Resumo: No século XIX, impedir a formação e a continuidade dos quilombos tornou-se uma atribuição do Estado brasileiro. O assunto foi incluído na lei referente aos juízes de paz, de 15 de outubro de 1827, e incorporado a outras normas do Império poste- riormente. Concomitantemente à elaboração desse parâmetro legislativo, diferentes autoridades administravam a questão nas províncias. O objetivo deste texto é refletir sobre o tratamento oficial dos quilombos no Brasil das primeiras décadas do Oitocentos a partir de uma documentação ainda não explorada, especialmente as correspondências relativas a um quilombo encontrado e “destruído” na Serra do Cubatão, província de São Paulo. Indicam-se as leis e práticas dirigidas a esses agrupamentos na década de 1820, como as diligências contra o quilombo paulista foram organizadas, que escravos o compunham e de que forma é possível compreender o retrato atribuído a eles na ocasião.
Palavras chave: QuilombosQuilombos,EscravidãoEscravidão,São PauloSão Paulo,Brasil ImpérioBrasil Império.
Abstract: In the 19th century, the task of preventing the formation and growth of quilombos was identified as being under the jurisdiction of the Brazilian State. The State’s role was stated in a law issued on October 15, 1827, discussing Justices of the Peace, and later incorporated into other legal codes of Brazil’s Imperial period. At the same time that this legislative parameter was created, different provincial authorities were responsible for the law’s administration. This article reflects over the official attitudes regarding quilombos in Brazilian territory during the first decades of the 19th century, utilizing primary sources that have not yet been examined especially the correspondence related to a quilombo that was found and “destroyed” in the Serra do Cubatão, in the province of São Paulo. The paper indicates the laws and practices pertaining to these enclaves in the 1820s, also examining how the campaign to eliminate the São Paulo quilombo was organized, the demographics of the community’s population and ways of interpreting its depiction by authorities of the period.
Keywords: Quilombos, Slavery, São Paulo, Brazil, Brazilian Empire.
ARTIGOS
A “DESTRUIÇÃO” DE UM QUILOMBO NA SERRA DO CUBATÃO (1827-1828) *
THE “DESTRUCTION” OF A QUILOMBO IN THE SERRA DO CUBATÃO (1827-1828)
Recepção: 19 Agosto 2020
Aprovação: 27 Abril 2021
Em abril de 1827, o então juiz de fora1 e juiz da alfândega de Santos, Gabriel Mendes dos Santos (1790-1873),2 enviou ao vice-presi- dente da província de São Paulo3 o requerimento de uma moradora das “vizinhanças do Porto de Cubatão”. O juiz pedia medidas prontas, eficazes e cerca de doze capitães do mato para resolver o caso exposto por D. Josefa de Oliveira Bueno. A solicitação desta dizia que
nos matos de seu sítio se acha um Quilombo de negros fugidos, os quais tem feito nas plantações da suplicante grandes, e continuados roubos, causando à suplicante graves prejuízos a ponto de ver-se a suplicante na triste necessidade de comprar para a sua subsistência, e de sua família, aquelas mesmas coisas, que fazem o objeto de sua lavoura, chegando o arrojo dos ditos negros aquilombados a tanto, que de dia tem-se aproximado a casa da suplicante […].4
Cinco escravos haviam sido capturados no último desses assaltos: dois deles foram entregues ao juiz de fora e três ao comandante militar do porto de Cubatão. Mesmo assim, a sitiante se via numa difícil situação, pois não podia continuar a cultivar suas terras, “sempre roubadas”, nem residir no local, devido aos receios de que aumentasse o número de negros no quilombo e de que recebesse outros “ultrajes”. De acordo com a solicitação, eram necessárias providências “não só para a segurança da propriedade e pessoa da suplicante como pela utilidade geral, que resulta a toda Província”, pois o “valhacouto” poderia atrair “fugidos de todas as partes”.5
O agrupamento da chamada Serra do Cubatão demandou inves- tidas promovidas pelo governo da província de São Paulo entre 1827 e 1828, quando foi considerado “exterminado” – depois de confrontos, outras capturas de escravos e a exposição das cabeças dos que foram mortos. Esses eventos foram narrados em uma porção de correspon- dências ainda não analisadas pela bibliografia especializada e que podem contribuir para o conhecimento da história dos agrupamentos de origem africana formados nessa localidade durante o período.
Conhecem-se alguns quilombos paulistas existentes no século XVIII e os formados durante a segunda metade do Oitocentos, sobretudo na década da Abolição, quando ocorriam fugas “em massa” de escravos na província. Muitos deles dirigiram-se para as proximidades de Santos, onde existiam dois agrupamentos bem estabelecidos: o de Jabaquara e o de Pai Felipe.6 Ao reunir e analisar os dados disponíveis, os historia- dores formularam a hipótese de que, no alvorecer do século XIX, teria ocorrido um processo de “interiorização” de quilombos mais antigos concomitantemente à ação de “grupos de salteadores” nos arredores da cidade de São Paulo.7
Semelhante a outros relatos que dão notícia dos mocambos e quilombos formados no Brasil,8 as correspondências sobre o quilombo na Serra paulista constituem a crônica da (tentativa de) “destruição” desse agrupamento. Conforme apontado pelos estudos historiográficos, a preocupação de autoridades e senhores a respeito do tema foi constante enquanto durou a escravidão no país. Contudo, o trato oficial da questão modificou-se após Palmares. Apesar de sua singularidade, esse mocambo tornou-se um exemplo a ser evitado: estimulou a adoção de medidas para prevenir a formação de ajuntamentos do tipo em várias localidades da colônia e definiu um lugar para a figura do capitão do mato.9
Quanto ao século XIX, os historiadores indicaram as perma- nências, as dificuldades e as variáveis presentes nas ações oficiais contra os quilombos ao explorar fontes oriundas de diferentes províncias do Império. No Rio de Janeiro das décadas de 1820 e 1830, tais agrupamentos demandaram atenção em vários momentos; as diligências, no entanto, para “bater” os “coutos”, ou eram consideradas “infrutíferas” ou surtiam efeitos temporários.10 Por volta dessa época, na província de Pernambuco, conflitos intraelites tiraram o foco do quilombo do Catucá, cujo número de escravos reunidos “engrossou”. Para sua destruição, foram necessários acordos entre senhores e o governo provincial, bem como o fim de outro problema, a Cabanada.11 Já no Pará de meados do Oitocentos, com maior ou menor empenho, os presidentes de província buscaram atender os reclamos de parte da população e investir contra os quilombos existentes.12
Embora tenham ocupado as autoridades com frequência, a formação de agrupamentos de escravos diferia do perigo de insurreições, problema que ameaçava mais diretamente os pactos da sociedade brasileira sob a vigência da escravidão13 – não por acaso esse objeto foi tipificado como “delito público” no Código Criminal do Império, diferentemente dos quilombos.14 Além disso, nem todos os “coutos” eram descobertos e destruídos porque seus membros – escravos, mas também libertos e livres – construíam relações com os povoados onde se situavam, o que lhes permitia ficar longe dos olhares de senhores e autoridades.15 Daí que algumas comunidades puderam sobreviver durante anos.16
Em diálogo com essas e outras leituras, as linhas a seguir têm por objetivo refletir sobre o tratamento oficial dos quilombos no Brasil das primeiras décadas do século XIX, quando eram forjados os pactos do Estado independente (como a segurança pública) a partir da análise das corres- pondências relativas ao quilombo da Serra do Cubatão e de fontes coevas. O texto está dividido em três partes: na primeira, são exploradas práticas e leis referentes aos quilombos situadas na década de 1820; em seguida, verifica-se de que maneira o juiz de fora da vila de Santos lidou com a continuidade dos assaltos cometidos por escravos na Serra e o que mais se passava na região; por fim, examina-se as informações sobre o quilombo, seus membros e os aspectos da “destruição” desse “couto” buscando compreender o retrato atribuído aos escravos aquilombados na ocasião.
Antes de voltar a São Paulo, cabe uma passagem pela capital do Império, onde a população escrava chegou a quarenta mil durante as três primeiras décadas do século XIX e as notícias sobre quilombos eram recorrentes.17 No período logo posterior à outorga da Carta de 1824, havia na Corte uma instituição, sem paralelo nas demais localidades brasileiras, que adminis- trava o assunto: a Intendência Geral de Polícia.18
Em fins de 1824, o intendente em exercício, Estevão Ribeiro de Resende (1777-1856),19 requisitou à Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça o emprego de homens da província de Minas Gerais para bater vários quilombos que existiam “na serra e matas da Tijuca”. Segundo Resende, compunham esses agrupamentos “escravos, e até libertos e desertores”, que comerciavam “furtos” nas estradas e vinham praticando ataques dentro dos limites da capital.20
Esse estado de coisas poderia piorar, na sua visão, porque as tropas das Companhias de Ordenanças,21 em vez de coadjuvar, atrapalhavam as diligências: o “estrondo” que seus membros faziam acabava anuncian- do-os de longe, o que dispersava os escravos fugidos e prejudicava as capturas. Além disso, os capitães do mato eram “indignos”, pois estavam usando esse título para roubar cativos.22
Os homens de Minas Gerais, argumentava o intendente, viviam “de perseguir garimpeiros e negros fugidos”, além de usarem “vestimenta de couro própria para resistir a espinhos e penetrar os bosques serrados”. O ministro da justiça, Clemente Ferreira França (1774-1827),23 atendeu à solicitação. Aprovou a contratação de doze indivíduos recomendando que o valor a ser exigido dos senhores de escravos não excedesse o proposto – 4$000 por cativo capturado – para que tais proprietários ficassem “mais suaves” com o trabalho da polícia.24
A requisição, tal qual em São Paulo, originava-se da ocorrência de furtos praticados pelos escravos; se bem que os prejuízos aos moradores não fossem mencionados. Na circunstância em apreço, foi colocado em jogo o cuidado para assaltar os “coutos” e o papel da instituição policial da Corte. O intendente, vale acrescentar, era natural de Minas Gerais e havia sido fiscal dos diamantes em torno de 1813. Provavelmente conhecia, ao menos por ouvir dizer, como organizar diligências contra quilombos, já que estes foram numerosos nessa localidade durante o século XVIII.25 Ele deixou claro que acompanhava o cuidado do governo provincial mineiro quanto ao tema e a presteza dos homens que solicitava.26
Tidos como questão de “pública segurança” por essa autoridade, os quilombos se diferiam dos variados objetos manejados pela Intendência Geral: exigiam experiência. Vale notar os lugares de capitães do mato e de proprietários de escravos à época, pois já se afirmou que os primeiros foram abolidos na Corte nesse período, subsistindo “interesses mútuos” entre senhores e Estado de “subjugar a população escrava”.27 No entanto, vê-se que a demanda por gente especializada permanecia: a captura de escravos aquilombados não era serviço para qualquer um. Além disso, a proteção dos direitos dos proprietários era mais um argumento (não o principal) ligado ao pagamento pelo trabalho. Não partiu deles a solici- tação de capturas.
Uma vez apanhados, os cativos tinham de ser bem entregues, como assinalou o ministro. Zelo indispensável para que, ao mesmo tempo, as despesas fossem satisfeitas e tais cidadãos vissem com bons olhos as instituições. Informando os movimentos e as prisões de escravos desde o período joanino,28 a Intendência passava por uma nova fase em meados da década de 1820. Ao que parece, buscava centralizar tarefas, como a eliminação dos quilombos, em meio às mudanças do país e às críticas – às vezes favoráveis ao rigor no trato dos cativos – que começaram a circular nos periódicos fluminenses.29
Nas demais províncias, conforme referido, não havia uma estrutura semelhante no mesmo período. Houve, porém, esforços no sentido de uniformizar as ações, o que incluiu o cuidado com os quilombos. No final de 1825 criou-se o cargo de comissário de polícia, subordinando-o à Intendência Geral, para atuar nos distritos de cada localidade.30 No primeiro artigo desse regulamento, estabelecia-se a competência dos comissários para separar ajuntamentos de escravos e libertos; já os artigos 11 e 12 versavam especificamente sobre escravos fugidos, “destruição” de quilombos e capitães do mato.31
Não se sabe se esses comissários atuaram fora do Rio de Janeiro.32 Talvez não tenha havido ocasião para as nomeações, pois, uma vez iniciadas as atividades do Parlamento brasileiro, em 1826, agrupamentos de escravos e prevenção encontrar-se-iam em uma nova referência legis- lativa. Enquanto isso, nas demais localidades, cabia ao governo provincial, como ocorria em Minas Gerais, e às câmaras municipais – estas desde o século XVIII –,33 organizar diligências contra os quilombos. Isto é, caso eles suscitassem incômodos à “pública segurança”. Segundo as fontes de São Paulo, magistrados vinculados a essas instâncias locais também cuidaram do assunto.
Com efeito, meses antes do juiz de fora da vila de Santos tratar do “valhacouto” na Serra do Cubatão, cativos fugidos e agrupamentos ocuparam o expediente de Ernesto Ferreira França (1804-1872),34 juiz de fora da capital paulista. Em meados de 1826, França requereu ao governo provincial a modificação de algumas “instruções policiais”. As alterações deviam corroborar sua estratégia para dar “um golpe forte” contra os quilombos que, suspeitava ele, existiam nos arredores da cidade. A ideia era pôr em marcha,
com todas as precauções necessárias, tropa suficiente que examine, e ataque (sendo necessário), ao mesmo tempo todos os matos circun- vizinhos, como o do Piranga, o do Bexiga, o que se acha adiante da [chácara] do Marechal Arouche, o do Ó, etc., devendo na noite do dia da marcha (que seria bom coincidisse com o da nova publicação do Bando) formar-se um cordão nas entradas da Cidade para se correrem todos os pretos que passassem sem escritos de seus senhores (os quais bom fora que se ordenasse no Bando fossem sempre datados), e mais pessoas suspeitas, estando ali Oficiais de Justiça e Escrivães criminais para formarem os autos de achadas de armas proibidas e os mais que necessários fossem.35
O cerco deveria abranger as matas no leste, oeste e sul, as quais formavam a paisagem, respectivamente, da Mooca, da freguesia de Nossa Senhora do Ó e do caminho para Santo Amaro. Ou seja, para esse Juiz, poderiam existir quilombos em toda parte. Não era uma novidade. Desde o século anterior corriam notícias um tanto quanto vagas sobre roubos e “insultos” cometidos por cativos fugidos nas estradas circunvizinhas à capital. A propósito, há muitas ocorrências do tipo em São Paulo, mas poucos detalhes quanto aos agrupamentos em si ou à “exterminação” de quilombos.36
Não se sabe qual foi a resposta à solicitação do juiz Ferreira França, se o cerco foi realizado ou não. Em todo caso, nota-se que seu plano exigia coordenação: tropas, normas e autos simultaneamente. A qualidade e o número de homens podem ter constado em comunicações posteriores. Em que pesem as diferenças em relação aos meios disponíveis e requeridos na Corte, em São Paulo eram igualmente imprescindíveis as “precauções” para adentrar os matos com cativos aquilombados.
Após a primeira reunião do Parlamento brasileiro, o cuidado com os quilombos foi incluído entre as atribuições do juiz de paz, cargo previsto na Carta outorgada em 1824. O conteúdo da Lei de 15 de outubro de 1827 assemelhava-se ao das instruções referidas anteriormente, porém, em relação aos agrupamentos de escravos, era bastante sucinto.37 De um lado, a fórmula “destruir e providenciar” dava continuidade à “política de prevenção” que passara a caracterizar o trato oficial do assunto no Setecentos.38 Por outro lado, procurou-se estabelecer um parâmetro concernente ao Estado que emergia, pois as providências contra os quilombos, em qualquer localidade do Brasil, não poderiam prescindir do pacto constitucional.
A competência de prevenir a formação e a continuidade desses agrupamentos foi incorporada posteriormente à reforma do Código do Processo Criminal, em 1841, que estabeleceu alterações significativas no judiciário de primeira instância e retirou várias incumbências dos chamados, à época, “juízes policiais” – com exceção da prevenção dos quilombos. Isso conferiu aos magistrados eletivos certa exclusividade quanto ao tema, pois nenhuma outra autoridade policial ficou respon- sável por ele.39
Conforme mencionado acima, problemas com escravos fugidos nos arredores da cidade de São Paulo já eram informados antes do século XIX. Certos casos foram considerados graves. Além de roubos, um bando de 1746 informava que os “calhambolas” “se tem resolvido forçarem as mulheres, que encontram”, referindo uma ocorrência recente na estrada do Cubatão. A movimentação feminina na região da capital de fato foi capturada: elas figuraram como vítimas de escravos aquilombados ou acusadas de auxiliá-los nessa época.40
O bando mobilizava homens das Ordenanças e capitães do mato para apanhar escravos fugidos e “criminosos”. Estabeleceu-se também a forma do pagamento, a entrega dos cativos às “justiças” de cada comarca e autorizou tais agentes a atirar durante o serviço – se houvesse, simulta- neamente, resistência e a presença de testemunhas.41 Depois dessa norma, até onde se sabe, ocorrências com escravos em Cubatão só voltaram a ser informadas em 1827.42
Muito embora outras regiões pudessem ser tão ou mais perigosas para os viandantes, sujeitos ainda a ataques de índios, aquelas que ligavam a cidade de São Paulo à vila e praça de Santos receberam grande atenção a partir do século XVIII. Dentro de um processo mais amplo de mudança das atividades econômicas no Brasil e no mundo, o curso da produção paulista foi disputado internamente. Assim, em meio a conflitos entre a Câmara da capital – beneficiada pelas arrematações de produtos vindos do interior – e a Câmara santista – favorecida pelos negociantes com tratos costeiro-atlânticos –, o caminho para o litoral paulatinamente ganhou importância.43
Esse processo contemplou a construção da chamada “Calçada do Lorena”, em 1792, para facilitar o transporte de gêneros (sobretudo da produção açucareira) até o litoral. Feita com pedras e lajes, a obra permitia o trânsito de mulas. Compreendia uma parte da viagem o trecho entre a cidade de São Paulo e o rio Cubatão, de onde era necessário, nesse período, seguir a barco – com condições de maré favoráveis – até o porto de Santos. Diversas trilhas existiam na região, mas a calçada parece ter sido a principal via para os tropeiros até pelo menos 1846, quando foi inaugurada a “Estrada da Maioridade”.44
Claro, por esse caminho entraram muitos africanos ou “escravos novos” em São Paulo. Com eles adveio um surto do “mal das bexigas” em 1804, questão que obrigou o governo a solicitar auxílio de autoridades médicas.45 Justamente nos primeiros anos do século XIX, a entrada de africanos na então capitania fez a população escrava crescer mais rápido do que a população livre. Quanto aos números, em 1803, a população paulista era de 188 mil e havia 44 mil escravos, boa parte destes vivendo na região da capital. Três décadas depois, em 1836, o número total de habitantes chegou a 327 mil e havia 91 mil escravos. Estes, nesse momento, encontravam-se em maior proporção nas regiões do Oeste Paulista e do Vale do Paraíba.46
De uma época à outra, a crescente entrada de africanos fez aumentar a chamada “taxa de masculinidade” e a proporção de adultos entre os escravos de São Paulo, tal como ocorria no Rio de Janeiro.
Segundo o que foi observado nas demais colônias americanas sustentadas pela escravidão, tanto os períodos de maior fluxo de desembarques de africanos quanto a grande proporção de homens adultos influíram na frequência das fugas e na formação de agrupamentos.47
O Mapa 1 traz o delineado do caminho de Santos. Produzido pelo engenheiro José Marcelino de Vasconcellos em 1832, este documento provavelmente tinha o objetivo de auxiliar o governo da província em uma das muitas obras de reparo da estrada.48 Os “ranchos nacionais” identificados e comentados tratam-se dos pousos destinados aos tropeiros e demais viajantes,49 alguns construídos três décadas antes. Entre os muitos detalhes apresentados, destaca-se a identificação de casas e sítios com os nomes dos proprietários, além da localização de pontes, córregos e rios.
Essa fonte cartográfica nos interessa devido a esses pormenores. Por intermédio deles foi possível identificar alguns locais mencionados nos ofícios sobre o quilombo no Cubatão, o que outros mapas consultados não mostram. A “Entrada de Sto. Amaro” (a) e a “Cachoeira do Rio das Pedras” (b), ambos à esquerda do caminho principal, marcam os limites dentro dos quais tal agrupamento deveria se situar, de acordo com os primeiros relatos das autoridades. A “entrada”, a noroeste, compreendia um braço de acesso à capital. Já a “cachoeira”, ao sudoeste, era o ponto mais próximo do povoado do Cubatão, no pé da serra.50
O sítio de D. Josefa Bueno, moradora mencionada no início deste texto, não foi identificado no caminho. É bem provável que ela já houvesse se mudado à época desse mapa, pois ocorreram outros “ultrajes” por parte dos cativos aquilombados. Em junho de 1827, eles continuavam com os assaltos, segundo o já referido juiz de fora Gabriel Mendes dos Santos. Diante de uma investida malograda contra esses “inimigos do sossego público” e dos “repetidos danos” aos sitiantes do Cubatão, o magistrado tornou a escrever ao governo de São Paulo. De acordo com ele, para resolver o problema era necessário “o emprego de outra gente, que não seja a militar, porque não é acostumada com este gênero de trabalho”.51
Curiosamente, dispensava-se os militares (será devido ao “estrondo” que faziam, como as tropas das Ordenanças na Corte?), mas não se falou mais do emprego de capitães do mato. O juiz de fora consi- derou outro meio: acordou com o governador da praça de Santos o contrato de “certa porção de trabalhadores”, os quais ficariam sob o comando do sargento-mor Leonardo Luciano de Campos.52 Encarregado do “corte de madeiras”, esse oficial chegou a participar de “pesquisas” para avaliar a construção de uma nova estrada na serra.53
Não se pode deixar de observar como a composição da diligência se relacionava ao movimento de homens e obras na região. As “pesquisas” eram realizadas logo após a finalização de um aterrado entre Santos e Cubatão, erguido para substituir o percurso fluvial das viagens.54
O emprego de jornaleiros para “destruir” quilombos não ficou limitado à década de 1820: por volta de 1845, “homens matreiros”, dentre os que trabalhavam na Estrada da Maioridade, foram chamados para bater um agrupamento encontrado “para as partes da Bertioga”.55
A despeito dos esforços do juiz de fora Mendes dos Santos, o contrato dos jornaleiros não foi logo acertado. Como ele mesmo apontou, as despesas altas e “gravosas” de ações contra negros aquilombados não atraíam interessados,56 mas a situação tornou-se crítica. Em julho de 1827, de acordo com essa autoridade, houve um “atentado horrível” praticado pelos cativos contra o sítio e a pessoa de D. Josefa, “a quem roubaram, e maltrataram a ponto de lhe quebrarem um braço”.57
A escolta enviada atingira um dos negros, cuja cabeça foi exposta “em um poste em lugar público para exemplo e terror”. Entretanto, o número reduzido de homens na tropa – ou o susto – impediram que os escravos fossem perseguidos e o quilombo fosse destruído nessa ocasião. Longe de desistir da empresa, o juiz de fora parece ter considerado o episódio um estímulo para destruir o agrupamento. Ele informou ao vice-presidente da província que não cessaria de “solicitar as providências ao Governo enquanto se não extinguir o mal, que ameaça a segurança pública”.58
Todo esse empenho conferiu a ele a responsabilidade – em suas palavras, a “melindrosa tarefa” – de extinguir o quilombo na Serra do Cubatão, o que foi oficializado em uma portaria de maio de 1828. O que ocorrera, porém, entre julho de 1827 e essa última data? À falta de ofícios, infere-se, conforme as informações adiante, que houve outros encontros ofensivos entre moradores, escoltas e escravos fugidos durante esses meses, mas pouco se pôde fazer para eliminar o quilombo, negócio que exigia organização e preparo. Provavelmente sequer era conhecida a localização exata do “couto”.
Na ocasião em que respondeu à portaria do governo, o juiz da vila de Santos arrolou uma série de dificuldades em torno da tarefa a ele incumbida: a inabilidade das escoltas militares, “podendo somente auxiliar, e coadjuvar”; a “carência absoluta de oficiais” ou paisanos para empregar no serviço; e as notícias, “cada vez mais assustadoras”, quanto às “hostilidades cometidas pelos negros”.59
A prioridade foi reunir forças. Novamente acertou-se o comando das escoltas com o sargento-mor Luciano de Campos, que se dirigiu na mesma noite para “as precisas reuniões” no povoado do Cubatão. Oficial disposto – quem sabe até do ramo de perseguir quilombos – e exigente: identificou que a pólvora, chumbo e pederneiras disponíveis eram de “má qualidade”. Ao chegar no povoado para resolver esse pormenor, o juiz de fora notou “30 homens ou mais” reunidos; contudo, esse número não era o total das forças combinadas para a expedição, só iniciada após o envio de uma escolta com dezesseis praças.60
“Reunir forças” tinha ainda um outro sentido nessa comunicação com o governo provincial de São Paulo. Não bastavam homens e artigos para um possível conflito direto, era necessário que os capitães-mores, os juízes de paz e seus oficiais prendessem os escravos que aparecessem nos distritos depois de perseguidos. Mendes dos Santos aparentemente se viu num dilema: ponderou que, ao oficiar a essas autoridades, dava publicidade às ações, o que – tal qual a demora para chegar ao quilombo – dirimia as esperanças de sucesso da expedição.
Eis um artigo importante aos governos: o segredo.61 Relacionado à dificuldade de empregar militares nas diligências, como visto anterior- mente, este tópico remete à circulação de informações. Sabe-se que esse cuidado com a publicidade das ações oficiais pode aludir às relações que os escravos e outros membros dos quilombos mantinham com os povoados.62 Todavia, segundo os registros, os cativos aquilombados – ou uma parcela deles – não vinham se mostrando amigáveis para com os moradores da serra. O juiz certamente refletiu que alguns indivíduos, como os capitães-mores, poderiam se aproveitar da situação, chegar ao local antes das escoltas e fazer capturas isoladas, o que prejudicaria as providências organizadas.
Tendo decidido pela publicidade, ele concluiu que a diligência poderia, ao menos, conter os negros e “ganhar tempo” para o “total extermínio” do “valhacouto”. Ainda sobre a união de forças oficiais, foi recomendado aos juízes de paz que se auxiliassem “mutualmente”, porque a eles cabia, pela novíssima Lei de outubro de 1827, a “interes- sante atribuição” de prevenir os quilombos.63
Em fins de maio de 1828, a expedição comandada por Luciano de Campos topava com o quilombo e os escravos fugidos. Ao dar a notícia, o juiz de fora avaliou que o resultado
não pode deixar de magoar o coração de V. Ex., assim como o de todo homem sensível, pela efusão de sangue que custou: entretanto o sossego, e a segurança pública parecem ter ganho excessivamente neste conflito, justificando a violência empregada contra tão temerosos inimigos, que opuseram a mais viva resistência […].64
A comunicação vinha com o relato do confronto – narrativa assinada pelo sargento e corroborada por um oficial encarregado de acompanhar a expedição para “dar fé”, isto é, certificá-la aos olhos do governo provincial.
Com a ajuda de um morador do Rio das Pedras, ao norte do povoado do Cubatão, as escoltas desceram a serra por uma picada a oeste. Ali, perderam o “trilho dos escravos aquilombados”. Contudo, um “hábil mestre dos cortes [de madeira]” encontrou outro caminho, por onde tornaram a subir a serra margeando uma das cachoeiras que deságuam no rio Cubatão. Nesse rumo continuaram dois dias, até que, na manhã de 27 de maio, depararam-se com o quilombo. Segundo Luciano de Campos,
como fosse pressentido da minha chegada não de uma atalaia que eles tinham que não puderam ver por causa da serração, mais [sic] sim por causa de uma grande derrubada que havia na frente do quilombo, e por isso me foi preciso rodear por um grande Espinharal, e fui sair no lado direito da situação do dito, motivo porque levei muito tempo e fui pressentido, e logo me encontraram a fazer fogo, o qual durou espaço de 5 minutos ao que deu tempo a escaparem-se alguns, apesar que vários suponho irem feridos; dos meus trabalhadores só me saiu ferido não gravemente, Joze Tebas, baleado em uma mão, e com alguns bagos de chumbo no rosto do lado esquerdo, e logo que pude formar o círculo apanhei 4 negras, e no fogo morreram 5 negros, e uma negra. O quilombo me persuado ser de 25 escravos para mais, e será bom que V. S. meta em confissão as negras para melhor informarem a V. S., por que elas a mim nunca falaram a verdade.65
Os escravos “tinham muita pólvora, e balas”, boa parte destruída pela tropa “por não haver quem carregasse”. Apesar de tantos cativos terem fugido, as autoridades não se detiveram sobre esse ponto. O resultado da diligência parecia satisfatório. Passou-se a tratar do pagamento da féria dos jornaleiros, que foi acertado pelo governo provincial. Esse assunto se prolongou diante de uma recusa, não muito clara, vinda do governador da praça de Santos – este também teria deixado aqueles empregados sem mantimentos nas matas durante três dias, de acordo com as reclamações do sargento.66
O pagamento das despesas dependia, como de costume, dos senhores. Contava-se com a entrega das quatro escravas capturadas, que acabaram por dar a conhecer ao menos seus nomes e os de seus proprie- tários. Recolhidas na cadeia da vila de Santos, foram anunciadas: Maria “de nação benguella”, escrava de Bernardo Guedes Cardoso e Vasconcellos; Eva “crioula”, escrava do alferes Antônio Galvão de França; Anna “crioula”, escrava de Francisco Pereira Mendes; e Domingas “angola”, escrava do capitão Joaquim.67
Também passou pela cadeia um dos escravos afugentados durante a diligência: João, “de nação rebollo”, pertencente a Luiz Antônio “morador em Mogi Guaçu”.68 Conforme o juiz de fora Mendes dos Santos, João havia se entregado “instado pela fome, e medo”. Surgiram na ocasião novas informações a respeito do quilombo:
Segundo a relação deste foragido combinada com a confissão de duas das escravas prisioneiras compunha-se o quilombo de 29 a 30 negros com pouca diferença, entrando neste número 4 mortos, 2 de doença, e 2 afogados. Conta de mais este negro que um dos escapados morreu em sua companhia, tendo sido mortalmente ferido no assalto, e que ele se não pode avistar com mais algum dos debandados além do cacique, outro negro, também ferido, e uma mulata tendo observado no mato bastantes vestígios de sangue;donde se pode inferir que mais algum seria vítima do ataque. Refere mais que o dito Cacique lhe aconselhara, que se viesse entregar para evitar talvez a sorte dos seus camaradas, donde é natural concluir que esta temerosa reunião de malfeitores se acha enfim dissipada, e exterminada, restabelecida em consequência a Segurança Pública, que eles haviam perturbado.69
Cabe atentar para o cacique mencionado. Seria ele chefe do quilombo ou um índio morador da região? Não fica claro se essa perso- nagem também havia escapado do ataque ou se apenas “aconselhara” o escravo João ao encontrá-lo na mata. O juiz de fora não se ateve a isso, não considerou o cacique uma ameaça. Para ele, importava confirmar que a maioria dos aquilombados estava dispersa e a segurança pública “resta- belecida”. Os dados oferecidos até aqui, em todo caso, permitem explorar alguns aspectos sobre o quilombo e seus membros.
É difícil afirmar que os escravos na Serra do Cubatão se ocupassem apenas de roubos, porém não há menção ao cultivo de roças ou à existência de casas. Além da quantidade de munição, foi notado que havia uma “atalaia” no local. Essa fortificação, devido ao nevoeiro matutino, ajudou (ou prejudicou, na visão das escoltas) menos do que uma “grande derrubada” em frente ao quilombo. Tal clareira e o tempo que o sargento disse levar para contorná-la indicam que a área utilizada pelos cativos era ampla.
No agrupamento, como sugerem os relatos citados, havia poucas mulheres. Esse dado, juntamente com as ocorrências de assaltos, corrobora a hipótese de que os quilombos formados na região da capital, durante o período em destaque, eram compostos por “salteadores homens”.70 A presença majoritária deles articula-se, de maneira mais ampla, à mudança da estrutura da população escrava em São Paulo mencionada anteriormente.
Ademais, esse perfil sexual seria uma característica das “hordas quilombolas”, distintas dos agrupamentos constituídos por famílias e mais duradouros, ambos os tipos encontrados em outras partes do Brasil e das Américas.71
Em relação aos cinco escravos recolhidos na cadeia de Santos – e, por isso, melhor identificados – vê-se que pertenciam a proprietários diferentes. Três deles eram africanos, de “nações” da região centro-ocidental da África.72 Não por acaso, talvez, tiveram dificuldade para escapar: não só das autoridades, mas também da “fome e medo”. De acordo com a historiografia, ainda que os recém-chegados fossem mais propensos às fugas, devido à etapa de adaptação ao trabalho e à postura de seus senhores no Brasil, a vida nas matas não era fácil.73 Tanto mais depois de feridos, da perda dos parceiros, do “conselho” de um cacique… Nota-se também que, dentre os capturados, pelo menos dois, a crioula Eva74 e o africano João, pertenciam à moradores do Oeste Paulista, onde se concentrava tanto a população cativa quanto a produção açucareira – o que remete à relação entre a escravidão africana e a atividade econômica então predominante nessa província.75
Comparado a um quilombo descoberto em São Paulo em 1766, que teria agregado “duzentos” escravos,76 o grupo existente no Cubatão, com cerca de trinta, era muito menor. Entretanto, é preciso ver de que modo as autoridades e os sitiantes equacionaram esses números. As primeiras notícias sobre os aquilombados na serra sinalizavam que a quantidade de fugidos devia aumentar “diariamente”, como era “natural”, conforme a “experiência” mostrara “não poucas vezes”.77 Os números e referências genéricas derivavam das condutas – também generalizadas, pois não é possível saber se todos os escravos aquilombados cometiam assaltos.
A frequência e o caráter “assustador” dos ataques na Serra do Cubatão foram os elementos mais destacados ao longo das correspon- dências. O grupo comandado por Luciano Campos – cerca de quarenta homens, entre civis e militares –, sugere algum cálculo em relação aos membros do quilombo. De qualquer modo, quando se soube quantos “negros” estavam reunidos, pouca atenção foi dada aos muitos “foragidos”. Em suma, a dispersão do grupo, pequeno ou não, bastou às autoridades envolvidas. A própria destruição do local, se houve, não mereceu comen- tários, ao contrário da eliminação das armas.
Importa voltar às imagens do confronto. Segundo o relato do sargento, o “fogo” resultou em grande parte da dificuldade que as escoltas tiveram para entrar no quilombo sem serem notadas. Todavia, a forma com que seriam recebidas pelos escravos, independentemente dos obstáculos, era presumida. Eles já haviam atacado antes. O juiz de fora salientou que a “viva resis- tência” dos cativos justificava a postura dos homens da expedição, o sangue das vítimas mortas e feridas. Talvez o episódio tenha sensibilizado alguns contemporâneos mesmo; o fato é que a cautela quanto aos “custos humanos” e a menção à “resistência” eram elementos fundamentais no âmbito oficial. Conforme expresso no bando de 1746 e, mais tarde, no Código Criminal de 1830, o uso da violência por parte de agentes do Estado, também quando envolvesse escravos, devia se restringir às situações “graves”.
Após apresentar as informações extraídas do escravo João, o juiz de fora da vila de Santos ainda acrescentou:
Parece-me haver omitido que eu tenho feito fixar as cinco cabeças dos negros mortos no assalto em diferentes lugares desta vila, e estrada do Cubatão, a ser uma no Tororó, outra no registro do Cubatão, outra no cimo da Serra, outra no sitio de Francisco Mariano, e outra na Freguesia de São Bernardo, o que me pareceu relevar para o exemplo tão necessário a fim de conter tão formidáveis inimigos.78
Novamente reproduzia-se na serra uma “pedagogia” não rara no Brasil colônia – inclusive usada no trato de quilombos.79 É de se notar um detalhe: seis escravos haviam morrido no confronto; a cabeça da única mulher atingida não foi exposta, certamente porque o “exemplo” dirigia-se aos cativos que mais fugiam de seus senhores, os homens.
Concluía-se o assunto para o juiz. Afiançava ele que tais “inimigos” não mais ameaçariam. Mendes dos Santos tinha em conta os afugentados na ocasião – feridos, despojados de armas, com a visão das cabeças de seus “sócios” na estrada e, sobretudo, dispersos – dificilmente retornariam ao local. Ficava ainda um aviso para os cativos que aparecessem e porventura tentassem nova vida na serra; isto se compreendessem o “recado”, como queria essa autoridade.80
O episódio em Cubatão, que começou com a solicitação de D. Josefa Bueno mencionada no início deste trabalho, juntamente com o que se viu nas ações do intendente de polícia da Corte, mostra que as notícias de “coutos”, roubos e as “destruições” de agrupamentos nem sempre tinham a ver com o medo de insurreições ou com a simples garantia dos direitos de senhores. O cuidado com os quilombos dizia respeito ao ordenamento do cotidiano da população do Império.
Viram-se aqui duas formas distintas de lidar com os quilombos na década de 1820, ambas vinculadas à noção de segurança pública e às instâncias locais que a manejavam a partir dessa época. Perigosos para as garantias materiais das povoações, relacionados aos roubos de gêneros, os quilombos figuraram como um assunto corriqueiro. No entanto, poderiam exigir muito dos governos. Para certas autoridades do período, os escravos fugidos e aquilombados não eram salteadores comuns: adentrar os matos e apanhá-los exigia no mínimo organização, pois as capturas tinham que satisfazer, simultaneamente, aos cofres e à imagem das instituições. Por isso mesmo buscou-se tanto centralizar as ações quanto coibir os abusos.
Numa situação de ameaça direta e recorrente à vida e à propriedade (não a dos senhores, mas a de sitiantes), o assunto ganhou contornos “formidáveis”. O traço com que se retrataram os escravos aquilombados no Cubatão remete ao que era incomum no dia a dia e, de maneira mais enfática, aos pactos que divisava o Estado brasileiro então constituído, na conciliação de antigas práticas com novos parâmetros: a escravidão e a segurança pública. A repetição desse último princípio nas correspondências analisadas é notável, e aponta o quão melindroso podia ser tal arranjo. O quilombo na serra paulista demandou tempo e organização, o contrato de jornaleiros e resultou em sangue; tudo em prol do “sossego” dessa sociedade.