ARTIGOS
A ESPETACULARIZAÇÃO DO SOFRIMENTO DOS OUTROS PELAS FOTOGRAFIAS DA HANSENÍASE NA ÁFRICA DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX *
THE SPECTACULARIZATION OF THE SUFFERING OF OTHERS IN LEPROSY PHOTOS FROM AFRICA, IN THE FIRST HALF OF THE 20TH CENTURY
A ESPETACULARIZAÇÃO DO SOFRIMENTO DOS OUTROS PELAS FOTOGRAFIAS DA HANSENÍASE NA ÁFRICA DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX *
Afro-Ásia, núm. 64, pp. 140-182, 2021
Universidade Federal da Bahia
Recepção: 2 Maio 2021
Aprovação: 10 Maio 2021
Financiamento
Fonte: CNPq
Número do contrato: 303543/2020-5
Financiamento
Fonte: CAPES
Número do contrato: 88881.171249/2018-01
Financiamento
Fonte: PIBIC
Número do contrato: 202010140/UFSC
Descrição completa: * O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por meio de bolsa produtividade em pesquisa (proc. 303543/2020-5) e da Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (CAPES) (proc. 88881.171249/2018-01). O autor agradece ainda a Henrique Germano Etges, bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) e estudante vinculado ao projeto de pesquisa A perscruta dos corpos: Impérios coloniais e medicina tropical em perspectiva global (proc. 202010140/UFSC).
Resumo: Na iconografia colonial sobre a África, há um conjunto heteróclito de fotografias sobre “corpos enfermos”. A fotografia foi um recurso visual eficiente para justi- ficar ideologicamente a “missão civilizatória” de um colonialismo autoproclamado “altruísta” e “científico”. A análise de fotografias sobre a hanseníase no continente africano na primeira metade do século XX permite deslindar a relação entre a construção imagética de uma “África leprosa” e a coalescência de interesses de missionários, médicos e demais autoridades coloniais. Com base em imagens de arquivos estrangeiros, o estudo aborda a visualidade de uma representação negativa da alteridade africana, para a qual a fotografia emprestou sua “objetividade” e concorreu para a espetacularização do sofrimento dos outros.
Palavras chave: África, Hanseníase, Fotografia, Propaganda, Colonialismo.
Abstract: Colonial images of Africa include a strange set of photos depicting “sick bodies”. Photography was an efficient visual resource in constructing anideological justifi- cation of the “civilizing mission” of a self-proclaimed “altruistic” and “scientific” colonialism. By analyzing photographs of Africans suffering from Hansen’s disease in the first half of the twentieth century, we unravel the relationship between this “leprous Africa” and the coalescing interests of missionaries, physicians, and colonial authorities. Based on images from international archives, this study approaches the visual derogatory representation of African alterity, to which photography lent its “objectivity” and contributed to the spectacularization of the suffering of others.
Keywords: Africa, Hansen’s disease, Photography, Propaganda, Colonialism.
Desde o último quartel do século XIX, a retórica de uma fraternidade universal manifesta-se em discursos, na prosa e na poesia de escritores como Eça de Queiroz, Victor Hugo e Rudyard Kipling. Se Eça de Queirós criticou a colonização portuguesa da África, ele não abriu mão da ideologia liberal, mantendo-se coerente com sua ideia de um sistema colonial alternativo.1 O autor de Os Maias defendeu uma ocupação efetiva e fez a apologia da “emigração como força civilizadora”.2 Por seu turno, Victor Hugo fez a apologia moral da colonização da África num discurso muito aplaudido por uma centena de pessoas durante um banquete em 18 de maio de 1879, quando das comemorações da abolição da escravatura. O autor de Os Miseráveis defendeu a missão civilizatória das “nações livres” a ser levada não pela conquista, mas pela fraternidade.3 No poema O Fardo do Homem Branco ( The White Man’s Burden ), o escritor vitoriano Rudyard Kipling fez, igualmente, a apologia moral da missão civilizatória dos impérios coloniais.4 Segundo esses escritores, as “raças superiores” tinham um dever moral perante as “raças inferiores”.
O engajamento moral de homens e mulheres em campanhas abolicionistas, pacifistas e mesmo anticoloniais não impedia que, entre eles e elas, não houvesse a convicção nessa fraternidade universal, uma abstração presente ainda em muitos discursos anarquistas e socialistas da primeira metade do século XX. O altruísmo constava também entre as motivações pessoais de quem tinha uma posição mais conservadora, como os missionários e as missionárias de confissão católica, luterana, metodista ou presbiteriana. O altruísmo esteve ainda presente entre muitos “médicos do mato”. Porém, humanismo, filantropia e altruísmo não eram imunes ao etnocentrismo e se ajustavam, com frequência, a modelos autoritários.
Desde as campanhas militares no continente africano do final do século XIX, os impérios coloniais lograram uma hegemonia que não dependeu apenas do seu armamento bélico, mas também do arsenal fornecido pela indústria farmacêutica, pela biomedicina e pela, não menos importante, produção de imagens. No início do século XX, a medicina militar, a medicina colonial e a medicina tropical podiam se confundir na práxis de médicos europeus residentes na África. As campanhas de higiene e saúde, as políticas sanitárias e as múltiplas ações de médicos tanto na profilaxia quanto no tratamento de doenças como malária, tripa- nossomíase humana africana e hanseníase deram azo para uma retórica da “colonização pacífica”, cuja narrativa visual esteve assente nas imagens, inclusive de fotografias científicas.
No campo da medicina tropical, o discurso do “fardo do homem branco” era declinado em termos científicos, como pode ser comprovado por meio de certos pronunciamentos emitidos durante o Primeiro Congresso de Medicina Tropical da África Ocidental, realizado em Luanda em 1923.5 Na altura, a propalada “assistência médica aos indígenas” já era um dos principais argumentos da propaganda colonial. Algumas doenças, como a tripanossomíase humana africana e a hanseníase, prestaram-se mais que outras para alguns médicos, missionários e governadores justificarem o domínio colonial. Para a propaganda colonial, legiões de “sonolentos” e de “leprosos” colocavam em risco o futuro africano. O combate às patologias exóticas era uma das formas retóricas para os impérios coloniais validarem ideologicamente a missão civilizatória no continente africano. É por meio dessa chave de leitura que se pode compreender a visualidade de tantas fotografias de corpos enfermos, já que as noções de “corpos enfermos” e de “doença” têm por referência a medicina ocidental que, por sua vez, serviu para a percepção cognitiva do olhar dos fotógrafos europeus diante dos corpos dos outros.
Algumas imagens do sofrimento dos outros, como as fotografias da missionária Alice Seeley Harris, serviram para denunciar as exações e o terror do colonialismo e para a causa dos direitos humanos.6 Outras, porém, concorreram para legitimar a “colonização pacífica” na África. Nesse caso, ao invés de imagens de mãos decepadas, de corpos trucidados, de prisioneiros acorrentados ou de potentados exilados, as fotografias de corpos enfermos mostravam, com sua objetividade dúbia, o quanto os africanos dependiam dos avanços no campo da higiene e da medicina tropical para se livrar de “suas chagas”.
As fotografias do sofrimento dos outros não começaram na África, mas as fotografias de corpos enfermos e anômalos em várias regiões do continente africano sob domínio colonial fizeram parte de uma narrativa visual voltada a causas humanitárias e, de forma aparentemente contra- ditória, para a manutenção do colonialismo. A partir da primeira década do século XX, multiplicaram-se as imagens do “sofrimento africano” associado a doenças como tripanossomíase humana africana, hanseníase, elefantíase e bócio, patologias cujos efeitos sobre os corpos podiam ser facil- mente identificados nas fotografias. Essas imagens de corpos enfermos e anômalos foram publicadas em revistas científicas, em relatórios médicos, na imprensa periódica ilustrada e exibidas em grande formato em diversas exposições coloniais. Elas foram também editadas sob a forma de cartão postal. Dessas imagens em diferentes suportes materiais, constituiu-se o corpus iconográfico que serviu para as análises a seguir.
No quadro das análises das fontes visuais, destaca-se um número expressivo de imagens de corpos enfermos que serviu à propaganda colonial durante a primeira metade do século XX. Em geral, as fotografias de corpos enfermos ou de médicos em ação ou ainda de enfermarias, leprosários ou hospitais na África eram extraídas de seu contexto original e recebiam um novo significado em novos circuitos sociais. Muitas dessas imagens ressaltavam a missão civilizatória de uma colonização “altruísta” e “científica” e eram veiculadas em diversos suportes materiais, como cartazes de divulgação de exposições ou congressos, selos comemorativos ou série de cartões postais.
Cabe advertir o público leitor que a ausência de imagens nas próximas sessões do artigo deve-se a uma opção ética. Muitas fotografias de corpos em situação colonial têm suscitado questionamentos sobre eventuais (ab)usos dessas imagens por parte de certos profissionais ou simplesmente pelo apelo sensacionalista de uma “História Barnum”.7 Como exemplo, o livro Sexe, race & colonies recebeu críticas desde a sua publicação em 2018.8 No caso de imagens de corpos em situação colonial e que, geralmente, representam pessoas em condição de subal- ternidade, tem-se o dever – ainda que póstumo – de zelar pelo respeito à dignidade humana de outrem.9 Nesse sentido, preferi não reproduzir as imagens e seguir a escolha já adotada por Susan Sontag em seu ensaio sobre fotografias de guerras e também por historiadoras que trataram da visualidade em contexto colonial.10
Da análise das fotografias sobre a hanseníase em espaços coloniais, foi possível identificar um regime visual comum que se articula à norma dos discursos de missionários, médicos e administradores coloniais. Procuro mostrar nas próximas sessões do artigo algumas mudanças na representação iconográfica da hanseníase na África a partir da seguinte periodização trifásica: 1) antes de 1897; 2) entre 1897 e 1941; e 3) após 1941. Ao lado das imagens da tripanossomíase humana africana, aquelas da hanseníase concorreram para um tétrico espetáculo africano que revela, através do sofrimento dos outros, uma imagem refletida, talvez sadomaso- quista, do suposto “fardo do homem branco”.
Apontamentos sobre a hanseníase no continente africano
Desde o primeiro lustro do século XX, defendia-se a tese de que a lepra era originária da Arábia ou do Egito e que ela teria se dispersado lenta- mente por todo continente africano.11 O chefe do serviço de microbiologia tropical do Instituto Pasteur indicou a diáspora dos judeus de Jerusalém no século II como a causa da dispersão da lepra.12 O mapeamento genético do bacilo Mycobacterium leprae feito por Stewart Cole e sua equipe do Instituto Pasteur13 tem ancorado alguns estudos recentes sobre a história da hanseníase e de sua dispersão.14
Pelas cáfilas do deserto, não apenas mercadorias circulavam, mas também gentes portadoras de vírus e bactérias. O bacilo Mycobacterium leprae deveterchegadoà África subsaariana pelasmesmas rotas daexpansão islâmica. No reino do Marrocos, a chamada djoudam era conhecida, no mínimo, desde o século XII, quando bairros foram construídos para isola- mento dos doentes nas cidades de Fez e Marraquexe.15
Durante sua viagem pelo império do Mali, Ibn Battuta encontrou egípcios, sírios e iemenitas entre os habitantes de cidades à margem do rio Níger. Essa presença estrangeira atesta fluxos migratórios de longa distância. Considerando o longo período de incubação e do início dos primeiros sintomas da doença, parece difícil mapear a geografia da dispersão das hanseníases paucibacilar e multibacilar.16
No início do século XIX, o médico francês Dominique Larrey foi testemunha ocular da presença de “muitos leprosos na grande Cairo e que se mantinham isolados do resto da sociedade”.17 Além de distinguir a lepra da elefantíase, Dominique Larrey considerou a primeira uma doença contagiosa. Nota-se em seu relato que a segregação dos doentes já tinha o aval dos antigos médicos árabes, isto é, “de fazer isolar os leprosos”.18 O mesmo acontecia no Marrocos, onde, além de leprosários urbanos, havia uma organização rural de profilaxia da doença sob a forma de “aldeias de segregação estabelecidas por tribos”, denominadas harats ou zeribas .19
Do Egito ao Marrocos, a medicina árabe já havia adotado o isola- mento dos portadores da chamada djoudam muito antes dos primeiros leprosários, lazaretos ou gafarias dos domínios coloniais na África subsaa- riana. Não era um isolamento total e os doentes podiam sair e voltar, desde que respeitassem algumas normas. Alguns médicos europeus consi- deraram que essa tolerância dos muçulmanos podia ter “consequências funestas na África”, na medida em que o islamismo ganhava terreno no continente africano. Atribuía-se ainda ao comércio “árabe” de pessoas escravizadas a dispersão da lepra.20 Desse modo, o discurso médico se afinava ao diapasão da campanha antiescravagista do cardeal Charles Lavigerie (1825-1892), que chegou a influenciar a Convenção de Bruxelas de 1890. Como núncio apostólico para missões do Saara e do Sudão, Lavigerie fundou a Sociedade dos Missionários da África em 1868 e, no ano seguinte, as Irmãs Missionárias de Nossa Senhora da África.
Se alguns médicos e missionários deram vazão aos seus precon- ceitos ao ver na sociedade, na economia e na cultura islâmicas as responsáveis pela dispersão de doenças como lepra e sífilis no continente africano, outros dirigiram suas críticas à própria conquista colonial e apontaram a construção de estradas de ferro e os trabalhos sazonais – que redundavam no deslocamento de muita gente – como causas de novos surtos epidêmicos e do aumento da transmissão de doenças em várias partes no continente.
Na África setentrional, portadores do mal de Hansen podiam chegar pelos portos mediterrâneos. Parece ter sido o caso em Argel, onde a lepra foi diagnosticada entre alguns imigrantes espanhóis.21 Mas outros doentes podiam vir pelas rotas de comércio através do Saara. Ao menos foi o que aconteceu com um jovem hauçá, escravizado e trazido por berberes para o Marrocos, onde foi vendido para um árabe que o levou para a Argélia. O jovem hauçá havia deixado sua terra natal aos 12 anos de idade e deveria ter 25 anos quando o diagnóstico clínico foi verificado pelo exame bacte- riológico. Ainda segundo o médico militar de Oran, havia 5 ou 6 anos que o jovem percebera os primeiros sintomas do mal de Hansen, quando já vivia entre os Beni-Guil ao sul de Oran.22 Devido ao longo período de incubação, é difícil saber se a infecção ocorreu em Timbuktu, onde foi comprado e trazido para o Tafilalet, ou depois de atravessar a fronteira entre o Marrocos e a Argélia, ou ainda em outro lugar.
A hanseníase na África subsaariana já tinha sido observada pelo médico, missionário e explorador David Livingstone. Outros missionários atuaram nos primeiros lazaretos ou leprosários. Em 1888, um asilo para leprosos foi fundado pela missão católica em Bagamoyo, sendo o único na então África oriental alemã até 1895. Depois foram erguidos os leprosários de Quiloa (1898) e de Lindi (1901), que tinham regime de internato.23 Em 1901, os capuchinhos inauguram o leprosário de Santo Antônio em Harar, na Etiópia.24
Também na ilha de Madagascar foram construídos leprosários pela London Missionary Society (LMS), pelos missionários luteranos da Noruega e pelos padres da Companhia de Jesus durante o reinado de Ranavalona II. Em 1864, publica-se um primeiro artigo sobre a lepra em Madagascar num periódico científico, no qual o autor, médico e missio- nário da LMS, apresenta um primeiro quadro nosológico da lepra no reino malgaxe.25 Depois da conquista francesa em 1895, novos leprosários foram criados em várias províncias como Tananarive, Manjakandriana e Miarinarivo, entre outras. Durante o império colonial francês, outros leprosários foram erguidos em ilhas do arquipélago da Nova Caledônia, na Guadalupe e na Guiana.26 Como todas as demais regiões da África sob domínio colonial, a África do Sul adotou o isolamento compulsório dos portadores do mal de Hansen.27 Uma de suas mais antigas “colônias de leprosos” foi a de Robben Island. Em Moçambique, um leprosário foi construído na ilha dos Elefantes.28
Cabe ressaltar que os leprosários construídos a partir de 1897 seguiam uma nova orientação médica cuja ênfase era na “profilaxia científica e racional”.29 Para definir um conjunto de medidas para conter a expansão da doença, foi realizada a Primeira Conferência Internacional sobre a Lepra na capital do império alemão entre os dias 11 e 16 de outubro de 1897.30 A proposta do isolamento foi aprovada como o melhor meio para impedir a propagação da doença.31
Com a conquista dos impérios coloniais, houve uma “redescoberta da lepra”.32 Médicos militares se deparam com a doença que tinha sido quase erradicada na Europa. A lepra passou a ser uma doença situada na intersecção da medicina militar, da medicina colonial e da medicina tropical. Durante o encontro de Berlim em 1897, houve uma série de comunicações sobre as diferentes abordagens nas colônias da África, da Ásia e da Oceania para tratamento e profilaxia da doença. Da experiência colonial francesa, o doutor Besnier e outros representantes da medicina colonial apresentaram alguns aspectos das medidas de isolamento, como profilaxia e outras de caráter preventivo e concernentes à higiene e ao serviço sanitário. Sobre a experiência colonial britânica, pode-se inferir que a segregação dos “leprosos” tinha múltiplas influências. Durante o protetorado britânico no Egito, o isolamento como método profilático já praticado pela medicina árabe pode ter sido remodelado segundo a lógica do panóptico como ocorreu na Índia, onde métodos repressivos fizeram do “leproso” mais um prisioneiro do que um doente.33
Entre os bacteriologistas de renome que estiveram presentes na conferência de Berlim, destacaram-se o norueguês Armaeur Hansen e o alemão Robert Koch. Este último foi responsável por uma missão de estudo na África oriental cujo relatório contém algumas instruções para a construção e o funcionamento de leprosários nas colônias alemãs. O bacteriologista alemão enfatizou a necessidade de o leprosário prover seu próprio sustento. Esse “modelo alemão” não é tão original como alegam alguns historiadores.34 Embora seja diferente do “modelo havaiano”,35 o “modelo alemão” tinha precedente na própria África, como era o caso das harats ou zeribas no Marrocos. Se há quem considera o “modelo alemão” de leprosário ( Lepraheim ) na África como uma forma “mais humana”,36 cabe lembrar que a “autossustentabilidade”, proporcionada por meio de uma agricultura de subsistência ou de outras atividades reali- zadas pelos internos (ainda) em condições de trabalhar, obedecia a uma ratio econômica, a mesma que permitia ao interno sair para mendigar. Dos campos de concentração da então chamada África do sudoeste alemã (atual Namíbia), os prisioneiros saíam para trabalhos compulsórios. Assim como no leprosário do “modelo alemão” havia a escolha, entre os doentes, de um “auxiliar” para a vigilância da ordem institucional, nos campos de concentração havia a figura do Kapo , ou seja, um prisioneiro com certa função atribuída que auxiliava na supervisão dos demais prisioneiros, reduzindo o custo do sistema prisional com funcionários externos.37 Mais uma vez, vale recordar que o “modelo alemão” dos leprosários na África sob domínio colonial, assim como os campos de concentração de Shark Island e outros montados durante a guerra dos alemães contra os grupos herero e nama no sudoeste africano, foram experiências modernas de racionalização dos custos e do controle da vida e da morte dos outros. Em suma, elas antecederam a experiência da Shoah como horror moderno.38 Nos últimos anos, uma tendência na história dos impérios coloniais tem sido as novas abordagens a partir dos estudos em cultura visual. O mesmo acontece com a valorização da fotografia numa nova abordagem da história da medicina,39 notadamente para as intercepções entre história, medicina e fotografia em contexto colonial.40
Com base nas reflexões de Susan Sontag em seu livro Diante da dor dos outros , busca-se, a seguir, tratar das imagens da hanseníase em contexto colonial e seus significados durante a primeira metade do século XX. A primeira metade do século XX foi um período de desen- volvimento não só da leprologia, mas também da medicina tropical e da eugenia. Esta última foi um dos suportes da ideologia racista da supremacia branca. Nesse período, difunde-se a ideia de “perigo” racial e alguns médicos eugenistas ressaltavam a necessidade de que fossem adotadas políticas de segregação, de controle da sexualidade e mesmo de esterilização. O isolamento e mesmo a esterilização dos leprosos não foram apenas defendidos nas colônias, como demonstram as esterili- zações de leprosos no Japão imperial.41
A hanseníase na historiografia dos impérios coloniais
Durante as primeiras décadas do século XX, a medicina colonial dependeu do apoio de missionários estrangeiros e de auxiliares africanos para desenvolver a chamada “assistência médica aos indígenas”.42 Na altura, a hanseníase já era tratada como uma doença infectocontagiosa, sendo o isolamento dos doentes uma prática generalizada pelos impérios coloniais e por outros impérios como a Etiópia e os Estados Unidos. A experiência “havaiana” é um exemplo de que o modelo das “ilhas doentes” não foi um apanágio do colonialismo francês e tampouco dos impérios coloniais.43 Em 1909, foi realizada a II Conferência Internacional sobre a Lepra em Bergen, na Noruega. Um balanço das medidas de isolamento dos doentes em diferentes leprosarias, inclusive na África, foi apresentado durante o evento. Em 1911, um professor do Instituto de Medicina Colonial, Édouard Jeanselme, pleiteava pela interdição da entrada de “imigrantes leprosos” nas colônias e nos países sob protetorado, pelo isolamento de “leprosos indigentes ou vagabundos” e pela proibição aos “leprosos deixados livres” do exercício de algumas profissões.44
Nas primeiras décadas do século XX, os métodos de prevenção de massa adotados pela medicina colonial em várias partes da África não se mostravam eficazes no “combate à lepra” e acirravam algumas tensões inerentes ao colonialismo. Alguns relatos sobre as experiências de “colônias agrícolas” no Congo belga ou de novos tratamentos na leprosaria de Yedjang, na circunscrição de Ebolowa, nos Camarões,45 foram apresentados na III Conferência Internacional de Leprologia, realizada em Estrasburgo no final de julho de 1923. A legislação na “luta contra a lepra” foi igualmente discutida no último dia do evento.46
No Congo belga, o governo apoiou a Cruz Vermelha na insta- lação de colônias agrícolas de leprosos desde 1927. Entre outras missões, a American Presbyterian Congo Mission e a Missão Católica de Tshumbe- Santa Maria também promoveram a “luta contra a lepra” no Congo belga.47 Novas leprosarias foram criadas na década de 1930 em diversas regiões do continente africano. Algumas instituições de leprologia tornam-se novos semióforos da modernidade colonial. Aumenta-se o número de profissionais, torna-se o serviço mais laico e desenvolve-se a propaganda colonial com destaque para a assistência médica aos indígenas em filmes documentários, discursos oficiais e exposições coloniais.
Essa ênfase “humanitarista” da propaganda colonial não é anódina, pois ela faz parte do mesmo contexto de reformas sociais que ocorriam nos impérios coloniais. Se a propaganda missionária foi a primeira a explorar a fotografia do sofrimento dos outros, a propaganda colonial faria ao seu modo a apologia da assistência médica aos indígenas a partir do segundo quartel do século XX. Embora o uso das fotografias de corpos enfermos para fins de propaganda colonial e/ou missionária tenha sido abordado em alguns trabalhos,48 as imagens da hanseníase na África não foram tratadas sob um prisma de histórias entrelaçadas – de impérios coloniais, de medicinas militar, colonial e tropical, de missões católicas e protestantes – e em uma análise transversal da visualidade que regeu os múltiplos usos das fotografias do sofrimento alheio na primeira metade do século XX.
Os primeiros bosquejos de uma história da lepra no continente africano foram escritos por médicos europeus afinados à ideologia dos impérios coloniais. Da lepra na África sob domínio colonial francês, encarregavam-se médicos franceses,49 sob domínio colonial alemão, os médicos alemães,50 e o mesmo acontecia na história da medicina de outros impérios coloniais.51 Nas décadas seguintes, afirma-se essa tendência de abordagem da hanseníase nas colônias ou da política colonial na “luta contra a lepra”.52 Em meados do século XX, os médicos membros da Associação Internacional da Lepra tinham à sua disposição dados sobre a hanseníase para todo o continente africano.53 Alguns deles publicavam artigos científicos com apontamentos para uma história da lepra e não raro com imagens fotográficas de estudos clínicos. Essas fotografias nem sempre eram feitas por fotógrafos profissionais e muitos clichês eram feitos pelos próprios médicos. Havia ainda a fotomicrografia, que exigia um equipamento especial e que foi muito utilizada em estudos sobre a lepra.
Na historiografia pós-colonial, a palavra lepra aparece em vários volumes da História Geral da África . Todavia, nenhum capítulo dos oito volumes dessa coleção da UNESCO foi dedicado à história da doença e de sua dispersão pelo continente africano. Alguns historiadores já tinham tratado de doenças e dos saberes medicinais na África.54 Não tardou para a historiografia começar a tratar das relações entre impérios, medicina colonial e doenças tropicais.55 Mas essa tendência historiográfica consolida-se apenas no final do século XX.56
A historiografia sobre a lepra na África desde o final do século XIX até meados do século XX seguiu a mesma tendência supracitada.57
Nos últimos anos, surgiram novas miradas sobre a história da hanseníase na África, como a abordagem em história ambiental que trata da construção do império na Etiópia a partir da lepra.58 Outra tendência importante nos estudos da hanseníase foi a perspectiva de uma história global.59 Todavia, as fotografias não foram levadas muito em conta, como fontes visuais ou objetos de estudo, na maioria desses trabalhos. Geralmente, a fotografia aparece como mera ilustração.
Para as diferentes percepções das “doenças” na África, a investigação em história tem recebido importantes contribuições da antropologia,60 inclusive para o estudo da lepra,61 o que fomenta uma abordagem interdisciplinar ou multidisciplinar para tratar a saúde e seus diferentes males na história da África.62
Os múltiplos usos das fotografias
As fotografias de corpos enfermos em situação colonial foram feitas por diversos motivos e para distintos fins. No caso da hanseníase, algumas delas foram realizadas durante missões científicas, outras, durante inspeções médicas de rotina ou em visitas a leprosários, lazaretos ou gafarias. Fotografias de portadores do mal de Hansen serviram para estudar a evolução da doença, para análises clínicas e para ilustrar relatórios médicos, entre outras finalidades.
Fotografias de leprosarias e de portadores do mal de Hansen foram publicadas nos anais da III Conferência Internacional de Leprologia, realizada em Estrasburgo em 1923.63 Outros usos das imagens de enfermos foram para exposição em congressos. Durante o V Congresso Internacional da Lepra, realizado em Havana, em 1948, o presidente da Associação Internacional da Lepra informou o seguinte:
Além das habituais exposições de imagens, compostas principalmente por fotografias e publicações, ocorreram durante toda a semana demons- trações ativas de equipamento científico. O Sr. Ralph Creer e a Sra. Cora Turney Burgess, do Comitê de Fotografia do Memorial Leonard Wood, demonstraram equipamentos selecionados recomendados para fotógrafos médicos e exemplos do que pode ser feito na ilustração de lesões de hanseníase.64
Além das finalidades de estudos clínicos, algumas fotografias da hanseníase foram usadas para a propaganda missionária e colonial. Uma profusão dessas imagens chama atenção pela ênfase dada ao altruísmo e ao serviço religioso no quadro dos cuidados com os doentes. Sabe-se o quanto a educação e a saúde foram setores em que as missões religiosas tiveram importante atuação na África sob domínio colonial.65 Cabe, mais uma vez, lembrar que o humanitarismo e o altruísmo podiam se manifestar em situações marcadas pela visão eurocêntrica de médicos e missionários.
As imagens da hanseníase e o conhecimento médico
Sob o título Égypte et Palestine e subtítulo Observations médicales et scientifiques , foi publicado um dos primeiros relatórios de medicina sobre a lepra numa das regiões conhecidas como foyer da moléstia desde tempos bíblicos. Editada em Paris, em 1867, por Victor Masson et Fils, essa obra póstuma reúne as observações do doutor Ernest Godard (1826-1862).66 Juntamente com o relato de viagem do médico francês, foi editado um atlas com 28 pranchas ilustrativas a partir de dezenas de seus croquis e desenhos de corpos enfermos e anômalos, inclusive corpos mutilados de eunucos e leprosos. Se as litogravuras de Léveillé foram feitas a partir de desenhos e croquis do médico viajante, nota-se que alguns deles eram cópias de fotografias, como é o caso das pranchas de número 14 e 17, respectivamente dos doentes Sitli-Amneh e Mohamed-Enani. Em ambas as pranchas, os estigmas da lepra são visíveis.
Algumas observações de etnomedicina de Godard revelam a mirada ocidental sobre o “corpo oriental” como um corpo enfermo. Suas observações cumprem com o objetivo de sua missão oficial ao Egito e ao Oriente Médio, pois o ministro do Estado francês lhe confiara a tarefa de estudar “as causas físicas e morais que mantêm as populações do Egito e da Síria no estado de inferioridade relativa […]”.67 Assim, o “orientalismo” de Godard é emblemático de uma medicina ocidental que contribuiu – assim como a literatura68 – para essa visão do “corpo oriental” como um corpo enfermo.69 Ao mesmo tempo que Godard colimou os corpos de homens e mulheres do Egito através de sua mirada “orientalista”, ele tratou-os também como corpos construídos por biografias, na medida em que costumava não deixar seus modelos anônimos, como demonstram suas pranchas ilustrativas de eunucos e de portadores de moléstias, em que constam os nomes das pessoas representadas. O médico, fotógrafo e desenhista francês foi um dos fundadores da Sociedade de Antropologia em Paris e seu relato de viagem pelo Egito e pela Palestina se inscreve numa etnografia e numa etnomedicina que – apesar da observação “racia- lizada” – considera aspectos da biografia individual dos outros.
Em 1881, outras imagens da hanseníase foram publicadas no livro Photographic Illustrations of Skin Diseases , de autoria do dermatologista americano George Henry Fox.70 Imagens de portadores do mal de Hansen ilustram enciclopédias e tratados de medicina. No Tratado Clínico de Doenças dos Países Quentes , de 1887, tem-se uma gravura realizada a partir de uma fotografia feita na ilha da Reunião com a legenda “máscara leprosa”.71 No final do século XIX, os impérios coloniais adotam um conjunto de medidas definidas na Primeira Conferência Internacional sobre a Lepra. Essa doença tornou-se um desafio para a medicina tropical. Entre 1898 e 1908, novos periódicos são editados, como Journal of Tropical Medicine and Hygiene (Londres), Archivos de Hygiene e Pathologia Exoticas (Lisboa), Transactions of the Royal Society of Tropical Medicine and Hygiene (Oxford) e Bulletin de la Société de Pathologie Exotique (Paris), nos quais foram publicadas fotografias do sofrimento dos outros, mas também fotografias de partes do corpo e fotomicrografias de tecidos nervosos ou vasculares atingidos pela moléstia.
No Tratado de Patologia Exótica , de 1913, o chefe de serviço do Instituto Pasteur, Émile Marchoux, escreveu sobre a lepra num artigo com algumas ilustrações. Entre elas, há um retrato de uma pessoa em situação colonial com a legenda a indicar “lepra infiltração nodular facial”. Na legenda, segue um comentário do doutor Lebœuf: “A figura do doente parece recoberta de uma máscara horrível de teatro chinês”.72
As imagens sobre a hanseníase, desde o final do século XIX, não foram apenas ilustrações para o conhecimento médico. Elas foram também resultados de processos técnicos que permitiram revelar uma dimensão microscópica dos efeitos da doença sobre os corpos e de um novo conhecimento científico sobre o mal de Hansen. Essas fotografias científicas ampliadas sobre lesões dermatológicas ou neurológicas e outras de exames de baciloscospia fizeram parte da construção do conhecimento em biomedicina sobre a hanseníase.
Na International Journal of Leprosy , algumas imagens de corpos portadores do mal de Hansen foram publicadas desde os anos 1930, inclusive de casos africanos.73 Das fotografias científicas publicadas no referido periódico nas décadas de 1930, 1940 e 1950, a maioria perfaz um conjunto de imagens microscópicas de lesões ou de reações na pele e nos tecidos nervosos ou vasculares antes e depois de alguns experimentos quimioterápicos.
Com os novos tratamentos para o mal de Hansen a partir dos meados do século XX, as revistas médicas publicam também fotografias das ações contra a hanseníase, tal como ocorreu nas campanhas de vacinação contra a tripanossomíase humana africana. A medicina de massa teve sua variante para o caso do tratamento da lepra com diaminodifenil sulfona (DDS). A espetacularização do tratamento da hanseníase na Guiné pode ser vista, por exemplo, nas gravuras que ilustram o relatório anual de 1957 da Missão Permanente de Estudo e Combate da Doença do Sono e Outras Endemias na Guiné Portuguesa, de autoria do médico Augusto Reimão Pinto.74 Em duas delas, vê-se uma fila de doentes para tratamento com DDS. As legendas destacam a eficácia do serviço de ambulatório, no qual um enfermeiro faz a chamada e indica a dose a administrar, enquanto seu auxiliar faz a distribuição dos comprimidos a serem tomados na presença da equipe que pode tratar cerca de 600 doentes em poucas horas.
Das imagens das partes dos corpos lacerados dos portadores do mal de Hansen ou das fotomicrografias das lesões até as fotografias do tratamento em massa com DDS, o conhecimento médico produziu uma narrativa visual da hanseníase em contexto colonial que contribuiu para um discurso de afirmação da medicina colonial e que teve na suposta “objetividade” da fotografia um importante suporte ideológico.
As imagens da hanseníase e a propaganda missionária
Desde o século XVII, a Igreja católica apostólica romana tinha sua sagrada congregação para a propagação da fé pelo mundo. Por seu turno, as igrejas reformadas desenvolveram ações missionárias na África desde o final do século XVIII através de organizações religiosas como a Sociedade Missionária de Londres e, depois, a Sociedade Missionária Batista. A partir da segunda metade do século XIX, as estações missionárias católicas e protestantes estiveram presentes em todo o continente africano. Mas não é somente o continente africano que passa a ser território missionário, o corpo de suas gentes também.75 Entre outras missões, destacou-se a Missão da Basiléia, que construiu três hospitais na então Costa do Ouro, entre 1885 e 1914, e produziu uma copiosa representação fotográfica dos corpos enfermos.76 Algumas das fotografias dos hospitais e dos doentes foram publicadas nas páginas da revista mensal Der Evangelische Heidenbote (1828-1955). Fotografias de “corpos enfermos” podem ser consultadas na coleção digital dos arquivos da Basel Mission .77
Apartir da coleção fotográfica da Société des missions évangéliques de Paris (SMEP), Émilie Gangnat tratou da “fotografia missionária” em sua tese de doutorado. No Journal des missions évangéliques , periódico ilustrado da SMEP, algumas fotografias de “leprosos” na ilha de Maré na Nova Caledônia foram publicadas numa edição de 1910. As cinco imagens inseridas no texto inauguraram um novo estilo do fotojornalismo missionário.78 Outras fotografias de “leprosos” foram também publicadas no Almanaque das missões evangélicas .79
Na África oriental, a missão católica também se valeu das imagens dos corpos lacerados pela lepra.80 Em outras partes da África, as lepro- sarias foram objeto da fotografia missionária. Num livro publicado em 1933, o jornalista catalão Francisco Madrid criticou a política colonial da Espanha e denunciou a propaganda missionária realizada por meio da espetacularização do sofrimento dos outros. Sobre os missionários recém-chegados na então Guiné espanhola, vituperou:
Ah, a Lepra! Quantas fotografias você já viu de um missionário acari- ciando a cabeça de um leproso ou lhe dando ajuda espiritual? […]
Parece que chegam à colônia e requisitam um leproso para ser retratado ao seu lado, como os turistas que passam em Veneza e se fotografam dentro de uma gôndola ou na praça San Marcos rodeado de pombinhas. A experiência turística da Guiné, ao que parece, é a lepra.81
Em 1941, a descoberta do médico norte-americano Guy Faget sobre o poder terapêutico das sulfonas marcou uma nova fase no trata- mento da hanseníase. A mudança na profilaxia e no próprio tratamento da doença tiveram impactos na forma de a representar fotograficamente. Em meados do século XX, tornam-se raras as fotografias de doentes no periódico da SMPE. Em 1957, as fotografias de um longo artigo sobre um leprosário no Gabão têm por ênfase a equipe médica e não mais os clichês dos corpos mutilados pela moléstia.82 No mesmo ano, o mesmo acontece na matéria ilustrada de Raoul Follereau sobre a lepra na África Ocidental Francesa, publicada em Les Cahiers Français , cujas fotografias destacam uma sala de aula numa leprosaria, uma equipe médica ambulante na “luta contra a lepra” e “indígenas assistentes de laboratório” a manipular um microscópio em seus aventais brancos.83
Em meados do século XX, essa mudança na apresentação visual da hanseníase ocorre simultaneamente na propaganda missionária e na propaganda colonial. Cabe ainda lembrar que o isolamento dos portadores de mal de Hansen passa a ser alvo de críticas.84 A partir do V Congresso Internacional da Lepra, realizado em Havana em 1948, percebe-se uma predominância da fotomicrografia em artigos publicados na International Journal of Leprosy nos anos seguintes, tendência que permite inferir uma adesão dos articulistas do periódico da Associação Internacional da Lepra aos equipamentos propostos pelo Comitê de Fotografia do Memorial Leonard Wood.85 Porém, em algumas colônias, missionários, médicos e administradores promovem a espetacularização do sofrimento dos outros ainda por meio de imagens chocantes.
Um caso emblemático de coalescência colonial
As imagens produzidas sobre a hanseníase no continente africano à época dos impérios coloniais advêm do mesmo regime visual que representava a África como um continente assolado por doenças tropicais como a malária e a tripanossomíase humana africana. Às imagens de uma “África sonolenta”, somavam-se as imagens da “África leprosa”. Em suma, as representações de um continente enfermo concorriam para justificar o colonialismo. Nesse sentido, a história visual da hanseníase – assim como a da tripanossomíase humana africana – permite deslindar um processo de coalescência colonial em que missionários, médicos e administradores fomentaram um mutualismo que serviu para a chamada “missão civiliza- tória” e, por conseguinte, para o falacioso “fardo do homem branco”.
Exemplo emblemático de interesses conglutinados foi a série de imagens produzidas na leprosaria de Mikomeseng na então Guiné espanhola (atual Guiné Equatorial) em meados do século XX. Filmes documentários sobre essa “colônia de leprosos” já foram tratados por especialistas da história das ciências.86 O leprosário de Mikomeseng foi construído no quadro de uma política de assistência médica aos indígenas sob o franquismo e o colonialismo espanhol.87
Em 1938, uma área de 30.000 metros quadrados, localizada a dois quilômetros da capital, foi desmatada e preparada para a construção de um dispensário em alvenaria e de uma centena de moradias com “material do país”.88 As obras foram concluídas em 1939.89 Os trabalhadores eram recrutados no modelo de “prestación personal”, ou seja, um serviço obrigatório e sem remuneração.90
O regulamento vigente da luta contra a lepra, publicado no Boletim Oficial da Colônia em 4 de abril de 1945, e o regulamento do regime interno da leprosaria central, publicado no mesmo boletim em 15 de abril de 1945, acusam uma sintonia entre o governo colonial e a direção médica da leprosaria de Mikomeseng. Embora ambos os regula- mentos confirmassem a gratuidade dos serviços aos doentes, o regulamento interno da leprosaria previa a organização de atividades econômicas para os enfermos em condições de trabalhar. Em seus últimos dois artigos, o regulamento interno da leprosaria revelava seu caráter autoritário e seu paralelo com o sistema carcerário:
Art. 27. Está terminantemente proibida toda manifestação de protesto violenta ou coletiva dos enfermos, devendo-se encaminhar as recla- mações ao diretor do estabelecimento, que resolverá o que julgar procedente.
Art. 28. Está terminantemente proibida a saída do leprosário aos enfermos sem uma permissão especial do médico diretor do mesmo.91
Durante o V Congresso Internacional da Lepra, realizado em Havana na primeira quinzena de abril de 1948, o médico espanhol Víctor Martínez Domínguez tratou da “Luta contra a Lepra na Guiné Espanhola”. Entre o quarto e o quinto congresso, houve um avanço no tratamento da hanseníase. O evento em Cuba era o primeiro depois da descoberta dos efeitos dos derivados de sulfonas no tratamento da lepra e a maior parte das comunicações abordou os novos tratamentos com essas substâncias.92 Em Havana, a abordagem médica, franquista e colonialista de Domínguez sobre a luta contra a lepra na Guiné espanhola teve contornos triunfalistas.93 Por outro lado, omitiu uma série de problemas no leprosário de Mikomeseng. Francisco Javier Martinez (2009), Benita Sampedro (2016) e David Brydan (2018) já trataram da resistência popular aos métodos autoritários que vigoravam naquele sítio, inclusive um levante dos internos em 1946.94
Em 1954, um estudo epidemiológico e clínico da endemia da lepra na Guiné espanhola, de autoria de Víctor Martínez Domínguez, foi publicado pelo Instituto de Estudos Africanos de Madri. Entre os métodos autoritários empregados na “luta contra a lepra”, pode-se mencionar a separação das crianças dos seus pais. Conforme o diretor do leprosário:
O Preventório foi criado com a ideia de separar dos pais as crianças nascidas no Leprosário, no próprio momento do nascimento; custou muito tempo e muito trabalho convencer os enfermos da necessidade absoluta de assim proceder, e com muita paciência chegou-se a conseguir que a maioria das crianças ingressassem no Preventório ao nascer; de qualquer maneira, eram frequentes os casos de ocultação de crianças e de fuga de gestantes para evitar a separação.95
No estudo supramencionado, foi reproduzido o regulamento da luta contra a lepra, originalmente publicado no Boletim Oficial da Colônia em 4 de abril de 1945, uma luta cujas regras estabeleciam algumas diferenças para “pessoa de raça europeia” e para “pessoa de raça não europeia”. Algumas regras – como o artigo 8 – eram válidas para “toda pessoa afetada pela lepra, qualquer que seja sua raça, nacionalidade etc.”. Severas sanções estavam previstas para infrações do regulamento.96 A declaração obrigatória para quem fosse portador do mal de Hansen e as sanções punitivas para eventuais cúmplices de quem não declarasse sua enfermidade podem ter concorrido para muitas delações e mesmo para uma desconfiança generalizada nos territórios do Golfo da Guiné sob dominação colonial espanhola.
Em seu estudo epidemiológico e clínico da lepra, a dedicatória de Domínguez para o “amigo dos lazarentos”, o padre Leoncio Fernández, vigário apostólico de Fernando Póo (atual Bioko), e o último parágrafo que exalta a Espanha como “mãe de nações” que “labora em silêncio abrindo caminho para o último filho que mantém sob sua tutela, sem mais ambição do que o ver chegar a maioridade saudável, vigoroso, e livre de máculas”, bastam para demonstrar a coalescência colonial da medicina tropical, da missão católica e da política africana sob o franquismo.97
O estudo apresentado pelo diretor da leprosaria de Mikomeseng era resultado de sua experiência médica de quinze anos na Guiné espanhola. De 1938 a 1953, mais de 5.000 casos de lepra foram diagnosticados no território, dos quais em torno de 90% acometia a população autóctone. A presença europeia foi considerada um fator correlato à incidência da hanseníase na Guiné espanhola, pois “as zonas com menor densidade de população branca, que são as do interior, a incidência de lepra é muito mais elevada e possui, ainda, uma estreita relação com a densidade da população indígena”.98
Em seu estudo epidemiológico e clínico sobre a hanseníase na Guiné espanhola, o médico Domínguez se mostrou um ideólogo do colonialismo espanhol. Afinado ao franquismo, o diretor do leprosário de Mikomeseng forneceu em seu estudo vários elementos que comprovam interesses agregados de missionários, médicos e administradores. Ao tratar do tema da “moderna terapêutica” com derivados sulfônicos a partir de 1948, Domínguez destacou “o esforço econômico” do governo colonial da Guiné espanhola.99 Para o diretor da leprosaria, a “moderna terapêutica” foi uma verdadeira panaceia. Ela teria ainda promovido o seguinte:
Transformação radical do ambiente entre os enfermos internados no Leprosário, que se converteram, de seres desconfiados, evasivos, sempre dispostos à rebeldia e ao protesto e negando sistematica- mente sua cooperação, em enfermos normais, com o espírito aberto à esperança de cura e magnificamente dispostos em todo o tempo a colaborar com o médico.100
Uma série de fotografias de portadores do mal de Hansen foi publicada nesse estudo e mostra a aparência dos corpos antes e depois do tratamento com as sulfonas. Da série fotográfica publicada, uma parte traz retratos de 20 sujeitos anônimos, pois não há referência a seus nomes nas legendas. O mesmo acontece com as outras 65 fotografias que apresentam partes dos corpos de enfermos anônimos.101 A essa objetivação científica dos enfermos, soma-se um parágrafo descritivo “com estatísticas, biometria e verborreia farmacêutica”, conforme Benita Sampedro Vizcaya, para quem o corpo do leproso, como símbolo da ruína, encerra significados presentes na maioria dos tratados sobre a lepra e que, junta- mente com tratados sobre outras enfermidades de patente deformação física, mais parecem um “catálogo de horrores médico-tropicais”.102 Essas fotografias da leprosaria de Mikomeseng e de sua população interna foram utilizadas para fins científicos e para a propaganda missionária, médica e colonial, o que caracteriza a coalescência de volições de diferentes atores. Pode-se afirmar que as fotografias constituíram um suporte visual ao discurso médico e, por conseguinte, à construção de “uma imagem homogeneizada dos nativos guineanos”.103
As imagens da hanseníase em cartões postais
Entre os tópicos temáticos de cartões postais da África das primeiras décadas do século XX, três deles têm a ver com a saúde nos trópicos. Um primeiro tópico registra os corpos enfermos e anômalos. Tumores, úlceras e mesmo deformações anatômicas passam a ser alvos de clichês e editados sob o formato de cartão postal; um segundo tema consiste na ação de homens ou mulheres de origem europeia a tratar dos doentes em situação colonial; e um terceiro tema valoriza prédios e instalações hospi- talares (como enfermarias, “hospital indígena”, leprosários e gafarias), bem como o arsenal (composto de itens como microscópios, seringas, medicamentos, ampolas e material cirúrgico) para o chamado combate às doenças tropicais.
Alguns fotógrafos souberam explorar inescrupulosamente o uso venal do cartão postal com imagens do sofrimento dos outros. No então Congo belga, o fotógrafo polonês Casimir Zagourski foi um deles. Em sua série intitulada L’Afrique qui disparait , encontram-se algumas fotografias de corpos com moléstias graves como a elefantíase e o cancro. O título apelativo de sua reportagem visual remetia à ideia de que o colonialismo iria erradicar não apenas usos e costumes “primitivos”, mas também certas doenças tropicais. O registro fotográfico seria uma forma de colecionar imagens de uma África que muitos acreditavam, assim como Zagourski, estar em curso de desaparecer.
Além da edição de cartões postais com mera finalidade comercial, houve também o interesse em divulgar o trabalho missionário e, ao mesmo tempo, ensejar – pela comiseração ou pela compaixão em relação ao sofri- mento alheio – a caridade dos remetentes e destinatários desses cartões postais. Apesar dos limites da amostra de cartões postais, parece que as missões católicas usaram mais desse recurso visual do que as missões luteranas, metodistas e presbiterianas. No verso de alguns cartões postais de missões católicas, encontra-se a informação de que sua venda era em benefício do leprosário. Outros traziam no verso o endereço postal da missão católica para depósito de doações em dinheiro.
Algumas missões católicas produzem cartões postais em série a partir de imagens dos lazaretos ou leprosários, dos doentes e dos missio- nários ou missionárias em ação. Sobre este último tópico, percebe-se uma encenação, em alguns casos, na qual o missionário ou a missionária não posa simplesmente, mas interpreta um papel de uma cena dramática. Alguns cartões postais de missões católicas fazem lembrar uma estética barroca. Não mais o espetáculo do sofrimento de Cristo ou dos mártires da igreja, mas sim o sofrimento dos outros é posto à venda para ajudar a financiar a causa missionária.
O cartão postal com a legenda “Missionnaire soignant des lépreux ” corresponde ao número 44 de uma série editada por Hélio Braun, em Paris, para a Propaganda Fide . Esse cartão postal encontra-se na Africana Historic Postcard Collection da Biblioteca do Congresso, em Washington, e reúne diversas coleções como as da Basel Mission , da Church Missionary Society (CMS), da Royal Commonwealth Society Photograph Collection, da Frank and Francis Carpenter Collection e da American Colonization Society .104 Segundo os metadados, a fotografia provém da Tanzânia. No verso do cartão, consta a seguinte informação: “A obra da Propaganda Fide sustenta as missões católicas no mundo inteiro. Envie vossa oferta para cheques postais Paris 618.25; Lyon 72.71”. Essa informação deveria constar nos demais cartões postais da série.
Um outro exemplar desse cartão postal encontra-se na coleção do Museum of Fine Arts de Boston.105 Pela borda esquerda do cartão postal, nota-se que ele foi editado para ser destacado do conjunto. A mesma dramaturgia iconográfica de leprosos a receber os cuidados de missio- nários é constatada em outro cartão postal, no qual o padre Jan Beyzym aparece em sua ação humanitária em Madagascar, sob a legenda “Padre Beyzym cuidando dos leprosos”.106 Desde o final de 1898, o jesuíta polonês atuava na leprosaria de Ambahivoraka. A partir de 1902, o padre Beyzym se instalou em Marana, onde realizaria seu projeto de construção de um hospital para atender homens e mulheres com o mal de Hansen. O hospital de Marana foi inaugurado em 1911, um ano antes da morte de seu idealizador.107
O formato de cartão postal com imagens de leprosários ou de leprosos a receber cuidados serviu aos propósitos da propaganda missio- nária, pois sua circulação ampliava a divulgação da ação direta dos missionários em várias partes do mundo e, ao mesmo tempo, era um meio de angariar recursos para a causa missionária. De modo geral, a propaganda missionária seguia uma linha conservadora que tinha suas próprias contra- dições, pois ajudava-se os pobres sem questionar a pobreza, cuidava-se dos colonizados sem combater o colonialismo.
As imagens da hanseníase e a propaganda colonial
A imprensa colonial produziu inúmeras revistas e copioso material ilustrado sobre a chamada assistência médica aos indígenas. Imagens de portadores do mal de Hansen e de lazaretos, leprosarias ou gafarias na África ilustram os discursos publicados na imprensa colonial em prol dos cuidados com a higiene e a saúde nos trópicos. Entre professores de medicina e diplomados da Escola Superior Colonial, encontram-se defen- sores entusiastas da assistência médica aos indígenas.108
Das fotografias sobre a hanseníase em contexto colonial, o isolamento dos doentes – segundo os critérios da medicina tropical – foi exibido como o triunfo da proteção sanitária da sociedade colonial. Para muitos médicos, a segregação de leprosos era “o melhor método coletivo de combate à doença”.109 As imagens das “colônias de leprosos” foram divulgadas em diversos meios impressos e circularam até mesmo como cartões postais. Elas davam uma ideia de controle territorial e popula- cional, da qual abusou a propaganda colonial.
Uma outra forma de propaganda colonial da primeira metade do século XX deu-se nos quadros das grandes exposições internacionais. Realizadas em várias cidades europeias, essas exposições tinham um pavilhão ou uma sessão com destaque para a chamada assistência médica aos indígenas e para as campanhas de combate às doenças tropicais.
Geralmente, os organizadores dessas exposições internacionais contavam com a participação das Escolas de Medicina Tropical para montar esses pavilhões ou sessões. Era uma ocasião ímpar para a propaganda das Escolas de Medicina Tropical, mas também para institutos de pesquisa como o Instituto Pasteur, que contava com laboratórios na África e na Ásia. A assistência médica aos indígenas foi apresentada nas exposições coloniais como uma ação convergente dos esforços de missionários e médicos sob a égide do Estado colonial. Na Primeira Exposição Colonial Portuguesa, realizada no Porto em 1934, figuras em maquetes exibiram a dor alheia. Representavam também a ação humanitária de missionárias enfermeiras nas gafarias, em seu trabalho de “aliviar o sofrimento dos desgraçados e infelizes leprosos”.110
Na Primeira Exposição Colonial Portuguesa, destacou-se a “ação pacífica” das missões nas colônias ultramarinas que, “curando corpos e educando almas”, “substituem e dispensam a defesa pelas armas”.111 A ênfase na saúde e na educação para garantir uma “ocupação pacífica” e para assegurar a ordem colonial fez parte da ideologia dos impérios coloniais na década de 1930, notadamente do Estado Novo.
Durante a Exposição Universal de Bruxelas de 1935, três grupos escultóricos evocaram a ajuda das missões religiosas na assistência médica aos indígenas em relação à doença do sono, à lepra e à pueri- cultura. Os três grupos temáticos foram apresentados no Pavilhão Oficial do Congo Belga. A Cruz Vermelha no Congo também apresentou o seu trabalho de assistência médica em Nepoko, com destaque para a tal luta contra a lepra.112
Durante visitas oficiais às colônias, a instituição hospitalar era quase uma visita obrigatória na agenda das autoridades. Em agosto de 1928, o rei Alberto e a rainha Elisabeth visitaram o então Congo belga. Diplomada em enfermagem, a rainha mostrou grande interesse pela assis- tência médica aos indígenas durante as visitas aos hospitais e dispensários, inclusive para o tratamento dos leprosos.
Na manhã do dia 5 de maio de 1955, o Chefe do Estado português, o General Craveiro Lopes, acompanhado pelo Ministro do Ultramar e pelo Governador da Guiné, visitou o novo Dispensário do Mal de Hansen, onde foi recebido pelo médico doutor Mário Veiga, diretor também da Leprosaria-Colônia Agrícola da Cumura, na Guiné-Bissau. Durante sua visita ao novo dispensário, o Chefe do Estado percorreu, “com viva curiosidade e simpatia”, a exposição de “trabalhos de vários gêneros realizados por leprosos de ambos os sexos, e de fotografias de leprosos nas sucessivas fases de tratamento e de cura”.113 Um filme realizado durante a viagem do General Craveiro Lopes registrou sua visita ao novo Dispensário do Mal de Hansen.
Além de fotografias em grande formato, maquetes e outros materiais visuais eram produzidos para exposições coloniais nas metró- poles e para eventuais visitas oficiais de Ministros ou Chefes de Estado às colônias. As imagens da tripanossomíase humana africana e da hanseníase eram aquelas que mais apareciam no que tange à “luta contra as doenças tropicais” e à “assistência médica aos indígenas”. A espetacularização do corpo enfermo, que tanto serviu às propagandas missionária e colonial, teve na fotografia um recurso visual ímpar, pois “a fotografia oferece um modo rápido de aprender algo e uma forma compacta de memorizá-lo”.114
As imagens da hanseníase de arquivos públicos e privados
Nos arquivos coloniais, encontram-se fotografias de leprosários e de doentes, assim como de homens e mulheres de origem europeia em ação humanitária nos confins da África, mas também de africanos como auxiliares. Muitas dessas fotografias foram feitas com o intuito de documentar a ação e a intervenção médica ou missionária no combate às doenças tropicais. A fotografia era tida como uma “prova” para certos fins. Ela poderia integrar relatórios técnicos ou de prestação de contas ou ser utilizada para a propaganda colonial ou missionária. Mas ela podia simplesmente entrar para um álbum como uma recordação dos tempos passados em África.
Na coleção digital dos arquivos da Basel Mission, encontra-se uma fotografia sob o título “Bali: irmã Merkle (depois Senhora Geprägs) e duas pacientes”.115 O retrato de grupo mostra a Irmã Anna Merkle sorrindo para o fotógrafo, enquanto as duas enfermas anônimas exibem seus corpos nus e lacerados. A fotografia foi feita na localidade de Bali, na então colônia alemã dos Camarões. Uma informação posterior àquela imagem, ou seja, sobre a mudança do estado civil e, por conseguinte, do sobrenome da missionária – que se casou com o missionário Cristoph Geprägs (1880-1918) –, indica um devir que não levou em conta o destino das outras duas mulheres.
No arquivo de imagens da Sociedade Colonial Alemã, encon- tram-se dezenas de fotografias sobre a assistência médica aos indígenas, notadamente nas leprosarias em territórios sob domínio colonial alemão. Entre elas, destaca-se a fotografia da missionária Freya. A fotografia da Irmã Freya tratando “leprosos” na então África oriental alemã (atual Tanzânia) foi publicada por Nicole Schweig em seu livro sobre os cuidados aos doentes nas colônias alemãs no continente africano (de 1884 a 1918).116
A fotografia tem elementos que compõem uma paisagem (ou mensagem) da ideologia da fraternidade universal e do imaginário colonial.117
Na paisagem humana dessa fotografia, distinguem-se três pessoas no primeiro plano e um grupo de homens e mulheres, adultos, jovens e crianças, ao fundo. Pelos metadados, sabe-se somente o nome de uma delas. A missionária trata uma pessoa portadora do mal de Hansen e tem a seu lado um auxiliar. As três pessoas no primeiro plano representam o mundo colonial. A Irmã Freya personifica o grupo dos colonizadores, o auxiliar de enfermagem, o grupo dos assimilados e a mulher doente, o grupo dos “indígenas”.118
Para John Berger, algumas fotografias eram como uma prova da divisão imperial do mundo, divisão entre os que organizavam, raciona- lizavam e vistoriavam e aqueles que eram vistoriados.119 A fotografia da Irmã Freya e dos demais apresenta essa divisão do “mundo colonial”, mas como ilustração daquela apologia moral de que “as raças superiores” devem se ocupar das “raças inferiores”.
Algumas pessoas ao fundo da imagem já tinham sido tratadas, pois seus curativos nos pés e nas mãos acusam momentos anteriores do registro fotográfico. Outras parecem aguardar sua vez, o que permite prever a continuidade que nunca é capturada na fotografia. Cabe lembrar que qualquer fotografia registra um momento que remete a uma ruptura, ou seja, a uma imagem fora de uma continuidade. Porém, um momento fotografado adquire significado se a extensão de sua duração pode ser inteligível para quem vê a imagem “fixada” entre um passado e um futuro. 120 A fotografia da Irmã Freya com os demais permite inscrevê-la num tempo contínuo de ação missionária e colonial.
O auxiliar de enfermagem está vestido e calçado, indícios de sua condição de assimilado, o que também acusa o passado recente da ação missionária e colonial. Ele representa o êxito da propalada missão civiliza- tória. Já a pessoa doente em primeiro plano, entre a Irmã Freya e o auxiliar de enfermagem, e os demais ao fundo representam as “raças inferiores” condenadas a desaparecer. No imaginário colonial, os corpos nus com apenas tapa-sexo e alguns curativos remetem à figura do primitivo sob os cuidados do civilizado.
Em 1913, a hanseníase não tinha cura. Os cuidados ambulatoriais eram feitos apenas para amenizar o sofrimento dos outros. Já a Irmã Freya, com seu emblemático chapéu colonial ( Pith helmet ) e avental branco, mira diretamente para a câmera fotográfica com olhos de principal protago- nista daquela cena de ação humanitária, malgrado o oximoro de qualquer altruísmo em contexto colonial. A mensagem subliminar da fotografia pode ser o que, talvez, passava na cabeça dela: o que seria dessas pessoas sem a ação missionária e colonial? Ao chão, vê-se o material ambulatorial para os curativos dos enfermos, um elemento nada anódino na fotografia, pois corrobora – assim como as roupas brancas e os calçados – a mensagem de que a higiene seria um apanágio civilizacional. Provavelmente, no arsenal farmacêutico da missionária, encontrava-se o medicamento Antileprol, o primeiro preparado industrial da Bayer para tratamento da hanseníase.121 Uma fotografia de uma caixa com 24 ampolas desse fármaco, produzido pela Bayer desde 1907, encontra-se na coleção digital do arquivo da Sociedade Colonial Alemã.122
Fotografia similar em seus significados é a de outra missionária no meio de doentes em Chitokoloki, no norte da Rhodesia (atual Zâmbia). A fotografia data de 1935 e foi publicada 70 anos depois na seção intitulada Images from the History of Leprosy da International Journal of Leprosy .123 Desde 2004, os membros da International Leprosy Association foram convidados a contribuir com imagens de seus arquivos para a nova seção da revista.124 Essa proposta editorial é mais um exemplo dos múltiplos usos das imagens sobre a hanseníase. Das fotografias publicadas nessa seção, alguns portadores do mal de Hansen no Havaí (1901), na África do Sul (c. 1920) e na Zâmbia (1935) reaparecem como “fantasmas” de um passado distante. Nas páginas de um periódico científico, esses retratos de grupos anônimos evocam o “retorno do morto”.125 Como observa Susan Sontag: “De fato, há muitos usos para as inúmeras oportunidades ofere- cidas pela vida moderna de ver – à distância, por meio da fotografia – a dor dos outros”. 126
Embora não tenha sido o objetivo dessa efêmera seção da International Journal of Leprosy , que teve apenas seis números entre 2004 (2) e 2005 (4), os retratos coletivos de portadores (anônimos) do mal de Hansen suscitam nossa comiseração. Apesar da distância temporal que nos separa desses “fantasmas”, suas imagens nos inter- pelam. Por sinal, cabe sempre indagar quem é esse “nós”, quando se trata de olhar a dor dos outros.127
Na primeira metade do século XX, o “nós” foi, em geral, o público espectador do Ocidente. Ao menos, a maioria dessas imagens da dor dos outros, notadamente da hanseníase, se encontra nos arquivos públicos e privados do mundo ocidental. É também na consciência das pessoas do “mundo rico” que a África pós-colonial existe como “uma sucessão de fotos inesquecíveis de vítimas com olhos esbugalhados, desde as imagens da fome em Biafra, no fim da década de 1960, até os sobreviventes do genocídio de quase um milhão de tútsis em Ruanda, em 1994”.128
Susan Sontag viu uma continuidade entre o fotojornalismo que exibe (quase) sem pudor imagens frontais dos mortos ou moribundos quanto mais exótico ou remoto for o lugar e uma secular tradição moderna de exibir seres humanos exóticos como animais de zoológico em exposições coloniais. Acredito que as imagens de guerra – abordadas em seu magistral ensaio – tenham mais similaridades com aquelas de doenças, como a tripanossomíase humana africana e a hanseníase, pois contêm, igualmente, a dupla mensagem de mostrar “um sofrimento ultra- jante, injusto e que deveria ser remediado” e de confirmar que “esse é o tipo de coisa que acontece naquele lugar”. A ubiquidade dessa dupla mensagem não seria apenas “a crença na inevitabilidade da tragédia em regiões ignorantes ou atrasadas – ou seja, pobres – do mundo”,129 mas também a ideia de que os males dos outros continuam mesmo sem aquele “nós” a invocar o “fardo do homem branco”.
Considerações finais
Nas imagens da chamada “assistência médica aos indígenas”, encontra-se, geralmente, uma autorrepresentação da branquitude ( Whiteness ). No caso da hanseníase em contexto colonial, algumas fotografias foram encenadas com pessoas de origem europeia protagonizando ações humanitárias. A narrativa visual dessas imagens do sofrimento alheio sugere uma hagiologia iconográfica de médicos e missionários. A elas, somam-se fotografias de visitas oficiais a leprosarias, o que revela uma coalescência de interesses e uma forma de legitimar o Estado colonial em África.
Em termos de regime visual, as imagens da hanseníase na África permitem uma periodização que pode ser dividida em três etapas. Antes de 1897, as imagens da hanseníase na África são raras apesar da presença de missionários e de médicos militares que fotografavam desde 1860. O período entre 1897 e 1941 é marcado pela espetacularização da lepra na iconografia médica e missionária. Nesse período, ocorre a construção de novos leprosários sob as diretrizes científicas definidas durante a Primeira Conferência Internacional sobre a Lepra em Berlim (1897), cujo prédio emblemático foi o instituto de leprologia de Bamako (1931). A partir dos meados do século XX, a visualidade da hanseníase segue um novo paradigma, pois as equipes médicas, as infraestruturas hospitalares e laboratoriais e o arsenal de fármacos da biomedicina têm mais destaque que os doentes nas reportagens visuais e nas propagandas missionária e colonial. Desse último período, há um grande número de fotografias de visitas oficiais de presidentes, ministros, reis e rainhas a hospitais ou leprosarias nas colônias.
Durante a pesquisa em arquivos estrangeiros e a consulta a coleções digitais, pôde-se identificar fotografias e alguns cartões postais com imagens do sofrimento alheio que passaram de uma coleção parti- cular para uma pública, enquanto muitas imagens continuam a circular pela iconosfera virtual de uma economia visual. Os arquivos missionários e coloniais, entre outros, têm digitalizado suas coleções, o que favorece uma “pós-vida” para certas imagens. Por outro lado, a venda de cartões postais antigos pela internet parece contornar certas questões deontoló- gicas presentes nos debates atuais sobre a história visual do colonialismo. O comércio venal de imagens do sofrimento dos outros segue a fomentar “múltiplas vidas” de imagens de corpos em situação colonial, o que permite ainda um paralelo com novas imagens da dor dos outros. Desde os corpos “sonolentos” e “leprosos” de um passado colonial, um regime visual segue a mostrar a dor dos outros diferentemente, notadamente quando estigmati- zados pelos efeitos de vírus como HIV, Ebola ou Covid-19. Com base no estudo das imagens da hanseníase na África da primeira metade do século XX, algumas representações visuais contemporâneas dos corpos africanos podem ser “lidas” como um palimpsesto, no qual se encontram vestígios de marcas anteriores de um regime visual colonial.
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