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UMA FUGITIVA EM FAMÍLIA EM BUSCA DE LIBERDADE NA “CIDADE DA FEIRA” *
Karine Teixeira Damasceno
Karine Teixeira Damasceno
UMA FUGITIVA EM FAMÍLIA EM BUSCA DE LIBERDADE NA “CIDADE DA FEIRA” *
A RUNAWAY FAMILY SEARCHING FOR FREEDOM IN “CIDADE DA FEIRA”
Afro-Ásia, núm. 64, pp. 183-219, 2021
Universidade Federal da Bahia
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Resumo: Neste estudo, reconstitui-se a experiência de Belmira, uma mulher escravizada, enquanto lutava pela liberdade para si e para suas crianças, Antero, Senhorinha e Manuel, em Feira de Santana, entre 1878 e 1879. Para tanto, é analisada a ação de liberdade movida por esta protagonista, assim como os registros de matrículas, os códigos de posturas municipais, as correspondências e um atestado de óbito. As marcas deixadas por ela em seu itinerário, bem como por pessoas relacionadas a ela, foram cruzadas por meio de uma abordagem qualitativa das fontes. Desse modo, foi possível saber que, a despeito da opressão interseccional de classe, gênero e raça, mulheres como Belmira foram personagens centrais na luta pela liberdade legal. O cruzamento destes documentos permitiu constatar que as especificidades da escravidão feminina influenciaram suas escolhas por esse tipo de liberdade.

Palavras chave: Mulheres negrasMulheres negras,FamíliaFamília,EscravidãoEscravidão,Liberdade legalLiberdade legal.

Abstract: This paper reconstitutes the experience of Belmira, an enslaved mother, in fighting for her own freedom and that of her children – Antero, Senhorinha and Manuel – in the Bahian city of Feira de Santana, between 1878 and 1879. To this end, we analyzed the case for freedom taken by her, [slave] registration records, [municipal] ordinances, letters exchanged , and a death certificate. Qualitative analysis of the archival traces of Belmira’s struggle herself and by those related to her reveals that, despite the intersectional oppression of class, gender and race, women such as Belmira were key characters in the fight for legal freedom. Comparison of the infor- mation obtained from the different types of documents shows that the specificities of female slavery influenced their choice for this type of freedom.

Keywords: Black women, Family, Slavery, Legal freedom.

Carátula del artículo

ARTIGOS

UMA FUGITIVA EM FAMÍLIA EM BUSCA DE LIBERDADE NA “CIDADE DA FEIRA” *

A RUNAWAY FAMILY SEARCHING FOR FREEDOM IN “CIDADE DA FEIRA”

Karine Teixeira Damasceno
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil
Afro-Ásia, núm. 64, pp. 183-219, 2021
Universidade Federal da Bahia

Recepção: 7 Outubro 2020

Aprovação: 29 Junho 2021

Este estudo tem como tema a experiência de Belmira enquanto lutava por liberdade para si mesma e para suas três crianças, Antero, Senhorinha e Manuel, entre 1878 e 1879, em Feira de Santana.

Trata-se de um esforço de fazer emergir o protagonismo feminino por meio da reconstituição de sua trajetória de luta por liberdade a qual só foi possível ter acesso devido à sua decisão de procurar a justiça para apresentar sua demanda de liberdade. Em seu tempo, outras mulheres como ela foram invisibilizadas e silenciadas, e ainda na contempora- neidade predomina uma dificuldade entre historiadoras e historiadores em dar atenção a estas personagens, mesmo que muitas vezes elas pareçam gritar para serem notadas em meio a documentos dispersos nos arquivos.

No contexto de Feira de Santana, a maior visibilidade das mulheres negras na luta por liberdade legal em família demonstrou que, a despeito da opressão interseccional de classe, gênero e raça – aliás, por isto mesmo –, elas foram personagens centrais na luta por esse tipo de liberdade.1 Além disso, a cultura do cuidado como algo imposto a todas as mulheres, mas, de maneira muito específica, às mulheres negras, é um indicativo de que o patriarcalismo de fato foi um componente que também fez parte das relações construídas entre mulheres e homens negros durante e depois do cativeiro.

Com efeito, busquei compreender os mecanismos utilizados por Belmira no sentido de conquistar a liberdade para si mesma e para suas crianças em um tempo em que, no Brasil, estava em curso a opção pela abolição gradual da escravidão, por ser considerado o caminho mais seguro para a classe senhorial ao mesmo tempo em que atendia às pressões internas, principalmente da população escravizada, do movimento aboli- cionista e de demais adeptos da causa da liberdade e respondia também às pressões internacionais tanto governamentais como do movimento anties- cravista internacional para o fim da escravidão no Brasil.2

A leitora e o leitor que resolver conhecer a trajetória desta mulher perceberá que se trata de uma história triste cuja beleza pode ser notada na luta por liberdade protagonizada por ela que, assim como várias outras mulheres de seu tempo, foi alvo do controle das autoridades na maior parte das vezes, estando no centro da negociação das cartas de liberdade ou dos confrontos judiciais. Desse modo, foram cruzados documentos, como a já mencionada ação de liberdade movida por Belmira assim como seu atestado de óbito, códigos de posturas, correspondências e o registro de matrículas, com o objetivo de reconstituir sua experiência de luta pela liberdade; explicitar os sentidos das suas escolhas; e descortinar as redes de apoios passíveis de serem construídas por mulheres negras, escravizadas, libertas e livres em busca de melhores condições de vida e de conquista da liberdade legal.

Para ser dona de si e garantir esse direito a suas crianças

Em 1878, Belmira, parda, com 34 anos, cozinheira e capaz de realizar qualquer trabalho, nascida e residente no arraial Santíssimo Coração de Maria (atual Coração de Maria), termo da freguesia de Purificação (na época, pertencente ao município de Santo Amaro), se aproveitou da distração de dona Antonia Francellina Mendes e do português José Ferreira Mendes para, sorrateiramente, pegar suas três crianças, Antero, com 12 anos, Senhorinha, com 11 anos, e Manuel, com 10 anos, também de cor parda e do serviço da lavoura, evadindo-se da residência do casal onde eram escravizados. A partir daí, seguiram rumo à cidade de Feira de Santana, localizada a 40 km, distância que, embora não fosse tão longa, certamente não era fácil de ser vencida por fugitivos do cativeiro, princi- palmente uma mulher acompanhada por três crianças.3

É importante salientar que, embora os homens optassem mais do que as mulheres pela fuga, esta também era uma opção de luta pela liberdade escolhida por muitas mulheres que, apesar de ter uma menor probabilidade de fuga bem-sucedida ao levar junto uma ou mais crianças, optavam por não deixar para trás suas filhas e filhos pequenos.4

No entanto, na maior parte das vezes, as mulheres preferiam ficar e percorrer um longo caminho, que exigia delas muita paciência e habilidade para conduzir a negociação até que a senhora ou o senhor aceitasse conceder a carta de alforria. Muitas delas conseguiram ser exitosas, ainda que isso não fosse garantia de liberdade, pois, da promessa à concretização da manumissão, vários outros sujeitos sociais poderiam interferir,5 de modo que muitos casos foram levados para ser resolvidos nos tribunais, com as mulheres, em especial, na linha de frente desses duelos judiciais.6

Em Feira de Santana, ao observar o perfil das pessoas que moveram as ações de liberdade que correram no Tribunal da Relação da Bahia, isto é, as ações que tramitaram em segunda instância, foi notado que das dez ações judiciais movidas, entre o período de 1876 e 1887, apenas uma delas não teve mulheres escravizadas, libertas ou livres entre as pessoas que tomaram a ousada iniciativa de recorrer à justiça para reivindicar a própria liberdade ou a de alguma pessoa de sua família.7

Diferentemente de outras pessoas escravizadas e escravizados que fugiam para se esconder nos quilombos ou tentaram passar desper- cebidos nas cidades, Belmira optou por fugir e procurar as autoridades judiciais em uma localidade com maiores possibilidades de defender seu direito e o de suas crianças de serem legalmente livres.8 Além de bem informada sobre as condições de mover uma ação de liberdade na sede do município de Feira de Santana, ela provavelmente também mobilizou familiares, bem como outros integrantes de sua rede de apoio e, a julgar por algumas das testemunhas, conseguiu, inclusive, alguns aliados de posses e de poder político que, juntamente com outros sujeitos sociais mais populares, se uniram em torno de seus propósitos de liberdade. Belmira deve ter contado com essas pessoas não só para viabilizar a fuga, mas também para obter condições de pôr em prática a luta que estava determinada a travar na justiça.

Por isso, é possível que Belmira tenha conseguido algum dinheiro para a subsistência da família durante um tempo e indicações de pessoas que pudessem ajudá-la, a exemplo do curador, sujeito fundamental em uma ação de liberdade, já que as cativas e os cativos não tinham o direito de falar por si judicialmente, e o curador – bacharel em direito ou rábula – é quem teria a responsabilidade de representá-los diante da justiça. É pertinente observar que, entre as pessoas interessadas em mover esse tipo de ação judicial e seus possíveis curadores, era comum haver um contato prévio antes do envio da petição inicial que daria origem à ação de liberdade.9 No caso de Belmira, foi nomeado como curador a mesma pessoa que escreveu a petição inicial. No entanto, ao longo da ação de liberdade, Belmira teve três curadores, que serão tradados à medida que eles forem assumindo o caso; o primeiro deles foi o advogado José Ferreira de Moraes.

Assim, em 28 de junho de 1878, ao chegar em Feira de Santana, Belmira procurou a justiça municipal de Feira de Santana, por meio de seu curador, para entregar a petição, despachada pelo juiz municipal Eduardo Pires Ramos, na qual relatou a situação que ela e suas crianças viviam e seu desejo de mover uma ação de liberdade contra o português José Ferreira Mendes com o objetivo de apresentar provas da liberdade da família diante da justiça e se livrar do “injusto cativeiro” que ele lhes impunha.10

Segundo Belmira, ela era filha do tenente-coronel João Nepomoceno de Araujo Bacellar e Castro, já falecido, com sua escravizada Germana, de cor preta, também falecida. Ela afirmou que fora batizada como livre, mas como seu assento de batismo desapareceu, por medida de segurança, em 1860, recebeu de seu “pai” outro “título de liberdade” do qual chegou a tomar posse, que o documento foi visto por diversas pessoas e, em confiança, o entregou novamente a seu “benfeitor” para guardar. Contudo, após o falecimento deste, a carta de liberdade foi subtraída por seus herdeiros com o fim de escravizá-la e, consequentemente, a Antero, Senhorinha e Manuel. Então, o marido de sua irmã, José Ferreira Mendes, “cabeça do casal”, a “reduziu à escravidão” bem como as suas crianças.11

De acordo com a narrativa de Belmira, quando ela foi alforriada, suas crianças ainda não tinham nascido e, por isso mesmo, nasceram livres. O fragmento que consegui acessar de sua história evidenciou que, ao mover uma ação de liberdade contra os supostos senhores, a libertanda acreditou que, de fato, tinha chances de sair vitoriosa garantindo a própria liberdade e de suas três crianças, o que deve ter pesado para que ela tomasse a audaciosa decisão de continuar a luta por liberdade diante das autoridades judiciais.

Contudo, no jogo da disputa judicial, como foi possível notar, seu suposto proprietário não deixou por menos. Depois de um tempo defen- dendo a liberdade de Belmira e suas crianças, o advogado José Ferreira de Moraes foi exonerado, a pedido da suplicante, e substituído pelo advogado Christovam Telles Barreto que deu continuidade à ação que tramitava no âmbito da primeira instância. É possível que Belmira tivesse notado que seu primeiro curador não estava empenhado como deveria em sua liberdade e a razão de sua suspeita, ou certeza, parece óbvia. Alguns meses depois, foi enviado ao juiz municipal um documento, por parte de José Ferreira Mendes, solicitando que o advogado José Ferreira de Moraes, mesmo depois de ter sido curador da autora da ação de liberdade, pudesse defender o réu com a justificativa de que faltavam advogados dispostos a aceitar o caso. Ou seja, além da referida petição sugerir que talvez o advogado não tivesse sido leal a sua cliente, ela indicou que havia uma resistência entre os advogados e rábulas locais em aceitar a causa, o que pode estar relacionado à conjuntura emancipacionista.12

Imagino que a opção pelo termo de Feira de Santana e não pelo termo de Purificação tenha a ver com o poder que o réu tinha em Coração de Maria, de modo que Belmira deve ter imaginado que teria mais chances em outro local, onde, talvez, a influência do português fosse menor. De qualquer maneira, considerando-se a precariedade em que as escravi- zadas e escravizados viviam, e mesmo as dificuldades que precisavam ser enfrentadas até chegar à justiça, é pouco provável que uma pessoa escravizada decidisse enfrentar uma queda de braço como essa sem pesar cuidadosamente os riscos que estava correndo, pois ter a legitimidade de sua condição de cativa confirmada perante as autoridades judiciais poderia significar mais do que a volta para a condição de subalternidade já conhecida. Por certo, além do gosto amargo da derrota, a família teria que enfrentar a fúria do senhor, que poderia tornar suas vidas ainda mais difíceis e reduzir ou anular definitivamente suas chances de negociar uma nova carta de alforria.

Na defesa de seus interesses, Belmira usou a seu favor o princípio romano partus sequitur ventrem , tradicionalmente adotado pela classe senhorial, segundo o qual o status da criança seguia o ventre, o que, embora pareça estar na contramão do patriarcalismo, diferente disto, servia justamente para proteger os interesses senhoriais, isto é, a concepção de que a criança herdava a escravidão da linha materna independente da condição do pai, ajudava a preservar o patrimônio da família e, ao mesmo tempo, aumentava o domínio dos senhores, uma vez que tornava o ventre central para a definição legal das cativas e cativos como propriedade e não como pessoas.13

Nesse sentido, ao comparar Havana (Cuba) e Rio de Janeiro (Brasil), Camillia Cowling alertou que, entre os livres, a tradição romana referida acima funcionava justamente de forma oposta ao que ocorria com as pessoas escravizadas, pois era o pai, e não a mãe, quem concedia status e legitimidade às crianças. Os senhores tinham o papel de chefe da família com autoridade sobre a esposa, sobre os filhos, assim como em relação aos dependentes, empregados e escravizados de ambos os sexos. Além disso, ela acrescentou que a tradição partus sequitur ventrem permitiu que os “encontros” sexuais entre os senhores e suas escravizadas, na América escravista, pudessem acontecer sem ameaçar a propriedade de pessoas escravizadas, sendo as crianças que nasceram desses “encontros”, assim como suas mães, escravizadas por aqueles que continuavam com a prerro- gativa exclusiva de conceder-lhes a liberdade ou não. Ainda seguindo esta lógica, observou Cowling, os senhores não viam qualquer impedimento à prática de estuprar essas mulheres.14

Embora pouco notificado pela documentação devido à natura- lização com a qual a violência sexual sofrida por mulheres cativas era tratada pela elite política, judicial e eclesiástica no Brasil desde o período colonial, os inúmeros casos de escravizadas que tiveram filhos com seus proprietários é um indicativo de que os abusos sofridos por mulheres como Germana, mãe de Belmira, era algo comum e de conhecimento público15 . Isso porque, no contexto da escravidão, entendia-se que o corpo dessas mulheres poderia ser duplamente explorado, para o trabalho e para o sexo, haja vista a interpretação de Gilberto Freyre sobre o papel definido como adequado para as mulheres na formação da sociedade brasileira, processo do qual o ditado popular “branca para casar, mulata para f…, preta para trabalhar” é uma boa tradução.16

Nesse sentido, Belmira e sua família não escaparam do deter- minismo e da naturalização da violência sexual sofrida, especialmente, pelas mulheres, que persistia ainda que a abolição fosse dada como algo inevitável mesmo para a classe senhorial, como foi possível depreender da argumentação de seu, então curador, o advogado Chistovam Telles Barreto que afirmou:

Ninguém sensato acreditará que o tenente coronel João Napomoceno de Araujo Bacellar libertando todos seus escravos deixasse em escra- vidão uma sua filha menor; quando educou, formou, ordenou a quantos filhos teve de suas escravas pretas preterindo sempre seus legítimos filhos brancos, mas idiotas ou pelo menos destituídos de inteligência até quase a imbecilidade; e a quem legou somente o que mal podia tirar-lhes – um engenho denominado Furna, todo desmantelado, verdadeiro ninho de morcego, viúvo de escravos. Não é também para acreditar-se que o pardo Albino, irmão de Belmira, por parte materna, que não era filho daquele Tenente Coronel Araujo, fosse alforriado no batistério pelo fato de ser cria e ter nascido de uma escrava a quem começava aquela a distinguir e fosse esquecida Belmira, que ostenta a semelhança mais natural com a família Bacellar que se especializa pela inconformidade quase monótona dos traços fisionômicos.17

De acordo com as observações do curador, foi possível depreender que o tenente-coronel João Nepomoceno de Araujo Bacellar e Castro era mais um dos senhores que usavam seu poder patriarcal para usufruir sexualmente dos corpos das mulheres que escravizava. Contudo, não passou despercebido que, ao discorrer sobre a existência de filhos naturais do finado com as cativas, o curador demonstrou compartilhar dos mesmos valores que autorizavam homens a se comportarem desse modo, visto que, em nenhum momento, ele condenou os atos do finado; pelo contrário, procurou ressaltar seu amor paternal aos filhos que teve com “escravas pretas”. Assim, ter filhos fora do casamento com essas mulheres não parecia ser algo reprovável e nem sequer foi problematizada a violência sexual que, na maior parte das vezes, envolvia esses “encontros” sexuais. Embora, em alguns casos, escravizadas pudessem ver essas relações como uma possibilidade de ascensão social, foi a violência sexual que mais predominou nessas relações.18 Nesse sentido, é importante lembrar que, para alguém que sequer era dona do próprio corpo, fingir interesse talvez fosse uma estratégia para evitar ainda mais violência, como o risco de apanhar enquanto seu corpo era violado.19

É importante observar que a naturalização do abuso sexual sofrido por essas mulheres, bem como a existência das filhas e filhos que tiveram com seus proprietários, chegou a ser alvo da atenção de alguns advogados e jurisconsultos que propuseram, em seus escritos, a libertação dessas crianças, mas se deixaram intimidar diante do poder senhorial, na primeira metade do século XIX.20 No entanto, o esforço da classe senhorial em preservar privilégios não significava que o conhecimento público desses relacionamentos extraconjugais com cativas abalasse a família desses senhores ou sua imagem diante da sociedade.

Ao observar que os filhos legítimos eram preteridos em relação aos naturais, o curador evidenciou seu próprio olhar racista. Para ele, embora fossem brancos, os filhos legítimos do tenente-coronel eram idiotas ou, pelo menos, destituídos de inteligência, isto é, lhes faltavam características positivas que, em seu ponto de vista, eram comuns às pessoas brancas. Por outro lado, ao caracterizar os “filhos” que o finado tivera com cativas, tais características não foram sequer mencionadas ou ressaltadas, mas ele não deixou de observar que o finado deu educação aos “filhos” das “escravas pretas”.

A partir das afirmações de Christovam Telles Barreto, é possível imaginar que Germana, que viveu em cativeiro até o fim da vida, obteve algumas conquistas importantes. Ela conseguiu negociar com seu proprie- tário a liberdade de suas crianças, inclusive a do filho que teve com outro parceiro, tanto que o menino era cria (provavelmente da casa) e foi alforriado na pia batismal. Além disso, o curador foi enfático ao dizer que Belmira era a caçula e que seus traços físicos indicavam a ligação consanguínea com a família Bacellar, de modo que não havia razão para que o finado “esquecesse” de livrá-la do cativeiro.

De qualquer maneira, a argumentação do curador e o depoimento de testemunhas de ambos os lados do tribunal indicam que, para muitos, não era novidade que o tenente-coronel usava seu poder patriarcal em benefício dos filhos que tivera com as suas cativas, inclusive aquele que Germana tivera com outro homem. Considerando o ponto de vista dos filhos legítimos, tal atitude do pai significava um prejuízo na herança à qual tinham direito, pois perdiam parte de seu patrimônio com tais alforrias. Possivelmente, a insistência de José Ferreira Mendes era também uma tentativa de reduzir a perda do patrimônio da esposa que, ao que parece, já vinha sendo dilapidado pelo sogro.

Em seu depoimento sobre o caso, Antonio Alves Ferreira Terra Dura, padrinho de Belmira, declarou que, no ato do batismo da então escravinha, perguntou ao finado proprietário se ele não pretendia batizá-la como livre, uma vez que tinha ouvido dizer que era sua filha, tendo obtido como resposta do tenente-coronel a informação de que ela não era sua filha e sim de um certo carpina de seu engenho de nome Francisco Antonio a quem classificou como um “pardo disfarçado”.

A não referência à condição do suposto pai de Belmira pode ter sido um indicativo de que, pelo menos no passado, ele tivesse sido escravizado, mas ainda não foram encontradas mais informações sobre este personagem na documentação. Não foi possível saber se, de fato, o mencionado carpina foi alguém com quem Germana teve um envolvimento sexual ou afetivo e era pai de algum de seus filhos; se o tenente-coronel João Nepomoceno de Araujo Bacellar e Castro, enquanto proprietário de Germana, usou seu poder para ter um envolvi- mento sexual com ela a despeito de sua relação com Francisco Antonio; ou, ainda, se outras escravizadas com as quais o finado tivera filhos vivenciaram experiências semelhantes também neste aspecto.

Na ocasião do batizado, o padrinho escolhido para Belmira, de antemão, fez seu primeiro movimento, e talvez o único ao longo da vida, para proteger sua futura afilhada, já que ele era testemunha do réu. Apesar de não parecer ter sido sua intenção, em sua narrativa, ele ainda cumpriu o papel de expressar o comportamento que se esperava de um pai que fosse proprietário de uma criança nascida como fruto de uma relação “ilícita”, isto é, a alforria da filha que, como a mãe, nascera cativa. Entretanto, como os demais, este não explicitou qualquer reprovação a esse tipo de prática senhorial, geralmente violenta, com essas mulheres.

Embora dona Antonia Francellina Mendes tenha sido ouvida e tenha pessoalmente negado a relação do pai com a mãe de Belmira, na maior parte do tempo, como já foi destacado, sua versão somente foi acessada por meio da voz de seu marido, o que era comum, especialmente em se tratando de mulheres casadas de elite.

Desse modo, é preciso destacar que, mesmo diante dos confrontos judiciais, as vozes das mulheres foram menos ouvidas nas ações de liberdade analisadas. Por serem educadas para cuidar exclusivamente de assuntos relacionados ao âmbito doméstico, mesmo quando chamadas para testemunhar, era comum se esquivarem de se expor. Evidentemente, foi notório no comportamento das pessoas comuns de ambos os sexos que estar diante de um juiz, especialmente para testemunhar contra os interesses de gente poderosa, não era exatamente algo prazeroso, mas isso não diz tudo sobre a relutância de algumas mulheres intimadas.

Isto foi o observado no comportamento de dona Domitilla Simões Ferreira, com idade de 35 para 36 anos, casada, natural da freguesia de Coração de Maria e que disse viver dos bens do marido. Ela atribuiu seu não comparecimento para testemunhar a favor da autora depois da primeira intimação tanto a uma gravidez como ao fato de morar a mais de cinco léguas de Feira de Santana, o que seria justificável para uma grávida prestes a dar à luz. Contudo, ela não achou nada demais, pedir para ser substituída sugerindo que, em seu lugar, fosse chamado para testemunhar o oficial carapina Francisco Alves, também morador de Coração de Maria. Segundo afirmou, tratava-se de uma pessoa de bem e que sabia do caso.

Não se sabe qual era a relação de dona Domitilla Simões Ferreira com o mencionado oficial, mas, provavelmente, eram próximos ou, até mesmo, um homem da família que foi escolhido devido ao fato de que seu marido, Tenente Ventino Simões Ferreira, também tinha sido convocado para testemunhar sobre o caso e, por isto, não poderia representá-la. Isto é, havia a compreensão de que, na impossibilidade do “cabeça do casal”, outros homens ligados à família desta testemunha poderiam ser escolhidos em seu lugar. Cabe observar que, diante da impossibilidade alegada, ela nem sequer solicitou ser ouvida pela justiça em sua própria residência, como fez seu marido que, alegando doença, solicitou depor no local onde se recuperava.

A justiça não aceitou a substituição proposta por dona Domitilla Simões Ferreira e ela foi ouvida, demonstrando ter muito o que dizer sobre o caso. Afirmou ter ouvido o tenente-coronel João Nepomoceno de Araujo Bacellar e Castro afirmar que Belmira era sua filha e que, por isto, a tinha libertado. De acordo com esta testemunha, em um jantar em sua residência, ouviu o finado afirmar que Belmira estava temporariamente na casa da filha casada com José Ferreira Mendes.21

Para quem estava tão reticente em testemunhar, Dona Domitilla Simões Ferreira foi além e citou nomes de várias pessoas que também teriam ouvido o finado falar sobre a alforria de Belmira, assim como citou pessoas que, depois da morte do tenente-coronel, ouviram um de seus herdeiros falar sobre a existência da carta de liberdade em favor da liber- tanda que teria sido entregue ao réu. Do mesmo modo, explicitou que a liberdade de Belmira era de conhecimento público.22 Foi por meio de seu rico depoimento que se tornou possível saber que, antes do nascimento de Antero, Senhorinha e Manuel, Belmira dera à luz a uma menina de nome Theodora que faleceu durante o período em que, juntamente com a mãe, estava na residência do mencionado casal. O tenente-coronel João Nepomoceno de Araujo Bacellar e Castro suspeitava que a criança tivesse chegado ao óbito devido a maustratos e à indiferença de ambos. Os dois sabiam que Belmira era livre e, consequentemente, sua “prole” nascera de ventre livre.23

O depoimento de dona Domitilla Simões Ferreira reforça a versão de que Belmira era liberta quando se tornou mãe, o que era indispensável para que seus filhos também fossem considerados livres. Do mesmo modo, a afirmação de Belmira de que seu pai e ex-senhor tinha usado seu poder patriarcal para alforriá-la é plausível, o que não significa dizer que ela tivesse adquirido ou reivindicasse direitos filiais como herança, pois, ainda que algumas testemunhas tenham dito saber que ela era filha do finado, isso não chegou a ser uma ameaça ao patrimônio da família, além da perda de propriedade dela e das três crianças, o que, aliás, não era pouco. De qualquer modo, o sentido da ação de liberdade era apenas o de contestar o domínio senhorial.24

De fato, enquanto os interesses do senhor e de sua família eram preservados pela lógica patriarcal, ao homem escravizado era sistemati- camente negada a autoridade sobre suas filhas e filhos, de modo que o poder dos senhores era reforçado sobre eles.25 Isto significa que, como observou Alves, ao mesmo tempo em que eles eram referência de poder pelo simples fato de serem homens, também eram escravizados e, portanto, referência de sujeição, uma representação própria do feminino.26 Conforme destacou Sonia Maria Giacomini, as relações patriarcais da família branca impunham vários limites aos homens escravizados, para os quais era vedado o papel de proteção, sustentação econômica e autoridade absoluta.27 Por outro lado, bell hooks ressaltou que, embora os homens africanos tivessem sido destituídos dos estatutos patriarcais que caracte- rizam sua situação social na África, na América, eles, assim como seus descendentes, não estavam destituídos de masculinidade. Para esta autora, desde o período colonial, a masculinidade era associada a atributos como força, virilidade e vigor físico, o que era a preferência dos senhores para a exploração.28

Evidentemente, no interior das famílias negras, não raramente mulheres escravizadas, libertas e livres se deparavam com homens de suas famílias que buscavam de todas as maneiras possíveis afirmar o poder patriarcal que lhes cabiam dentro da sociedade escravista do Brasil Imperial. Sandra Graham ilumina essa discussão ao demonstrar, por exemplo, que, em sua luta pelo direito de ser solteira, a escravizada Caetana enfrentou seu proprietário e homens de sua própria família, com as decisões do primeiro explicitando que, embora o poder senhorial fosse maior, a autoridade doméstica masculina também estava presente no interior desses núcleos familiares.29

Dentre as testemunhas chamadas para depor a favor de Belmira e suas crianças estava Augusto Cupertino Simões, pardo, de 35 anos, liberto, solteiro, filho de uma escravizada chamada Maria, alfaiate, natural da Freguesia de Pedrão e morador de Coração de Maria havia, pelo menos, catorze anos. Ele declarou que ouviu dizer sobre a paternidade atribuída ao capitão João Nepomoceno de Araujo Bacellar e Castro e sobre a existência da carta de liberdade em favor dela por mais de uma pessoa; entretanto, a credibilidade de suas declarações foi questionada pela defesa do réu, que o acusou de ser amásio da Belmira e, ainda, pai de Antero, Senhorinha e Manuel, relação e vínculo familiar que ele negou ter existido.30

Embora fosse uma estratégia comum aos advogados de defesa desqualificar as testemunhas de acusação e vice-versa, não é difícil de acreditar que, entre os aliados de Belmira, estivessem outros integrantes da família negra que lutava na justiça por liberdade, de modo que não é absurdo considerar a possibilidade de que eles realmente tivessem uma relação e filhos juntos, ainda que vínculos sexo-afetivos vivenciados pelas mulheres e o vínculo paterno na vida das crianças não tenham sido identi- ficados na documentação pesquisada. Isso não significa que essas relações não fizessem parte de suas vidas, assim como não quer dizer que, mesmo destituído de qualquer direito sobre suas filhas e filhos escravizados, os homens não estivessem nos bastidores, tecendo sonhos de liberdade junto com suas companheiras e suas crianças.

Nesse caso, e em muitos outros, talvez na construção da estratégia de acusação, Belmira e seu curador tivessem avaliado que fosse mais interessante usar o silêncio tradicionalmente imposto sobre a presença desse protagonista tanto em sua vida como na vida das crianças. Desse ponto de vista, como testemunha, ele poderia contribuir muito mais para o projeto de liberdade familiar do que como pai e companheiro ou ex-companheiro.

Contudo, ao tempo em que o caso tramitava na justiça, Belmira precisou contar com a solidariedade de outras pessoas para garantir a própria sobrevivência e a de suas crianças, e é plausível que muitas de suas escolhas tenham sido feitas pela população negra escravizada em busca de viver em liberdade ou pelas libertas e livres que lutavam por melhores condições de vida.

Luta pela sobrevivência e pela liberdade na “Cidade da Feira”

Na ação judicial movida por Belmira, foi encontrado o registro de matrícula de mãe e crianças, o que permitiu saber que ela foi descrita como cozinheira capaz de fazer qualquer serviço, enquanto as crianças foram matriculadas como do serviço da lavoura, inclusive a menina Senhorinha. Essa informação tornou possível inferir suas possibilidades de acesso às informações do mundo senhorial, pois, enquanto realizava atividades típicas do trabalho doméstico, como limpar a casa e cozinhar, pôde ouvir certas conversas – inclusive aquelas relacionadas às leis emancipacionistas adotadas pelo governo imperial e saber o que eles pensavam sobre essas leis.31

Além disso, é provável que, vez ou outra, sem poder se demorar muito, Belmira tivesse que ir até a tenda do alfaiate Augusto Cupertino Simões ou mesmo à venda de seu suposto senhor, José Ferreira Mendes, onde pode ter ouvido os burburinhos da freguesia, especialmente de pessoas escravizadas, libertas e livres que passavam por ali, cotidiana- mente.32 Entre uma obrigação e outra, ela pode ter ouvido coisas que, por certo, passava adiante e também recebido notícias sobre a agência de outras mulheres e homens que se atreveram a mover ações de liberdade contra senhores na região. Embora, na maior parte das vezes, seja difícil perceber os momentos de alegria das pessoas cativas, na documentação judicial, imagina-se que a notícia de que alguns juízes deram sentenças favoráveis a pessoas negras era motivo de euforia e a encorajava a tentar também este caminho para a liberdade legal.33

Conforme observou Ricardo Tadeu Caires Silva, com o fim do tráfico de pessoas escravizadas, as ações de liberdade começaram a aumentar na Bahia, crescendo significativamente depois de Lei do Ventre Livre, refletindo tanto a dificuldade de conseguir a manumissão quanto a crescente ameaça de serem vendidos para outras províncias, de modo que, entre 1792 e 1888, considerando um universo de 280 ações de liberdade, 88 (31,4%) foram movidas na década de 1870 e 169 (60,3%) na década de 1880. Assim, o autor também chamou a atenção para a adesão crescente de juristas e de abolicionistas à causa da liberdade.34

Com efeito, em estudo em que analisa as ações de liberdade no Tribunal de Relação do Rio de Janeiro, Keila Grinberg constatou que o número de pessoas que decidiam mover uma ação cresceu acentuadamente a partir de 1850 e, ao considerar as sentenças, concluiu que as chances de as pessoas escravizadas saírem vitoriosas eram maiores do que as de seus proprietários. Ou seja, pelo menos nessa instância, a legitimidade da escra- vidão estava com os dias contados.35 Nesse sentido, Beatriz Mamigonian mostrou que a lei de 7 de novembro de 1831, que declarava livre todas as pessoas escravizadas que entrassem no território ou portos do Brasil, tornou-se peça-chave entre as décadas de 1860 e 1880, tanto que, no início da década de 1880, as ações de liberdade chegaram a se multiplicar. A interpretação “radical” da lei de 1831 era compartilhada por um grupo de advogados, juízes e funcionários dispersos em várias províncias do país.36

No entanto, inevitavelmente, ao chegar em Feira de Santana, Belmira enfrentou outros desafios. Em geral, as pessoas escravizadas em situação como a que ela e as crianças vivenciavam ficavam sob a guarda de um depositário que costumava ser nomeado pelo juiz para guardar as libertandas e os libertandos com a finalidade de garantir que seriam preser- vados de qualquer impedimento enquanto tentavam provar seu direito à liberdade legal. Assim, durante a tramitação da ação de liberdade, a pessoa nomeada pelo juiz deveria entregá-los quando solicitado pela justiça. Não foi possível saber ao certo como foi feita a escolha dessa pessoa no caso de Belmira, mas o primeiro depositário nomeado neste caso declarou que estava impossibilitado de assumir tamanha responsabilidade e recusou a guarda da mãe e das crianças.

Em seguida, Silvino Ferreira de Araujo aceitou a tarefa de guardar a família durante o período necessário e estes ficaram oficialmente sob sua companhia por cerca de oito meses, quando ele pediu para ser exonerado, alegando que Belmira teria se ausentado da cidade por um tempo. Contudo, ao que parece, ao pedir para deixar de ser o depositário de Belmira e das crianças, ele se antecipou a um ataque que, certamente, sabia que viria. O réu, José Ferreira Mendes, acusou o depositário de ter desrespeitado a lei, deixando Belmira e suas crianças se evadirem para outra cidade. Por sua vez, em resposta, Silvino Ferreira de Araujo declarou que ela estava na miséria com seus filhos e que, inclusive, um deles estava sofrendo de hidropesia e varíola, razão pela qual a libertanda fora a São Gonçalo dos Campos, viagem que durava uma hora de trem. Isto é, seu objetivo fora buscar recursos e implorar a seus conhecidos ali um alívio para as suas necessidades.

Em sua defesa, o depositário ainda fez questão de salientar que a situação de penúria em que os depositados estavam vivendo havia sido informada ao suposto senhor e completou dizendo que o pedido do réu para suspender o depósito não estava de acordo com a verdade e que era parte da “má vontade cruel dos indivíduos que se arrogando domínio sobre tais criaturas não se lembravam, todavia de socorrê-las na mais extrema necessidade”, como o da “pobre desgraçada mulher que esmolava para sustentar seus inocentes filhos atacados de varíola e abandonados ao maior excesso de penúria e caridade pública”.37

Ao que parece, a essa altura, a situação de Belmira e das crianças ficara muito difícil e estar sob a guarda de um depositário não significava mais do que ter um lugar para se abrigar autorizado pela justiça. É possível que ela tenha conseguido algum tipo de ajuda, pois chegou a ficar em São Gonçalo dos Campos por alguns meses. Quem sabe Belmira, e mesmo as crianças, estivesse trabalhando temporariamente nas roças de plantio de fumo de São Gonçalo dos Campos?

Não era difícil que a libertanda tivesse migrado para São Gonçalo para se encontrar com familiares libertos ou livres que moravam nesta área tão promissora economicamente. Desde o período colonial, São Gonçalo dos Campos vinha se destacando na província da Bahia como região produtora de fumo para exportação. Embora a mão de obra de escravizados fosse bastante utilizada e a participação feminina fosse mais intensa, era muito comum a participação de famílias inteiras desde o processo de plantio à colheita; mulheres, homens e até mesmo crianças podiam executar delicadas tarefas como semear canteiros, transplantar mudas, capar e desolhar os pés de fumo e colher as folhas.38

Através do relato de Silvino, foi possível entrever que a rede de solidariedade de Belmira ultrapassava as fronteiras de Coração de Maria e de Feira de Santana. Ela, no mínimo, também tinha em seu círculo de relações pessoas com as quais acreditava poder contar em um momento de privação em São Gonçalo dos Campos, tanto que, mesmo correndo o risco de ser penalizada pela justiça, que poderia enviar a família para um depósito público, o que repercutiria negativamente na sentença, a libertanda saiu da cidade sem autorização judicial em busca da ajuda dessas pessoas para que pudesse garantir a própria subsistência e a de suas crianças.

Do relato de Silvino, é possível inferir, ainda, que foi possível construir algum grau de negociação entre ambos e que este consentiu que ela saísse do depósito por algum tempo e que, durante o período em que Belmira e as crianças estiveram distantes, houve uma certa regularidade de comunicação entre eles, como demonstrou o telegrama enviado por ela no qual explicava por que não pôde voltar no dia 19 de março de 1879, uma segunda-feira, certamente o dia combinado para o seu retorno à cidade.39

No telegrama, Belmira alegou motivo de doença e disse que naquele dia o trem sairia mais tarde, certamente referindo-se ao dia seguinte ao combinado. Ao finalizar, ela pediu para que o depositário respondesse à mensagem marcando outra data para a sua volta à Feira de Santana.40 A mensagem sugere, também, que a viagem era mais fácil de ser realizada nos dias de feira livre, o que era compreensível, pois, nestes dias, havia uma demanda maior de pessoas para fazer esse percurso, resultando, por conta disso, em uma variedade maior de horários do trem rumo à “Cidade da Feira”.41 Naqueles anos, além das inúmeras estradas e linhas de trens que ligavam Feira de Santana a cidades como Salvador e Cachoeira, havia uma grande demanda tanto para o transporte de mercadorias como de passageiros, de modo que o presidente da província escreveu no relatório para ser entregue a seu sucessor informando, ainda que superficialmente, sobre o tráfico das estradas de ferro da província, o que incluía a Estrada de Ferro Central que ligava Feira de Santana a Cachoeira.42 Em relação a São Gonçalo dos Campos, como, inicialmente, o tronco principal não passava por ali, é provável que, em 1878, Belmira pegasse o trem em algum dos muitos pontos do percurso entre as duas cidades. Em 1886, ficou pronto o desvio construído para ligar São Gonçalo dos Campos à Feira de Santana.43 Contudo, antes de ir em busca de melhores condições de vida em outras bandas, a sobrevivência deve ter sido uma preocupação de Belmira desde a sua chegada a Feira de Santana, de modo que ela deve ter pensado em alternativas de trabalho em uma cidade onde, principalmente, as mulheres - escravizadas, libertas e livres - tinham como ocupação mais provável o trabalho rural nas fazendas agrícolas, o doméstico e a venda de produtos na famosa feira livre.

Certamente, ao chegar à sede do município, Belmira pôde constatar que, às segundas-feiras, dia da grande feira semanal da cidade, o número de pessoas se multiplicava, como é possível notar na Figura 1 , que dá uma


Figura 1
: Mercado de Feira de Santana
Fonte: Acervo Digital da Biblioteca Nacional44

ideia do tamanho da multidão que se reunia na região da praça da Bandeira e praça João Pedreira, composta quase exclusivamente de pessoas negras. Observando a imagem, destaca-se aqui a mulher negra de chapéu de palha que aparece com uma criança, provavelmente seu filho, nos braços, à esquerda de um grupo de pessoas. Por certo, ela não poderia faltar àquele dia de feira, por isto foi registrada como geralmente apareciam as mulheres que tinham filhas e filhos pequenos, isto é, acompanhada de seu bebê que, assim como a mãe, também usava chapéu.

Nesses dias, aos moradores locais se juntavam as pessoas que vinham de localidades do entorno como Coração de Maria, Cachoeira e Conceição de Jacuípe, de onde muitas mulheres e homens, tal como Belmira, vinham pelas mais diferentes razões e acabavam ficando por toda a vida, bem como os migrantes de lugares mais distantes. Conforme é possível observar na Figura 1 , essas pessoas, com seu jeito de vestir, seus falares e modos, compunham aquele cenário que, além de um ambiente de negócios, deve ser lido como um espaço importante de lazer e sociabilidade, especialmente para a população pobre e negra que convergia de várias direções para a parte mais urbana do município.

Belmira deve ter se surpreendido com a dinâmica da feira que extrapolava o entorno da praça João Pedreira, região do centro de cidade em que ocorria e onde se aglomeravam inúmeros trabalhadores, a exemplo dos vendedores que pesavam as sacas de fumo cultivadas, principalmente na já citada freguesia de São Gonçalo dos Campos, mas também em São Félix, Cruz das Almas e na freguesia de São José das Itapororocas, distrito de Feira de Santana para os fregueses. Lá ela também se deparou com grãos de farinha, feijão, milho e outros itens que, inevitavelmente, vez por outra, caíam das sacolas dos fregueses e das carroças que passavam carregadas de mantimentos.

As pessoas livres estavam longe de serem as únicas que transi- tavam pela cidade nos dias de feira, ou mesmo nos outros dias da semana, uma vez que Feira de Santana ainda tinha uma população escravizada significativa que transitava entre o rural e o urbano em sua labuta diária.

Além disso, conforme pode ser observado na Figura 1 , nas ruas da sede do município circulavam principalmente pessoas negras e pobres.45

Na Resolução de 21 de junho de 1872, a Assembleia Legislativa de Bahia, a pedido da Câmara Municipal de Feira de Santana, em seu artigo 30, demonstrou que o poder público estava determinado a conter os escra- vizados que insistissem em se estabelecer na sede do município, proibindo que os proprietários de imóveis alugassem suas casas a esses inquilinos sob pena de terem que pagar 30 mil-réis de multa ou de passarem oito dias na prisão, com a punição dobrada em caso de reincidência. A mesma pena recairia em toda pessoa livre que admitisse como moradores em suas casas escravizados alheios sem o consentimento de seus senhores, devendo passar oito dias de prisão nas reincidências.46 Possivelmente, havia muitos escravizados fugidos infiltrados entre os livres na cidade que contavam com a solidariedade de pessoas livres para permanecerem por ali.

Nesse sentido, dentre as poucas possibilidades de escolha para uma mulher com três crianças pequenas como Belmira, que, conforme seu registro de matrícula, era “capaz de realizar qualquer serviço” e ainda era “cozinheira”, ela poderia conseguir algum dinheiro fazendo quitutes para vender na porta de casa enquanto cuidava das crianças e das coisas da casa.47 Belmira deve ter pensado, ainda, que talvez pudesse contar com a solidariedade de alguma outra mulher da vizinhança para cuidar delas enquanto vendia esses produtos na feira ou pelas ruas. Além disso, é importante lembrar que as sobras dos produtos negociados, como frutas, verduras, carnes e outros alimentos, tornavam a feira um local onde era possível conseguir comida para saciar a fome em caso de uma maior privação de recurso.

Em meio ao vozerio dos fregueses, negociantes e prestadores de serviços, Belmira pode ter olhado tudo aquilo tentando identificar algum ofício com o qual ela pudesse ganhar a vida nos dias de feira sem ter que se afastar de seus filhos durante a labuta ou, ainda, pode ter imaginado que eles poderiam ajudar vendendo alguns produtos e prestando pequenos serviços para os feirantes e para a freguesia.

Ao observar a Figura 2 , deparamo-nos com várias mulheres, notadamente trabalhadoras negras, as fateiras, limpando vísceras de gado bovino (o fato do boi) para, posteriormente, vender na feira livre. Na fotografia, algumas delas parecem conscientes de que estavam sendo fotografadas e encararam a pessoa que fez o registro daquele dia de trabalho sob o sol escaldante do agreste. O registro ainda permite ver que, entre as mulheres e alguns cestos, havia um menino vestindo roupas muito largas para seu tamanho que carregava algo na mão e, à esquerda da imagem, estava outro, mais crescido, que levava um vasilhame, provavelmente um vendedor de hortaliças que poderiam ser usadas para o preparo do fato do boi; por ali, também estariam inúmeros fregueses.


Figura 2
: Fateiras de Feira de Santana, provavelmente no final do século XIX ou início do século XX
Fonte: Arquivo Hugo Navarro Silva.

A presença de outras trabalhadoras na feira, muitas delas acompa- nhadas por suas filhas e filhos pequenos que ora ajudavam a mãe ora brincavam por ali mesmo, deve tê-la inspirado bastante: quem sabe, poderia vender quitutes na feira, como faziam tantas outras mulheres negras – escravizadas, libertas e livres que realizavam o trabalho de ganho ali. Essa era uma alternativa de trabalho que há muito vinha sendo adotada por mulheres trabalhadoras durante o século XVIII e XIX, época em que, em várias cidades, era impossível viver sem o trabalho das ganhadeiras nas ruas e praças.48

Em Salvador, onde as africanas circulavam com tabuleiros, gamelas e cestas habilmente equilibrados sobre as cabeças ocupando ruas e praças da cidade destinadas ao mercado público e feiras livres, elas vendiam de quase tudo, mas, sobretudo, comida, e era comum encontrá-las acompanhadas de suas crianças.49 No Rio de Janeiro, onde as mulheres minas monopolizavam o comércio ambulante, especial- mente os ramos mais rentáveis como o de venda de comida, muitas delas conseguiram, inclusive, acumular pequenas fortunas.50 Já em São Paulo, mulheres pobres, escravizadas e forras se multiplicaram, sobrevivendo do artesanato caseiro e do pequeno comércio ambulante, vivendo à sombra de um comércio bem mais próspero e mais valorizado feito por mercadores e intermediários mais poderosos.51

Ao que parece, a necessidade de enfrentar as autoridades municipais na tentativa de controlar os trabalhadores que faziam o comércio de rua nas cidades era uma preocupação constante no cotidiano das ganhadeiras que, muitas vezes, eram obrigadas a pagar altos impostos, além de enfren- tarem as determinações quanto ao modo como deveriam preparar seus produtos e onde deveriam vendê-los. Assim, por mais bem informada que Belmira estivesse sobre o cenário de conflito e sobre a disputa pelo direito de vivenciar aquele pequeno núcleo mais urbano do município, ao chegar, ela provavelmente não sabia o quanto as autoridades locais estavam empenhadas em restringir seus espaços e controlá-las devido às queixas da elite comercial da cidade, que se sentia ameaçada por ter que disputar a freguesia com as trabalhadoras negras que vendiam, a seu modo, inúmeros produtos, sobretudo, nos dias de feira.52 Evidentemente, uma maneira de fazer isto era criar leis para discipliná-las.

Na já mencionada Resolução de 1872, a Assembleia Legislativa da Bahia proibiu várias práticas comuns às trabalhadoras e trabalhadores de rua. Dentre outras determinações restritivas, foi definido que as ganha- deiras ou quitandeiras não deveriam se ajuntar para vender senão na praça do mercado ou nos lugares apropriados e designados pela Câmara, sob pena de ter que pagar uma multa de mil-réis sempre que contrariasse a postura, não ficando, contudo, privadas de divulgar em voz alta e vender pelas ruas e à porta de suas casas, contanto que não atravancassem as ruas, sob pena de dois mil-réis de multa ou de um dia de prisão.53 A documen- tação analisada não trouxe informações sobre a ocorrência de infrações das posturas, mas é provável que, na maior parte das vezes em que elas foram punidas por desrespeitá-las, acabavam indo parar na prisão devido ao valor elevado das multas.54

Além disso, o documento proibiu que as “salgadeiras de couro” escolhessem os lugares onde desejavam fazer seu trabalho dentro da “vila e povoações devendo só fazê-los em lugares aprovados pela Câmara, assim como de estender pelas ruas os mesmos couros ou salgados sob pena de 20 mil-réis ou condenação de 8 dias de prisão sendo demolidas as salga- deiras à custa dos donos”.55 Não se sabe, ao certo, qual era exatamente a porcentagem de mulheres que trabalhavam na feira ou vendiam produtos pelas ruas da cidade, entretanto, a julgar pela preocupação em formular posturas para discipliná-las, dificilmente elas seriam coadjuvantes na prática do comércio na cidade, notadamente o de alimentos.

As mulheres que trabalhavam na rua não eram bem-vistas, pois não era novo que o espaço considerado mais adequado para as mulheres, de uma maneira geral, era o âmbito privado. Entretanto, para aquelas que vivenciavam a experiência da escravidão, as libertas e mesmo as negras nascidas livres, a condição de trabalhadoras as tornava personagens tão comuns quanto os homens no mundo da rua, especialmente em uma cidade de vocação comercial como Feira de Santana. Por isso mesmo, discipli- ná-las não era exatamente uma tarefa fácil, visto que as condições de vida lhes impunham o trânsito no mundo da rua e, para o trabalho na rua, era imprescindível a circulação. Mesmo quando elas, enquanto trabalhadoras, estavam dedicadas ao trabalho doméstico, era muito comum que, em seu cotidiano, precisassem ir à rua, seja para comprar algum produto na feira, seja para lavar roupa, ir à quitanda ou à venda.

Ademais, no contexto de luta pela liberdade das últimas décadas da escravidão, transitar entre o público e o privado poderia ser determinante para a conquista da liberdade e, certamente, elas não poderiam, e nem queriam, se dar ao luxo de abrir mão da possibilidade de acumular algum pecúlio para a compra da alforria e de ter notícias sobre a movimentação de outras mulheres e homens que tramavam juntos as mais diferentes estratégias de liberdade.

Embora a agropecuária e o comércio em Feira de Santana fossem atividades que andavam entrelaçadas, os registros de compra e venda de pessoas escravizadas, um dos poucos documentos analisados que informaram a ocupação, indicavam que a mais comum entre mulheres e homens era o “serviço da lavoura”.56 Ao mesmo tempo, silenciavam de forma sistemática sobre o comércio, o que não reflete sua efervescência.57 Nesse sentido, é importante reconhecer os limites próprios da fonte escrita para o conhecimento de aspectos da experiência da população negra, os quais, muitas vezes, eram impossíveis de serem capturados pela escrita, como os sons dos risos, o choro das crianças, o anúncio em voz alta dos produtos, as conversas, os cochichos e os palavrões proferidos nos momentos de conflito. Além disso, as fontes utilizadas para tornar possível o acesso a fragmentos do mundo dessas mulheres não foram produzidas de próprio punho pela população escravizada, liberta e livre, isto é, toda a documentação analisada foi elaborada por homens brancos, especialmente senhores de pessoas escravizadas e autoridades.58

De todo modo, é possível que, além da criação de animais, dentre as atividades exercidas nas pequenas e médias propriedades, estivessem os cuidados com os animais, o cultivo e, não menos importante, a venda dos produtos cultivados e de animais de pequeno porte na feira semanal. Além disso, provavelmente muitas pessoas livres tinham uma pequena roça familiar e cultivavam algum produto no quintal de casa, de modo que, em qualquer dessas situações, os produtos serviam tanto para o complemento da dieta familiar quanto para serem vendidos na feira, e a não referência ao exercício desta atividade pode significar que a venda fosse um desdobramento do trabalho agrícola.59

Dada a tentativa de controle e de restrição de espaços para a população negra nas áreas centrais da cidade, um modo de interpretar o silêncio em torno do perfil dos principais personagens da feira livre da sede do município se refere ao fato de que uma maioria de trabalhadores negros, especialmente as mulheres deste grupo, predominavam entre as pessoas que tradicionalmente se dedicavam ao comércio informal.

Imagino que, a essa altura, a leitora ou leitor deve estar se pergun- tando qual teria sido o desfecho do caso de Belmira. Apesar de todo o seu esforço para conquistar e garantir na justiça o direito à liberdade para ela e suas três crianças, a sentença do juiz de direito Estevão Vaz Ferreira foi contra esta liberdade. Em seu arrazoado, declarou que a suplicante não conseguira provar que era livre e, por isto, deveria voltar junto com suas crianças para viver sob o domínio de José Ferreira Mendes e sua esposa.60 O desfecho, no entanto, conseguiu ser ainda mais trágico. Belmira deu veneno a Antero, Senhorinha e Manuel, e depois se suicidou, também envenenada. Entretanto, as coisas não saíram exatamente como ela tinha planejado pois, ainda que duas crianças tenham ficado em estado grave, as três sobreviveram ao envenenamento. Diante de um ato tão extremo como a opção pela morte, muitas vezes, atribuir à loucura era a saída mais fácil e não por acaso era a explicação mais comum para o suicídio de pessoas escravizadas na Bahia.61 Portanto, o esforço aqui é tentar entender o que Belmira pensou ao decidir acabar com a vida de suas crianças e com a própria existência.

Embora não descarte a loucura como possibilidade, ao remontar à triste história de Margareth Garner, de Ohio, Estados Unidos, Nikki M. Taylor recuperou, na documentação, a informação de que ela, depois de decapitar sua filha caçula, se voltou em direção a seus dois filhos sendo impedida de fazer o mesmo com ambos e, sem demonstrar arrependimento, afirmou ter feito o que pôde e ainda disse que se tivesse tido mais tempo teria matado todos.62 Imagino que Belmira deve ter sentido algo semelhante ao se ver à beira da morte. Em outras palavras, ela fez o que pôde.

Belmira certamente sabia que poderia recorrer da primeira sentença junto ao Tribunal de Relação da Bahia, mas, diante do poder já demonstrado por seu adversário e, ainda, diante da impossibilidade de apresentar provas de sua liberdade, possivelmente anteviu que teria mais uma sentença contra a liberdade e decidiu pela morte o mais rápido possível enquanto estavam sob a guarda do depositário.

Embora em ambientes diversos, Margareth Garner e Belmira são dois exemplos de mulheres que decidiram pela violência extrema depois de uma longa jornada em busca da liberdade. Ao optar pelo suicídio, Belmira se enquadraria no segundo motivo mais comum que levava pessoas escra- vizadas a cometerem suicídio na província da Bahia, isto é, a iminência de ser obrigada a voltar para o cativeiro, como destacou Jackson Ferreira.63

No caso de Belmira, é importante destacar que o retorno à casa da família senhorial depois de enfrentá-la nos tribunais poderia resultar em punições terríveis, como a separação da família por meio da venda, pois, ainda que a lei de 28 setembro de 1871 proibisse a separação de crianças menores de 12 anos de suas mães, isto não era garantia da preservação da família. Além disto, Antero já completara 12 anos e, portanto, poderia ser separado da mãe quando os senhores quisessem.64 Desse modo, a decisão de Belmira pode ser interpretada como o único modo visualizado por ela para livrar a si mesma e a suas crianças do cativeiro e como mais um ato de resistência à escravidão. Para ela, assim como o suicídio, o infanticídio pareceu ser a única maneira de evitar que ela e as três crianças tivessem um destino pior do que a morte, a escravidão. Nesse sentido, a morte foi considerada a única libertação possível.65

Em 18 de julho de 1879, a voz de Belmira foi mediada, pela última vez, por meio do padre Ovídio Alves de S. Boaventura, que afirmou que, antes de falecer, ela “deu sinais de arrependimento pedindo em público o sacramento”, a confissão, no que foi atendida e depois sua alma foi encomendada segundo o ritual romano.66 Contudo, apesar de ser provável que ela, de fato, compartilhasse da crença cristã, considerando tratar-se de uma mulher tão disposta a tudo, imagino que, em seus últimos momentos, Belmira talvez não tivesse lamentado a morte iminente em si, mas o fato de ter falhado em sua última tentativa de proteger suas crianças da escravidão.

É possível que, naquele momento, ela tenha percebido que partiria sem elas que, por sua vez, seguiriam enfrentando a vida em cativeiro sem que ela pudesse ajudar.

No entanto, essa história não terminou aí. Mesmo depois da morte de Belmira, o curador Christovam Telles Barreto apelou da sentença junto ao Tribunal de Relação da Bahia pela liberdade de Antero, Senhorinha e Manuel. Nesta fase da ação de liberdade, um terceiro curador foi nomeado para assumir o caso, o advogado Augusto de Araujo Santos. Contudo, ao se posicionar contra a liberdade, o juiz daquela instância confirmou a sentença anterior: assim como outras tantas crianças, as três seguiriam suas vidas em cativeiro, seguramente sonhando com o dia em que seriam livres, certamente inspiradas pela ancestral que lhes dera a vida e que se fora tentando libertá-las da escravidão, bem como por aquela que muito antes já havia investido para que a sua descendência pudesse, pelo menos, herdar o direito de reivindicar a liberdade legal.

Considerações finais

Apesar de Belmira e suas crianças terem recebido sentenças contra a liberdade tanto em primeira quanto em segunda instância, a capacidade desta mulher e de outras tantas de acionar o poder judicial, com tudo o que isto implicava – construir uma narrativa de liberdade plausível de ser crível pelos juízes; conseguir alguém para escrever uma petição para ser entregue ao juiz municipal; negociar com um curador para defender a causa diante da justiça; identificar alguém com condições de aceitá-la como depositário para poder se afastar do domínio senhorial; por vezes, conseguir alguma autonomia enquanto o caso tramitava; e convencer pessoas a testemunhar a seu favor mesmo contra gente poderosa – demonstrou o quanto o protagonismo dessas mulheres foi determinante para acabar com a escravidão no Brasil.

É importante destacar que, embora o número de pessoas escravi- zadas que procuravam o poder judicial com o objetivo de obter a liberdade tivesse aumentado significativamente a partir da década de 1870, na maior parte das vezes, as lutas por melhores condições de vida em cativeiro e por liberdade passavam longe dos tribunais, seja por falta de acesso à informação, seja pela dificuldade de levar os casos às autoridades compe- tentes. Isso significa que a ousadia dessas pessoas de acionar a justiça com suas demandas de liberdade extrapolava suas próprias vidas e as de suas famílias assumindo grande importância para toda a comunidade negra.

Embora não tenham sido poucas as Belmiras que perderam, do ponto de vista do processo histórico, elas venceram de maneira extraor- dinária sempre que apresentavam sua demanda de liberdade dentro ou fora dos tribunais. Cada movimento que faziam rumo à liberdade, cada aliada e aliado visível aos olhos da justiça ou não que aderiam a esses projetos, indicava que elas movimentavam toda uma estrutura. Isso porque, nas últimas décadas da escravidão no Brasil, o maior reduto de resistência à abolição nas Américas, quando uma mulher negra se movimentava, o “mundo inteiro” se movimentava junto com ela.67

Material suplementar
Notas
Notas
* As reflexões apresentadas neste texto fazem parte da pesquisa realizada para a escrita de minha tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal da Bahia (UFBA): Karine Teixeira Damasceno, “Para serem donas de si: mulheres negras lutando em família (Feira de Santana, Bahia, 1871-1888)”, Tese (Doutorado em História), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2019. A pesquisa foi desenvolvida com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
1 O conceito de interseccionalidade foi apresentado por Kimberlé Crenshaw no documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero, em 1989. Além dos cruzamentos selecionados para este estudo, classe, gênero e raça, ela destacou a existência de outras diferenças tais como: sexua- lidade, nação, etnia e religião. Kimberlé Crenshaw, “Encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero”, Estudos Feministas , v. 10,n. 1 (2002), pp. 117 . Sobre o conceito de interseccionalidade, ver, ainda: Carla Akotirene, O que é interseccionalidade? , Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2018; Patrícia H. Collins, Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento , São Paulo: Boitempo, 2019; Lélia Gonzalez, Primavera para as Rosas Negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa …, São Paulo: Diáspora Africana, 2018; e Alex Ratts e Flavia Rios, “A perspectiva interseccional de Lélia Gonzalez” in Ana Flávia M. Pinto e Sidney Chalhoub (orgs.), Pensadores negros – pensadoras negras: Brasil século XIX e XX (Cruz das Almas: EDUFRB; Fino Traço, 2016), pp. 387-403.
2 Sidney Chalhoub, Machado de Assis Historiador , São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 131-291; Joseli Maria N. Mendonça, Entre a mão e os anéis: a lei dos sexage- nários e os caminhos da abolição no Brasil , Campinas: Editora da UNICAMP, 2008, pp. 252-297. Para conhecer aspectos do olhar do movimento abolicionista estadu- nidense sobre a escravidão no Brasil: Clícea Maria A. de Miranda, “Repercussões da guerra civil americana no destino da escravidão do Brasil − 1861-1888”, Tese (Doutorado em História Social), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017, pp. 176-177; e Luciana da C. Brito, “Impressões norte-americanas sobre escravidão no Brasil: abolição e relações raciais no Brasil escravista”, Tese (Doutorado em História Social), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014, pp.73-113.
3 Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), Salvador, Tribunal de Relação da Bahia, Sessão Judiciária (SJ), Feira de Santana (66/2371/07), Ações de Liberdade, Autora, Belmira e seus três filhos (escravizados); Réu, José Ferreira Mendes. Juízo de Direito, 1879 .
4 Sobre fuga de mulheres escravizadas, consultar: Isabel Cristina F. dos Reis, “‘Uma negra que fugio, e consta que já tem dous filhos’: fuga e família entre escravos na Bahia”, Afro-Ásia , n. 23 (1999), pp. 27-46; e Nikki M. Taylor, Driven Toward Madness: The Fugitive Slave Margaret Garner and Tragedy on the Ohio , Athens: Ohio University Press, 2016, pp. 9-10.
5 Damasceno, “Para serem donas de si”, pp. 130-155; Kátia Lorena Almeida, Alforrias em Rio de Contas: Bahia, século XIX, Salvador: EDUFBA, 2012, pp. 126-135; Sandra Lauderdale Graham, “Uma certa de liberdade” in Giovana Xavier, Juliana Barreto Farias e Flávio Gomes (orgs.), Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação (São Paulo: Selo Negro, 2012), pp. 134-138; Sharyse P. do. Amaral, Um pé calçado, outro no chão: liberdade e escravidão em Sergipe – Cotinguiba, 1860-1900 , Salvador: EDUFBA; Aracaju: Diário Oficial, 2012, pp. 96-97; e Virginia Q. Barreto, “Fronteiras entre a escravidão e a liberdade: histórias de mulheres pobres livres, escravas e forras no Recôncavo Sul da Bahia (1850-1888)”, Tese (Doutorado em História Social), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. pp. 105-111.
6 Camillia Cowling, Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e a abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro , Campinas: Editora da Unicamp, 2018, pp. 137-172 e 215-258.
7 Damasceno, “Para serem donas de si”. Ver, ainda: Antonia Márcia N. Pedroza, Desventuras de Hypolita: luta contra a escravidão ilegal no sertão (Crato e Exu, século XIX) , Natal: EDUFRN, 2018, especialmente o capítulo 3; Cowling, Concebendo a liberdade , pp. 137-172; e Keila Grinberg, Liberata – a lei da ambigüidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX , Rio de Janeiro: Relume-Dunará, 1994, pp. 63-70.
8 Sobre quilombos, consultar: Elane Bastos de Souza, “Terra, território, quilombo: à luz do povoado de Matinha dos Pretos, Bahia”, Dissertação (Mestrado em Geografia), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010; João José Reis e Flávio dos Santos Gomes (orgs.), Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil , São Paulo: Companhia das Letras, 1996; Maria Beatriz Nascimento, Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual: possibilidade nos dias da destruição , São Paulo: Filhos da África, 2018; e Railma dos S. Souza, “Memória e história quilombola: experiência negra em Matinha dos Pretos e Candeal (Feira de Santana-Bahia)”, Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Cachoeira, 2016.
9 Elciene Azevedo, O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo , Campinas: Editora da Unicamp, 2010; e Grinberg, Liberata , pp. 63-70.
10 APEB SJ 66/2371/07, Ações de Liberdade , fl. 2.
11 APEB SJ 66/2371/07, Ações de Liberdade . Conforme o Código Filipino Português, adotado no Brasil durante o período colonial e ainda em vigor nesta época, que demarcava a desigualdade de direitos entre os sexos; isto é, assim como os deficientes mentais, mendigos, menores e indígenas, as mulheres casadas continuaram sendo consideradas incapazes enquanto os homens eram considerados “a cabeça do casal”, o que significava que, a eles, cabia decidir sobre a vida e os bens da esposa. Sobre as Ordenações Filipinas, ver: Keila Grinberg, Código Civil e cidadania , Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
12 Azevedo, O direito dos escravos , pp. 93-146; Celso Thomas Castilho, “Propõem-se a qualquer consignação, menos de escravos: o problema da emancipação em Recife, c. 1870” in Celso Thomas Castilho e Maria Helena P. T. Machado (orgs.), Tornando-se livre: agentes históricos e lutas sociais no processo de abolição (São Paulo: EDUSP, 2018), pp. 277-292; Walter Fraga Filho, Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia, 1870-1910 , Campinas: Editora da Unicamp, 2006, pp. 99-108; e Wlamyra R. Albuquerque, O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 81-93.
13 Cowling, Concebendo a liberdade , pp. 110-111. Para conhecer o debate de parla- mentares e de juristas em torno da proposta de libertar as crianças que nascessem de mulheres escravizadas, consultar: Eduardo S. Pena, Pajens da casa imperial: jurisconsulto, escravidão e a lei de 1871 , Campinas: Editora da Unicamp, 2001; e Chalhoub, Machado de Assis Historiador , pp. 131-191.
14 Cowling, Concebendo a liberdade , pp. 111. Consultar, ainda: Lorena Féres da Silva Telles, Libertas entre sobrados: mulheres negras e trabalho doméstico em São Paulo (1880-1920) , São Paulo: Alameda, 2013, pp. 167-174; e Sonia Maria Giacomini, Mulher e escrava: uma introdução histórica ao estudo da mulher negra no Brasil , Petrópolis: Vozes, 1988, pp. 65-72. Para conhecer uma reflexão interessante sobre a violência sexual e outras violências contra mulheres escravizadas no contexto do Caribe, ver: Marisa J. Fuentes, Dispossessed lives: enslaved women, violence, and the archive, Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2016.
15 Para ver uma interpretação sobre prática de senhores de alforriar na pia batismal e em testamentos as filhas e filhos que tinham com mulheres de seu domínio, assim como para ter acesso a experiências diferentes de escravizadas que se relacionaram sexo-afetivamente com senhores, ver: Adriana D. R. Alves, “As mulheres negras por cima: o caso de Luzia jeje. Escravidão, família e mobilidade social – Bahia, c.1790 a c.1830”, Tese (Doutorado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010; e Marcio de S. Soares, A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goiatacases, c.1750-c. 1830 , Rio de Janeiro: Apicuri, 2009, pp. 53-84.
16 Gilberto Freyre, Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal , São Paulo: Global, 2006, p. 72. Para conhecer uma inter- pretação inspiradora em relação aos papéis atribuídos às mulheres, com ênfase nas negras, ver: Ana Cláudia L. Pacheco, Mulher negra: afetividade e solidão , Salvador: EDUFBA, 2013, pp. 21-86.
17 APEB SJ 66/2371/07, Ações de Liberdade , fls. 200-204.
18 Júnia F. Furtado, Chica da Silva e o contratador dos diamantes , São Paulo: Companhia das Letras, 2003; e Alves, “As mulheres negras por cima”, pp. 103-156.
19 Angela Davis, Mulheres, raça e classe , São Paulo: Boitempo, 2016, pp. 36-38; e bell hooks, Ain’t I a Woman: Black Women and Feminism , 2 ed., Nova York: Routledge, 2015, pp. 15-49.
20 Pena, Pajens da casa imperial , pp. 169-185. Em seu trabalho, Camillia Cowling demonstrou como as escravizadas percebiam a existência de desconfortos de certas relações comuns às sociedades escravistas do século XIX, especialmente aquelas relacionadas ao contato sanguíneo, como sexo e o aleitamento realizado pelas amas de leite. Para esta discussão, interessou, de maneira particular, os casos de crianças nascidas de relações entre proprietários e suas cativas bem como a estratégia de se apegar a preceitos legais frágeis como o Código Negro Carolino espanhol de 1784 e convenções sociais incertas (como a prática senhorial de alforriar suas filhas e filhos) para conseguir a alforria legal de suas crianças. Cowling, Concebendo a liberdade , pp. 153-156.
21 APEB SJ 66/2371/07, Ações de Liberdade , fls. 78-80v.
22 APEB SJ 66/2371/07, Ações de Liberdade , fls. 78-80v.
23 APEB SJ 66/2371/07, Ações de Liberdade , fls. 78-80v.
24 Kátia de Q. Mattoso, Família e sociedade no século XIX , Brasília: Corrupio, 1988, pp. 45-58; e Alessandra S. Silveira, “O amor possível: um estudo sobre concubinato no bispado do Rio de Janeiro em fins do século XVIII e XIX”, Tese (Doutorado em História), Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005, p. 107.
25 Cowling, Concebendo a liberdade , pp. 53-54.
26 Alves, “As mulheres negras por cima”, p. 5.
27 Giacomini, Mulher e escrava , pp. 42-45.
28 hooks, Ain’t I a Woman , pp. 20-21. Maria Odila L. da S. Dias, observou que por conta das determinações patriarcais dos papéis femininos e masculinos na sociedade, os homens tinham resistência a excercer certas ocupações consideradas aviltantes e femininas, entretanto, o mesmo não acontecia com as mulheres pobres, livres, forras e escravas, em São Paulo, do final do século XVIII até às vésporas da abolição. Verficar em: Maria Odila L. da S. Dias, “Mulheres sem história”, Revista de História da USP , v. 114 (1985), p. 44.
29 Sandra Lauderdale Graham, Caetana diz não: história de mulheres da sociedade escravista brasileira , São Paulo: Companhia das Letras, 2005, pp. 85-90. Sobre o conceito de família negra, ver: Isabel C. F. dos Reis, “A família negra no tempo da escravidão: Bahia, 1850-1888”, Tese (Doutorado em História), Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007, pp. 18-19.
30 APEB SJ 66/2371/07, Ações de Liberdade fls. 26-29.
31 Chalhoub, Machado de Assis Historiador, pp. 131-291; Mendonça, Entre a mão e os anéis , pp. 119-177; e Pena, Pajens da casa imperial , pp. 253-338.
32 Apesar do tom depreciativo de Joaquim Manuel de Macedo sobre o espaço da “venda”, em seu livro As vítimas-algozes , o autor apresentou uma descrição interes- sante deste importante espaço para a economia e para a sociabilidade no Brasil do século XIX. Segundo este literato, trata-se de: “uma pequena casa de taipa e coberta de telha, tendo às vezes na frente da varanda aberta pelos três lados, também coberta de telha e com o teto sustido por esteios fortes, mas rudes e ainda mesmo tortos; as paredes nem sempre são caiadas, o chão não tem assoalho nem ladrilho; quando há varanda, abrem-se para ela uma porta e uma janela; dentro está a venda: entre a porta e a janela encostado à parede um banco de pau, defronte um balcão tosco e no bojo ou no espaço que se vê além, grotesca armação de tábuas contendo garrafas, botijas, latas de tabaco em pó, a um canto algumas voltas de fumo em rolo e uma ruim manta de carne-seca. Eis a venda”. Joaquim Manuel de Macedo, As vítimas-Algozes: quadros da escravidão , São Paulo: Martin Claret, 2010, p. 21. Verificar o artigo 7° da Lei n° 2.040, de 28 de setembro de 1871 .
33 Ricardo Tadeu C. Silva, “Caminhos e descaminhos da abolição: escravos, senhores e direitos nas últimas décadas da escravidão (Bahia, 1850-1888)”, Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2017, p. 144.
34 Silva, “Caminhos e descaminhos”, p. 144.
35 Keila Grinberg, “Reescravização, direitos e justiça no Brasil do século XIX” in Silvia H. Lara e Joseli Maria N. Mendonça (orgs.), Direito e Justiça no Brasil: ensaios de história social (Campinas: Editora da Unicamp, 2006), pp. 120-124.
36 Beatriz G. Mamigonian, “O direito de ser africano livre: os escravos e as interpre- tações da lei de 1831” in Lara e Mendonça (orgs.), Direitos e Justiça no Brasil , pp. 130-152. Para conhecer aspectos da luta de uma africana livre pelo direito materno à tutela de seus filhos, ver: Enidelce Bertin, “Uma “preta de caráter feroz” e a resis- tência ao projeto de emancipação” in Castilho e Machado (orgs.), Tornando-se livre , pp. 129-141.
37 APEB SJ 66/2371/07, Ações de Liberdade , fls. 154-154v.
38 Rosana F. Lessa, “Mulheres na indústria fumageira de São Gonçalo dos Campos- Bahia: cotidiano e memórias 1950-1980”, Dissertação (Mestrado em História), Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2010, pp. 38-41.
39 APEB SJ 66/2371/07, Ações de Liberdade , fl. 167.
40 APEB SJ 66/2371/07, Ações de Liberdade , fl. 167.
41 Ao longo do período investigado, tanto o município quanto a cidade que era o distrito sede tinham o mesmo nome, isto é, Feira de Sant’Anna. Além disso, na documentação, por vezes, o distrito sede também apareceu como “Villa de Feira de Sant’Anna”, “Feira” e “Cidade da Feira”, o que demonstra a permanência, no imaginário popular, de suas antigas denominações bem como a origem da cidade relacionada à feira livre e à feira de gado. Portanto, no sentido de padronizar e facilitar a leitura, optei por utilizar a denominação atual, isto é, Feira de Santana, sempre que fizer referência ao distrito sede e ao município. Sobre a denominação e origem de Feira de Sant’Anna, ver: Celeste Maria P. Andrade, “Origens do povoamento de Feira de Santana: um estudo de história colonial”, Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1998, pp. 25-59. Sobre a locali- zação de Feira de Santana, ver, também: Nacelice B. Freitas, “Urbanização em Feira de Santana: influência da industrialização 1970-1996”, Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1998, p. 53; Zéli J. Lima, “Lucas Evangelista, o Lucas da Feira: estudo sobre rebeldia escrava em Feira de Santana”, Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1990, pp. 29-36; Ana Maria C. S. Oliveira, “Feira de Santana em tempo de modernidade: olhares imagens e práticas do cotidiano (1950-1960)”, Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008, p. 51; e Rollie E. Poppino, Feira de Santana , Salvador: Itapuã, 1968, pp. 18-53.
42 The Rio News , Rio de Janeiro, 5 nov. 1884, p. 4. Sobre o processo de construção de estrada de Ferro na Bahia ver: Robério Santos Souza, Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863) , Campinas: Editora da Unicamp, 2015.
43 Poppino, Feira de Santana , pp. 196-197.
44 Acervo Digital, Fundação Biblioteca Nacional .
45 Damasceno, “Para serem donas de si”, pp. 59-89; e Flaviane R. Nascimento, “Viver por si: histórias de liberdade no Agreste Baiano Oitocentista (Feira de Santana, 1850-1888)”, Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2012, p. 57.
46 APEB, maço 2942, 1842-1872, Resolução da Assembleia Legislativa da Bahia , 21 jun. 1872, artigo 30.
47 APEB SJ 66/2371/07, Ações de Liberdade , fl. 14.
48 Luiz R. B. Mott, “Subsídios e história do pequeno comércio no Brasil”, Revista História , v. 53, n. 105 (1976), pp. 100-101.
49 Cecília M. Soares, “Ganhadeiras: mulher e resistência negra em Salvador no século XIX”, Afro-Ásia , n. 17 (1996), pp. 61-62.
50 Juliana B. Farias, Mercados minas: africanos ocidentais na praça do mercado do Rio de Janeiro (1830-1890) , Rio de Janeiro: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro; Casa Civil – Prefeitura do Rio de Janeiro, 2015, p. 23; e Sheila de C. Faria, “Damas mercadoras: as pretas minas no Rio de Janeiro (século XVII a 1850)” in Mariza de C. Soares (org.), Rotas Atlânticas da diáspora africana: da Baía do Benim ao Rio de Janeiro (Niterói: EdUFF, 2007), pp. 117-129.
51 Maria Odila L. da S. Dias, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX , São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 78; e Dias, “Mulheres sem história”, pp. 31-45.
52 Soares, “Ganhadeiras”, p. 73.
53 APEB, maço 2942, 1842-1872, Resolução da Assembleia Legislativa da Bahia , 21 jun. 1872, artigo 4°, fl. 184.
54 Para saber sobre a tentativa das autoridades municipais de Salvador para disciplinar as mulheres negras no século XIX, consultar: Cecília M. Soares, “A negra na rua, outros conflitos” in Cecília Maria B. Sardenberg, Ione M. Vanin e Lina M. B. Aras (orgs.), Fazendo gênero na historiografia baiana (Salvador: NEIM/UFBA. 2001), pp. 35-37.
55 APEB, maço 2942, 1842-1872, Resolução da Assembleia Legislativa da Bahia, artigo 34°, fls. 190-190v.
56 A respeito das ocupações de pessoas escravizadas negociadas em Feira de Santana, entre 1871-1881, consultar: Damasceno, “Para serem donas de si”, pp. 48-50.
57 Para uma discussão interessante sobre a realização do pequeno comércio por escra- vizadas africanas, negras livres e libertas, ver: Soares, “Ganhadeiras”, pp. 57-71. Para uma discussão sobre as mulheres pobres, especialmente as libertas, e sua predominância entre os trabalhadores que realizavam o pequeno comércio urbano em Salvador no final do século XIX e início do XX, ver: Alberto Heráclito Ferreira Filho, “Desafricanizar as ruas: elites letradas, mulheres pobres e cultura popular em Salvador (1890-1937)”, Afro-Ásia , n. 21-22 (1998-1999), pp. 239-256.
58 Para ver uma crítica interessante sobre as fontes escritas para a reconstituição do cotidiano de mulheres pobres, brancas, escravizadas e forras, em geral analfabetas, verificar em: Dias, Quotidiano e poder , pp. 19-20.
59 Para outras regiões da Bahia, consultar: Alex A. Costa, “Tramas e contendas: escravos, forros e livres constituindo economias e forjando liberdades na Bahia de Camamu”, 1800-1850, Tese (Doutorado em História), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016, pp. 81-112; e Clíssio S. Santana, “Ele queria viver como se fosse homem livre: escravidão e liberdade no termo de Cachoeira (1850-1888)”, Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014, pp. 28-75.
60 APEB SJ 66/2371/07, Ações de Liberdade , fls. 205-206v.
61 Jackson André da S. Ferreira, “‘Por hoje se acaba a lida’: suicídio escravo na Bahia (1850-1888)”, Afro-Ásia , n. 31, (2004), pp. 208-210.
62 Taylor, Driven toward madness , p. 76.
63 Taylor, Driven toward madness . Sobre suicídio e infanticídio bem como seus significados para pessoas escravizadas, ver: Ferreira, “‘Por hoje se acaba a lida’”; Reis, “‘Uma negra que fugio, e consta que já tem dous filhos’”, pp. 45; Manolo Florentino e José Roberto Góes, A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-c.1850 , Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, pp. 13-22; e Mary C. Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850) , São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp. 415-420.
64 Para ver uma discussão sobre a decisão de cometer suicídio e infanticídio diante da ameaça de venda pela senhora ou senhor, consultar: Hebe Maria M. Castro, “Laços de família e direitos no final da escravidão” in Fernando A. Novais (coord.) e Luiz Felipe de Alencastro (org.), História da vida privada no Brasil-Império: a corte e a modernidade nacional (São Paulo: Companhia das Letras, 1997), pp. 345-350; e Reis, A família negra no tempo da escravidão , pp. 40-60. Sobre infanticídio, ver ainda: Ana Lucia Araujo, “Black Purgatory: Enslaved Women’s Resistance in Nineteenth- Century Rio Grande do Sul, Brazil”, Slavery and Abolition , v. 36, n. 4 (2015), pp. 568-585; e Giacomini, Mulher e escrava , pp. 26-27.
65 Sobre os sentidos da morte, especialmente por meio do suicídio em certas culturas africanas, consultar: Ferreira, “‘Por hoje se acaba a lida’”; e Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro , p. 418.
66 APEB SJ 66/2371/07, Ações de Liberdade , fl. 224; e “Registro de óbito da Casa de Misericórdia, em 18 de julho de 1879”, FamilySearch .
67 Angela Davis, Palestra proferida no curso sobre Feminismo Negro Decolonial organizado pelo Coletivo Angela Davis , Cachoeira, 2017.

Figura 1
: Mercado de Feira de Santana
Fonte: Acervo Digital da Biblioteca Nacional44

Figura 2
: Fateiras de Feira de Santana, provavelmente no final do século XIX ou início do século XX
Fonte: Arquivo Hugo Navarro Silva.
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