ARTIGOS
PERFIL DOS ESCRAVIZADOS NO COMÉRCIO INTERPROVINCIAL DESDE MACEIÓ, ALAGOAS (1842-1882) *
PROFILE OF ENSLAVED PEOPLE IN THE INTERPROVINCIAL SLAVE TRADE FROM MACEIÓ, ALAGOAS (1842-1882)
PERFIL DOS ESCRAVIZADOS NO COMÉRCIO INTERPROVINCIAL DESDE MACEIÓ, ALAGOAS (1842-1882) *
Afro-Ásia, núm. 64, pp. 248-283, 2021
Universidade Federal da Bahia
Recepção: 2 Maio 2021
Aprovação: 10 Maio 2021
Resumo: Este artigo trata do comércio interprovincial de escravos em Maceió, Alagoas, analisando o movimento de pessoas que saíram pelo Porto do Jaraguá para serem vendidas para fora da província. Por meio da quantificação de informações extraídas dos livros de passaportes, apresenta dados sobre o perfil etário e sexual dessa população ao longo dos anos 1842-1882. A partir desse levantamento, discute a inserção de mulheres escravizadas no comércio, e, assim como pesquisas anteriores, aponta para a grande presença de escravos muito jovens nesses negócios. Por fim, avalia o impacto do comércio sobre a população cativa na província de Alagoas.
Palavras chave: Comércio interprovincial de escravos, Alagoas, Livros de passaportes.
Abstract: This paper provides an overview about the interprovincial slave trade in the city of Maceió, capital of the present state of Alagoas. It analyzes the movement of people that left the city from the port of Jaraguá to be sold in other provinces. Passport records kept by the Secretary of the Police were used in gathering data on the gender and age the slaves exported from this port between 1842-1882. This data provides a basis for analyzing the presence of women among the captives leaving the province. The evidence presented in this study supports the arguments made in previous studies about the great presence of young people in this commerce. The last part of the paper approaches the influence of this trade on the enslaved population in the province of Alagoas.
Keywords: Internal slave trade, Alagoas, Passport records.
Por mais de três séculos, a economia brasileira foi movida pela importação de mão de obra escravizada do continente africano.
Cerca de cinco milhões de homens e mulheres chegaram às terras brasileiras na condição de cativos para trabalhar nos principais setores produtivos. Nenhuma outra região recebeu tantos africanos no contexto da diáspora.1 O sucesso do sistema escravista permitiu o desenvolvimento da colônia portuguesa, e a instituição da escravidão difundiu-se. Não apenas as grandes empresas monocultoras de exportação utilizavam trabalho escravo; ele estava presente em todas as regiões. Em 1822, quando o Brasil tornou-se independente de Portugal, quem possuísse condições de adquirir um cativo o fazia, ainda que fosse para servir ao seu lado na pequena lavoura.
Diversos desdobramentos em relação à escravidão ocorreram no Império. Em se tratando do processo que levou ao fim do trabalho forçado, alguns eventos foram fundamentais. Do ponto de vista da disponibilização da mão de obra, os acordos realizados ainda sob o domínio português com a Grã-Bretanha e consagrados após a Independência tiveram como consequência a proibição do comércio internacional de escravos no país, em 1831. No entanto, a interdição legal não encerrou o desembarque de escravizados e, por mais duas décadas, o tráfico continuou alimentando a economia brasileira. Embora algumas apreensões tenham sido feitas, a maior parte da população trazida ao Brasil ilegalmente como escrava manteve-se nessa condição por toda a vida.2
Em 1850, a Lei “Euzébio de Queiróz” (n. 581, de 4 de setembro) reiterou a proibição do tráfico e fortaleceu as medidas legais de punição aos envolvidos. Os desembarques ilegais reduziram-se drasticamente, cessando alguns anos depois. A coroa havia passado à cabeça de D. Pedro II, as tensões provinciais (que ameaçaram dividir o Império nas décadas de 1830 e 1840) haviam sido controladas com sucesso e o país rumava para a estabilização política e econômica alavancada pelo grande desenvolvimento de uma nova cultura promissora aos cofres públicos e aos bolsos privados: o café. Desde o início do Oitocentos, sua produção havia aumentado consideravelmente e, em meados do século, seu incremento era vertiginoso, deslocando o mapa agrícola do Brasil, definitivamente, das regiões produtoras de cana de açúcar do Nordeste Brasileiro e parte do Sudeste para novas áreas de expansão agrícola.3 Nesse processo, as províncias de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais foram protagonistas.
A interdição do principal meio de fornecimento de mão de obra à lavoura brasileira em um momento de ampliação da produção e avanço da fronteira agrícola exigia medidas por parte dos proprietários e do Estado. No Ocidente, ideias de emancipação estavam prosperando e sendo aplicadas. Contudo, o consenso brasileiro em torno da escravidão e dos meios de controle dos trabalhadores impediram o avanço da adesão a uma proposta de reorganizar o mundo do trabalho a partir da liberação do trabalhador escravo. O incentivo à imigração europeia foi uma alter- nativa implementada, mas ainda de forma tímida, em meados do Século XIX. A possibilidade de converter os ex-escravos em trabalhadores livres, pioneiramente idealizada por José Bonifácio na época da Independência, praticamente não tinha adeptos.4
Antes de elaborar um projeto político com metas para a iminente necessidade de transformação das relações de trabalho, os grandes proprie- tários encontraram uma saída para o problema da manutenção da mão de obra no próprio mercado nacional. A dimensão continental do Império, somada à enorme presença de escravos, permitiu que as áreas de expansão econômica pudessem suprir-se de trabalhadores competindo com os setores menos produtivos. Dispondo de mais recursos, aos poucos os agentes comerciais passaram a organizar um eficiente – e lucrativo – sistema de transferência de trabalhadores forçados. Essa situação foi verificada em pequena escala nos limites dos municípios e províncias, mas também nacionalmente, forta- lecendo mercados interprovinciais de escravos. Sua principal consequência foi a movimentação de trabalhadores das diversas regiões brasileiras para as províncias cafeicultoras.5
Mais de 200 mil escravos foram transacionados entre as províncias do Império na segunda metade do Século XIX, a maior parte deles com destino final ao Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.6 As principais províncias vendedoras de cativos para o comércio interprovincial foram Maranhão, Bahia e Ceará. Os impactos da Grande Seca de fins da década de 1870, somados à Revolta dos Jangadeiros, em 1881, e à libertação de escravos, em 1883, no Ceará contribuíram para consolidar o discurso sobre as consequências devastadoras desse comércio sobre as províncias vendedoras, especialmente na Região Nordeste.7
Os estudos sobre o comércio interprovincial de escravos ainda buscam definir seu papel no processo de abolição no Brasil. Do ponto de vista político, Robert Conrad identificou o comércio interno – e a divisão de interesses regionais consequente – como fator determinante para o declínio da escravidão.8 Robert Slenes afirmou que a existência de um intenso comércio interprovincial em um cenário internacional de mobilização contra a escravidão, tornou-o foco de disputas políticas de tal importância que seu fim (no início dos anos 1880) configurou-se como um divisor de águas nas opiniões sobre o futuro da escravidão.9 A polarização política – ocasionada pela divergência de interesses das elites das regiões vendedoras e compradoras de escravos – teria sido um fator importante no jogo de forças que levou ao fim da instituição no país.
Em artigo de 2004, Slenes avançou na análise sobre as dinâmicas do comércio ao propor que havia dois mercados de escravos no país, um no Centro-Sul e outro no Norte-Nordeste. Segundo o autor, apesar de vender escravos para outras províncias, no Nordeste também havia uma demanda por escravos para o seu principal setor monocultor, o açucareiro. De acordo com seus dados, o aumento das exportações de escravos para o Sudeste nas crises do açúcar se devia ao fato de os grandes proprietários canavieiros deixarem de comprar os cativos urbanos e de pequenas propriedades (e não de estarem eles mesmos os vendendo).10 Ou seja, o fluxo dos negócios interprovinciais estava diretamente ligado às dinâmicas de oferta e demanda no Nordeste, não sendo simplesmente resultado de uma resposta às necessidades de outra região. Essa hipótese aponta para um processo nacional (nas regiões compradoras e vendedoras) de concentração de mão de obra escrava, fragilizando as bases sociais de sustentação da instituição e fortalecendo os movimentos abolicionistas.11
A perspectiva de que os escravizados envolvidos no comércio interno (intra e interprovincial) provinham, em grande medida, de pequenas e médias propriedades e das cidades vem sendo cotejada desde os estudos realizados nos anos 1970, por Herbert Klein e pelo próprio Robert Slenes.12 As pesquisas realizadas nos últimos anos têm suportado essa hipótese.13 Pequenos e médios proprietários foram assíduos vende- dores de cativos para o comércio interprovincial, principalmente nos anos imediatos que se seguiram à proibição do tráfico atlântico.14 As investigações revelam, ainda, que as vendas para o comércio interpro- vincial costumavam ser de apenas um ou dois cativos de cada vez, mesmo quando os vendedores eram senhores de muitos escravos.15
No contexto dos impactos do comércio interprovincial sobre a sociedade brasileira na segunda metade do Século XIX, deve-se ainda considerar a agência dos escravizados chegados às regiões compra- doras nas últimas décadas da escravidão, onde houve um aumento da densidade dessa população. Autores como Célia Azevedo e Sidney Chalhoub arguiram acerca dos impactos sociais produzidos pela grande concentração de cativos de outras regiões no Sudeste.16 Embora de difícil quantificação, a produção de uma imagem do escravo forasteiro como potencialmente perigoso refletia a intensificação das tensões sociais ocasionada pelo constante fluxo de novos cativos. A possibilidade de senhores de regiões vendedoras, como Alagoas, livrarem-se de cativos insubmissos, sem maiores obstáculos, através da venda a exportadores, possivelmente teve um impacto nessa visão e influenciou os inúmeros eventos de insubordinação e violência que grassaram o Sudeste do Brasil na década de 1880, contribuindo para a promulgação da Lei de 1888.17
Os estudos sobre o tema nos Estados Unidos, país que passou por processo semelhante, têm trazido contribuições para refletir sobre o caso brasileiro. Nesse sentido, Walter Johnson analisou como as imagens produzidas pelo comércio interno – expondo a escravidão e sua face mais dura, nas cidades, estradas e mercados, provocando a separação de famílias e o sofrimento de milhares de homens e mulheres – teria contribuído para expor os males da instituição e aumentar o sentimento de repúdio a ela.18 Considerações semelhantes podem ser feitas para o Brasil, onde o comércio interprovincial se realizava com publicidade e visibilidade. Cotidianamente, os portos enchiam-se de escravos embar- cados e desembarcados: as naves nas quais viajavam passageiros de rotina, muitas vezes estavam lotadas de escravizados. Nas estradas, avistavam-se grupos acorrentados sendo levados ao interior. Nas cidades, lojas ordinárias negociavam pessoas junto a gêneros de consumo.19 Até 1869, leilões eram corriqueiros e famílias eram separadas sem oposição legal. E, mesmo após a proibição dos arremates públicos e do desmembramento de famílias, a separação de mães, filhos, irmãos, irmãs, maridos e esposas continuou a ocorrer à revelia da lei através de diversos estratagemas facilmente identificados nos documentos da época.20
Um dos pontos de grande contribuição para o debate é a ampliação dos estudos quantitativos realizados sobre o comércio interno, intra e interprovincial. Robert Slenes foi pioneiro nessa abordagem ao estimar o número de escravos inseridos no comércio com base nos dados dos recen- seamentos e da Matrícula Geral de Cativos.21 Recentemente, ele propôs que 222.500 pessoas foram transferidas entre as províncias do Império nas décadas de 1850, 1860 e 1870.22 Já Flávio Motta realizou amplo estudo sobre o perfil dos escravizados transacionados em quatro municípios de São Paulo, trazendo informações importantes sobre o comércio de gente nos anos 1860, 1870 e 1880.23 Nos últimos anos, pesquisadores têm se dedicado a investigar as dinâmicas do comércio nas províncias vende- doras, como Hilário Sobrinho (Ceará); Rafael Scheffer (Santa Catarina e Rio Grande do Sul); Thiago Araújo e Jonas Vargas (Rio Grande do Sul), Josué Modesto Subrinho (Sergipe); Erivaldo Neves, Fátima Pires, Joice Fernanda de Souza Oliveira e Valney Mascarenhas de Lima Filho (Bahia); Josué Humberto Barbosa e Glauber Guedes Ferreira Lima (Pernambuco); Bezerra Neto e Laurindo Júnior (Pará).24 Embora não se tratem de abordagens unicamente quantitativas, esses estudos cotejam análises que fazem referências aos números e volumes do comércio inter- provincial de escravos. Os esforços somados desses trabalhos têm trazido elementos para analisar e redimensionar o impacto do comércio interno na sociedade brasileira nas últimas décadas da escravidão, bem como propor questões que perpassaram o período escravista, como a separação de famílias escravas e seus impactos no Pós-abolição.
Neste artigo, busca-se contribuir para a compreensão do tema trazendo dados quantitativos relativos à exportação de escravos na província de Alagoas, no Nordeste Brasileiro.25 Inserido no campo de pesquisa de história social, o objetivo é traçar um perfil dos escravos envolvidos no comércio interprovincial ao longo de quarenta anos. Para tanto, é feita uma exposição prévia sobre a documentação e os métodos que levaram à produção dos dados e à definição dos parâmetros que subsi- diaram a análise.
Antes de continuar, cabe lembrar que a escravidão foi uma instituição baseada na violência e na objetificação das pessoas. Vigente por mais de três séculos, ela moldou a sociedade brasileira e suas relações humanas. Ao propor uma análise quantitativa sobre a história da escra- vidão, torna-se necessário um exercício de abstração penoso: a redução de cada trajetória individual a números, o que, em muitos casos, oculta a opressão e a coerção existentes no processo histórico. A vida em escravidão e a migração forçada em virtude do comércio interprovincial marcaram com dor, sofrimento e desilusão milhares de pessoas de origem africana dos quais descendem mais da metade da população brasileira atual. Quantificá-los para viabilizar a análise é apenas um procedimento teórico-metodológico, que visa agregar mais informações sobre suas trajetórias. Assim, busca-se evidenciar a violência e opressão inextricável à constituição da sociedade brasileira, mas também produzir conheci- mento que forneça subsídios para evidenciar a agência e os diferentes interesses que estiveram envolvidos na conflituosa história desse país.
Fontes e métodos
No Arquivo Público de Alagoas (APA) estão guardados oito volumes contendo o registro dos passaportes emitidos pela Secretaria de Polícia, ininterruptamente, entre 1842 e 1882.26 O passaporte era um documento obrigatório para escravos e estrangeiros, incluindo africanos livres e libertos, em trânsito entre províncias do Império. Podiam ser emitidos por Ministros e Presidentes da Província e, mais comumente, Chefes de Polícia e Delegados. Entregue o documento ao requerente, era feito o registro no Livro de Passaportes.27
As anotações nos livros são sistemáticas; além da abertura e fechamento, observa-se a sucessão de registros nominais de pessoas que têm seus passaportes emitidos pelo Chefe de Polícia para se deslocar para fora da província. Somam mais de 10 mil entradas, a maioria de pessoas escravizadas. A Secretaria de Polícia de Alagoas foi bastante fiel em repassar as informações contidas nos papéis avulsos para os livros, constando, junto ao nome do viajante e data do registro: idade, nacio- nalidade, estado matrimonial, sexo, destino, os traços físicos (estatura, rosto, cabelos, olhos, nariz, boca, barba e cor) e, por vezes, sua assinatura. Quando cativo, escrevia-se o nome do senhor ou da senhora, e, após 1873, o número de Matrícula Geral, de matrícula na relação individual de cada proprietário e o local da averbação.28 A existência de procuradores, muito comum no comércio interprovincial, nem sempre foi registrada nesse documento – infelizmente.29 Outras informações poderiam ser adicionadas, mas, em geral, os registros são sucintos. Apenas através do cruzamento de fontes pode-se saber que uma anotação como “certidão negativa de pecúlio” envolvia uma contenda sobre a legitimidade da exportação e posse de bens, como ocorreu no caso do escravo Severo.30
As informações contidas nos livros subsidiaram a elaboração do banco de dados “Trânsitos no Brasil Imperial”, que fornece os elementos para as análises deste artigo. Entre 1842 e 1882, foram registrados os passaportes de pouco mais de seis mil escravizados. No entanto, nem todos estavam inseridos no comércio. Parte significativa acompanhava seus senhores em viagens e mudanças ou se deslocava a trabalho. Como o objetivo da análise é traçar um perfil do escravo exportado de Maceió, foi necessário avaliar, caso a caso, cada um dos registros para estabelecer quais cativos seriam incluídos nessa categoria. O principal critério para identificação das pessoas destinadas ao comércio foi a apresentação do imposto de exportação de escravo, de carta de ordem ou procuração para venda, ou a anotação do escrivão de que o escravo estava sendo exportado. No entanto, inúmeras tentativas de burlar os altos impostos de exportação eram cometidas por senhores e comerciantes.31 Desse modo, escravos que viajavam sós, sem qualquer outra informação sobre o motivo da viagem, também foram incluídos. Por fim, uma das estratégias recorrentes empregada por notórios comerciantes de escravos era sair da província com um ou dois escravos recém-comprados e que suposta- mente seriam de seu serviço pessoal. Quando não foi anotado o registro de entrada do cativo na província ou pagamento de fiança, ele foi consi- derado como destinado ao comércio. Ficaram excluídas da amostra as seguintes situações: escravos que viajavam acompanhados dos senhores sem indicação sobre o pagamento do imposto de exportação e os senhores não eram notórios comerciantes de escravos; houve fiança ao imposto de exportação; registrou-se que os escravos estavam mudando de residência junto ao senhor, sendo remetidos a eles ou a herdeiros de senhores falecidos; escravos que saíram da província com passaportes visados, ou seja, eram escravos exportados de outras províncias que estavam apenas transitando pelo Porto do Jaraguá;32 emissão de portaria ou ordem de “deixe passar livremente” inexistindo os critérios de inclusão como escravo exportado acima citados; possuíam documento de legitimação para marinheiros;33 o registro do passaporte foi anotado como “sem efeito” ou foi duplicado (nesse caso, excluíram-se as duplicatas apenas); tratava-se de viagem intraprovincial.
Aplicando-se esses critérios de exclusão, chegou-se a uma amostra de 3.593 pessoas escravizadas destinadas à venda, que tiveram seus passaportes registrados pelo Chefe de Polícia de Alagoas, em Maceió. São números mínimos. No entanto, o objetivo desta análise não é quantificar o total de pessoas inseridas no comércio interprovincial de Alagoas (o Porto do Jaraguá, em Maceió, não era o único por onde escravos eram exportados). Aqui se pretende produzir dados confiáveis sobre o perfil do trabalhador vendido para fora da província. Em razão do exposto, tornou-se fundamental tomar todas as precauções para excluir da amostra pessoas que não estivessem destinadas ao comércio e que, por diversas razões, pudessem ter qualidades bastante diferentes de seus companheiros à venda.
Outra escolha que necessitou ser feita para a apresentação e análise dos dados foi a periodização. As balizas temporais foram determinadas pelas fontes – datas de início e fim dos registros nos livros de passaportes. Os dados para os anos 1840 indicam um fluxo muito menor que os anos seguintes, mas são significativos justamente por apontar a relevância do comércio interprovincial desde antes do fim definitivo do tráfico. Cativos sendo negociados a longas distâncias no território brasileiro e americano foram uma constante ao longo de todo o período escravista.34 Cotejar esse movimento com aqueles após 1850 contribui para a compreensão do impacto dessas operações na organização da mão de obra brasileira nas derradeiras décadas da escravidão.
O Gráfico 1 expõe o volume anualizado das exportações de escravos de Alagoas. No total, foram exportados legalmente, pelos portos do Jaraguá, Penedo e outros entrepostos menores na província, 6.410 escravos entre 1842 e 1882.
Analisando esses dados, percebe-se uma progressiva queda no volume de exportações nos anos 1840. A rápida ascensão no início dos anos 1850 foi seguida de um recuo no fim do primeiro quinquênio, uma forte ascensão no início do segundo quinquênio da década, seguido por nova retração. Nos anos 1860, a elevação inicial não refletiu a queda ao fim, movimento que se inverteu nos anos 1870. O último quinquênio da década de 1870 apresentou a maior intensidade de exportações. No entanto, o comércio manteve-se em patamares mais altos na década de 1850, registrando, inclusive o período de maior volume da série, de julho de 1856 a junho de 1857, quando foram exportados legalmente da província 686 escravizados.
Os dados sobre as exportações de Alagoas revelam um mercado flutuante, com especificidades em períodos curtos de tempo. Tendo em vista o movimento destacado no Gráfico 1 , ficou definido que o meio mais adequado para trabalhar com as informações sobre as saídas de escravos para venda do Porto do Jaraguá, Maceió, seria uma periodi- zação quinquenal. Desse modo, as oscilações ao longo de cada cinco anos puderam ser apreendidas, sem perder o parâmetro da marcação por década, que caracteriza alguns trabalhos sobre o tema.
Escravizados no comércio
Como foi dito anteriormente, os livros de passaportes trazem séries de anotações sistemáticas que visam identificar as pessoas em trânsito. Aqui serão destacadas duas delas: idade e sexo. São informações que estão presentes em praticamente todos os registros, permitindo uma análise consistente sobre o perfil dos cativos saídos da capital alagoana. A identi- ficação do sexo segue o nome do escravizado, o que permite assegurar a validade da informação em quase 100% dos casos. Já em relação à idade, a precisão dos dados sofria inúmeras influências. Era difícil estabelecer os anos de vida das pessoas escravizadas. No caso das africanas, além de diferenças culturais na marcação do tempo de vida, influía a violência imbuída no processo de quebra dos laços culturais e identitários concer- nentes ao tráfico, que buscava destituí-las dos referenciais anteriores à travessia. Na produção de uma idade verossímil para essas pessoas, a juventude agregava valor; no entanto, pesava a questão da ilegalidade do tráfico internacional desde 1831. Nesse sentido, no período aqui estudado, havia a tendência de elevação da idade de africanos, evitando registrar o crime.36 No caso das pessoas nascidas no Brasil, a definição da idade não era menos complexa. A precariedade dos registros de batismos, a falta de interesse dos senhores e a burla da legislação (em 1869, fica proibida a separação de filhos menores de 15 anos dos pais, idade reduzida para 12 em 1871, quando também ficaram livres as crianças recém-nascidas) levavam a inúmeras imprecisões etárias.37
Ou seja, há diversos fatores que incidiram sobre o registro da idade de um escravo (bem como da população livre pobre) e sobre a produção das fontes.38 Serão feitas breves considerações sobre alguns deles na medida em que sejam pertinentes na análise dos dados; mas, de um modo geral, é preciso encarar a impossibilidade de corrigir esses desvios e trabalhar com a idade nos passaportes como um conjunto consistente de informações, no qual a variação da marcação dos anos de vida em relação à realidade não influi substancialmente sobre os principais pontos que caracterizavam o perfil dos escravizados exportados de Maceió. Ou seja, parte-se do pressuposto de que há discordâncias entre os anos de vida de um escravo e o modo como essa informação foi registrada na fonte. No entanto, embora essa circunstância possa provocar algumas variações entre a proporção de cada faixa etária específica, ela não afeta as conclusões gerais obtidas sobre esses dados.
Antes de passar aos perfis, cabe fazer breves considerações sobre o destino dessas pessoas. A maioria delas, 69%, foram enviadas para o Rio de Janeiro. São Paulo é destacado como desembarque apenas nos derradeiros anos da amostra, não chegando a 3% do total. Parte significativa foi para Pernambuco (14%) e Bahia (6%), sendo que neste último caso, podia se tratar de uma escala para portos mais ao sul. Destaca-se o fluxo que houve nos anos de 1840 de cativos que, via Bahia, eram enviados para o Rio Grande do Sul (1% do total geral, 17% na década), reforçando os dados obtidos por estudos que têm demonstrado as redes de distribuição, entre estas duas províncias, de escravos africanos ilegalmente introduzidos no Brasil.39 Desse modo, ainda que não se possa dizer que o fluxo do comércio interprovincial de Alagoas fosse único, evidencia-se que a maioria das pessoas embarcadas no Porto do Jaraguá chegou ao Rio de Janeiro e de lá seguiu para outras partes das províncias cafeicultoras.40
Faixa etária
O primeiro passo ao se analisar a faixa etária dos escravos exportados do Porto do Jaraguá é estabelecer quais delas organizarão os dados, pois, infelizmente, não há uma referência padrão na bibliografia. Para definir seus limites, priorizou-se categorias que fossem utilizadas em outros trabalhos quantitativos sobre população escrava, viabilizando análises comparativas e que tivessem equivalência no número de anos de cada faixa, criando grupos proporcionais. As faixas mais jovens balizaram a definição desses parâmetros. Desse modo, tendo em vista ser comum na bibliografia a categoria 0-7 e 8-14 anos (ou 0-14), optou-se por manter o padrão de sete anos para cada faixa etária, exceto na primeira, de oito. Assim, construiu-se o quadro abaixo:
Os dados agregados para o período (1842-1882) indicam que 54,5% dos escravos possuíam 21 anos ou menos. Outros 45,5% estavam acima dessa faixa etária. O quadro reforça a afirmação corrente na bibliografia sobre o interesse em cativos jovens no contexto do comércio interprovincial.41 Dentre todas as faixas etárias, a mais representativa no comércio é a de pessoas entre 15 e 21 anos, situação que se mantém em todos os quinquênios após 1850 – à exceção de 1855-1860, em que a faixa de 8 a 14 anos é ligeiramente superior. Esta é a segunda infor- mação que salta aos olhos ao analisar a tabela: o significativo volume de exportações de escravos abaixo dos 15 anos. No quinquênio de maior volume de exportação (1875-1880), 238 meninos e meninas nessa faixa saíram pelo Porto do Jaraguá para serem negociados em outras províncias. A proporção deles no total de escravizados exportados ao longo do tempo é exemplificada no Quadro 2 :
Pode-se observar que, enquanto o comércio interprovincial era de pequeno volume nos anos de 1840, a proporção de menores de 22 anos manteve-se a mais baixa da série. Na medida em que houve intensificação dos negócios, ocorreu um aumento progressivo dessa faixa, chegando ao ápice no quinquênio 1860-1865. Após uma leve regressão nos quinquênios seguintes, essa proporção tornou a crescer em 1875-1880, mantendo-se estável nos dois últimos anos da série.
Tomando as duas décadas de maior volume do comércio inter- provincial a partir de Alagoas, há sensível mudança no padrão etário das pessoas envolvidas. O Quadro 2 indica que a proporção de jovens entre 15 e 21 anos oscilou de 24 a 26% do total de escravos exportados nos anos de 1850, já nos anos de 1870, ela manteve-se constante em 37%. Houve um aumento significativo na proporção de escravos nessa faixa etária entre os períodos das décadas de 1850 e 1870. Por outro lado, ocorreu uma queda relativa no grupo abaixo dos 14 anos, especialmente no quinquênio 1870-1875. A promulgação da Lei 1.695, de 1869, proibindo a separação de filhos até os 15 anos de suas mães – idade posteriormente diminuída para 12 anos, em 1871, com a Lei 2.040, conhecida como a Lei do Ventre Livre – parece ter impactado o perfil etário dos escravos do comércio em um primeiro momento. No entanto, a elevação, nos anos de grande volume de negociações (1875-1880), demonstra que as proibições logo passaram a ser burladas.42 Uma das principais razões para este comportamento dos comerciantes teria sido a valorização de crianças escravas após o Ventre Livre. Como afirma Slenes, até a década de 1880, grande parte dos proprietários das províncias cafeicultoras confiava que a Lei 2.040 seria a última palavra sobre a escravidão no país: o tempo e o falecimento dos cativos lentamente a levariam ao fim.43 Nessa perspectiva, investir em crianças tornou-se um meio de garantir a mão de obra cativa pelo maior tempo possível, explicando o incremento na exportação, mesmo que à revelia da legislação.
É notável que tão logo o comércio interprovincial tornou-se mais frequente, no início dos anos 1850, a faixa etária entre 8 e 14 anos tenha superado aquela dos 29-35 em números absolutos, mantendo-se superior a ela durante todo o período posterior. Essa relação pode ser observada através do Gráfico 2 :
Os dados revelam que não se tratava apenas de um negócio de escravos jovens: era também um comércio de crianças. Elas eram expor- tadas sozinhas ou acompanhadas das mães (ou dos irmãos), embora o primeiro caso tenha sido o mais frequente. Por vezes, encontra-se nos livros de passaportes a informação sobre laços de parentesco entre cativos exportados, geralmente anotados em um único registro. Por exemplo: Manoel, de 12 anos, que foi exportado junto a sua mãe, Maria, por Custódio Francisco da Cruz Guimarães, (notório comerciante de escravos atuante em Alagoas). Seus dados estão incluídos no mesmo registro, no passaporte número 209, de 30 de abril de 1853.44 Algumas vezes dois, três, ou até quatro filhos menores podiam ser exportados ao lado das mães. Mas, evidente que a saída da província unidos não garantia que continuassem juntos até chegar ao comprador final. De qualquer modo, apesar de encontrar situações de exportação de menores acompanhados dos progenitores, eles não somam três dezenas de crianças em um conjunto de mais de 800 escravizados exportados de 14 anos ou menos. A enorme incidência de meninos e meninas viajando forçadamente desacompanhadas era comum no comércio de média e longa distância45 e é destacada na análise dos livros de passaporte de Maceió, inclusive no período em que vigiam leis que proibiam a separação de famílias escravas. Nesses, ou não havia qualquer menção à legislação ou recorria-se a uma leitura difusa dela. No entendimento dos comerciantes, quase sempre avalizada pelo Chefe de Polícia, os textos legais (Decreto 1.695/1869 e Lei 2.040/1871) impediam a separação de famílias apenas quando todos os membros fossem escravos.46 Nessa leitura, a legislação não se aplicava a crianças com mães libertas. Essa interpretação levou a situações como a de Rosa, alforriada em 1876. Dez dias depois de receber a carta, seus três filhos – de 7, 9 e 11 anos – foram vendidos para um comerciante de escravos e enviados para o Rio de Janeiro.47
É interessante utilizar o Gráfico 2 para aprofundar a análise entre os dois quinquênios de maior volume do comércio interprovincial de Maceió, 1850-1855 e 1875-1880, nos quais foram exportadas 804 e 1.115 pessoas respectivamente. Na faixa de 22 a 28 anos, o acréscimo entre os períodos é proporcional ao aumento de volume do comércio; já a faixa etária seguinte (29-35) chega a observar queda, não obstante a elevação dos números totais. Entre aqueles com 8 a 14 anos, o fluxo acompanha a tendência geral. A grande alteração no padrão etário, certamente, fica na faixa dos 15 aos 21 anos, cujo aumento pronunciado é muito superior à diferença relativa nos números totais e representa mais que o dobro do volume no segundo quinquênio da década de 1870 em relação ao início dos anos de 1850. Os dados permitem afirmar que houve uma intensificação da procura por escravos e escravas jovens e capazes ao trabalho no pico do comércio nos anos de 1870. Desse modo, os comerciantes ofertavam cativos para atender às necessidades imediatas de mão de obra da região Sudeste e também para prover futuros trabalhadores.
Cativos jovens eram a regra no comércio; no entanto, não se deve ignorar a presença de escravizados mais velhos sendo vendidos entre as províncias. O Quadro 2 e o Gráfico 2 demonstram que 6,40% das pessoas exportadas tinham 36 anos ou mais. A variação dessas faixas etárias acompanhava a tendência geral de flutuação do volume do comércio. Ou seja, nos anos de baixo movimento, a população acima dos 36 anos poderia ficar relativamente tranquila em relação à possibilidade de ser enviada para longe. Já os períodos de alta deixavam toda a comunidade escrava sujeita à exportação. Apenas os escravos anciãos não sofreriam ameaça de serem obrigados a migrar para muito longe. O que permite refletir sobre um possível reforço na posição que os mais velhos possuíam como elo comunitário entre os grupos escravizados que permaneceram na província naquela conjuntura. Ainda assim, encontram-se registros como os de Francisco – designado como angola e com 60 anos em 1851, quando foi vendido – ou de Silvestre – de 50 anos, anotado como crioulo e exportado em 1867.48
Por fim, pode-se concluir que os dados apresentados convergem para o que vem sendo apresentado na bibliografia sobre o tema, indicando a relevante presença de escravos jovens no comércio interprovincial. Herbert Klein demonstrou que 70% dos escravos elencados nas listas de desembarques no Rio de Janeiro em 1852 eram menores de 30 anos.49 Os dados de Flávio Motta sobre os negócios em quatro cidades de São Paulo, nas décadas de 1860 e 1870, apontam a alta incidência desses cativos quando se trata de comércio interprovincial.50 As informações sobre Alagoas contribuem para dimensionar a predominância de escravos jovens no comércio interprovincial, bem como evidenciar a relevante presença de crianças e a pouca incidência de escravizados mais velhos.
Homens e mulheres
A segunda variável analisada diz respeito ao sexo dos escravos, fator que pôde ser verificado na totalidade dos registros.51 Antes de apresentar os dados relativos aos livros de passaportes, é importante conhecer a demografia escrava na província nos anos em questão.
O quadro revela que havia equilíbrio entre os sexos da população escravizada ao longo do período em análise. Por um lado, essa constatação indica que a densidade de homens e mulheres cativos na província não teria afetado sua maior ou menor incidência nos negócios interprovinciais. Por outro, aponta que esse negócio não impactou significativamente a relação entre os sexos ali. O quadro abaixo contribuiu para essas observações:
Os dados demonstram que a maioria da população exportada era masculina. No entanto, mulheres foram extremamente representa- tivas. Totalizavam 2.036 meninos e homens e 1.557 meninas e mulheres destinados à venda que tiveram o passaporte emitido pela Secretaria de Polícia de Alagoas, em Maceió. Nos três quinquênios de maior volume do comércio – 1850-1855, 1855-1860 e 1875-1880 – a proporção de homens e mulheres exportadas foi próxima, não deixando de ser notável que, em 1855-1860 os passaportes para mulheres escravizadas tenham superado aqueles para os homens.
A grande incidência de mulheres no comércio no Porto do Jaraguá pode ser uma característica local e não deve ser generalizada para todo o Império. Os escravos saídos pela capital de Alagoas provinham da Zona da Mata, região tradicional de grandes latifúndios monocultores, e do Agreste, onde o cultivo de algodão conheceu grande avanço no período. Já os cativos do Sertão alagoano e da região são-franciscana eram exportados principalmente através do Porto do Penedo, o que dava uma configuração particular ao fluxo de escravos em Maceió. É possível que a competição por trabalhadores homens por parte dos grandes senhores de engenho reduzisse a disponibilidade destes nos mercados interpro- vinciais. Nesse sentido, a maior proporção de mulheres exportadas na segunda metade dos anos 1850 seria indicativa dessa concorrência local por braços escravos masculinos. Aquele momento, de alta do comércio interno, foi de produtividade para a empresa açucareira. A presença signi- ficativa de mulheres no comércio teria sido reflexo da capacidade dos grandes senhores de reterem e adquirirem os escravos homens à venda na província, por um lado, e da capacidade de comerciantes fazerem movimentar o comércio interprovincial apesar da competição, por outro.
Para a análise sobre a alta proporção de mulheres no comércio nos anos de 1850 também deve ser levado em conta sua capacidade de gerar filhos escravos, apelo que seria encerrado em 1871 com a Lei do Ventre Livre. A fertilidade estaria imbuída no processo de objetificação dos corpos escravos, afirmativa apoiada por uma breve análise sobre o preço dos cativos. Os dados indicam que a relação entre os preços de homens e mulheres era próxima até os anos de 1870, em Alagoas.52 Um homem escravizado valia, em média, 1 conto (1.000.000) de réis nos anos 1856 e 1857, enquanto uma mulher era vendida por 953 mil réis na província. Esses dados se baseiam em registros cartoriais de compra e venda e permitem perceber que nos anos de 1850, conhecidos pelo aumento no valor nominal dos cativos,53 havia certo equilíbrio nos custos em se adquirir um homem e uma mulher nessa parte do Brasil.
Nos anos de 1860, quando mulheres ainda geravam crianças escravizadas diante da lei, seu preço ainda era próximo ao dos homens, mas sua proporção no comércio caiu. Para essa análise, é preciso, inicialmente, considerar que houve uma queda geral nos números absolutos do comércio naquele período. O declínio das exportações de escravos, principalmente após 1864, deveu-se, em grande medida, aos efeitos da guerra nos Estados Unidos, que impulsionou a cultura de algodão na região. Por outro lado, o café continuava em crescimento no Sudeste. Conforme demonstra Flávio Motta, nas áreas de expansão da fronteira agrícola havia uma demanda maior por trabalhadores homens. A ampliação da produção de algodão em Alagoas teria, portanto, restringido os negócios interprovinciais, mas estes não pararam comple- tamente. Nesse sentido, a atribuição de valor à capacidade reprodutiva poderia ter pendido para a manutenção das mulheres na província, ao passo que comerciantes de longa distância optavam em tratar priori- tariamente com escravizados homens.54
Essa situação mudou após o fim da transferência da condição cativa aos filhos de mulheres escravizadas em 1871: estas passaram a valer entre 60 a 70% do preço de um escravo homem. Mas não apenas a possibilidade de gerar filhos escravizados parece explicar essa mudança na relação de preço. Nos anos de 1870, a conjuntura econômica trans- formou-se significativamente em relação aos períodos anteriores. Se a década de 1850 foi proveitosa para a produção canavieira (apesar da volatilidade), e a de 1860 desfrutou dos lucros da ampliação da cultura do algodão, nos anos de 1870, a agricultura do Nordeste passou por uma forte crise, acentuada, a partir de 1877, pela Grande Seca. Essa situação reimpulsionou o comércio de escravos em Alagoas (e em toda a região). Seguindo uma tendência do quinquênio anterior (1865-1870), a parti- cipação de mulheres no comércio interprovincial foi reduzida no início dos anos de 1870. No entanto, foram períodos de retração dos negócios, o que significou, em números reais, 91 homens a mais exportados pelo Porto do Jaraguá. No quinquênio seguinte (1875-1880), quando o comércio novamente chegou a grandes volumes, com 1.115 passaportes registrados, a proporção entre os sexos voltou a se aproximar, com as mulheres representando 42%. Em números reais, isso significou que 465 das pessoas exportadas eram mulheres e 650, homens; uma diferença de 185 pessoas, portanto.
Uma abordagem importante para essa análise é a variação entre os sexos dos escravos por faixa etária. Para tanto, foi elaborado o Quadro 5 . Para facilitar a demonstração dos dados, foram excluídas as colunas menos representativas. Desse modo, buscou-se perceber se havia maior procura ou rejeição por mulheres escravizadas conforme a idade. O resultado foi o seguinte:
O Quadro 5 indica que, na faixa etária mais representativa do comércio interprovincial de Alagoas (15 a 21 anos), mulheres foram a maioria dos cativos exportados ao longo das décadas de 1840 e 1850. Essa situação não se repetiu nos anos de 1860 e 1870, embora seja notável que, no quinquênio 1875-1880, a proporção de mulheres entre 15 e 21 anos voltou a crescer, chegando a 48% dos cativos de exportados daquela faixa. Nos anos derradeiros do comércio, em 1880-1882, novamente elas superaram os homens. Observando as duas faixas etárias seguintes, vê-se que essa relação não se repete. Exceto no excepcional quinquênio de 1855-1860, quando mulheres foram a maioria dos cativos exportados no cômputo geral, em todos os outros, sua proporção é inferior em relação aos homens em cada faixa etária a partir dos 22 anos.
Desses dados pode-se concluir que havia um grande interesse por mulheres jovens ao longo de todo o período em que vigorou o comércio interprovincial, sendo que, nos períodos nos quais seus filhos nasceriam escravos (e seu preço era mais próximo ao dos escravos homens), sua participação foi acentuada. A elevação da proporção de mulheres na faixa dos 15 a 21 nos anos de 1875-1880 indica, no entanto, que mesmo após a Lei do Ventre Livre, mulheres jovens continuaram a ser alvo do interesse dos comerciantes. Ou seja, ainda que a capacidade reprodutiva tivesse um peso considerável no comércio de mulheres escravizadas, sua força de trabalho era valorizada per se no contexto do comércio interpro- vincial. Negociar mulheres não era apenas um comércio residual, mas uma atividade regular e substancial fonte de lucro para os negociantes de escravos.
Ajuda a compreender essa situação, o interesse dos comerciantes de disporem de quantos escravos fosse possível para exportação. Com o aquecimento dos mercados, cativos jovens eram procurados, indepen- dentemente do sexo. Um dos envolvidos no comércio de escravos em Maceió, nos anos de 1850, exemplificou essa situação ao afirmar que, nos momentos de alta, buscava-se “comprar o maior número de escravos que fosse possível”55 para enviá-los ao Sudeste. A maioria dos anúncios de compra de escravos publicados pelos comerciantes nos jornais locais ou não fazia menção ao sexo, ou indicava o interesse por ambos, demonstrando que, na maior parte dos casos, eram procurados tanto homens quanto mulheres.56
O Quadro 4 expõe que nos anos de 1840 a relação entre os sexos dos escravos exportados era muito próxima. Depois que o comércio foi intensificado nas décadas seguintes, observa-se que ela tendia a ser mais próxima nos momentos de grande volume de exportações e desigual nos de baixa. Contribui para essa perspectiva o fato de que no quinquênio 1860-1865, no qual houve um movimento mediano de vendas inter- provinciais, 35% das 410 pessoas negociadas eram mulheres: uma proporção inferior aos quinquênios mais intensos, mas superior aos de baixa procura.
Concluindo, os dados sobre a relação entre os sexos dos escravos exportados de Alagoas apontam para a predominância de homens no comércio interprovincial, mas em um contexto menos drástico de envolvi- mento masculino em relação ao que vem sendo apontado pela bibliografia. Inicialmente, Robert Conrad supôs que se devia reproduzir no comércio interno de longa distância o padrão do tráfico atlântico, indicado por ele como dois homens para cada mulher.57 Os dados de Herbert Klein corroboram essa perspectiva ao indicar 67% de homens entre os escravos entregues no Rio de Janeiro em 1852.58 Já Flávio Motta observou que as razões de masculinidade eram maiores nos negócios envolvendo cativos de fora da província de São Paulo nos anos de 1860 e 1870.59 Lima Filho, em estudo sobre passaportes de escravos exportados de Salvador, identifica uma proporção de 60% de homens no comércio na década de 1850 e 73% nos anos de 1870.60 Em Maceió esse percentual é de 56% de homens vendidos como escravos para fora da província ao longo do período aqui trabalhado.61 A explicação para esses números possivelmente repousa no fato do Porto do Jaraguá estar imbricado em uma zona canavieira e em um contexto provincial de mútua produção canavieira e algodoeira. Nesse sentido, a análise aqui exposta concorda com a perspectiva dos dois mercados apontada por Robert Slenes, na qual os negócios interprovinciais de escravos do Nordeste para o Sudeste dependiam tanto das condições de demanda das províncias vendedoras como das compradoras.62
Por outro lado, analisando a demografia da província, os dados contrariam a hipótese de que o comércio interprovincial teria causado desequilíbrio entre os sexos em Alagoas.63 Como as estatísticas já indicavam, a proporção de homens e mulheres entre a população escra- vizada manteve-se equilibrada nas últimas décadas da escravidão. No principal porto da província, responsável por mais da metade do fluxo do comércio interprovincial, a diferença entre exportações foi de 456 homens a mais ao longo de todo o período analisado neste artigo. Considerando a subnotificação e projetando essa relação para a província inteira, a diferença teria sido pouco superior a 1.000 pessoas. Diluídos no tempo, esses números não foram suficientes para impactar uma população de cerca de 40 mil cativos existentes ali em 1848, anos antes do comércio interprovincial começar a se expandir significativamente.
Considerações finais
O comércio interprovincial de escravos foi um dos eventos mais impor- tantes nas últimas décadas da escravidão no Brasil. Seu volume, superando 200 mil pessoas forçadas a migrar entre as províncias, e sua dimensão, atingindo, em maior ou menor grau, todas as regiões do Império, influen- ciaram a demografia escrava do país, tornando-o tema dos debates políticos que discutiam o futuro da escravidão. A possibilidade de deslocar escravos para a região Sudeste – simultaneamente centro político e econômico do Brasil na segunda metade do Oitocentos – viabilizou a manutenção do uso de mão de obra escravizada em um contexto de expansão da fronteira agrícola. A principal consequência desse processo teria sido a concentração da propriedade cativa, tanto em termos locais como nacionais, levando a que cada vez menos brasileiros estivessem comprometidos com a insti- tuição da escravidão, o que não impediu que o Brasil fosse o último país do Ocidente a aboli-la. Mas os eventos que se precipitaram nos anos de 1880, e levaram à assinatura da Lei Áurea, em muito deveram à intensa mobili- zação social que se conformou no país e à diferenciação de interesses entre as elites regionais. Em ambos os movimentos, o comércio interprovincial de escravos teve papel fundamental.
Neste artigo, buscou-se dimensionar o impacto do comércio sobre a população escrava de uma província vendedora através da análise do perfil das pessoas exportadas, destacadamente o sexo e a idade. Foram discutidas as especificidades de Alagoas no contexto nacional para melhor compreender como esses dados podem ser úteis para um diálogo mais amplo sobre o comércio interprovincial. Nesse sentido, percebe-se que a hipótese dos dois mercados proposta por Robert Slenes é aplicável quando se analisam os dados do comércio interprovincial a partir do Porto do Jaraguá. A competição entre grandes senhores locais e a demanda do Sudeste por escravos (viabilizada esta pela grande organi- zação dos comerciantes de cabotagem) caracterizaram esses negócios e influenciaram em seus fluxos.
No que diz respeito ao perfil dos escravos, os dados sobre as pessoas vendidas pelo Porto do Jaraguá, em Maceió, corroboram o que a bibliografia vem apresentando sobre sua juventude, destacando a presença significativa de crianças e a pequena incidência de escravos mais velhos. Em relação ao sexo dos cativos, os dados de Alagoas apresentam uma tendência ligeiramente diferente do observado em outras províncias. Ao indicar uma proporção de 56% de homens e 44% de mulheres entre os cativos exportados de Maceió, apontam para um desequilíbrio menos drástico entre os sexos. É notável a excepcionalidade do quinquênio 1850-1855, quando mais mulheres foram exportadas.
Os dados para idade e sexo dos escravos exportados indicam que, nos momentos de baixo fluxo do comércio, quando o volume de expor- tações girava em torno de 30 a 40 escravos anuais saindo pelo Porto do Jaraguá, havia uma predominância de cativos homens e jovens. Já nos momentos de grande movimentação dos negócios, que podiam superar 500 pessoas num ano, várias mulheres eram vendidas, bem como cativos mais velhos. Ou seja, nos momentos de intensificação do comércio inter- provincial, praticamente toda a comunidade escrava estava ameaçada pela migração forçada.
Dimensionar o impacto do comércio interprovincial nos eventos que levaram ao fim da instituição da escravidão no Brasil é uma tarefa complexa, mas importante, na medida em que esse negócio influenciou amplamente a sociedade brasileira da segunda metade do século XIX. A investigação sobre suas dinâmicas nas diversas províncias contribui para uma compreensão geral de seus impactos. O estudo sobre o perfil dos escravos exportados de Maceió buscou identificar quem eram os escravos envolvidos nesses negócios que marcaram a escravidão no país.
A transferência de milhares de pessoas em um país continental representou o desmembramento de famílias, a ruptura de laços afetivos e sanguíneos, e evidenciou a violência extrema da escravidão para além da dor física. Por trás de números e percentagens, desdobraram-se dramas humanos que atingiram a população brasileira mais vulnerável no final do século XIX. Os impactos desse processo nos momentos finais do período escravista, bem como no período posterior, ainda estão para ser medidos.
Agradecimentos
* Agradeço à leitura de Thiago Leitão de Araújo e Raquel Martini Carriconde, além das observações dos pareceristas anônimos, revisores e editores da Revista Afro-Ásia , que contribuíram para a escrita final deste artigo.
Notas