinte citação. À pergunta sobre se sua teoria poderia ser útil para as forças socialistas do Terceiro Mundo e se ela poderia ser uma contribuição aos movimentos socialistas democráticos dos países industrializados, Habermas respondeu: “Sou tentado a dizer ‘não’ em ambos os casos. Tenho consciência do fato de que esta é uma visão eurocêntrica e limitada. Prefiro deixar essa questão de lado”. 3

Por sua vez, a representação [ Repräsentation ] que busco desenvolver acerca da parte do mundo até hoje excluída da teoria social aponta para três questões: como essas sociedades podem ser representadas [ dargestellt werden ], como elas podem ter representatividade [ vertreten werden ] e como pode ser reconhecido o caráter simultâneo da modernidade ocidental e da não ocidental? 4

A superação da merecidamente criticada falta de internacionalização das ciências sociais alemãs seria um passo importante, ainda que insuficiente, no sentido da correção dessa exclusão. Mas por internacionalização da ciência geralmente se entende uma abertura unilateral em direção à Europa ou aos Estados Unidos e se considera principalmente que se trata de problemas no que tange a redes de pesquisa, sem que dimensões referentes ao conteúdo sejam levadas em conta. 5 O que proponho é, ao contrário, sobretudo um diálogo com a periferia no que diz respeito ao conteúdo. Mas isso não ficaria por aí, na medida em que essa mudança de perspectiva permitiria iluminar e compreender de forma mais enriquecedora a complexidade e o caráter compartilhado do mundo, tanto ao longo da história como no presente. Esse diálogo me parece importante, porque ideias e instituições de origem europeia – tais como a modernidade, a sociedade civil, o secularismo, o Estado-nação, o paradigma do desenvolvimento, a democracia e os direitos humanos – subtraem ao ocidente o monopólio da capacidade de definição, precisamente em virtude de sua disseminação pelo mundo todo. Suas linhas de desenvolvimento, formas, impactos e arranjos institucionais variam em diferentes lugares de acordo com seu ancoramento histórico-cultural. As reflexões teóricas sobre as recepções e transformações dessas instituições e conceitos na própria sociologia de diferentes países, bem como na antropologia sociocultural, nas pesquisas sobre história colonial ou nos campos de pesquisa multidisciplinares, como os “estudos culturais” e os “estudos pós-coloniais”, 6 oferecem inúmeros potenciais de inovação para a sociologia.

Uma breve análise da divisão do trabalho das disciplinas correspondente à repartição geográfica do mundo na primeira parte deste artigo será complementada, na segunda parte, com a discussão de abordagens teóricas e debates metodológicos dos campos da antropologia sociocultural e dos “estudos pós-coloniais”. Desse modo, o status da sociologia do desenvolvimento e a divisão do trabalho entre sociologia e sociologia da cultura serão interrogados de forma crítica e serão fornecidas indicações para delimitações flexíveis e permeáveis entre as disciplinas. Na terceira parte, é discutido o significado tanto da perspectiva pós-colonial quanto da antropologia para um alargamento das teorias sociológicas sobre a modernidade, no que diz respeito a uma pluralização, contextualização e um entrelaçamento histórico da modernidade. A modernidade como experiência social é global já há muito tempo, ainda que como ideia e categoria ela provenha da história ocidental. “A modernidade agora está em todos os lugares, está simultaneamente em todos os lugares e está em todos os lugares de forma interativa”. 7 Na perspectiva pós-colonial, essa relacionalidade é rastreada e o significado do colonialismo para a constituição da modernidade europeia é destacado.

Disciplinamento das relações coloniais

Os processos de apropriação e expropriação de sociedades e culturas tomadas como “outros” radicais em face do ser europeu transcorreram de modo paralelo. A institucionalização das ciências sociais, que teve lugar na mesma altura da expansão do domínio europeu, reproduziu essa dicotomia imperial do mundo. A sociologia se constituiu com base nessa visão dicotômica do mundo como ciência da “modernidade” no contexto dos Estados-nação europeus e se afastou das ciências dedicadas ao mundo não ocidental, definido como “pré-moderno”. O último foi dividido pelos europeus em, de um lado, “tribos” desprovidas de escrita e, de outro, civilizações que haviam desenvolvido uma “alta cultura” ou uma “religião mundial”, as quais se tornaram objetos de estudo, respectivamente, da antropologia e dos estudos orientais.

Significativa para a delimitação tanto política quanto fática dessas fronteiras é a “rejeição da simultaneidade” (Johannes Fabian), que se sedimenta no conceito de “não ocidental”, isto é, uma visão que define negativamente sociedades e culturas por meio de uma modernidade que falta a elas. 8 Assim, por exemplo, o interesse de Max Weber nas civilizações orientais no quadro de uma sociologia comparativa é guiado pela pergunta acerca de como sua incapacidade de progredir rumo à modernidade pode ser explicada. A diferenciação entre sociedades e culturas às quais são atribuídos ou negados uma modernidade e um desenvolvimento histórico era já no século passado questionável e atualmente é insustentável empiricamente, tendo sido largamente desconstruída no plano teórico. 9 Não obstante, a estrutura das fronteiras disciplinares baseadas nessa diferenciação continua a gozar de uma vitalidade inabalada e, especialmente na Alemanha, inexistem abordagens político-acadêmicas e de pesquisa vinculada à prática que apontem para sua superação.

A arbitrariedade e a irrelevância do desmembramento do mundo não ocidental ficam claras no contraste com a pesquisa social indiana: na Índia, o pluralismo dos sistemas e instâncias legais da sociedade indiana contemporânea são objetos legítimos da sociologia. Na Alemanha, pelo contrário, conselhos comunitários das castas mais baixas e das populações autóctones seriam estudados pela etnologia; os ramos da história que não se dedicam à Europa seriam encarregados da análise do direito colonial anglo-hindu, que ainda hoje é vigente; os textos religiosos, aos quais em alguma medida recorrem as interpretações jurídicas tanto da legislação colonial quanto pós-colonial, seriam pesquisados pela Indologia; a sociologia do desenvolvimento se ocuparia da modernização do direito fomentada pelo Banco Mundial. Aqui, mostra-se de forma exemplar que a compartimentalização disciplinar da pesquisa social fragmenta os entrelaçamentos que são imanentes às sociedades pós-coloniais.

No decurso da primeira onda de descolonização após 1945, o ocidente foi obrigado a estabelecer novas relações com suas antigas colônias. Ao passo em que os novos países surgidos com a descolonização se ocupavam em se tornar Estados nacionais seguindo o modelo europeu, eles foram reconhecidos como objetos das distintas disciplinas das ciências sociais ocupadas com o mundo moderno – como a sociologia, a ciência política, a história e a economia –, mas ficaram relegados a posições marginais nessas disciplinas. Com a noção de modernização, muito influente tanto em termos acadêmicos quanto políticos, a diferença espacial foi transposta para um eixo temporal, separando países “desenvolvidos” e “subdesenvolvidos”. Na sociologia, por exemplo, quatro quintos da humanidade se tornaram objeto de uma subdisciplina, a sociologia do desenvolvimento. Atualmente, as fronteiras entre as disciplinas são geralmente tão revestidas de conteúdos emocionais quanto o são as fronteiras nacionais. Em um momento em que essas fronteiras estão, ao menos em parte, perdendo o sentido ou sendo reconfiguradas, é hora de se empenhar em uma abertura recíproca das fronteiras entre a sociologia e a antropologia sociocultural, que vá além de uma interdisciplinaridade parcial e funcional que, no fim das contas, fortalece essas divisões.

Em contraste com os paradigmas universalistas e positivistas das ciências sociais, a antropologia distingue-se desde seu início por uma explícita vinculação aos contextos que estuda. Uma característica essencial dela é não somente a mobilização do conhecimento local, mas o diálogo com o conhecimento localizado, enquanto conhecimento “sobre algum lugar” e “proveniente de algum lugar”, 10 de forma que a pesquisa etnográfica como elemento da antropologia sociocultural permite corrigir o eurocentrismo e o positivismo correntes nas ciências sociais. 11

Com a virada reflexiva da antropologia sociocultural, 12 foram tematizadas questões de representação localizadas no nexo entre conhecimento e poder na prática etnográfica; mas, em especial, a antropologia foi contextualizada como estando no centro do projeto da modernidade euro-americana em sua articulação histórica com o colonialismo. 13 Assim, a antropologia viu-se diante da tarefa de redefinir seu objeto. A velha abordagem holística de uma cultura ancorada em um território foi sendo gradualmente substituída por uma concepção de cultura que a encara como algo processual e orientado à prática, como um “trabalho em andamento”, 14 permitindo uma aproximação com os “estudos culturais”. Com o desprendimento do conceito de cultura de sua referência espacial, processos transnacionais (como a globalização cultural e a diáspora) passaram a fazer parte das preocupações centrais da antropologia. O emprego de métodos etnográficos no estudo de instituições modernas das sociedades industriais ocidentais (por exemplo, estudos sobre a produção do conhecimento no laboratório, práticas em conglomerados multinacionais ou em instituições de fomento à pesquisa) contribuiu para uma superposição dos campos de pesquisa da sociologia e da antropologia. 15

Contrariamente à tendência anterior de exotização e romantização do “campo que fica longe”, as novas etnografias, por um lado, passaram a tematizar os processos de marginalização de “lugares remotos” em um mundo interdependente. 16 Por outro lado, as conexões históricas e sociais nos lugares pesquisados passaram a ser realçadas: por exemplo, em estudos etnográficos sobre a cultura de aborígenes australianos e exposições sobre essa cultura em Nova York; sobre a “migração” do tango da Argentina para a Europa e o Japão e de volta para a América Latina; sobre a recepção na África ocidental de filmes indianos enquanto esboços de uma outra modernidade; sobre as práticas administrativas da “indústria do desenvolvimento” em Washington e no sul da África. Essas contribuições deixaram claro que o “global” é parte integrante do “local” e não pode ser situado fora deste.

Além disso, a dissipação das fronteiras entre uma antropologia cujo foco são campos de pesquisa locais e os “estudos culturais” que se ocupam da análise do discurso oferece potenciais estimulantes para a sociologia. Também no que diz respeito ao método, dissolveram-se as fronteiras rígidas entre as disciplinas. Assim, “campo” deixou de ser apenas sinônimo de observação participante e passou a incluir também pesquisas em arquivos. Na etnografia “multilocalizada” proposta por Marcus, 17 leva-se em conta o fato de que a integração global, paradoxalmente, não conduz a uma totalidade apreensível, mas dá origem a uma “crescente diversidade de conexões entre fenômenos antes considerados não relacionados e distantes”. 18

História compartilhada

O processo longo, complexo e impactante do colonialismo e do contato cultural, as práticas culturais e científicas a eles ligadas, bem como suas consequências duradouras, encontram-se no centro dos “estudos pós-coloniais”. Juntamente com os “estudos culturais”, a antropologia sociocultural e a antropologia histórica contemporâneas, eles colocam em questão a divisão do mundo atual em sociedades modernas e tradicionais. Apontam para o fato de que o colonialismo não desempenhou um papel central somente para os povos colonizados, marcando também de forma duradoura a constituição das metrópoles, a formação do Estado e o desenvolvimento de suas formas de conhecimento. 19 Foram essas formas de conhecimento que produziram novos conceitos e dicotomias entre colonizadores e colonizados, entre ocidente e oriente, entre sociedades modernas e tradicionais. 20 Da mesma maneira, o conhecimento colonial reconstruiu e transformou as sociedades agora classificadas como “tradicionais”. 21

“A conexão importa”: 22 assim poderíamos caracterizar de forma resumida e contundente o enfoque que permite a superação de uma sociologia e de uma história que operam com oposições binárias (mundo ocidental / mundo não ocidental; sociedades com / sem história; culturas modernas / tradicionais), com um nacionalismo metodológico e com a centralidade do papel do Estado. Como mostram novas pesquisas, as colônias funcionaram em diversos sentidos como laboratórios da modernidade europeia, onde foram testadas práticas de administração de higiene e saúde públicas, contagem populacional e divisão em castas. Progressos da medicina e das técnicas de engenharia foram estimulados pela posse de colônias e pelo empenho em demonstrar a superioridade britânica por meio desse conhecimento científico. 23 A missão civilizatória continuou sob a forma da ajuda para o desenvolvimento depois da desintegração do império, e a Grã-Bretanha concebeu a administração da Alemanha depois de 1945 de forma análoga a uma tarefa colonial, para a qual foram mobilizados funcionários coloniais vindos da Índia. 24

Da compreensão de que vivemos em um mundo pós-colonial não se depreende uma preferência por uma metodologia ou uma teoria específicas. O reconhecimento de que a produção de conhecimento das ciências sociais ocidentais está conectada de forma inseparável ao exercício da dominação ocidental 25 sustenta antes uma perspectiva de pesquisa que encara o colonialismo como constitutivo para a modernidade europeia e sua globalização, 26 ressalta seu significado para a história global e as relações de poder e destaca seus efeitos pervasivos e persistentes na realidade social e na ciência contemporâneas. 27 Mas caso a sociologia insista no contraste imperial entre sociedades, a teoria social perpetuará essas identidades concebidas de forma essencialista, a apreensão das sociedades a partir das delimitações dos Estados-nação e o rumo do processo histórico pensado de maneira unilinear. Ao contrário disso, a perspectiva pós-colonial promove uma concepção relacional e plural, que é sensível às conexões e ao hibridismo.

Ao se considerarem as consequências teóricas das novas abordagens de pesquisa, aqui delineadas de forma sucinta, para possíveis perspectivas de desenvolvimento da sociologia, apresenta-se para essa última a tarefa de investigar, de maneira ainda mais decidida do que antes, as relações passadas e presentes de culturas ocidentais e não ocidentais sob a perspectiva de uma história já há séculos entrelaçada no contexto de uma modernidade compartilhada. O caráter peculiar do processo atual de globalização e suas diferentes dinâmicas, formas, linhas de desenvolvimento e consequências em distintas regiões apenas pode ser analisado se tivermos como pano de fundo o colonialismo e o império enquanto entidades transnacionais. Quando o debate sobre globalização se refere a um mundo desterritorializado, à diminuição da soberania do Estado-nação, à informalização e flexibilização do trabalho, à dependência de acontecimentos em lugares longínquos e ao hibridismo cultural, tudo isso pode soar como uma novidade para os países industrializados da Europa. Do ponto de vista da periferia, esses processos indicam uma aproximação da modernidade ocidental com a modernidade colonial e pós-colonial.

É como se fosse uma ironia da história que, de forma inversa à proposição de Marx, as antigas colônias ofereçam hoje, em parte, uma imagem do futuro da Europa. Mas, em virtude do fato de o ocidente se ver como singular, a crise da modernidade ora é descrita como um retorno do feudalismo, ora é festejada como o período qualitativamente novo da “era global”. 28 As sociedades pós-coloniais foram e continuam sendo sociedades de risco, “nas quais foi – e continua sendo – negada às existências individuais e coletivas a capacidade de criar e controlar condições estáveis para a reprodução regular e previsível”. 29

Essa deve ser uma das razões porque, na África, no Sudeste Asiático ou na América Latina, a teoria da modernização reflexiva não foi recepcionada com grande entusiasmo. Em vez disso, perguntou-se, na esteira de Fredric Jameson, 30 se as estruturas “pós-modernas” do capitalismo tardio na verdade não impedem a plena realização da “primeira” modernidade no assim chamado Terceiro Mundo. Embora a teoria da modernização reflexiva coloque em questão a homogeneidade da modernidade e entenda que alguns de seus elementos já se encontram em dissolução, não fica claro em que medida continua a ser atribuído um status paradigmático ao primado histórico da modernidade euro-americana. 31 Assim, a teoria da modernização reflexiva se constrói sobretudo a partir de referências empíricas dos países industrializados.

Modernidade entrelaçada

As teorias sociológicas da modernidade consideram-na um fenômeno europeu, cuja gênese, decurso, linhas de desenvolvimento e ambivalências podem ser explicados a partir da história do ocidente ou dos respectivos Estados-nação europeus. O modelo de pensamento binário que lhes é subjacente confere à modernidade europeia tanto valor analítico como status universal, em relação aos quais todas as outras experiências históricas são consideradas particulares. 32 Consequentemente, as histórias de outras sociedades são escritas a partir de seus supostos desvios em relação a uma modernização ocidental unilinear pensada em termos típico-ideais. Desse modo, a história das sociedades não ocidentais não é entendida tendo em conta sua especificidade, mas simplesmente com referência a características que são abstraídas a partir da experiência europeia.

Em contrapartida, nas novas abordagens pluralistas, as múltiplas linhas de desenvolvimento da modernidade não são tematizadas a partir de debates com Weber a respeito de diferentes modelos de civilização 33 nem diferenciadas conforme sua posição estrutural no sistema mundial, como propõe Wallerstein. 34 De modo geral, elas assinalam que não se pode interpretar o presente de sociedades não ocidentais como representando o passado das ocidentais nem o presente do ocidente como o futuro de todas as outras sociedades.

A perspectiva pós-colonial por mim esboçada se diferencia dos enfoques binários de teorias da modernidade unilineares e universais, mas também de abordagens pluralistas nas quais civilizações ou Estados-nação funcionam como unidades de pesquisa. Ela enfatiza a necessidade de se pensar metrópoles e colônias de forma conjunta. Partindo de seu condicionamento e sua dependência recíprocos, metrópoles e colônias são analisadas no contexto do império enquanto uma entidade transnacional que forma uma unidade, na qual formas e trajetórias da modernidade se constituem no decurso de uma mesma história, de forma entrelaçada, ainda que de modo diferente, quer se trate das metrópoles ou das colônias. A modernidade colonial é concebida, então, como parte integrante dos processos de modernização europeus e, ao mesmo tempo, como sua condição e seu resultado.

Em suas especificidades históricas em diferentes regiões do mundo, as modernidades (pós-)coloniais devem ser incluídas em uma teorização reflexiva da(s) modernidade(s) na sociologia. “Em vez de o projeto da modernidade interpelar o centro europeu no que diz respeito às suas expectativas e à sua procedência”, 35 seria o caso de alargar os horizontes por meio da consideração das perspectivas da periferia colonial. Dito de outro modo: a procura por “uma outra modernidade” 36 deve contemplar “outras modernidades”. 37

Chatterjee descreveu da seguinte forma uma concepção de modernidade que leva em conta a mediação do colonialismo em contraste com a que se refere apenas à experiência ocidental:

enquanto Kant, falando no momento fundante da modernidade ocidental, concebe o presente como o lugar em que escapamos do passado, para nós é precisamente do presente que sentimos que precisamos escapar. Isso faz com que nosso modo de lidar com a modernidade seja radicalmente diferente daqueles modos evoluídos da modernidade ocidental. Nossa modernidade é a daqueles que foram outrora colonizados. O mesmo processo histórico que nos ensinou o valor da modernidade também nos tornou vítimas da modernidade. 38

A modernidade fora da Europa não implica um rompimento radical com a tradição, já que só o recurso a ela permite a concepção de alternativas. Mas a busca por caminhos emancipatórios para a formulação, por exemplo, de uma modernidade indiana com caráter distinto deve também incluir um diálogo com tradições alternativas e linhas de desenvolvimento que fazem parte da modernidade ocidental, mas que foram marginalizadas pela associação de suas formas vitoriosas com a expansão e a dominação capitalistas, de modo a ir além da concepção de que a genealogia do moderno se identifica puramente com o Iluminismo. 39

Se voltarmos nossa atenção para as variações da produção local da modernidade, abre-se a possibilidade de investigá-las tanto pela via etnográfica quanto comparativa. O modelo difusionista foi substituído pelo modelo da tradução e da intertextualidade emprestado dos estudos literários. Com isso, ganha papel central a observação da ação de distintos grupos de atores que tomaram e tomam parte em complexos processos de interpretação, transmissão, apropriação e negociação da modernidade sob condições de poder muito desiguais, bem como do novo que emerge dos processos de interação. Em vez de apresentar a modernidade (pós-)colonial como um mero derivado ou mera emulação do modelo ocidental, o encontro com o ocidente pode ser entendido muito mais no sentido de um “catalisador” 40 de um desenvolvimento que, por um lado, não dá continuidade a tradições e, por outro, não é pura imitação de concepções e instituições vindas da metrópole. Assim, a etnografia de Rofel, por exemplo, se ocupa dos significados e práticas por meio dos quais a modernidade é imposta e combatida em uma fábrica na China pós-maoísta, tendo como pano de fundo um passado socialista, mas sem perder de vista a nova normalidade da modernidade ocidental. 41 Já Ong delineia os contornos específicos de uma modernidade alternativa, analisando os contra-discursos do Estado e dos intelectuais na China e também em Cingapura e em Harvard. 42 Também são partes constitutivas do processo da modernidade a violência da expansão ocidental e a conexão por ela engendrada entre racismo e racionalidade, 43 bem como o terror da modernidade colonial. 44

A inclusão de linhas de desenvolvimento divergentes que fazem parte da modernidade (pós-)colonial e a consideração de experiências de contextos e sociedades não ocidentais permitiria pluralizar e contextualizar a modernidade. A modernidade deveria, então, ser compreendida como um terreno de contestação, que inclui distintas práticas, discursos e estratégias locais. Considero que a contribuição da antropologia se daria por meio da investigação etnográfica dessas formas alternativas da modernidade, em especial no nível das práticas cotidianas. Uma futura teoria social globalizada deve ter em conta a diversidade de configurações sociais e discursos, bem como abrir espaço para a coexistência dessas interpretações em um mundo complexo e contingente.

Conclusão

Como indiquei no início deste texto, a periferia não conta com nenhum primado epistemológico, mas ela é especificamente qualificada como lugar de uma produção de conhecimento relacional, que é ao mesmo tempo privilegiado e limitado. A consciência da própria relacionalidade foi constitutiva para a autoimagem das sociedades (pós-)coloniais, 45 pois sua autocompreensão se desenvolveu desde o início sob circunstâncias de uma conexão global. Em contraste com essa situação, a consciência histórica ocidental foi e continua sendo essencialmente autorreferenciada, na medida em que pressupõe sua própria singularidade histórico-cultural e considera que a história mundial é a história do próprio mundo ocidental. A hegemonia da produção de conhecimento ocidental tem por consequência o fato de que se atribui a todas as outras teorias o status de “conhecimento local” assim que se fazem conhecidas nas ciências sociais. Cientistas sociais da “periferia”, pelo contrário, não podem se dar ao luxo da “simetria da ignorância”. 46

O descentramento das perspectivas ocidentais que busquei apresentar se orienta no sentido de uma “descolonização do imaginário”. 47 De modo paradoxal, entretanto, esse processo é fundamentalmente problemático na “periferia”. Como Santos identificou por ocasião da exploração de diferentes fundamentos epistemológicos desse procedimento no Norte e no Sul: “Como um produto do império, o Sul é a casa do sul onde o sul não se sente em casa”. 48 Para o Sul, é especialmente difícil encontrar uma língua própria para entrar em diálogo com o ocidente e encontrar um caminho entre um universalismo cooptador e um particularismo culturalista, que permita vislumbrar a modernidade como um projeto de futuro a ser construído, em vez de contemplar o próprio futuro como já colonizado.

Notas

1 Gulbenkian Commission on the Restructuring of the Social Sciences, Open the Social Sciences: Report of the Gulbenkian Commission on the Restructuring of the Social Sciences , Stanford: Stanford University Press, 1996, p. 57. A epígrafe original está em inglês (NT).
2 Ambos os termos estão em inglês no original (NT).
3 Jürgen Habermas, “Jürgen Habermas: A Philosophico-Political Profile”, New Left Review , n. 151 (1985), p. 104 (NT: em inglês no original).
4 Aqui a autora usa dois verbos alemães cuja diferença é explorada em Gayatri Chakravorty Spivak, Pode o subalterno falar? , Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. O primeiro, darstellen , diz respeito à forma de exposição de um objeto ou ideia, enquanto o segundo, vertreten , tem o sentido de fazer-se representar por outrem (como no caso da representação política) (NT).
5 Ver: Michael Lackner e Michael Werner (orgs.), Der ‘cultural turn‘ in den Humanwissenschaften: Area Studies im Auf- oder Abwind des Kulturalismus? , Bad Homburg: Werner Reimers Stiftung, 1999, p. 18.
6 Ambas as expressões estão em inglês no original, aqui e nas demais passagens do texto em que aparecem entre aspas como referência a campos teóricos (NT).
7 Carol A. Breckenridge (org.), Consuming Modernity: Public Culture in a South Asian World , Minneapolis: University of Minnesota Press, 1995, p. 2 (NT: a citação está em inglês no original).
8 A autora se refere à crítica de Johannes Fabian, que pode ser lida em Tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto , Petrópolis: Vozes, 2013 (NE).
9 Ver: Göran Therborn, “Routes to/through Modernity” in Mick Featherstone, Scott Lash e Roland Robertson (orgs.), Global Modernities (London: Sage, 1995), pp. 124-139.
10 Ambas as expressões estão em inglês no original (NT).
11 Ver: Akhil Gupta e James Ferguson (orgs.), Anthropological Locations: Boundaries and Grounds of a Field Science , Berkeley: University of California Press, 1997, p. 35.
12 James Clifford e George E. Marcus (orgs.), Writing Culture: The Poetics and Politics of Ethnography , Berkeley: University of California Press, 1986.
13 George E. Marcus e Michel M. J. Fischer, Anthropology as Cultural Critique: An Experimental Moment in the Human Sciences , Chicago: University of Chicago Press, 1986.
14 Ver: Ulf Hannerz, Transnational Connections: Culture, People, Places , Abingdon: Routledge, 1996 (NT: a expressão está em inglês no original).
15 Ver: George E. Marcus (ed.), Critical Anthropology Now: Unexpected Contexts, Shifting Constituencies, Changing Agendas , Santa Fe: School of American Research Press, 1999.
16 Por exemplo: Anna Lowenhaupt Tsing, In the Realm of the Diamond Queen: Marginality in an Out-of-the-way Place, Princeton: Princeton University Press, 1993 (NT: a expressão “lugares remotos” está em inglês no original).
17 George E. Marcus, Ethnography Through Thick and Thin , Princeton: Princeton University Press, 1998 (NT: a expressão está em inglês no original).
18 Marcus, Ethnography Through Thick and Thin , p. 68 (NT: a citação está em inglês no original).
19 Bernard S. Cohn, Colonialism and its Forms of Knowledge: The British in India , Princeton: Princeton University Press, 1996.
20 Nicholas B. Dirks (org.), Colonialism and Culture , Ann Arbor: University of Michigan, 1992.
21 Bernard S. Cohn, An Anthropologist Among Historians and Other Essays , Delhi: Oxford University Press, 1987.
22 Em inglês no original (NT).
23 Roy MacLeod, “Passages in Imperial Science: From Empire to Commonwealth”, Journal of World History , v. 4, n. 1 (1993), pp. 117-150 ; Richard Drayton, “Science and the European Empires”, Journal of Imperial and Commonwealth History , v. 23, n. 3 (1995), pp. 503-510 .
24 Antony G. Hopkins, T he Future of the Imperial Past , Cambridge: Cambridge University Press, 1997.
25 Edward W. Said, Orientalism , New York: Vintage Books, 1979.
26 Dirks, Colonialism and Culture .
27 Nicholas Thomas, Colonialism’s Culture: Anthropology, Travel and Government , Princeton: Princeton University Press, 1994.
28 Martin Albrow, The Golden Age: State and Society Beyond Modernity , Cambridge: Polity Press, 1996 (NT: a expressão está em inglês no original).
29 Diana Wong, “Die ‘Zukünfte’ der Globalisierung. Überlegungen aus der Perspektive Südostasiens” in Jörn Rüsen, Hanna Leitgeb e Norbert Jegelka (orgs.), Zukunftsentwürfe: Ideen für eine Kultur der Veränderung (Frankfurt am Main: Campus Verlag, 1999), p. 56.
30 Fredric Jameson, Postmodernism or the Cultural Logic of Late Capitalism , Durham: Duke University Press, 1991.
31 Anthony Giddens, The Consequences of Modernity , Stanford: Stanford University Press, 1990, pp. 174-176.
32 Mahmood Mamdani, Citizen and Subject: Contemporary Africa and the Legacy of Late Colonialism , Princeton: Princeton University Press, 1996.
33 Ver: Shmuel N. Eisenstadt (org.), Patterns of Modernity: Vol. 1: The West , London: Pinter, 1987; Johann Arnason, Social Theory and Japanese Experience: The Dual Civilization , London: Kegan Paul International, 1997.
34 Therborn, “Routes to/through Modernity”.
35 Robert Weimann (org.), Ränder der Moderne. Repräsentation und Alterität im (post)kolonialen Diskurs , Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997, p. 8.
36 Scott Lash, Another Modernity: A Different Rationality , Oxford: Blackwell Publishing, 1999 (NT: a expressão está em inglês no original).
37 Lisa Rofel, Other Modernities: Gendered Yearnings in China After Socialism , Berkeley: University of California Press, 1999 (NT: a expressão está em inglês no original).
38 Partha Chatterjee, “Talking About Our Modernity in Two Languages” in A Possible India: Essays in Political Criticism (Delhi: Oxford University Press, 1997), p. 281 (NT: a citação está em inglês no original).
39 Javeed Alam, India: Living with Modernity , New Delhi: Oxford University Press, 1999.
40 Tapan Raychaudhuri, “The Transformation of Religious Sensibilities in 19th-Century Bengal”, Manuscrito não publicado apresentado no Südasien-Institut, Heidelberg: Ruprecht-Karls-Universität, 1998.
41 Rofel, Other Modernities .
42 Aihwa Ong, “Anthropology, China and Modernities: The Geopolitics of Cultural Knowledge” in Henrietta L. Moore (org.), The Future of Anthropological Knowledge (London: Routledge, 1996), pp. 60-92; Aihwa Ong, “Chinese Modernities: Narratives of Nation and of Capitalism” in Aihwa Ong e Donald M. Nonini (orgs.), Underground Empires: The Cultural Politics of Modern Chinese Transnationalism (New York: Routledge, 1997), pp. 171-202.
43 Ver: Paul Gilroy, The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness , London: Verso, 1993.
44 Ver: Michael Taussig, Shamanism, Colonialism and the Wild Man: A Study in Terror and Healing , Chicago: University of Chicago Press, 1987.
45 Shalini Randeria e Melitta Walligora, “Tradition und Differenz: Perspektiven des Eigenen und Fremden in der Philosophie Indiens”, Deutsche Zeitschrift für Philosophie , v. 47, n. 4 (1999), pp. 591-594 .
46 Dipesh Chakrabarty, “Postcoloniality and the Artifice of History: Who Speaks for ‘Indian’ Pasts?”, Representations , n. 37 (1992), p. 2 .
47 Jan Nederveen Pieterse e Bhikhu Parekh (orgs.), The Decolonization of Imagination: Culture, Knowledge and Power , London: Zed Books, 1995 (NT: a expressão está em inglês no original).
48 Boaventura de Sousa Santos, Toward a New Common Sense: Law, Science and Politics in the Paradigmatic Transition , London: Routledge, 1995, p. 510 (NT: a citação está em inglês no original).
* Traduzido por Ricardo Pagliuso Regatieri do original alemão: Shalini Randeria, “Jenseits von Soziologie und soziokultureller Anthropologie: zur Ortsbestimmung der nichtwestlichen Welt in einer zukünftigen Sozialtheorie”, Soziale Welt , v. 50, n. 4 (1999), pp. 373-382 .
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