ARTIGOS

DIFERENCIÁVEIS: MULTICULTURALISMO, ISLÃ E CONFIGURAÇÃO DA IDENTIDADE NO REINO UNIDO *

DISTINGUISHABLE: MULTICULTURALISM, ISLAM AND IDENTITY IN THE UNITED KINGDOM

Hannah Romã Bellini Sarno
Universidade Federal da Bahia, Brasil

DIFERENCIÁVEIS: MULTICULTURALISMO, ISLÃ E CONFIGURAÇÃO DA IDENTIDADE NO REINO UNIDO *

Afro-Ásia, núm. 64, pp. 95-139, 2021

Universidade Federal da Bahia

Recepção: 6 Fevereiro 2021

Aprovação: 3 Agosto 2021

Resumo: Este artigo reflete sobre os modos como questões relativas ao multiculturalismo se articulam no processo de formação da identidade de muçulmanos no Reino Unido, por meio de um exame da história recente da imigração e das políticas voltadas para a administração da diferença cultural no território britânico. Dinâmicas relacionadas às disputas de lealdade – religiosas, étnicas e nacionais –, características de comuni- dades diaspóricas, e os tensionamentos e conflitos que permeiam esses processos têm centralidade na análise. O trabalho evidencia que a essencialização e a excep- cionalização da identidade muçulmana, sejam ancoradas em uma religiosidade praticada ou não, e as correspondentes políticas governamentais tiveram influência primordial na convivência multicultural nos países integrantes, contribuindo para dilemas de pertencimento em um contexto de crise na identidade nacional.

Palavras chave: Identidade muçulmana, Multiculturalismo, Reino Unido.

Abstract: This article reflects on how issues related to multiculturalism are articulated in the process of shaping Muslim identities in the United Kingdom, by examining the recent history of immigration and policies aimed at managing cultural differences in British territory. The analysis centers on dynamics related to loyalty disputes religious, ethnic and national – typical of diasporic communities, as well as the tensions and conflicts that pervade these processes. The text shows that the essen- tialization and exceptionalism of Muslim identity, whether or not it is anchored in religious practice, and the related government policies exerted a major influence on the countries’ multicultural coexistence, contributing to dilemmas of belonging in a context of a crisis of national identity.

Keywords: Muslim identity, Multiculturalism, United Kingdom.

A questão do pertencimento ainda continua sem resposta.

Quem é daqui e quem não é? Esses que não deveriam estar aqui: o que eles estão fazendo em nossa casa?

Como nos livramos deles? E, em todo caso, o que “aqui” e “lá”

significam em um mundo que está, ao mesmo tempo,

em rede e se rebalcanizando?1

Discutindo a interação entre muçulmanos, a sociedade mais ampla e o Estado no Reino Unido, Tariq Modood propõe que ela deve ser entendida “em termos do desenvolvimento [...] de agendas de igualdade racial e multiculturalismo” e em relação aos modos como a presença desse grupo religioso e de suas particularidades desafiaram as noções de racismo, equidade e o viés secular naquele cenário.2 Este artigo tem por objetivo refletir sobre como essas questões se articulam no processo de formação da identidade de muçulmanos por meio de um exame da história recente da imigração para esses países e das políticas voltadas para a administração da diferença cultural no espaço britânico. Dinâmicas relacionadas às disputas de lealdade – religiosas, étnicas e nacionais –, características de comunidades diaspóricas e os tensionamentos e conflitos que permeiam esses processos têm centralidade na análise.

De antemão, é pertinente reconhecer a complexidade de se pensar ou administrar, política e socialmente, a diversidade cultural, em especial em um contexto que envolve configurações razoavelmente recentes e em constante transformação. Em que pesem suas diferenças, as sociedades multiculturais contemporâneas fazem emergir problemas comuns e novos relacionados à natureza dos direitos coletivos, aos direitos culturais das minorias e dos imigrantes, às maneiras de acomodar as lealdades diaspó- ricas, à diversidade de níveis e das formas de cidadania. Tais problemas envolvem a igualdade de estatuto recebida por essas distintas culturas, se devem ser julgadas nos seus próprios termos ou de acordo com padrões universais etc.

Nesse caso, a quem caberia definir tais padrões? Qual seria o papel do Estado em relação às culturas? Como se pode, ao mesmo tempo, respeitar a diversidade cultural e garantir unidade política? Até que ponto o Estado deve se envolver com aspectos culturais como a prática de religião, casamento, família, costumes sociais e educação? Questões como essas se apresentam, na maioria das vezes, no contexto de modelos de Estado nação em que, frequentemente, nos acostumamos a equalizar unidade com homogeneidade e igualdade com uniformidade e em que a existência de diversidades profundas pode provocar desorientação e conflito. Embora muito já tenha sido debatido sobre o assunto, essas são questões de extrema complexidade e respostas inteiramente satisfatórias ainda parecem estar distantes.

Duas décadas atrás, a ideia de multiculturalismo – como existência e celebração da diferença e respeito pelo pluralismo – foi tida como um elemento estruturante das democracias liberais modernas e uma resposta progressista a muitos dos problemas sociais da Europa. Desde então, o multiculturalismo passou por transformações significativas em termos de sua implementação, do reflexo que produziu nas políticas públicas pensadas para viabilizá-lo e de seu impacto social, principalmente em relação ao lugar que passou a ocupar no imaginário coletivo. Em parte, as dificuldades da questão estão associadas a um impasse sobre a natureza do conceito de multiculturalismo e às incógnitas relativas a como melhor colocá-lo em prática.

Em uma reflexão sobre a relevância das discussões a propósito do tema, Stuart Hall observa que, muito além de constituírem “uma platitude excessivamente utilizada”, as questões concernentes à temática, quando compreendidas adequadamente, têm o potencial de causar grande pertur- bação no senso comum e em certos pressupostos políticos, além de gerar transformações efetivas nas sociedades. No entanto, o autor reconhece a dificuldade de uma melhor definição e, principalmente, de sua implemen- tação e completa que o multiculturalismo não é algo que “simplesmente acontece”, mas que tem de ser “seriamente efetivado e interrogado”. Neste sentido, Hall argumenta que o fenômeno do multiculturalismo é melhor entendido como “a questão multicultural”, já que teorias políticas e vocabulários tradicionais ainda não dão conta de contemplar suas impli- cações práticas, que podem ser resumidas no dilema de “uma demanda dupla de maior igualdade e justiça social, por um lado, e de reconheci- mento da diferença e da diversidade cultural, por outro”.3

Parte do problema se encontra no fato de que o multiculturalismo se funda, nas palavras de Tomaz Tadeu da Silva, em “um vago e benevo- lente apelo à tolerância e ao respeito para com a diversidade e a diferença” que, no mais das vezes, se limita a proclamar a existência da diversidade sem que, necessariamente, se pense em como lidar com ela.4 Néstor Canclini também atenta para as dificuldades na delimitação do termo e suas práticas, optando por estabelecer a diferença entre multiculturalidade e multiculturalismo. A multiculturalidade estaria relacionada à vivência da diversidade e à riqueza da troca propiciada por ela, enquanto multicul- turalismo diria respeito às políticas públicas para administrar a diferença, o que traria o risco de entrincheirar aqueles que compartilham identidades consideradas similares sem a devida problematização.5 O autor ainda chama atenção para o fato de que, mesmo diante de boa vontade política, em algumas sociedades contemporâneas “confrontamo-nos, diariamente, com a interculturalidade de poucos limites, frequentemente agressiva, que supera as instituições materiais e mentais destinadas a contê-la”.6

Tendo considerado essas possibilidades terminológicas, o termo “multiculturalismo” é utilizado, aqui, na acepção de experiência vivida da diversidade cultural e étnica. Ao fazer referência ao gerenciamento e à institucionalização da questão multicultural, a análise procurará evidenciar que se trata de políticas de multiculturalismo.

Referindo-se ao declínio recente do conceito de multicultura- lismo em debates sobre convivência cultural, Will Kymlicka o atribui ao foco em um modelo de políticas públicas que “estimula a concepção de grupos como hermeticamente selados e estáticos, cada um deles repro- duzindo suas próprias práticas distintas”.7 Esta é, segundo Kenan Malik, a tendência predominante no universo aqui enfocado. Assim, o autor observa que o paradoxo presente nas políticas multiculturais no Reino Unido é justamente o fato de elas reconhecerem a diversidade – e, portanto, a necessidade de ações direcionadas a ela – ao mesmo tempo em que lidam com a diferença, majoritariamente por referência ao perfil de cada grupo minoritário. Com base nessa abordagem, a diversidade é instituciona- lizada através da compartimentalização de pessoas em blocos identitários étnicos e culturais e da definição de suas necessidades e direitos de acordo com isto, gerando políticas que acabaram contribuindo para acentuar as divisões que deveriam amenizar. Como resultado, no contexto britânico, passou-se a “definir solidariedade social não em termos políticos mas em termos de etnia, cultura ou crença”.8

A ênfase nas identidades é um fenômeno característico da contem- poraneidade. De acordo com Kathryn Woodward, “enquanto, nos anos 1970 e 1980, a luta política era descrita e teorizada em termos de ideologias em conflito, ela se caracteriza agora [...] pela competição e pelo conflito entre as diferentes identidades”.9 Hall faz referência ao processo como “uma mudança política de identidade (de classe) para uma política da diferença ”.10 Frequentemente, é o recurso à história do grupo cultural que possibilita autenticar a afirmação política das identidades e da diferença.11 Ainda que as versões históricas sejam fundadas em noções simplificadas, por vezes mitológicas, a propósito do que seriam as culturas e identidades, e que as características distintivas sejam, em grande medida, construções ancoradas em estereótipos, a disparidade entre elas pode constituir fonte de atrito na convivência em um mesmo contexto nacional.

Essa dinâmica se evidencia no caso da Inglaterra, em que uma sociedade com mitos de origem e pertencimento ligados a uma identidade de império passou, em um curto período, por transformações significa- tivas na composição étnica e cultural de sua população, impulsionada pela imigração em massa, em especial a oriunda de ex-colônias britânicas. A diversidade cultural tensionou noções preexistentes e contribuiu para pôr em questão características da identidade nacional como esta foi narrada anteriormente. A narrativa da nação, com suas imagens, eventos históricos, símbolos e rituais que, em um momento anterior, representaram uma experiência partilhada imaginada, não só deixou de contemplar uma parte da população, mas a rechaçou.

No caso específico da Inglaterra, as características que vieram a constituir a “inglesidade” se consolidaram por meio de represen- tações binárias opondo as “virtudes” da identidade inglesa aos traços negativos de outras culturas, particularmente as das antigas colônias. Com o declínio do poder econômico e da influência do império, o país se manteve apegado a uma ideia de pertencimento exclusiva e excludente, o que torna uma inclusão ou equalização ainda mais difíceis. Como consequência desse processo, verifica-se uma forte reação defensiva dos grupos étnicos dominantes que se sentem ameaçados pela presença de outros universos culturais, ao mesmo tempo em que se observa, entre as comunidades minoritárias, um recuo a “identidades mais defensivas, em resposta à experiência de racismo cultural e de exclusão”.12 O essencia- lismo cultural e o estereótipo levam à formação de identidades que se definem por oposição à dominante, o que Hall chama de “contraetnia”. O autor nota que esse processo de “reafirmação das ‘raízes’ culturais” vem, ao longo do tempo, representando “uma das mais poderosas fontes de contraidentificação”.13

Imigração e o tensionamento da identidade nacional

Para melhor compreender a genealogia das posturas e concepções mencio- nadas acima, é necessário examinar sucintamente episódios e pontos de inflexão importantes no longo processo que teve início em meados do século XX, envolvendo as relações entre os diferentes grupos consti- tuintes da sociedade britânica. A chegada, no Reino Unido, de um número significativo de imigrantes, impulsionada pela demanda de mão de obra no pós-Segunda Guerra, criou um desconforto em relação à composição da sociedade e fez emergir a necessidade da criação de políticas públicas voltadas para esse fenômeno.14 Conquanto o país precisasse da força de trabalho, o governo considerava que a onda imigratória representava problemas em termos de coesão social. Um relatório do Colonial Department, datado de 1955, declarava que a presença de uma grande quantidade de pessoas não brancas “enfraqueceria o conceito que se tinha do que era ser britânico e do que era o Reino Unido”.15 Paralelamente, o declínio do país como potência imperial também desafiava noções de identidade nacional. É possível afirmar, inclusive, que a experiência do multiculturalismo britânico e as tensões interétnicas que se anunciam durante os anos 1950 e 1960 estão intimamente relacionadas à remode- lagem da própria noção da identidade britânica, que sofria transformações significativas com o fim do império e o declínio do papel da religião nas democracias liberais, realçando ainda mais os aspectos envolvidos nessa nova equação que se formava.

A solução encontrada foi a implementação de políticas públicas contraditórias postas lado a lado. Com o Immigration Act de 1962, as fronteiras foram fechadas para grupos oriundos da Commonwealth, a Comunidade Britânica de Nações, o que restringiria consideravelmente sua entrada, ao mesmo tempo em que se começou a buscar medidas para incorporar os imigrantes, criminalizar a discriminação racial e reformular a ideia de identidade britânica. Em resposta à restrição, nos 18 meses que precederam a implementação do Immigration Act, houve um aumento de 300% na entrada de imigrantes em relação à média da década anterior (o número de paquistaneses, por exemplo, foi de 17.120, entre 1955 e 1960, para 50.170, em 1961, ano que precedeu o início da vigência do Immigration Act). Esse fenômeno contribuiu para complexificar ainda mais a equalização de um pertencimento nacional.

Com a perda da possibilidade de ir e vir, muitos dos que lograram entrar, em particular homens do subcontinente asiático, optaram por levar suas famílias permanentemente para o Reino Unido. A tentativa de inclusão social desse grupo de forma rápida gerou, na população nativa, a impressão de que a imigração era responsável pelos problemas sociais do país. No entanto, em um contexto pós nazismo e Holocausto, torna- va-se impróprio enquadrar desconfortos sociais, pelo menos abertamente, em termos raciais e, em uma mudança de tom, a questão racial passou a ser associada à ideia de diferença cultural. Em um discurso para o Comitê Nacional para Imigração da Comunidade Britânica das Nações, em 1966, o Secretário do Interior, Roy Jenkins, anunciava a preocupação do governo com a questão de diversidade cultural e sinalizava o tipo de política que seria adotada: “Integração é talvez uma palavra pouco precisa. Eu não acredito que signifique a perda, por parte dos imigrantes, de suas caracte- rísticas e culturas. Não penso que precisamos de um ‘caldeirão cultural’ neste país”.16 Reginald Maudling, Secretário de Estado, em 1968, também expressou o deslocamento do foco racial para o cultural quando declarou em um debate no parlamento: “O problema surge da chegada nesse país de pessoas com culturas, hábitos e perspectivas inteiramente distintas [das nossas]”.17 Tal declaração é representativa quanto ao posicionamento do establishment britânico e do caráter alarmante que uma possível transformação na configuração social, racial e cultural tinha para ele.

No discurso conhecido como “Rios de Sangue”, proferido no Centro Conservador, em Birmingham, em 20 de abril de 1968, o membro do parlamento Enoch Powell descreve o impacto do processo de imigração para o Reino Unido afirmando que “áreas [...] estão sofrendo uma trans- formação total, sem paralelo em mil anos de história inglesa”, alertando para o fato de que, em quinze ou vinte anos, o país teria 3 milhões e meio de imigrantes da Commonwealth e seus descendentes. Powell também versa sobre a questão da integração, um tópico latente no imaginário britânico no que diz respeito à convivência multicultural, trazendo um enquadramento que, embora menos abertamente defendido, permeia as discussões sobre o assunto até a contemporaneidade. Ele argumenta que “outra ilusão perigosa [...] pode ser resumida pela palavra ‘integração’. Ser integrado a uma população significa se tornar [...] indiferenciável de seus outros membros” e imaginar que a ideia de se tornar inteiramente integrado “entraria nas mentes” da maioria dos imigrantes e seus descen- dentes consistia em “um equívoco absurdo e perigoso”.18

Em 1974, o grupo de extrema-direita National Front, até então uma força política marginal no Reino Unido, recebeu um apoio considerável nas eleições parlamentares no país. As atividades do grupo, no entanto, não se limitavam às eleições, já que seus membros eram particularmente ativos nas ruas, com patrulhas, manifestações, intimidações e agressões frequentes em bairros de imigrantes. Enquanto os imigrantes da primeira leva optaram por tolerar o racismo e se esforçavam ao máximo para serem aceitos pela sociedade britânica, essa hostilidade mais explícita culminou em um engajamento político da geração subsequente, especialmente nas comunidades asiáticas.

Movimentos como o Indian Progressive Youth Association e o Asian Youth Movement surgiram como consequência desse cenário. Nesse período, a identidade ainda não era enfocada pelo prisma da religião.

Apesar de não se apresentarem abertamente como ateístas, os movimentos de juventude se dedicavam a desafiar noções de tradição e religiosidade da geração que os precedeu, ao mesmo tempo em que tinham o intuito de organizar contramanifestações e resistência aos ataques frequentes da Frente Nacional. Seu imaginário estava muito mais relacionado à luta pelos direitos civis dos afro-americanos, e sua afinidade se dava, majorita- riamente, com base na solidariedade de classe. Durante a maior parte dos anos 1960 e 1970, imigrantes do Caribe, da África e da Ásia estavam mais preocupados em lutar contra os ataques racistas e por igualdade de trata- mento e salários justos do que com a preservação de diferenças culturais.19 Uma das rebeliões mais emblemáticas da história recente do

Reino Unido, que se espalhou por diversas regiões do território britânico, foi desencadeada por um episódio, ocorrido em 6 de abril de 1981, em que a Polícia Metropolitana de Londres realizou uma operação no bairro majoritariamente negro de Brixton, durante a qual um jovem negro de 19 anos que tinha uma perfuração de faca foi preso. As manifestações para sua liberação envolveram, sobretudo, jovens não brancos e são consideradas um marco da ruptura das relações raciais no país. Margareth Thatcher e o Partido Conservador, que estavam no poder desde 1979, encararam a questão de forma pragmática. Ideologicamente, queriam trazer os militantes da Frente Nacional e da extrema-direita de volta para o partido; por outro lado, era necessário criar um sistema em que, ao menos aparentemente, a população de não brancos e imigrantes se sentisse representada e acolhida. A estratégia foi limitar ainda mais a imigração, ao mesmo tempo em que foi criado um ministério de relações raciais, responsável por identificar e mobilizar, na formulação de George Young, a figura política que primeiro ocupou esse ministério, “os ‘caras’ do bem, sensatos e moderados das minorias étnicas”.20

De certa forma, a rígida política de fronteira e o policiamento na imigração foram reproduzidos internamente através de fronteiras imaginárias de pertencimento e identificação.21 Esse cenário constituiu o alicerce do modo como cultura e identidade passaram a ser entendidas no Reino Unido. Como adverte Silva, as operações de inclusão e exclusão, de separação e distinção, a marcação da identidade e da diferença “supõem e, ao mesmo tempo, afirmam e reafirmam relações de poder [...] dividir e classificar significa, neste caso, também hierarquizar. Deter o privilégio de classificar significa também deter o privilégio de atribuir diferentes valores aos grupos assim classificados”.22 Esse processo de reconfiguração das comunidades e identidades, de reconhecimento e especificação de características e particularidades não se desenvolveu horizontalmente e foi se solidificando em eixos impositivos e reducionistas. Desde o início, as políticas de multiculturalismo no país responderam mais à dificuldade ou ausência de vontade institucional de promover igualdade do que a um desejo genuíno de diversidade e respeito à diferença.

Quando a chamada “nova esquerda” levou o Partido Trabalhista (Labour Party) ao poder com Tony Blair, em 1997, essa compreensão de cultura, identidade e diversidade se solidificou. Com a “antiga” esquerda e seu foco em solidariedade de classe devidamente apresentados como “superados”, a nova esquerda se fortalecia com o discurso sobre identidade. Com a intenção de orientar as políticas públicas para lidar com a diversidade, em outubro de 2000, foi publicado o Relatório Parekh, um diagnóstico da Commission for the Future of Multi-Ethnic Britain, dirigida por Bhikhu Parekh, cuja principal conclusão foi a de que o Reino Unido era uma “comunidade de comunidades” na qual a igualdade deveria ser definida de uma forma “sensível à cultura e aplicada de uma maneira discriminada mas não discriminatória”.23 A concepção de britishness como identidade branca, colonial e dominante foi substituída pela ideia de nação composta por uma diversidade de comunidades pretensamente homogêneas, nas quais a igualdade seria definida de modo sensível às parti- cularidades culturais. Embora essa não tenha sido a intenção do relatório, como argumentou o próprio Parekh em um artigo revisitando as propo- sições feitas pela comissão na época,24 em vez de pluralidade, o documento propunha uma espécie de “multimonoculturalismo”, na expressão cunhada por Amartya Sen,25 em que existe uma percepção de pluralidade que não é vivida pela totalidade da população. Hall, que integrava a comissão que elaborou o relatório, nota que, nesse contexto, o multiculturalismo “com ênfase no ismo ” acabou por transformar um conjunto multifacetado de práticas sociais, ideias e articulações em uma “singularidade formal” fixa, uma espécie de “ideologia do politicamente correto” que não contempla de fato a heterogeneidade cultural, mas a reduz.26 Zygmunt Bauman também discute essa questão e observa que, malgrado seja orientado pelo postulado da tolerância liberal, pelo reconhecimento do direito das comunidades à autoafirmação e pelo respeito às identidades por escolha ou por herança, ele funciona como “força essencialmente conservadora: seu efeito é uma transformação das desigualdades incapazes de obter aceitação pública em ‘diferenças culturais’”.27

Entre as consequências da maneira como a diversidade foi tratada não está somente a ideia de que é possível se ter comunidades homogêneas na sua diferença em relação às demais, mas que alguns indivíduos, geralmente os que manifestam certas características conside- radas como paradigmáticas, podem ser tomados como representativos de um todo. Esse padrão criou condições de possibilidade para que os críticos da diversidade pudessem representar o multiculturalismo por meio da figura do representante caricatural da outra cultura, um oponente ideal e uma ameaça declarada à cultura dominante. As múltiplas identidades possíveis acabaram estereotipadas em um modelo único que é esperado, e até prescrito, e certos grupos se tornaram repreensíveis com base no comportamento de alguns de seus membros. Desta forma, enquanto política pública, o multiculturalismo institucionalizou uma configuração em transformação, implicando uma estagnação do processo de mudança e “dando o poder de policiar os limites das normas das comunidades aos líderes estabelecidos, ou aos pais, ou à tradição”, que tendem a conceber a identidade de forma dogmática.28

Em um contexto institucional tão pouco poroso, identidades étnicas, quando concebidas sob um enquadramento essencialista, se tornam particularmente limitadoras, uma vez que se apresentam quase como um destino biologicamente determinado ou culturalmente herdado dos antepassados que o indivíduo deve reproduzir. Em paralelo, o modelo permite que a identidade do “inglês típico” branco trafegue e seja permeada por inúmeras referências culturais, enquanto essa liberdade não é estendida àqueles considerados como “outros”, dos quais se espera imutabilidade de acordo com um padrão básico. Canclini faz alusão a essa distinção quando observa que, para certos grupos de indivíduos: “a ilusão de sermos sujeitos [...] que poder[iam] mudar de identidade nacional, de classe e de gênero, facilitada pelo anonimato e pela distância das interações virtuais, evapora-se quando o aspecto étnico ou a gestualidade tornam visível a história dos nossos pertencimentos”.29

De acordo com Bauman, é entre os indivíduos aos quais não foi facultado o direito à assimilação que o comunitarismo ocorre de forma mais frequente e natural, já que, a eles, restaria “procurar abrigo na suposta ‘fraternidade’ do grupo nativo”.30 Desta forma, em uma mesma sociedade, criam-se dinâmicas diferenciadas nas quais, para uns, a liberdade de escolha, livre das amarras identitárias de outrora, associadas à naciona- lidade, ao gênero ou à classe se traduz em liberdade para reinvenção e, para outros, persiste a expectativa de construção pessoal com base em noções atávicas de origem, pertencimento e lealdade associadas à tradição. Adicionalmente, o processo de diferenciação, assim como a definição de quais elementos cabem a cada universo, não tem lugar com o envolvi- mento de grupos situados de modo equivalente e é constituído como um efeito de relações de poder. A um grupo, cabe definir e, a outro, se adequar a essa definição e aos seus essencialismos, o que, naturalmente associado a outros elementos ligados aos problemas de convivência em sociedades diversamente culturais, contribui para a construção de relações sociais marcadas por ressentimento e conflito.

Identidade e Islã

No contexto britânico, a dificuldade de mobilidade identitária ancorada em expectativas de origem étnica é especialmente evidente no caso dos muçulmanos, tanto no modo como a comunidade e seus membros são percebidos pelos outros quanto na maneira pela qual, internamente, esses indivíduos e grupos passaram a perceber a si próprios. Esse cenário se intensificou após o ataque ao World Trade Center, em 2001, e seus desdo- bramentos, associados à midiatização vertiginosa desses aspectos que se sucedeu. Em grande escala, nenhum outro grupo teve suas tradições e crenças investigadas e representadas como tão incompatíveis com princípios ditos “ocidentais”.

Em uma pesquisa realizada pela BBC, em 2005, 27% dos respon- dentes afirmaram que consideravam o Islã incompatível com valores ocidentais e democráticos, uma proporção que se acentuou (para 59%), de acordo com pesquisa YouGov de 2015.31 Pesquisa Ipsos Mori, em 2018, apontou que 72% dos britânicos acreditam que sua sociedade tem uma visão negativa do Islã e 43% consideram o Islã uma força negativa nela.32 Mesmo que a identidade de um muçulmano, na contemporaneidade, não se limite à sua prática religiosa ou a certos aspectos do seu comporta- mento, a hiper-representatividade desses atributos e do grupo – na grande mídia e no imaginário comum – é singular, dificultando a construção de uma identidade mais plural entre seus membros. A ênfase na diferença, por parte da sociedade como um todo, tem implicações particularmente expressivas quando se trata da identidade islâmica.

De acordo com estudo realizado por Tufyal Choudhury, o senso de identidade de muçulmanos no Reino Unido geralmente depende da questão proposta a eles. Quando questionada sobre pertencimento nacional, a maioria afirmou se sentir fortemente britânica, com a identidade combinada, de britânico e muçulmano, aparecendo com maior frequência.33 Estes resultados são consistentes com os do censo de 2007-2008, em que 89% dos muçulmanos praticantes afirmaram ser possível pertencer ao Reino Unido e manter uma identidade religiosa ou cultural separada da dominante, tendo sido este o maior percentual entre as comunidades religiosas pesquisadas. Entre muçulmanos não praticantes, o percentual foi ainda maior, de 90%.34 No entanto, quando, no estudo de Choudhury, os respondentes foram convocados a escolher uma lealdade ou outra, de britânico ou muçulmano, ou hierarquizá-las, 81% se descreveram primei- ramente como muçulmanos.35

Segundo dados do censo de 2007-2008, 45% dos muçulmanos praticantes declararam nunca terem percebido conflito entre suas identi- dades religiosa e nacional, enquanto, entre os não praticantes, o percentual foi menor, de 35%.36 Estes dados indicam que, para os muçulmanos, a identidade religiosa estava, em grande medida, desassociada da prática e, fossem eles praticantes ou não, a compatibilização das diferentes formas de identidade era um elemento presente na sua construção subjetiva e no seu horizonte de percepção da sociedade.

É relevante chamar atenção para o fato de que, no Reino Unido, a forte ênfase no aspecto religioso da identidade dos muçulmanos pode ser caracterizada como um fenômeno razoavelmente recente. Uma obser- vação realizada por Phillip Lewis é ilustrativa da ampliação do realce nesse aspecto quando se trata da identidade do grupo nos países. O autor relata que, quando preparava seu primeiro livro sobre muçulmanos, no início dos anos 1990, seu objetivo era convencer uma sociedade secular e liberal a considerar seriamente a referência religiosa como um compo- nente identitário. Em 2007, quando publicou Young, British and Muslim , o contexto estava inteiramente transformado. Políticos, jornalistas e acadêmicos “haviam caído na armadilha oposta, a de privilegiar o Islã como explicação para fenômenos os mais diversos, quer fossem revoltas, descontentamento entre os jovens, radicalização política e violência extremista”.37 Essa transformação não decorre exclusivamente do ataque às Torres Gêmeas e de suas consequências diretas, mas resulta de um processo mais intricado.

Embora os padrões de imigração dos muçulmanos não tenham sido muito diferentes dos demais, no Reino Unido – com a primeira geração chegando ao território nos anos 1950 e 1960, a segunda geração nascida e criada nesses países nos anos 1970 e 1980, e a terceira geração constituída aproximadamente a partir de 1990 –, a noção de que, desde o início, o grupo teve maior dificuldade de inserção cultural é amplamente disseminada. Em termos gerais, a primeira geração, originária majorita- riamente do subcontinente indiano, ainda que muito devota do Islã, não adotava esta identidade religiosa de maneira pública. Não era incomum que alguém se definisse como muçulmano e frequentasse pubs , por exemplo. A religiosidade não envolvia comportamentos ou valores destacados ou vigiados socialmente, e os membros da comunidade muçulmana se identi- ficavam muito mais com as características regionais das localidades de onde migraram – eram Punjabis, Bengalis, Sylhetis etc., não muçulmanos. A segunda geração era, como já dito, em sua maior parte secular e se definia como comunidade mais com base em solidariedade política e de classe. Enquanto seus pais haviam tolerado o preconceito, essa geração se posicionava por igualdade de tratamento e oportunidade. A terceira geração é, paradoxalmente, a mais ocidentalizada e a mais preocupada em afirmar a sua diferença de origem, pertencimento e lealdade. Ainda que, hoje, um jovem de origem muçulmana em Londres tenha muito mais características em comum com outros jovens nas grandes capitais mundiais em relação ao tênis que usa, à música que ouve, aos programas de TV que assiste e às expressões idiomáticas que utiliza, ele se percebe e é percebido com o enfoque da diferença.

Nesse sentido, a questão geracional adquire grande relevância. Malik observa que, de uma forma geral, alienação e revolta fazem parte do imaginário da juventude e que a busca de identidade pelos jovens é “quase um clichê”. Para o autor, o que confere particularidade ao momento atual é o contexto social em que essa alienação e essa procura ocorrem. As intervenções militares em países de maioria islâmica tiveram impacto significativo na formação da identidade de muçulmanos no Reino Unido. A terceira geração sofreu o influxo dos atentados de 11 de Setembro e das invasões subsequentes no Oriente Médio, assim como da introdução do Islã e dos muçulmanos no imaginário coletivo ocidental, aspectos que implicaram um senso de desconforto e desconfiança em relação ao grupo. Como nota Ülkü Güney, “a formação das identidades de muitos jovens muçulmanos na diáspora ocidental é significativamente moldada pelas guerras em países de maioria islâmica no Oriente Médio e pela cobertura midiática do Islã e dos muçulmanos”.38

Associado à questão geracional está o fato de que os indivíduos nascidos no Reino Unido, diferente dos seus pais e/ou avós, têm mais interesse e capacidade de avaliar a sociedade em que nasceram, justa- mente por estarem mais inseridos culturalmente. Segundas e terceiras gerações têm, em geral, expectativas mais altas e comparam sua posição social não com a dos pais e avós, que também levavam em consideração a situação dos países de onde migraram, mas com a da maioria da população nativa. Isto pode servir para explicar a demanda mais alta de reconheci- mento e aceitação e um senso de frustração maior com a discriminação e a desigualdade.

Outros aspectos, como o de que a comunidade muçulmana repre- senta atualmente a maior minoria religiosa nos países membros do Reino Unido, devem ser considerados. Muçulmanos correspondem a 4,8% da população, uma minoria substancial se comparada com os 1,5% de hindus, 0,8% de sikhs e 0,5% de judeus, por exemplo. No entanto, de partida, é importante notar que, embora a sociedade seja secular, 59,3% dos habitantes do Reino Unido se declaram cristãos e somente 25% afirmam não ter religião. Um elemento adicional que não deve ser negli- genciado está relacionado com a composição étnica e racial dos grupos religiosos. Em 2011, a comunidade muçulmana era composta por 67,6% de asiáticos, em sua maioria paquistaneses, bengaleses e indianos; 10,1% de afrodescendentes; 6,6% de árabes; 7,8% de brancos; 3,8% de grupos raciais misturados; e 4,1% de outros. É a comunidade religiosa mais diversa racialmente do Reino Unido e a menos branca.39 Brancos formam a maioria absoluta dos cristãos, 90%, e do grupo de pessoas que declara não ter religião, 93%. Não coincidentemente, 70% dos muçulmanos que disseram ter sofrido discriminação acreditam que sua etnia e raça foram um fator central.40

Algumas das impressões da comunidade sobre a sociedade britânica podem ser observadas no censo de 2007-2008, em que muçul- manos nascidos no Reino Unido demonstraram menos confiança nas instituições governamentais do que os qualificados como imigrantes. Os primeiros também afirmaram acreditar que o racismo na sociedade britânica havia crescido nos cinco anos anteriores, percentual maior do que o dos indivíduos nascidos em outros lugares. Embora a prática religiosa tenha decrescido nas segundas e terceiras gerações de muçulmanos e estas estejam se tornando cada vez mais integradas no que diz respeito às relações estabelecidas com não muçulmanos em termos afetivos, profis- sionais e de distribuição geográfica,41 a percepção de como a identidade islâmica é tratada socialmente se aguçou. Um indicativo de que a prática da religião não é um fator central nessa equação é o fato de que, com base em dados do censo, ficou constatado que um percentual maior de muçul- manos não praticantes, 75%, sentia que a discriminação religiosa e racial havia crescido no Reino Unido nos cinco anos anteriores se comparado ao percentual de 60% dos que se declararam praticantes.42

Manuel Castells se refere à constituição da identidade de resistência como uma criação de “atores que se encontram em posições/ condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação”, que constroem “trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos”. O autor observa que o fundamentalismo religioso é característico desse tipo de construção identitária nas sociedades contemporâneas do Ocidente, uma espécie de “ exclusão dos que excluem pelos excluídos , ou seja, a construção de uma identidade defensiva nos termos das instituições/ideologias dominantes, revertendo o julgamento de valores e, ao mesmo tempo, reforçando os limites da resistência”.

A identidade religiosa e étnica não consiste somente em uma forma de afirmação identitária, mas, também, na rejeição dos valores que repre- sentam o que Castells denomina de “identidade legitimadora”, conformada pelas instituições dominantes com o objetivo de “expandir e raciona- lizar sua dominação em relação aos atores sociais”.43 Adicionalmente, a identidade muçulmana é articulada na intenção de desafiar represen- tações estabelecidas, relativas aos não brancos na Inglaterra. Isto é notável nos modos como jovens muçulmanos do sexo masculino e de origem sul-asiática constroem uma concepção de masculinidade específica.

Para além de comportamentos relacionados ao controle das mulheres, a identidade religiosa islâmica é acionada principalmente para mobilizar as ideias de força e virilidade e contestar noções instituídas associadas à “fragilidade e passividade asiáticas”. A adesão a uma religião transnacional “forte”, que unifica jovens de diferentes origens culturais paquistanesas e bengalesas, acentuada pela irmandade que ela proporciona e pela narrativa da violência e martírio quando se trata de seguidores de grupos jihadistas,44 mobiliza uma forma potente de hipermasculinidade, particularmente atraente para grande parte desses indivíduos que se encontram em lugares de subalternidade. Em verdade, em que pesem as tensões entre os diversos grupos étnicos e raciais, esses jovens constroem e reinventam, de diferentes maneiras, suas identidades para contrapor concepções essencializadas de entidades raciais ou culturais.45

Entre mulheres muçulmanas jovens de origem asiática, no Reino Unido, a identidade religiosa parece servir como uma forma de construção individual e social que propicia certa independência das amarras étnico-cul- turais. Pesquisas sugerem que, para muitas delas, a possibilidade de criar uma distinção entre religião e cultura lhes permite questionar expectativas das famílias, que tendem a tratar demandas culturais e religiosas como indistintas.46 Sarah Glynn, que pesquisou extensivamente a comunidade de muçulmanos de origem bengalesa em Londres, aponta que a identidade religiosa representou uma forma de liberdade para muitas jovens na comunidade. De acordo com a autora, “elas comparam sua posição com a das mães, restritas pelas tradições bengalesas que davam pouca impor- tância à educação das mulheres, e que tinham seus movimentos fora de casa severamente limitados”.47 Muitas dessas mulheres fizeram uso da identidade muçulmana para argumentar que essas restrições não têm base na lei islâmica, assim como para advogar o direito de escolher seu parceiro e evitar o casamento arranjado, prática associada à tradição sul-asiática e não ao Islã.

Os Versos Satânicos , a Guerra da Bósnia e seus desdobramentos

Dois episódios que precederam o 11 de Setembro e os confrontos que o sucederam foram fulcrais para as relações culturais e a formação da identidade dos muçulmanos no Reino Unido. O primeiro é a Guerra da Bósnia (1992-1995), que teve um efeito semelhante ao do ataque às Torres Gêmeas na subjetividade muçulmana na Europa. Em 1992, quando a guerra nos Balcãs tomou definitivamente a forma de genocídio étnico, configurando-se como o maior conflito na região desde a Segunda Guerra, as comunidades islâmicas no Reino Unido se sentiram particularmente menosprezadas com a inexistência de intervenção dos países europeus. O fato de que o conflito se dava “a menos de duas horas do aeroporto de Heathrow” representou um dilema para os muçulmanos britânicos. Os eventos na Bósnia integraram uma narrativa mais abrangente em que se afirmava a ideia de que os muçulmanos nunca seriam bem-aceitos na Europa, porque os daquela região já estavam integrados ali há séculos, eram brancos, mas ainda assim estavam sendo dizimados.48

O lançamento, em 1988, do livro Versos Satânicos , do indo-britânico Salman Rushdie, pode ser considerado ainda mais relevante no sentido de solidificar a aglutinação em torno da identidade islâmica em termos de militância política. O livro foi considerado uma crítica ao Alcorão e ao profeta Maomé, culminando na declaração de um Fatwa ,49 que qualificava a obra como blasfêmia e condenava seu autor à morte. Embora esse Fatwa específico tenha sido emitido por Aiatolá Khomeini, então líder espiritual do Irã, a repercussão foi sentida em todo o mundo, gerando protestos e mortes que alimentaram consideravelmente os debates em torno da ideia do conflito de civilizações,50 que começaram a aparecer com mais proeminência desde então. A decisão de manter sua publicação no Reino Unido criou uma cisão entre parcela da comunidade muçulmana e grande parte da sociedade britânica como um todo.

Naturalmente, eventos como esse tendem a exacerbar dinâmicas preexistentes. No caso do Reino Unido, esse foi um momento em que integrantes que já se sentiam de alguma forma preteridos e marginalizados na sociedade se definiram em oposição a ela. Ao mesmo tempo, a reação ao livro e a demanda de que fosse censurado acentuou as diferenças já presentes, trazendo à tona as disparidades em relação à ideia de liberdade de expressão e tolerância. É importante ressaltar que, no contexto britânico, a reação à publicação não se devia necessariamente a seu conteúdo. Embora sensibilidades religiosas estivessem envolvidas, tratava-se de uma afirmação da identidade religiosa e não de um debate teológico per se . As questões que envolveram a movimentação contra o livro, no Reino Unido, não estavam associadas somente a uma expressão de indig- nação religiosa, sendo também uma afirmação política, uma demanda simbólica de uma minoria.51

Em seu estudo sobre as identidades islâmicas paquistanesas e bengalesas no Reino Unido, Yunas Samad argumenta que a mobilização de jovens bengaleses à época foi uma reação à situação mais ampla, ao posicionamento do establishment que, em conjunto com o aumento dramático das tensões raciais, resultou em que a comunidade “se fechasse em trincheiras”.52 Ishtiaq Ahmed, líder da comunidade paquistanesa e organizador das manifestações em Bradford que, em janeiro de 1989, deram início ao movimento mais amplo, observou que a principal motivação da ação era afirmar, para a sociedade britânica como um todo, que “nós importamos, nós existimos, nós estamos aqui e nossa presença importa”.53 Alguns membros da comunidade enxergaram o episódio como uma ocasião para pôr em questão os limites constitucionais da pluralidade religiosa, já que, em relação à questão de blasfêmia, até 2008, havia precedente legal referente ao cristianismo. Harry Goulbourne observa que muitos muçulmanos britânicos viram o caso como “uma oportu- nidade para articular suas queixas quanto à percepção do tratamento que recebiam em uma sociedade que, por um lado, se apresenta como secular e, por outro, mantém tradições, instituições e práticas profundamente cristãs”.54 Embora o Comitê de Assuntos Islâmicos tenha levado o caso à Câmara dos Lordes, o pedido foi negado, o que foi entendido como uma mensagem clara de que as diferentes correntes religiosas não gozavam de direitos iguais.

Muitos dos que protestaram nas cidades inglesas se encaixavam no padrão estereotipado que acabou representando o movimento de oposição a Rushdie na Inglaterra, constituído de homens mais velhos, nascidos no subcontinente asiático, com baixa escolaridade, longas barbas, semblantes inflamados e pouco domínio do inglês, ainda que muitos dos que acabaram envolvidos nos protestos até então não se consideravam especialmente religiosos ou tinham o Islã como elemento central de identidade. A intensidade da polarização gerada pelo conflito tornou imperativo que se posicionassem em um polo ou outro do espectro.

Diversos movimentos islâmicos, muitos com base na Arábia Saudita, também viram a oportunidade de fomentar o conflito que se desdobrava no coração do continente europeu na tentativa de forta- lecer suas agendas, vinculando-se a organizações e movimentos locais. Ghayasuddin Siddiqui, fundador do Instituto Muçulmano do Reino Unido, que mais tarde se tornaria o Parlamento Muçulmano do Reino Unido, analisa que o embate em torno de Rushdie nunca tinha sido sobre religião, “era sobre política. Não era uma disputa sobre blasfêmia mas uma batalha entre a Arábia Saudita e o Irã para ver quem ganharia os corações e mentes dos muçulmanos”, acrescentando que, na Europa, essa batalha estava sendo travada centralmente no Reino Unido.55 Esse foi um momento significativo também para a internacionalização da identidade islâmica, antes mais voltada para as raízes culturais locais e tribais dos membros das comunidades de imigrantes nos países. O episódio colocou a possibilidade de pertencimento à comunidade de crentes no mundo, a Umma , definitivamente no horizonte, viabilizando novas e poderosas lealdades e um senso de pertencimento. Inayat Bunglawala, fundador da organização Muslims4UK e colunista do jornal The Guardian , atual- mente militante pela liberdade de expressão, descreve como o Fatwa de Khomeini o fez sentir à época: “Eu me senti exultante. Foi uma lembrança muito bem-vinda de que os muçulmanos britânicos não precisavam se sentir como uma minoria apequenada e vulnerável; eles faziam parte de um movimento verdadeiramente global e poderoso”.56

Os episódios em torno da publicação de Versos Satânicos são considerados por estudiosos, lideranças e militantes envolvidos como ponto de inflexão de grande relevância para os dilemas que passaram a pautar as relações entre os chamados mundo ocidental e mundo islâmico, além dos paradoxos que envolvem essa dinâmica. No caso específico do Reino Unido, a resposta institucional reforçou algumas das contradições que permeiam a abordagem das questões de multiculturalismo nos países. A despeito da retirada, pela Inglaterra, dos representantes diplomáticos de Teerã após a declaração do Fatwa contra Rushdie, culminando em uma quebra de relações diplomáticas entre os governos britânico e iraniano, a postura oficial do governo liderado por Margareth Thatcher também incluiu um distanciamento em relação ao autor e a emissão de um pedido de desculpas oficial, em uma tentativa de apaziguar os ânimos. A nota do governo britânico declarava que “todos conhecemos em nossas religiões pessoas que agem de forma profundamente ofensiva para nós; nesse caso, foi o que aconteceu com o Islã”. O ministro de gabinete Norman Tebbit foi além, declarando que Rushdie era “um vilão extraordinário” da situação.57 Ao não adotar uma postura categórica em relação ao direito à liberdade de expressão do autor, nem ceder às demandas da comunidade religiosa em relação à implementação da legislação referente a blasfêmia, optando pela abordagem de mão dupla, o governo contribuiu mais para confundir do que para esclarecer sua posição sobre o caso, deixando margem para interpretações equivocadas em todos os lados. O episódio acentuou também sentimentos anti-islâmicos por parte de setores que se apropriaram do conflito para consolidar a ideia da incompatibilidade da convivência cultural.

O governo do Partido Trabalhista, a partir de 1997, solidificou o declínio da abordagem universalista pela adoção do viés das políticas de identidade. O partido apoiou a existência do Parlamento Muçulmano do Reino Unido, fundado em 1992, formado por indivíduos previamente associados às manifestações contra Rushdie.58 Tendo ligações com movimentos na Arábia Saudita e Paquistão, a organização expressava não só a ideia de que seria possível engendrar uma representação homogênea e autêntica para uma comunidade diversa, mas a noção de que a comunidade necessitava de uma representação paralela e de que seus interesses e direitos estavam ou deveriam estar, de alguma maneira, à margem da representação oficial. Essa posição foi reforçada quando a administração do Partido Trabalhista apoiou a fundação do Muslim Council of Britain (Conselho Muçulmano Britânico), em 1997. Também composto por indivíduos envolvidos nos protestos contra Rushdie e ligados ao governo saudita, o conselho ganhou proeminência na interlocução com a adminis- tração de Tony Blair.

Não obstante o fato de o Conselho, ao longo do tempo, ter exercido um papel importante na articulação dos interesses de parte da comunidade muçulmana, a valorização de uma representação alternativa não só desencorajava seus membros de se engajar diretamente na política mainstream , mas sugeria, indevidamente, que a diversidade nela presente poderia ser contemplada por instituições cujos integrantes nem sequer eram eleitos ou escolhidos de forma orgânica.

Pesquisa realizada com muçulmanos, em 2006, pelo NOP/ Channel 4, apontou que menos de 4% dos entrevistados acreditavam que o Conselho Muçulmano Britânico os representava, e somente 12% afirmavam que a organização representava suas visões políticas.59 Quando, em 2006, como consequência dos atentados de 7 de julho de 2005, a comunidade muçulmana ocupava um lugar central nos debates públicos sobre política, o então primeiro-ministro Tony Blair se envolveu em uma discussão com um representante do partido no parlamento, Sadiq Khan, que, mais tarde, se tornou prefeito de Londres (2016 até o presente). Blair havia sugerido que os ataques seriam consequência, única e exclusiva- mente, de um processo de radicalização político-religiosa que atingia uma parte da comunidade e que caberia aos membros dela se encarregarem de melhor lidar com o problema. Khan defendia que se tratava de um problema coletivo e que uma visão segmentada da sociedade acentuava as questões às quais, ao menos em parte, se deviam às motivações do ataque.60 Como resposta às proposições de Khan, Blair declarou não se sentir qualificado para dialogar com a comunidade, afirmando para o comitê de representantes do parlamento que o governo não seria capaz de conter o extremismo e “explicar para ela que uma visão extremista não é a verdadeira face do Islã”.61

A sugestão de que membros do establishment político, neste caso o próprio primeiro-ministro, não seriam capazes de dialogar com a comunidade islâmica reforçava a noção de que, de alguma forma, ela existia em um âmbito paralelo e empoderava, na melhor das hipóteses, instituições como o Conselho Muçulmano Britânico e o Parlamento Muçulmano do Reino Unido. Amartya Sen, ganhador do prêmio Nobel de economia, questionou, a propósito desse fenômeno, “por que um cidadão britânico, que ocorre também ser muçulmano, deve se ver obrigado a contar com clérigos e outros líderes da comunidade religiosa para se comunicar com o primeiro-ministro do país?”.62

A segmentação da participação política e o desencorajamento do envolvimento com a política partidária convencional vão de encontro aos resultados de pesquisas que atestam que esse tipo de participação e o ativismo relacionado a causas étnicas e islâmicas, mesmo quando conflituosos, aceleraram o processo de integração de muçulmanos e contribuíram positivamente para o senso de pertencimento do grupo no Reino Unido, abrindo espaço para o engajamento em outras instâncias de participação cívica e política.63 Estudos indicam, por exemplo, que “muçulmano” se tornou a forma mais importante de identificação para grupos do Paquistão e de Bangladesh que atuam na política britânica,64 e que o lobby por questões como alimentação halal65 nas escolas durante os anos 1980 e 1990 e, mais recentemente, a oposição à invasão do Iraque em 2003 culminaram em uma maior adesão da comunidade nas eleições.66 Outras pesquisas sugerem que até as atividades relacionadas a causas transnacionais, como a contra a ocupação da Palestina, facilitaram a aproximação de grupos com uma rede mais ampla de organizações não étnicas de direitos humanos e outras organizações britânicas.67

Nesse caso, paradoxalmente, o ativismo por uma causa diaspórica, além das fronteiras da nação, aumentou o interesse político no âmbito nacional. O mesmo pode ser afirmado no que diz respeito à militância por reconhecimento do Islã no contexto nacional, em que o processo de negociação de uma nova ordem pública participativa demandou o envol- vimento cívico dos grupos interessados, gerando comprometimento e confiança no sistema político mais amplo. A marginalização da religião, por outro lado, contribui para expandir a esfera de atuação de extremistas e contrasta com indícios de que um “Islã europeu/britânico” está emergindo como uma resposta poderosa ao fundamentalismo. Em seu trabalho sobre o papel da identidade muçulmana no processo de radicalização, Choudhury propõe que seria justamente através de um Islã “receptivo, integrador e dinâmico”, que estimulasse plenamente a participação da comunidade nos processos políticos britânicos, que a política de identidade muçulmana deixaria de contribuir para a radicalização, se tornando uma ferramenta significativa contra ela.68

A abordagem do governo ao tema, no entanto, pareceu ignorar essas premissas. Ao mesmo tempo em que incentivava formas alternativas de representação política, o governo britânico mantinha os muçulmanos excluídos das legislações de proteção contra a discriminação religiosa. Até 2003, a discriminação contra muçulmanos apenas por serem muçulmanos era constitucional, uma vez que esta não era considerada oficialmente uma identidade religiosa. Não era considerado ilegal, por exemplo, negar uma vaga de emprego a uma mulher com base em seu uso do véu. Embora, nos censos de 1991 e 2001, uma parcela dos muçulmanos tenha se identificado como branca, especialmente a proveniente do Oriente Médio, a identidade muçulmana ainda era enquadrada sob o prisma racial e a alegação era de que a comunidade estava protegida através da legislação contra a discri- minação racial. No entanto, judeus e sikhs, para citar dois casos, eram reconhecidos como minorias religiosas, sendo protegidos, pela consti- tuição, da discriminação com base no uso de elementos de indumentária como o yarmulke ou o turbante.69 A comunidade muçulmana já pleiteava um status específico reconhecido institucionalmente desde os inícios do seu estabelecimento no país, alegando que a legislação somente focada no aspecto étnico-racial não contemplava questões específicas da identidade religiosa. Ademais, a racialização das etnias minoritárias se funda no pressuposto de que ingleses brancos não possuem etnia e desconsidera manifestações mais sutis que transcendem atos explícitos de racismo e discriminação.

A demora na criminalização da discriminação contra a identidade religiosa islâmica pode ser explicada, entre outros fatores, pelas questões que emergem com a necessidade de acomodação de demandas religiosas em sociedades seculares. No contexto europeu, em particular, o Islã vem evidenciando serem imprescindíveis uma reflexão e uma transformação estrutural na forma como a religiosidade é tratada institucionalmente. Como observa Modood, “a incorporação de muçulmanos se tornou o desafio mais importante para as noções de igualdade no multicultura- lismo”.70 Talal Asad busca explicar esse quadro com a afirmação de que “na Europa, onde os habitantes crescentemente definem sua herança como judaico-cristã, os princípios de igualdade na comunidade política não podem ser estendidos facilmente aos habitantes muçulmanos lá nascidos, porque eles são identificados como seguidores de uma ‘religião não liberal’”.71

O contexto das terceiras gerações, o “fracasso do multiculturalismo” e as políticas antiterrorismo

O apoio incondicional do Reino Unido, sob a liderança do primeiro- ministro Tony Blair, aos EUA na invasão do Afeganistão e do Iraque e as legislações antiterrorismo que atingiram desproporcionalmente a comunidade muçulmana no país se agregaram a um cenário já conturbado. Embora tenha sido incluída pergunta referente à religião no censo de 2001 pela primeira vez desde 1851, o que foi considerado uma concessão para as comunidades religiosas, em especial a islâmica, a relação entre os representantes da comunidade e o governo continuaram problemáticas.72 Após os ataques de 7 de julho de 2005, o governo trabalhista iniciou uma série de iniciativas para a prevenção e o combate ao terrorismo com resultados questionáveis que, em grande medida, contribuíram para agravar a situação que se propunham a melhorar. Não obstante o fato de que todos os responsáveis pelos ataques tivessem nascido e crescido no Reino Unido, a primeira medida anunciada pelo primeiro-ministro foi uma revisão da legislação referente à imigração e à concessão de asilo no país, inadequadamente remetendo à ideia de que se tratava de uma questão de caráter exógeno.

Em 2005, foi lançado o Ato para Prevenção do Terrorismo, o Prevent, que visava desenvolver estratégias e programas contra terrorismo, e uma comissão com diversas representações das comuni- dades muçulmanas foi formada sob a tutela do Ministério do Interior Britânico, com o nome de Preventing Terrorism Together (Prevenindo o Terrorismo Juntos). As consultas feitas nas comunidades procuravam detectar as principais razões de descontentamento e o que poderia ter levado jovens nascidos e criados no país a cometerem atos de terrorismo contra seus conterrâneos. A conclusão do estudo recomendava inicia- tivas a longo prazo que lidassem com “desigualdade, discriminação, políticas governamentais ausentes ou ineficientes e, em particular, com questões de política externa”.73

Embora esses fatores tivessem sido amplamente mencionados pelos próprios executores dos ataques, em seus vídeos de martírio, as recomendações criavam um ruído na narrativa oficial que buscava neutralizar a relevância das intervenções militares e, convenientemente, insistia em enquadrar o problema pelo prisma da ideia de que as comuni- dades não estavam adequadamente integradas. Tony Blair se referiu às questões trazidas pelo relatório como “absurdas” e inspiradas por um “senso de falsa indignação” relativo à concepção de que muçulmanos estariam sendo antagonizados pela Inglaterra ou os EUA em suas políticas externas.74

O então ministro do Interior, Jack Straw, reforçou a tese da relevância do fator integração, chegando a afirmar que o véu era fonte de desconforto pessoal, “uma afirmação visível de separação e diferença”, sugerindo sua possível retirada de espaços públicos como escolas.75 Na concepção do governo, o problema da integração estava relacionado a um modelo específico que não envolvesse a acomodação de características ou críticas à política externa, por exemplo. A chamada “comunidade muçulmana”, que já era constantemente intimada a dialogar com as posições mais radicais, a repudiá-las ou explicá-las, como se um posicionamento nas margens representasse o todo, se tornou ainda mais pressionada.

Arun Kundnani observa que uma fonte de estresse era a expec- tativa de que muçulmanos, frequentemente divididos entre “bons” e “maus”, tivessem que incorporar acriticamente os valores da sociedade em um ambiente pautado por islamofobia e racismo. De acordo com o autor, “o muçulmano que vende kebabs contribui para a ‘boa diversidade’, até ele criticar a política externa, quando então é visto não como um cidadão engajado mas como um fracasso de integração, responsável pela falta de coesão social europeia”.76 Essa dinâmica seria um dos desdobramentos de um tipo de “multiculturalismo policiado” no qual, em adição a um entrincheiramento de caráter étnico-religioso, a comunidade é subdividida entre “confiáveis” e “suspeitos”.77 A forma e a intensidade da atuação do governo e das políticas antiterrorismo nessas comunidades são, então, informadas por categorias de classificação com base em posicionamentos específicos.78 A fronteira entre os indivíduos ou grupos que são consi- derados “governáveis” e “confiáveis” e os “suspeitos” e “inimigos” é, todavia, bastante frágil.

Quando o Terrorism Act 2006 foi lançado, ampliando a abran- gência da ação policial e legal para lidar com questões referentes ao terrorismo, dando início à flexibilização jurídica que permitia prisões sem acusação formal, a política de revista em lugares públicos e restrições em aeroportos, houve uma mudança no cenário. A iniciativa foi comple- mentada por uma campanha de vigilância nas escolas e universidades, gerando desconforto e alienação por parte das comunidades muçulmanas. Antes, mesmo que modestamente, engajadas e convidadas a participar da elaboração dos projetos e estratégias, as organizações ligadas ao Ato para Prevenção de 2005 se sentiram majoritariamente alienadas e abandonaram a parceria com o governo. Estudos realizados posteriormente confirmaram que as comunidades muçulmanas no Reino Unido passaram não só a não participar dos programas de prevenção, mas a hostilizá-los e temê-los por se sentirem estigmatizadas no processo de implementação, intensificando as dinâmicas que, de alguma forma, inicialmente criaram as condições para que os ataques acontecessem.79 Dos 1.834 indivíduos detidos por terrorismo sem acusação formal no Reino Unido, de 2001 até 2011, apenas 13% acabaram sendo considerados culpados e processados por crimes relacionados a essa prática.80

Com o Partido Conservador no poder a partir de 2007, as políticas contra o terrorismo se intensificaram, abandonando quase que por completo qualquer tentativa de engajamento com as comunidades e voltando o foco exclusivamente para ações de segurança. Organizações como o Conselho Muçulmano Britânico e a Associação de Muçulmanos do Reino Unido, antes consideradas aliadas do governo no combate ao terrorismo, passaram a ser vistas como suspeitas, sendo substituídas por instituições com outro perfil, algumas com relações abertamente hostis com parte significativa da comunidade, a exemplo da Quilliam Foundation.81 Após a crise econômica de 2008, que culminou em um corte no investimento em políticas públicas, muitas ONGs e projetos comunitários associados à comunidade muçulmana tiveram seu financiamento condicionado ao Prevent. Muitas dessas iniciativas foram confrontadas com a difícil decisão de aceitar o dinheiro disponibilizado pelo Departamento de Contraterrorismo ou renunciar a qualquer recurso, mesmo quando se tratava de projetos não relacionados a grupos considerados de risco. A mensagem era de que a comunidade era vista como suspeita e que os jovens, em particular, seriam tratados como terroristas em potencial nesse contexto. As políticas de coesão e integração, já exíguas, foram interrompidas e transferidas para o Departamento de Segurança Nacional e Imigração.

Em conferência sobre segurança nacional, em Munique, em fevereiro de 2011, David Cameron, líder do Partido Conservador e então primeiro ministro da Inglaterra, anunciou categoricamente que o “Estado multicultural britânico havia fracassado”, dando voz a uma impressão compartilhada por uma parte significativa da população.82 Sobre a vinculação de jovens britânicos ao grupo autointitulado Estado Islâmico, que motivou ataques domésticos e a migração de centenas deles para o autoproclamado califado,83 Cameron declarou que o Reino Unido precisava de muito menos da “tolerância passiva” dos últimos anos e muito mais de um “liberalismo ativo e muscular”. Paradoxalmente, no mesmo discurso, reconhecia as limitações do projeto de sociedade do qual o fenômeno emergiu, afirmando que “falhamos em proporcionar uma visão de sociedade a que eles desejem pertencer […] tudo isso acabou por deixar jovens muçulmanos desenraizados”.84 Em que pese essa afirmação, a gestão do governo conservador nada fez de efetivo em termos de coesão social e de políticas para lidar com o vácuo de pertencimento apontado. Em grande medida, a administração manteve a longa tradição da abordagem de mão dupla para lidar com a diversidade no país, desde que ações relativas a esta questão se fizeram necessárias. De forma incongruente, os poderes públicos continuaram reconhecendo a diferença com base na afirmação da particularidade e incentivando identidades ortodoxas, ao mesmo tempo em que atribuíam o protagonismo do problema a questões de integração cultural, mais precisamente, à falta dela. A regra perma- neceu a mesma, qual seja, a de apresentar uma demanda e um discurso de direitos e deveres universais ancorados na ideia de cidadania, enquanto uma política da especificidade, com ênfase na presença de características insulares, era aplicada.

Paralelamente, em termos de políticas públicas, firmou-se a tendência a associar o Islã e questões ligadas ao terrorismo, o que levou mais de 40 acadêmicos de diversas áreas, entre eles, Karen Armstrong, Tariq Ramadam e Tariq Mamood, a criticarem as políticas de contraterro- rismo, em especial, a iniciativa do Prevent, em carta aberta datada de julho de 2015. Os signatários argumentavam que a forma como o programa entendia os conceitos de radicalização e extremismo ia de encontro às conclusões de estudos importantes e acentuava “a noção sem substância de que a ideologia religiosa era a força principal que impulsionava o terro- rismo”, sem considerar outros fatores sociais e políticos mais fundamentais. Chamavam atenção para a armadilha que a ênfase na religião representava ao associar simbolismo islâmico e radicalização, usando elementos funda- mentais da identidade religiosa, como o véu ou o comprimento da barba, como paradigmáticos para dimensionar o grau de radicalização, conforme sugeriam alguns relatórios. A carta finalizava com o diagnóstico de que, caso fosse mantida a abordagem das políticas para lidar com o terrorismo no Reino Unido, o país corria sérios riscos de acentuar a noção de uma disputa entre “nós” e “eles”, agravando as relações já fragilizadas entre comunidades e solidificando preconceitos crescentes contra os muçul- manos no país.85 A recomendação foi ignorada pelo governo, que não só não reconsiderou as políticas, mas as intensificou.

Pode-se afirmar, inclusive, que, desde os ataques às Torres Gêmeas, em 2001, a ideia do inimigo absoluto que odeia o Ocidente e seu estilo de vida, do mundo islâmico como o antagonista cabal das democracias liberais e do fundamentalismo como o inverso do secularismo permeia o imaginário e o discurso identitário na Europa, em particular no Reino Unido. Mbembe faz referência à contemporaneidade como um período especialmente caracterizado por “formas de exclusão, hostilidade, movimentos de ódio e, acima de tudo, pela luta contra um inimigo”.86 O processo de construção e definição desse inimigo é também um processo de definição de quem somos. De um lado, estou eu – o nexo básico e fonte de orientação para o mundo – enquanto, no outro, estão os contrários, com quem eu nunca poderei me identificar. Esse processo envolve o pressu- posto de que entre eles e nós não há nada a ser compartilhado, somente um projeto de separação.

Mbembe observa que esse esforço de classificação, separação e medo do outro estava no cerne do projeto colonial. Nesse sentido, todo o jogo de representação no colonialismo consistia em tornar os colonizados uma variedade de tipos típicos, estereótipos assustadores em relação aos quais não se podia usar os mesmos critérios de interação reservados para nós. Todavia, essa definição e classificação do outro se torna ainda mais complexa quando o sujeito antagônico se encontra dentro das fronteiras europeias. A ideia de que os inimigos estão entre nós, engajados em destruir a nação de dentro, é capaz de despertar os instintos mais sombrios de sobrevivência e justificar as mais diferentes formas de discriminação e violência. Ainda de acordo com Mbembe, buscando conter o terrorismo e avançar no sentido de se tornarem Estados de segurança, democracias liberais “não mais hesitam em acionar grandes esquemas mitológicos”, a exemplo do apelo a um “entusiasmo bélico”, muitas vezes com o objetivo de reconstruir velhos nacionalismos.87 De certa maneira são, justamente, a presença do inimigo e a necessidade de se definir em relação a ele, de se unir contra ele que mantêm Estados democráticos liberais coesos.

Se, no passado, esse “objeto perturbador” era representado pela figura do judeu e do negro, hoje “Negros e Judeus são conhecidos por outros nomes: Islã, o Muçulmano, o Árabe, o estrangeiro, o imigrante, o refugiado, o intruso, para citar apenas alguns”.88 É contra eles que se faz necessário estabelecer critérios de classificação, demarcar fronteiras, materiais ou não, de separação. O processo de categorização e partição acentua as diferenças, ao passo que o realce das diferenças dificulta a convivência, criando demanda de separação. Comunidades isoladas e as identidades construídas com base nelas propiciam sua percepção estereo- tipada e caricata, ao mesmo tempo em que confirmam a ideia de que essas são perigosas e merecem um tratamento excepcional.

Administrando a diversidade e o excepcionalismo do Islã

Problemas relacionados à administração da diversidade, especialmente no que diz respeito à religião e às perspectivas morais e sociais, não são simples de equacionar em Estados-nações seculares. O secularismo não envolve somente princípios de igualdade e liberdade abstratos com os quais Estados democráticos liberais são supostamente comprometidos, mas, também, uma gama de sensibilidades em que o preceito de separação entre religião e autoridade política se ampara em uma visão racional que justificaria o predomínio de valores de certos setores dessa sociedade em relação aos valores de outros grupos. A par da premissa de que a relevância da religião seria possivelmente uma condição a ser superada coletivamente, há também, no contexto europeu, e particularmente no britânico, graus de tolerância díspares em relação à religiosidade, com certas manifestações tidas como uma ameaça maior ao secularismo que outras.

Em um exemplo de como se dá essa dinâmica e de como o Islã, em particular, ocupa lugar central nesse processo, Trevor Phillips, membro veterano do Partido Trabalhista britânico, ex-presidente da Comissão de Igualdade e Direitos Humanos na Inglaterra e chefe da Comissão pela Igualdade Racial desde 2003, afirmou, em um encontro do thinktank Policy Exchange, em 2016, que “continuar fazendo de conta que um grupo [os muçulmanos] irá de alguma forma, em algum momento, se tornar como o resto de nós é talvez a maior forma de desrespeito”. Phillips explicou sua afirmação pontuando que o que estava sendo dito, em essência, era que o fato de os muçulmanos se comportarem de uma maneira diferente, “de uma forma que talvez não gostemos”, era “porque eles ainda não viram a luz”, e que “entender que as pessoas não irão mudar sua visão de mundo porque nós estamos constantemente lhes dizendo que eles têm que ser mais como nós faz parte do processo de integração”.89 As afirmações causaram furor e, associadas a outras mais recentes, levaram a sua suspensão do partido sob acusação de islamofobia.

Phillips havia sido também questionado por sua participação em um documentário do Channel 4 (2016), intitulado What British Muslims Really Think ( O que os Muçulmanos Britânicos Realmente Pensam ) e baseado em pesquisa ampla que produziu alguns resultados polêmicos. Como observa Miqdaad Versi, a questão mesma, no título da produção, sugere que, seja o que fosse que muçulmanos dissessem sobre o que pensavam, isso não deveria receber crédito, porque não seria o que eles realmente pensam.90 O próprio Phillips escreveu, em um artigo no Sunday Times , que a pesquisa havia sido elaborada de forma a evitar que os parti- cipantes dissimulassem as respostas que considerassem perturbadoras para pessoas de outras culturas, dando a entender que essa era a atitude esperada do público pesquisado. Entre os resultados considerados mais problemáticos, a pesquisa, que entrevistou 1,4 milhão de indivíduos, pouco mais que a metade dos muçulmanos britânicos, concluiu que 52% deles acreditavam que relações entre pessoas do mesmo sexo deveriam ser ilegais. Outro resultado considerado relevante foi que 45% dos homens e 33% das mulheres entrevistados disseram que as esposas deviam sempre obedecer aos maridos.91 O foco da pesquisa em áreas nas quais muçul- manos compunham mais de 20% da população implicou que tenham sido investigadas centralmente as mais desprovidas economicamente e conser- vadoras do ponto de vista religioso, desta forma podendo ter afetado o resultado. Outras pesquisas apontam para números similares.92

Phillips foi acusado de reforçar a ideia, já prevalente, de que a comunidade muçulmana sustentava valores incompatíveis com uma democracia liberal, o que levaria a um acirramento do preconceito e divisão. Um dos argumentos levantados era o de que, não muito tempo atrás, as opiniões reveladas pela pesquisa eram adotadas por parte signi- ficativa da população britânica – em 1983, pesquisa sobre British Social Attitudes concluiu que 50% da população considerava que relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo eram erradas –93 e que a tendência era que a mesma transformação viesse a ocorrer na comunidade muçulmana, já que, entre os jovens (18-34 anos), o percentual de rejeição das relações entre pessoas do mesmo sexo era um pouco menor (48%), indicando uma discreta mudança geracional. O argumento, mesmo que não intencional- mente, acabava por confirmar a alegação de Phillips de que, em verdade, a tolerância à diferença estava associada à expectativa de que ela se tornaria, por assim dizer, menos marcada com o tempo. Pouco se falou, no entanto, que as suas alegações não eram necessariamente equivocadas quanto às diferenças presentes na comunidade muçulmana, mas em relação à ênfase dada a essa comunidade em específico, como se somente seus membros tivessem visões destoantes das da maioria da população britânica, em especial quando comparadas com as de outras comunidades religiosas, por exemplo.

Pesquisa YouGov realizada em 2016 evidenciou que 52% dos muçulmanos britânicos eram contra o casamento de pessoas do mesmo sexo, um número idêntico ao encontrado na pesquisa em que Phillips baseou suas afirmações. A pesquisa YouGov indicou, também, que 63% dos evangélicos e 36% dos católicos compartilhavam a mesma opinião, igualmente sustentada por 27% da população em geral.94 Outra pesquisa, realizada em 2014, sobre atitudes associadas à crença religiosa no Reino Unido, revelou que 34% dos católicos e 40% de outros cristãos acredi- tavam que as oportunidades dadas a casais compostos por pessoas do mesmo sexo tinham ido longe demais.95

No censo de 2011, o percentual de muçulmanos que formava casais do mesmo sexo era 1,2%, o mesmo que o de cristãos, em compa- ração a 0,8% de hindus e sikhs. Embora a comunidade judaica não seja incluída na maior parte das pesquisas dessa natureza, uma específica, realizada pelo Institute for Jewish Policy Research, em 2016, com ênfase nesse grupo, revelou que, enquanto 52% dos muçulmanos e 58% dos hindus na idade adulta eram casados, o percentual entre os judeus era de 59%. A comunidade judaica era também a que se mantinha mais endógena quanto ao matrimônio, com 78% das uniões se dando com pessoas da mesma religião, indicando, de acordo com padrões utilizados para avaliar integração, que a comunidade também poderia ser considerada como fechada e conservadora.96 A ênfase na excepcionalidade da comunidade muçulmana é reconhecida pela maior parte do público britânico. De acordo com pesquisa Populus, realizada em 2016, em que 87% dos entre- vistados eram brancos, 57% afirmaram que a discriminação constituía um problema sério para muçulmanos no Reino Unido. Entre os entrevistados mais jovens, com idade entre 18 e 24 anos, o percentual foi de 75%.97

A situação política no Reino Unido se tornou ainda mais tensionada desde o final do governo de Cameron, em 2016. Em um referendo popular capitaneado por ele, em junho daquele ano, o país votou favoravelmente à saída do país da comunidade europeia. A decisão, que teve 52% dos votos, foi entendida por muitos como uma declaração de fervor naciona- lista e expressão de um sentimento de resistência à internacionalização e à imigração. O processo implicou o fortalecimento de partidos políticos como o Brexit Party, liderado por Nigel Farage, líder de extrema direita que antes encabeçava o Partido para a Independência do Reino Unido (UKIP). O partido teve uma vitória sem precedentes na eleição para o Parlamento Europeu em 2019, ganhando 29 cadeiras.

Pesquisa realizada pelo Ipsos Mori em mais de 40 países, em dezembro de 2016, revelou que os britânicos estavam entre as populações que tinham uma percepção mais equivocada das realidades da sua sociedade. Entre os equívocos, estava o fato de que eles superestimavam em muito o número de muçulmanos que havia no país. Em média, os britânicos acreditavam que uma em cada seis pessoas era muçulmana, destoando substancialmente da proporção real, de uma em vinte. A pesquisa também indicou que os britânicos acreditavam que a comunidade muçulmana crescia muito mais rápido do que de fato acontecia, prevendo que, em 2020, ela atingiria 22% da população, com 14 milhões de pessoas.98 O número de muçulmanos no Reino Unido, em 2020, era de pouco menos que 3 milhões. O aumento dessas percepções equivocadas e das reações a elas estão entre os desdobramentos do Brexit e das campanhas veicu- ladas em seu apoio. Entre julho e setembro de 2016, os chamados “crimes de ódio”, envolvendo ofensas raciais ou religiosas, cresceram 27%, se comparados com os três meses anteriores ao Brexit99 e 58%, se compa- rados aos números de 2015.100

Em 23 de julho de 2019, Boris Johnson, membro à direita do Partido Conservador que já havia sido prefeito de Londres, foi eleito como líder. Entre as afirmações consideradas problemáticas de Johnson, muitas foram direcionadas ao Islã e aos muçulmanos. Em 2005, ele escreveu, em um artigo para a revista The Spectator , da qual era colunista, que a islamo- fobia era “uma reação natural” para qualquer não muçulmano que lesse o Alcorão e que essa era, em verdade, “exatamente a reação que o livro tem a intenção de provocar. Julgando-o puramente com base em suas escrituras, sem falar do que é pregado nas mesquitas, o Islã, de todas as religiões, é a mais cruel em termos de seu ódio em relação a não crentes”.101

Em resposta aos ataques de 7 de julho, ainda em 2019, Johnson escreveu, no jornal The Daily Telegraph , que “um esforço enorme de coragem e habilidade” teria que ser feito para “conquistar os muitos milhares de muçulmanos britânicos que estão em um estado semelhante de alienação [aos que cometeram os ataques] e fazê-los entender que sua fé é incompatível com os valores britânicos e com a lealdade ao Reino Unido”. O artigo conclui que lidar com a questão “significa descartar o primeiro tabu em torno do assunto e aceitar que o problema é o Islã”, adicionando: “O que está acontecendo nessas mesquitas e madraças? Quando alguém irá chutar para fora essa religião medieval?”.102 Em 2018, então ocupando o posto de ministro das Relações Exteriores da Inglaterra, Johnson afirmou que o uso do véu facial, a burca, era “ridículo”, e que era incompreensível que mulheres escolhessem sair à rua vestidas como “ninjas”, “ladrões de bancos” ou “caixas de correio”.103 Na semana seguinte à publicação dessas afirmações, incidentes islamofó- bicos tiveram um crescimento de 375%.104 Johnson também tem diversas afirmações racistas e homofóbicas no seu histórico. A despeito disto, sob sua liderança, o Partido Conservador venceu as eleições gerais, em dezembro de 2019, com o maior percentual de maioria no Parlamento desde 1987. Em 31 de janeiro de 2020, foi efetivada a saída do país da União Europeia. A vitória do Brexit e do Partido Conservador, na figura de Boris Johnson, acirrou, no plano do discurso e da ação, as tensões políticas e ideológicas no país. Especialmente para as minorias, ficou patente a percepção de que seus direitos estavam sob ameaça. Entre a comunidade muçulmana, em particular, a eleição de Johnson indicou que, para uma parte significativa de seus conterrâneos, o aviltamento da sua identidade e religião não era uma questão relevante.

As repercussões a longo prazo das políticas do Partido Conservador ainda não podem ser mensuradas. Como foi observado anteriormente, tendo em conta que o ativismo político, mesmo quando conflituoso ou motivado por demandas relacionadas a questões étnicas e religiosas, tem potencial de contribuir para um maior engajamento cívico, a hostilidade ostensiva do partido do governo poderá estimular uma maior mobilização da comunidade muçulmana no país, em vez de intensificar a tendência atual de estigmatização e isolamento. Também, dada a centralidade do Islã para questões de integração e diversidade cultural, a intensidade do debate acerca da religião e das identidades étnicas a ela associadas pode propiciar um tensionamento mais explícito e acentuado em relação a esses temas, em contraponto às dinâmicas veladas ou menos contenciosas que marcaram a tradição das políticas do “caminho do meio”, e impulsionar transfor- mações fundamentais e efetivas no contexto multicultural britânico.

Notas

* Este artigo é um desdobramento de pesquisa de doutorado que resultou na tese intitulada Algo em que acreditar: trajetórias de seguidores do Estado Islâmico na Inglaterra , defendida em 2020 no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia. A investigação contou com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb).
1 Achille Mbembe, “The Society of Enmity”, Radical Philosophy , n. 200 (2016), pp. 33-34. As traduções deste e dos demais textos originais em inglês são da autora.
2 Tariq Modood, “British Muslims and the politics of multiculturalism” in Tariq Modood, Anna Triandafyllidou e Ricard Zapata-Barrero (eds.), Multiculturalism, Muslims and Citizenship: a European Approach (Abingdon: Routledge, 2006), p. 37.
3 Stuart Hall, The multicultural question , Sheffield: Firth Hall, 2000, p. 10.
4 Tomaz Tadeu da Silva, “A produção social da identidade e da diferença” in Tomaz Tadeu da Silva (org.), Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais , 14ª ed. (Petrópolis: Vozes, 2014), pp. 73-102.
5 Néstor García Canclini, Diferentes, desiguais e desconectados , 2ª ed., Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2015, p. 27.
6 Canclini, Diferentes, desiguais e desconectados , p. 17.
7 Will Kymlicka, Multiculturalism: success, failure and the future , Washington: Migration Policy Institute, 2012, p. 5.
8 Kenan Malik, “The failure of multiculturalism: community versus society in Europe”, Foreign Affairs , New York, 18 fev. 2018 .
9 Kathryn Woodward, “Identidade e diferença: uma introdução teórica” in Silva (org.). Identidade e diferença , p. 26.
10 Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade , 12ª ed., Rio de Janeiro: Lamparina, 2015, p. 16. Grifo do autor.
11 Woodward, “Identidade e diferença”, p. 26.
12 Stuart Hall, “The local and the global: globalization and ethnicity” in Anthony King (ed.), Culture, Globalization and the World-System: Contemporary Conditions for the Representation of Identity (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997), pp. 19-40; Hall, A identidade cultural na pós-modernidade , p. 50.
13 Hall, A identidade cultural na pós-modernidade , p. 55.
14 Não obstante o fato de que a maior parte dos grupos de origem sul-asiática que foi para o Reino Unido entre 1950 e 1970 pudesse ser caracterizada como imigrantes econômicos em busca de melhores condições financeiras, uma parcela dos imigrantes era constituída por trabalhadores qualificados e comerciantes bem-sucedidos prove- nientes, majoritariamente, do leste da África. Com a reestruturação social de países como Uganda, Quênia, Tanzânia e Zanzibar no período pós-colonial, muitos asiáticos que haviam se estabelecido no continente africano no período entre 1880 e 1920 foram perseguidos ou expulsos, tendo migrado para o Reino Unido devido à relação singular com o país no contexto da Comunidade Britânica de Nações. Análises circunstan- ciadas do processo encontram-se em: Desh Gupta, “South Asians in East Africa: Achievement and Discrimination”, South Asia: Journal of South Asian Studies , v. 21, n. 1 (1998), pp. 103-136 ; John Mattausch, “From Subjects to Citizens: British ‘East African Asians’”, Journal of Ethnic and Migration Studies , v. 24, n. 1 (1998), pp. 121-141 .
15 Kenan Malik, From Fatwa to Jihad: How the World Changed from the Satanic Verses to Charlie Hebdo , Londres: Atlantic Books, 2012, p. 43.
16 Shane Brighton, “British Muslims, Multiculturalism and UK Foreign Policy: ‘Integration’ and ‘Cohesion’ in and Beyond the State”, International Affairs , v. 83, n. 1 (2007), pp. 1-17 .
17 Kenan Malik, Multiculturalism and its Discontents: Rethinking Diversity after 9/11 (Manifestos for the 21st Century) , Chicago: The University of Chicago Press, 2013, p. 46.
18 “Enoch Powell’s ‘Rivers of Blood’ Speech”, The Telegraph , Londres, 6 nov. 2007 .
19 Malik, From Fatwa to Jihad , p. 49.
20 Malik, From Fatwa to Jihad , p. 57.
21 Malik, Multiculturalism and its Discontents , p. 8.
22 Silva, “A produção social da identidade e da diferença”, p. 82.
23 Bhikhu C. Parekh, The Future of Multi-Ethnic Britain: Report of the Commission on the Future of Multi-Ethnic Britain , Londres: Profile Books, 2000.
24 Bhikhu C. Parekh, “The Future of Multi-Ethnic Britain: Reporting on a Report”, The Round Table , v. 90, n. 362 (2001), pp. 691-700 .
25 Amartya Sen, “Multiculturalism: Unfolding Tragedy of Two Confusions”, Financial Times , Londres, 21 ago. 2006 .
26 Hall, “The Multicultural Question”, p. 3. Uma discussão dos paradoxos das políticas do New Labour a respeito da diversidade cultural e da inclusão, concluindo que sua administração não deu conta da complexidade da gestão do universo multi-étnico britânico, encontra-se em: Les Back, Michael Keith, Azra Khan, Kalbir Shukra e John Solomos, “New Labour’s White Heart: Politics, Multiculturalism and the Return of Assimilation”, The Political Quaterly , v. 73, n. 4 (2002), pp. 445-454.
27 Zygmunt Bauman, Comunidade: a busca por segurança no mundo atual , Rio de Janeiro: Zahar, 2003, pp. 97-98.
28 Hall, “The Multicultural Question”, p. 10.
29 Canclini, Diferentes, desiguais e desconectados , p. 197.
30 Bauman, Comunidade: a busca por segurança no mundo atual , pp. 87-88.
31 Roger Eatwell e Matthew J. Goodwin, The New Extremism in 21st Century Britain, Londres: Routledge, 2010, p. 27; YouGov, Thinking About Religion and Society, Which of the Following Statements Comes Closest to Your View? Londres: YouGov, 2015.
32 Ipsos MORI, A Review of Survey Research on Muslims in Britain , Londres: Ipsos MORI, 2018, p. 77 .
33 Tufyal Choudhury, The Role of Muslim Identity Politics in Radicalisation (a Study in Progress) , Londres: Department of Communities and Local Government, 2007.
34 Department for Communities and Local Government, 2007-08 Citizenship Survey: Identity and Values Topic Report , Londres: Communities and Local Government Publications, 2009, p. 38.
35 Choudhury, The Role of Muslim Identity .
36 Department for Communities and Local Government. 2007-08 Citizenship Survey , p. 31.
37 C. Weedon, “Stuart Hall, the British Multicultural Question and the Case of Western Jihadi brides”, International Journal of Cultural Studies , v. 19, n. 1 (2016), p. 114.
38 Ülkü Güney, “‘We See Our People Suffering’: The War, the Mass Media and the Reproduction of Muslim Identity Among Youth”, Media, War & Conflict , v. 3, n. 2 (2010), pp. 168-181.
39 The Muslim Council of Britain, British Muslims in Numbers: a Demographic, Socio- Economic and Health Profile of Muslims in Britain Drawing on the 2011 Census , Londres: The Muslim Council of Britain, 2015, p. 24.
40 Ipsos MORI, A Review of Survey Research on Muslims in Britain , pp. 62-63.
41 Ipsos MORI, A Review of Survey Research on Muslims in Britain .
42 Eatwell e Goodwin, The New Extremism in 21st Century Britain , pp. 39-41.
43 Manuel Castells, A Era da Informação: economia, sociedade e cultura – O poder da identidade , v. 2, São Paulo: Paz e Terra, 1999, pp. 24-25, grifo do autor.
44 A palavra “jihadismo” deriva de “jihad”, termo que se origina da raiz “jahada”, que significa “fazer esforço” ou “lutar” e adquiriu um significado ambíguo no decorrer da história do mundo islâmico. Há debates entre os muçulmanos a propósito do seu significado em termos linguísticos e jurídicos, assim como em relação às formas como deveria ser praticado, embora as quatro escolas normativas de jurisprudência islâmica concordem quanto à ideia de luta que a palavra expressa. Há quem sustente que jihad denota principalmente um combate contra si mesmo, as próprias emoções, desejos e tentações. O movimento salafi-jihadista contemporâneo considera o jihad – o combate físico em nome de Alá – como o elemento fulcral do Islã. Shiraz Maher, Salafi-Jihadism: the History of an Idea , Londres: Penguin, 2017, pp. 31-32.
45 Louise Archer, “‘Muslim Brothers, Black Lads, Traditional Asians’: British Muslim Young Men’s Constructions of Race, Religion and Masculinity”, Feminism and Psychology , v. 11, n. 1 (2001), pp. 79-105 ; Archer, Race, Masculinity and Schooling: Muslim Boys and Education , Maidenhead: Open University Press, 2003.
46 C. Dwyer, “Contradictions of Community: Questions of Identity for Young British Muslim Women”, Environment and Planning A: Economy and Space , v. 31, n. 1 (1999), pp. 53-68 ; Kim Knott e Sajda Khokher, “Religious and Ethnic Identity Among Young Muslim Women in Bradford”, New Community , v. 19, n. 4 (1993), pp. 593-610 .
47 Sarah Glynn, “Bengali Muslims: The New East End Radicals?”, Ethnic and Racial Studies , v. 25, n. 6 (2002), p. 980 .
48 Raffaello Pantucci, We Love Death As You Love Life: Britain’s Suburban Terrorists , Londres: C, Hurst & Co, 2015, p. 101.
49 Decisão sobre um ponto da lei islâmica tomada por uma autoridade estabelecida.
50 Samuel Huntington, The Clash of Civilizations and the Remaking of the World Order , Nova York: Simon & Shuster, 1996.
51 Modood, “British Muslims and the Politics of Multiculturalism”.
52 Yunas Samad, “The Politics of Islamic Identity Among Bangladeshi and Pakistanis in Britain” in Terence Ranger, Yunas Samad e Ossie Stuart (eds.), Culture, Identity and Politics: Ethnic Minorities in Britain (Aldershot: Avebury, 1996), pp. 90-98.
53 Pantucci, We Love Death As You Love Life , p. 81.
54 Brighton, “British Muslims, Multiculturalism and UK Foreign Policy”, p. 7.
55 Malik, From Fatwa to Jihad , p. 125.
56 Inayat Bunglawala, “I Used to Ve a Book Burner”, The Guardian , Londres, 19 jun. 2007 .
57 Malik, From Fatwa to Jihad , p. 33.
58 Um dos fundadores, Kalim Siddiqi, foi quem informou Khomeini sobre a publicação dos Versos Satânicos .
59 Malik, From Fatwa to Jihad , p. 128.
60 Malik, From Fatwa to Jihad , p. 120
61 Malik, From Fatwa to Jihad , p. 121.
62 Alison Pargeter, The New Frontiers of Jihad: Radical Islam in Europe , Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2013, p. 199.
63 Choudhury, The Role of Muslim Identity .
64 Paul Statham, “New Conficts About Integration and Cultural Diversity in Britain” in René Cuperus, Karl Duffeck e Johannes Kandel (eds.), The Challenge of Diversity: European Social Democracy Facing Migration, Integration, and Multiculturalism (Innsbruck: StudienVerlag, 2003), pp. 126-149.
65 “Permitido” ou “autorizado” em árabe, halal aqui se refere a alimentos que muçul- manos podem consumir de acordo com a lei islâmica, ou sharia .
66 Rahsaan Maxwell, “Muslims, South Asians and the British Mainstream: A National Identity Crisis?”, West European Politics , v. 29, n. 4 (2006), pp. 736-756 .
67 Pnina Werbner, “Divided Loyalties, Empowered Citizenship? Muslims in Britain”, Citizenship Studies , v. 4, n. 3 (2000), pp. 307-324 .
68 Choudhury, The Role of Muslim Identity , p. 6.
69 Modood, “British Muslims and the Politics of Multiculturalism”, pp. 38-39.
70 Modood, “British Muslims and the Politics of Multiculturalism”, p. 37.
71 Talal Asad, Secular Translations, Nation-State, Modern Self, and Calculative Reason , Nova York: Columbia University Press, 2018, p. 36.
72 Modood, “British Muslims and the Politics of Multiculturalism”, p. 45.
73 Brighton, “British Muslims, Multiculturalism and UK Foreign Policy”, p. 2.
74 Nicholas Watt, “Blair Launches Stinging Attack on ‘Absurd’ British Islamists”, The Guardian , 1 jul. 2007 .
75 Brighton, “British Muslims, Multiculturalism and UK Foreign Policy”, p. 11.
76 Arun Kundnani, The Muslims Are Coming! Islamophobia, Extremism, and the Domestic War on Terror , Londres: Verso, 2014, p. 116.
77 Francesco Ragazzi, “Suspect Community or Suspect Category? The Impact of Counter- Terrorism as ‘Policed Multiculturalism’”, Journal of Ethnic and Migration Studies , v. 42, n. 5 (2016), pp. 724-741 .
78 Ragazzi, “Suspect Community or Suspect Category?”, p. 732.
79 Imran Awan, “‘I’m a Muslim Not an Extremist’: How the Prevent Strategy Has Constructed a ‘Suspect’ Community”, Politics & Policy , v. 40, n. 6 (2012) ; Tufyal Choudhury e Helen Fenwick, The Impact of Counter-Terrorism Measures on Muslim Communities , Durham: Durham University, 2011.
80 Choudhury e Fenwick, The Impact of Counter-Terrorism Measures on Muslim Communities , p. 74.
81 Ragazzi, “Suspect Community or Suspect Category?”, p. 732.
82 Campanha recente intitulada YouGov, lançada pela organização HopeNotHate, que entrevistou 5.200 indivíduos sobre questões referentes ao multiculturalismo no Reino Unido, evidencia que, de 2011 até 2018, essa visão se fortaleceu. Dos entrevistados, 43% afirmaram que a relação entre as diferentes comunidades culturais e étnicas no país piorariam, e mais de dois terços consideravam que o multiculturalismo não estava funcionando no país. Mark Townsend, “Multiculturalism Has Failed, Believe Substantial Minority Of Britons”, The Guardian , 14 abr. 2018 .
83 Dos entre 3 mil e 5 mil europeus que migraram para a Síria, cerca de 800 eram britânicos. Não se sabe ao certo quantos se vincularam ao Estado Islâmico ou a outros grupos análogos na região. House of Commons, Home Affairs Committee, Radicalisation : The Counternarrative and Identifying the Tipping Point (Eighth Report of Session 2016-17) , London: House of Commons, 2016, p. 3.
84 Matt Falloon, “Multiculturalism Has Failed in Britain – Cameron”, Reuters , Londres, 4 fev. 2011 ; “State Multiculturalism Has Failed, Says David Cameron”, BBC News , Londres, 5 fev. 2011 .
85 “Prevent Will Have a Chilling Effect on Open Debate, Free Speech and Political Dissent”, Independent , Londres, 10 jul. 2015 .
86 Mbembe, “The Society of Enmity”, p. 23.
87 Mbembe, “The Society of Enmity”, p. 28.
88 Mbembe, “The Society of Enmity”, p. 23.
89 Richard Ford, Faisal Hanif e Frances Gibb, “Muslims Are Not Like Us, Equality Chief Says”, The Times , Londres, 27 jan. 2016 ; El Islam, “The 16 Times Mainstream Media Gave a Voice to Anjem Choudary to Spout Hate”, Middle East Eye , Londres, 18 ago. 2016 .
90 Miqdaad Versi, “What Do Muslims Really Think? This Skewed Poll Certainly Won’t Tell Us”, The Guardian , 12 abr. 2016 .
91 ICM Unlimited, ‘What Muslims Want’ : A Survey of British Muslims by ICM on Behalf of Policy Exchange , Londres: ICM Unlimited, 2016.
92 Ipsos MORI, A Review of Survey Research on Muslims in Britain .
93 “Homosexuality”, British Social Attitudes , 2012 .
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