ARTIGOS

UM ORIXÁ DESAPARECIDO: ETNOGRAFIA NUM MUSEU SILENCIOSO

A MISSING ORIXÁ: DISCOVERIES THROUGH A SILENT MUSEUM

Larissa Fontes
Université Lumière Lyon 2, Francia

UM ORIXÁ DESAPARECIDO: ETNOGRAFIA NUM MUSEU SILENCIOSO

Afro-Ásia, núm. 64, pp. 363-399, 2021

Universidade Federal da Bahia

Recepção: 19 Outubro 2020

Aprovação: 28 Abril 2021

Resumo: Este artigo é um recorte de uma tese de doutorado cujo objeto central é a Coleção Perseverança, composta de peças roubadas dos terreiros de Maceió em um episódio de repressão político-religiosa ocorrido em 1912. Abrigado pelo Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, o acervo nunca foi objeto de estudos científicos. Esta pesquisa tenta preencher lacunas, traçando a grande transformação ritual e litúrgica sofrida pelo xangô alagoano. A partir de um processo de construção de um inven- tário desses objetos, uma investigação foi realizada em busca de seus usos originais para referenciá-los devidamente. A construção da biografia dos objetos foi realizada com a participação da comunidade religiosa afro-alagoana e baiana, privilegiando o conhecimento tradicional, a mitologia e o sistema cosmológico. Essas biografias também possibilitaram importantes descobertas, como uma divindade que desapa- receu completamente do panteão local junto com seu conhecimento litúrgico trata-se do orixá Baiani, considerado raro e atualmente só encontrado em alguns terreiros da Bahia.

Palavras chave: Coleção, Antropologia, Memória, Xangô, Candomblé.

Abstract: This article analyzes the Coleção Perseverança, a collection of pieces stolen from some terreiros in a repression episode occurred in 1912, at Maceió. Exposed at the Historical and Geographical Institute of Alagoas, this archive has not been issue of scientific studies ever since. I tried to fill gaps, tracing its path so far, demon- strating the transformations of the xangô alagoano, at the liturgical and ritual levels. Through a construction of an inventory, I investigated their original uses to properly reference the pieces. This quest for the object’s biography was produced with the participation of the Afro-Brazilian religious community in Alagoas and Bahia, focusing on traditional knowledge, mythology and cosmological system. Those object’s biographies also had brought important discoveries, like a divinity completely disappeared from the local Afro-Brazilian pantheon with its liturgical knowledge. It is the orixá Baiani, a rare one, only found in a few houses in Bahia.

Keywords: Collection, Anthropology, Memory, Xangô, Candomblé.

A Coleção Perseverança, objeto central deste estudo, é o documento mais importante para a memória religiosa afro-brasileira em Alagoas, no nordeste do Brasil. Trata-se de um conjunto de objetos roubados dos terreiros1 locais durante um violento episódio de repressão político-religiosa conhecido como “Quebra de Xangô” (ou ainda “Operação Xangô”), ocorrido em fevereiro de 1912. A Coleção é composta por esculturas religiosas, peças indumentárias, insígnias rituais, instrumentos musicais e outros artefatos de uso ritualístico. Ela é atualmente abrigada pelo Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL), na capital Maceió.

A Operação Xangô

Ao longo da história do Brasil observa-se uma tendência ao controle e exclusão de práticas religiosas e culturais afrodescendentes, consi- deradas inferiores. Na época colonial, mecanismos reguladores foram colocados em prática para estabelecer um sistema de acusações contra feiticeiros e seus locais de culto.2 A partir da instauração da República (1889), estes mecanismos ganharam melhor forma em decorrência do decreto de 11 de outubro de 1890, instituindo o Código Penal. Durante o período de 1890 a 1940, o aparelho jurídico se instrumentalizou, interferindo no domínio da feitiçaria e no combate aos “feiticeiros”, regulamentando acusações, criando julgamentos e funcionários especializados.3 Este período foi marcado por políticas sistemáticas de repressão aos cultos afro-brasileiros, políticas essas que foram respon- sáveis pela formação de diversas coleções de objetos rituais e litúrgicos por meio de apreensões durante violentos controles policiais. Estas coleções começam a ocupar as vitrines dos museus brasileiros a partir da primeira metade do século XX.

Uma pesquisa sobre a Coleção Perseverança não pode ser disso- ciada do episódio que resultou na reunião de suas peças – sobretudo por se tratar de um episódio de repressão em tudo diferente da maioria dos outros casos registrados pela historiografia e etnografia brasileira. Diferente de outros eventos repressivos contra as religiões afro-brasileiras em que as perseguições eram iniciativas isoladas contra indivíduos acusados de charlatanismo ou prática ilegal da medicina, o que houve em Alagoas foi uma invasão massiva. Além disso, também diferente de outros conhe- cidos casos de controle e repressão policial, não foram somente as forças policiais que teriam praticado agressões típicas de abuso de poder (como é observado ainda nos dias de hoje), mas a própria população teria se juntado aos agressores, o que conforma um elemento inédito. A singu- laridade deste caso, como observou Rafael, está justamente no fato de que a violência foi o resultado de uma iniciativa na qual o Estado estava completamente ausente4 – sendo mesmo vítima, eu adicionaria. Assim, em busca de compreender o presente através do passado, como escreveu Marc Bloch, se faz necessário analisá-lo mais profundamente.5

Durante o período de 1900 a 1912, o estado de Alagoas foi marcado pela carreira política do Governador Euclides Malta. O período ficou até conhecido como “a era dos Malta”, pois mesmo quando Euclides Malta não esteve à frente do cargo, colocou seu irmão no posto mantendo-se no controle do poder.6 A Operação Xangô foi resultado da difusão de rumores de que o governador Euclides Malta teria uma estreita relação com as religiões afro-brasileiras; os rumores dessa aproximação entre o Governador e os xangôs7 foram largamente difundidos entre a oposição política e a imprensa local durante anos na forma de artigos vexatórios e acusatórios contra Malta. Essas acusações tinham por ambição atacar o governador e rebaixá-lo diante da opinião pública, persuadindo a sociedade a acreditar que Euclides Malta se valia de “feitiçaria” para se manter no poder durante tanto tempo. Dessa maneira, os jornais locais da época constituem uma importante fonte histórica, pois pelo menos desde o começo de 1900 publicavam informações sobre os cultos afro-brasileiros um material muitas vezes rico em detalhes a respeito do funcionamento dos terreiros e da gente que os frequentava.8

Rafael escreve que a comunidade religiosa afro-brasileira da época gozava de uma certa proteção e que isso teria levantado os rumores de que o governador Euclides Malta mantinha relações com ela.9 Prefiro dizer que os xangôs gozaram, no máximo, de certa tolerância por parte do governo – tolerância essa que não durou muito tempo, o que pode ser percebido em análise atenta dos jornais da época.

Em 1903, por exemplo, o jornal A Tribuna publica uma carta dirigida ao Coronel José Gatto, escrita por um leitor que apresenta, em nome de seus vizinhos (cidadãos “bons católicos”), o “desgosto que eles sentem” pelas práticas dos “devotos de Santa Bárbara” e deixam claro “não concordarem com o rito dessa igreja, pois as festas que ela promove são abrilhantadas por uma orquestração de adufos , chocalhos e latas que ferem o tímpano da humanidade todo um dia e toda uma noite quase frequentemente”.10 A queixa descreve algumas práticas observadas pela vizinhança e assinala que “o santo entra quase sempre na cabeça dos crentes”, o que quer dizer que o transe de incorporação era identificado no rito, sendo esse um dos motivos do incômodo dos vizinhos. O autor da carta evoca a liberdade dos cultos assegurada pela lei mesmo se a consciência deste fato não o impeça de enviar uma carta aberta ao Coronel, calcu- lando que este último compartilharia dos mesmos valores e opiniões em relação às manifestações religiosas afro-brasileiras – presunção manifesta na utilização termo “amigo” para se dirigir à autoridade. O autor também conta que ao confrontar um dos praticantes do culto, este deu-lhe uma “lição proveitosa de Direito Público”, um testemunho irônico do conhe- cimento da parte dos adeptos dos xangôs de seus direitos e de uma atitude insubmissa face às elites.

Já no ano seguinte à publicação dessa carta, o mesmo jornal publica outras reportagens que mostram uma mudança no tom do discurso, agora mais violento e depreciativo, como um artigo intitulado “Feiticeiros e feiticeiras (no Alto da Jacutinga)” que narra a prisão de alguns religiosos.11 Ora, as coisas parecem ter mudado rapidamente em relação à liberdade dos cultos e à suposta proteção do governo.

Em 1905, um outro jornal, o Correio de Alagoas publica uma outra carta aberta de um leitor, dessa vez anônimo, narrando uma cena que teria testemunhado em companhia de um amigo numa praça no centro da cidade de Maceió.12 Os dois amigos teriam visto o dr. José Tavares, alto funcionário do governo e pessoa muito próxima do gover- nador Euclides Malta, “em posição de não lhe vermos o rosto”, saindo da casa de Mestre Félix, “conhecido feiticeiro, morador nas proximidades da igreja de Nossa Senhora Mãe do Povo”. Na casa de Mestre Félix, “o referido doutor confabulara com o aquele feiticeiro, mostrando satis- feitíssimo com o resultado da conferência”. O destinatário anônimo continua: “Mestre Félix não guarda suficientemente o segredo e, pasmem de lê-lo, o nosso querido Dr. alí estivera, como de outras vezes, fazendo feitiçaria ou preparando terreno […] para se eleger deputado federal”. É o começo da exploração pela imprensa da suposta associação de Euclides Malta com os xangôs.

Em 1906, o Correio de Alagoas publica um novo artigo intitulado “O Mestre Félix – A Feitiçaria e a Política” com vários subtítulos: “Orixá-alum”, “Peditórios e Promessas”, “A Governança do Estado depende de feitiçaria”, “Um bacharel feito ‘Ogan’– Iniciação de um Senador”. O autor do artigo afirma que “a bruxaria decidiu a candidatura do senhor Joaquim Malta” (irmão de Euclides), assim como outros postos de grande influência política (inclusive o do Dr. José Tavares, antes objeto da acusação da carta anônima). O autor ainda diz que “atualmente o feitiço prepara a eleição do Dr. Euclides Malta no cargo de governador”. O responsável por essa empreitada seria Mestre Félix, “preto velho sabedor de todos os segredos”, “negro mina da cara lanhada” (possível referência a escarificações étnicas). Isso desperta o interesse do jornal, que envia um repórter para “se certificar da importância suprema do babalaô ”. Ao ser interrogado, “um vizinho” teria dito que a casa de Mestre Félix era frequentada “pelo que há de melhor na capital”, inclusive pelo Dr. Euclides Malta. O que as autoridades procuravam “não é segredo para ninguém”. Ainda segundo o tal vizinho, essa gente “vêm consultar o babalaô sobre assuntos graves, pedir mandingas, assistir os candomblés e os sacrifícios”. O Dr. Joaquim Malta, irmão de Euclides, já seria “ogani13 da seita, primeiro degrao (sic) da escada que conduz ao babalaô” e teria pedido a Mestre Félix “para que influísse no espírito do Senador Euclides Malta, afim de fazê-lo Governador”. Tudo isso à base de sacrifícios de animais igualmente descritos pelo autor. O mesmo informante também teria compartilhado revelações premonitórias em relação ao futuro de Euclides Malta. O oráculo de Mestre Félix teria mostrado algo de ruim; “o santo não está satisfeito e teima em prever desastres ao S. Exc.”.

Ora, detalhes, nomes e sobrenomes são revelados. A oposição e os inimigos de Euclides Malta ganham então um bom sujeito a partir do qual conduzir a população contra ele, fazendo apelo às emoções e aos valores conservadores de uma sociedade elitista num contexto histórico muito próximo à abolição da escravatura, alimentando um imaginário social que relegava às praticas religiosas de matriz africana e à população negra, a margem da sociedade.

Segundo Rafael, por volta do fim de 1911 foi criada uma mistura entre guarda civil e milícia privada com objetivo de criar agitações populares e de fornecer apoio físico à campanha contra Euclides Malta.14 A tal Liga era presidida por um capitão do exército aposentado, Manuel Luiz da Paz, veterano da Guerra de Canudos, na qual ele haveria, diga-se de passagem, deixado uma perna.15 Entre seus membros, estavam alguns soldados desertados, insatisfeitos com atrasos de pagamento e estimulados a aderir ao movimento de “rasga a farda” agitado pela Liga, interessada em recrutar novos componentes.16

Em 4 de fevereiro de 1912, dois dias após o episódio da Operação Xangô, o Jornal de Alagoas publica uma série de artigos intitulada “Bruxaria”, dedicada aos acontecimentos envolvendo as casas de xangô. Segundo o jornal, episódios violentos da parte da Liga dos Republicanos Combatentes teriam começado a acontecer ainda em 28 de dezembro de 1911, quando tentaram invadir o Palácio do Governo. A guarda do Palácio conseguiu contê-los, mas a confusão resultou em inúmeros feridos e detidos. Ainda segundo o mesmo artigo, um mês depois, no fim do mês de janeiro de 1912, a Liga ataca novamente e, dessa vez, a guarda do Palácio não consegue contê-la. O governador Euclides Malta é então obrigado a escapar pelos fundos do palácio e embarcar em direção a Pernambuco em busca de refúgio.

Em 1º de fevereiro de 1912, a situação estava ainda mais tensa. As ruas de Maceió foram então palco de um dos episódios mais violentos dos quais foram vítimas as casas de culto afro-brasileiro no país. A Operação Xangô teve como resultado a invasão e a destruição de inúmeros terreiros de xangô em Maceió e arredores. Nas palavras publicadas pelo Jornal de Alagoas :

foi isso que, ante-ontem se acabou pelas mãos de quase duas mil pessoas, entre sorrisos e gargalhadas. […] o povo, que não via com bons olhos essas casas de bruxaria, auxiliado por alguns praças da guarnição investiu ante-ontem contra a “panela do feitiço”. Tudo quebrando, extinguindo e fazendo recolher a cadeia, em nome da tranquilidade, os mais afamados “pais de santo”.17

O Jornal de Alagoas conta: nessa devastação, móveis e utensílios foram destruídos. Roupas cerimoniais e insígnias rituais foram queimadas numa grande fogueira armada no meio da rua. Outros objetos como escul- turas, artefatos litúrgicos e joias foram conservados e levados à sede da Liga dos Republicanos Combatentes para serem expostos como troféus. Alguns foram levados para a sede do Jornal de Alagoas , onde ficaram durante alguns dias expostos ao escárnio dos passantes através das janelas do imóvel. Posteriormente, os “republicanos combatentes” arranjaram o material sobre- vivente numa exposição na sede da Liga, transformando a sala principal em um museu que, segundo o mesmo jornal, atraiu vários visitantes.

A Operação Xangô calou os terreiros da cidade. Vários líderes religiosos foram procurar refúgio em outros estados. Aqueles que ficaram continuaram a desenvolver suas práticas religiosas, pois, como escreveu Rafael, temiam muito mais as possíveis punições de seus orixás do que as das autoridades terrenas.18 Isso resultou na humilhante modalidade denominada pelo antropólogo Gonçalves Fernandes de “xangô rezado baixo”: sem rodas de dança, sem uso de tambores e atabaques.19 Os sacri- fícios eram feitos tão discretamente quanto uma doméstica prepara uma galinha ao molho pardo.20

Tia Marcelina, uma velha africana indicada pelas fontes jorna- lísticas como a fundadora do candomblé em Alagoas, é uma importante figura quando se fala em Quebra de Xangô. Ela era dona de um dos terreiros mais antigos da cidade e, segundo os relatos da época, o mais frequentado pelo governador Euclides Malta. A multidão devastadora teria entrado em sua casa ao fim da função religiosa e agredido muita gente, inclusive a própria matriarca. Rafael escreveu que Tia Marcelina teria se recusado a abandonar seu terreiro. 21

[Tia Marcelina] veio a falecer dias depois em função de um golpe de sabre na cabeça aplicado por um daqueles praças da guarnição que dias antes haviam desertado no Batalhão Policial. Contam que a cada chute recebido de um dos invasores, tia Marcelina gemia para Xangô (eiô cabecinha) a sua vingança e, no outro dia, a perna do agressor foi secando, até que ele mesmo secou todo.22

Esse evento, além de toda a sua singularidade, teve duas grandes consequências: uma verdadeira diáspora interna e a criação de um novo tipo de culto – eis a transformação de uma comunidade religiosa que, a partir de então, jamais seria a mesma.

As lacunas

A reconstituição do episódio da Operação Xangô teve de ser feita a partir da leitura dos únicos documentos disponíveis. Na falta de processos judiciais ou de inquéritos policiais, utilizaram-se os principais jornais em circulação em Alagoas entre 1900 e 1912, período marcado pela trajetória política de Euclides Malta no poder. A série de matérias do Jornal de Alagoas sobre o “quebra-quebra” intitulada “Bruxaria”, publicada em 4 de fevereiro de 1912, é em grande parte sobre em que se apoia a etnografia de Rafael.23

A partir dos anos 1980 identifica-se um movimento de recuperação da história afro-brasileira em Alagoas por meio de estudos realizados pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab) da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e de outros pesquisadores. Vários autores consideram o Quebra de Xangô como o marco central desse movimento de resgate da memória e da renovação das pesquisas sobre o tema.24

Porém, apesar dos esforços direcionados a esta recuperação, inúmeras lacunas persistem. Em razão do grande trauma vivido em 1912, os religiosos mais antigos não perpetuaram sua memória aos mais jovens. Esse silêncio provocou uma perda irreparável e uma grande ferida na memória dessa comunidade religiosa, o que foi observado pelos autores antes citados e por mim mesma, em minhas pesquisas. Diante da ausência de testemunhas atuais e de documentos oficiais, o material produzido pela imprensa local da época constitui uma importante fonte histórica.

No período que segue o 1º de fevereiro de 1912, é possível constatar um grande silêncio da imprensa sobre os xangôs, que, até então, eram assunto frequente nas páginas dos jornais. Somente a partir de 1936 os cultos voltam a aparecer na imprensa. De 1936 até 1950, uma forte retomada dos xangôs como objeto de interesse da imprensa é observada em artigos extremamente racistas e depreciativos, informando a população a respeito de acusações e da prisão de praticantes do xangô. Um vácuo de vinte anos é assim constatado, sintomático e revelador de uma diáspora causada pela repressão dos cultos afro-brasileiros. Grande parte dos religiosos, assustados, partiu. Os que ficaram tiveram de transformar suas práticas, adotando modelos de culto mais discretos e sincréticos. A repressão de 1912 foi responsável por grandes mudanças na dinâmica dos cultos afro-alagoanos.

A Coleção Perseverança é o único documento capaz de falar sobre os antigos xangôs de Alagoas. Por nunca ter sido interrogada, a Coleção se transformou num documento silencioso com o passar dos anos. Mais de cem anos após o episódio que destruiu as casas de xangô, as pesquisas que se consagram a estudar o tema são confrontadas com muitas dificuldades, dentre as quais a mais árdua é a falta de testemunhas que viveram o contexto histórico. Assim, ainda muito cedo em minha pesquisa pude constatar que a Coleção Perseverança está envolta de silêncios e ausências.

Antes da etnografia de Rafael, tese defendida em 2004 e publicada em 2012, havia somente uma escassa bibliografia. Dois catálogos foram publicados pelo IHGAL: um por Abelardo Duarte26 e outro por Raul Lody,27 os dois insuficientes em relação ao registro fotográfico das peças e às informações sobre elas. O primeiro não traz fotos de todas as peças, apresentando apenas uma tabela descritiva dos objetos. O segundo, por sua vez, tem um pouco mais de informações, referências e críticas dirigidas ao primeiro catálogo. Para Lody, numa publicação mais recente, o primeiro catálogo não traria a dimensão simbólica, nem histórica, moral ou ética: “trata-se de uma coleção sobre o xangô, quer dizer, uma coleção sobre o negro em Alagoas, ou melhor, trata-se de uma coleção sobre o negro brasileiro pertencente ao Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas”.28

Considerando essa construção crítica, Lody denuncia a limitação na representação do negro em Alagoas. Essa representação atingiria somente as dimensões religiosas, da “sobrevivência” e do “fetiche” como testemunhas materiais do negro, uma postura excludente de outras expressões de comunicabilidade social e de ação transformadora na complexa sociedade de Maceió. Nesta perspectiva, a construção da história e da memória da Coleção Perseverança não pode ser feita se levarmos em conta somente o contexto religioso e esquecermos os contextos histórico e político.

Os esforços de Lody para inventariar as peças têm de ser reconhe- cidos, assim como seu olhar crítico e questionador para o arquivo, mas o resultado é ainda distante de um estudo meticuloso da Coleção Perseverança. A publicação do catálogo em preto e branco e a montagem gráfica confusa limitam a análise.

De peças roubadas à “coleção etnográfica”

O único vestígio da Operação Xangô é o conjunto de objetos que hoje compõem a Coleção Perseverança. Do tempo da repressão sofrida, só restaram as peças roubadas dos terreiros, expostas ao escárnio dos passantes na sede do Jornal de Alagoas e posteriormente na sede da Liga dos Republicanos Combatentes. A própria Liga fez a doação (em 1912, ao que parece) dessa Coleção ao Museu da Sociedade Perseverança e Auxílio aos Empregados do Comércio de Maceió, instituição criada no começo de 1879. Segundo Maciel, a Sociedade era sustentada a partir da cotização mensal dos associados e oferecia cursos gratuitos de contabilidade, francês, português, aritmética, realizava conferências e disponibilizava salas de leitura aberta ao público.29 Quer dizer, a insti- tuição tinha um importante papel na formação intelectual da comunidade local. Ainda segundo Maciel, o museu da Sociedade foi inaugurado em 1897 com uma seção numismática, uma secretaria e uma biblioteca com 2.350 volumes, considerada a terceira maior de Alagoas. Pode-se então imaginar que a doação dos objetos resultados da Operação Xangô deva-se à representação intelectual da qual gozava a instituição.

Em 1950, a Sociedade já havia desaparecido, transformada em um sindicato de comerciários. Seu museu também fechou as portas. No entanto, não se sabe por quanto tempo as peças dos antigos xangôs ficaram nos porões do prédio que abrigava a instituição – “lugar igualmente dedicado ao episódio da Operação Xangô pela memória local”.30

É neste momento que intervém o Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas que, numa ação não muito bem documentada, recupera as peças abandonadas. Em 1974, Abelardo Duarte, médico e folclorista alagoano que ocupava o posto de “secretario perpétuo” do IHGAL, publica um catálogo dos objetos que posteriormente se tornaram a Coleção Perseverança.31 No catálogo, além de enumerar e descrever os objetos, ele narra a “ação iconoclasta” da Liga dos Republicanos Combatentes e a “salvaguarda cultural” realizada pelo IHGAL. Segundo Duarte, ele mesmo foi responsável por informar seus confrades da expatriação das peças do museu da antiga associação de comerciários após supostamente terem despertado o interesse de uma organização norte-americana. Ainda segundo Duarte, juntamente com Théo Brandão (igualmente membro do IHGAL, médico e folclorista), ele foi responsável por negociar a aquisição da dita Coleção, o que foi feito sem obstáculos numa negociação com o porteiro do local, uma vez que “a Coleção não interessava mais ao sindicato” e os objetos estavam “completamente desprezados e abandonados”.32

Assim, após essa heroica saga, os objetos foram incorporados ao patrimônio do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas em 1950, recebendo o nome de “Coleção Perseverança” em homenagem à instituição “doadora”. A Coleção foi apresentada ao público em 16 de setembro do mesmo ano, data comemorativa da emancipação política de Alagoas. Nessa ocasião, Duarte conta que um peji33 foi montado por um babalorixá (pai-de-santo) de nome Rubino. O autor conta também que um velho, irmão de Tia Marcelina, estava presente e, “muito emocionado, chorou diante do que restou dos terreiros do passado”.34

É importante ressaltar a inexistência de todo e qualquer documento capaz de atestar o percurso institucional dos objetos da Coleção Perseverança. O IHGAL também não parece obter nenhum documento que ateste a doação das peças, o que é apenas um dos muitos não-ditos relativos ao arquivo. Para o antropólogo Raul Lody, as peças teriam sido compradas para impedir que fossem retiradas de Alagoas.35

Segundo o Catálogo da Coleção Perseverança publicado por Duarte, as peças foram dispostas segundo a classificação de um filho-de-santo que teria explicado aos organizadores os significados de cada uma numa suposta visita à exposição, dando origem aos textos das legendas explicativas que acompanhavam os objetos, o que me parece estranho. Ora, como que, apenas dois dias após tamanha violência, um adepto do xangô pôde tão tranquilamente ter sido recebido na sede da Liga dos Republicanos Combatentes a ponto de ser ouvido pelos próprios algozes em suas explicações sobre objetos roubados (talvez de sua própria casa de culto)? Essa é, entretanto, a única explicação oficial sobre a origem das informações até hoje atribuídas às peças. Insisto na estranheza da expli- cação, que apenas acentua uma série de não-ditos sobre a coleção e seu percurso museológico. É igualmente estranho que o IHGAL mantenha em sua exposição certos termos retirados de reportagens de 1912, clara- mente tendenciosas, depreciativas e racistas.

Em entrevista a mim concedida, a museóloga Carmen Lucia Dantas relatou sua experiência como estagiária de Abelardo Duarte, folclorista e “secretario perpétuo” do IHGAL na época do referencia- mento da Coleção Perseverança.

Eles salvaram a Coleção. Dr. Abelardo se dedicava, fazia muito trabalho de campo em Alagoas, mas eu acho que ele não tinha muita base científica no assunto, tudo era um pouco na base do ‘eu acho’. Ele era médico, Théo Brandão também, então faltavam as ferramentas antropológicas, mas eles eram considerados como autoridades em assuntos do tipo. Depois de uma mudança na direção em 1970, tiveram a ideia de referenciar o arquivo do Museu do IHGAL em coleções e Dr. Abelardo foi designado para se ocupar da Perseverança. Eu era sua estagiária. Eu ficava lá, mas a palavra final era dele, eu era uma simples auxiliar, eu escrevia o que ele me dizia. Nunca houve consulta, os pais-de-santo ainda tinham muito medo, pois se tratava de um evento que engatilhou outros. Mas Dr. Abelardo estava consciente da importância deste arquivo.36

A fala de Carmen Dantas é clara: nunca houve a menor pesquisa etnográfica exclusivamente dedicada à Coleção Perseverança. Duarte parece ter reutilizado as legendas produzidas pelos membros da Liga sem profundas revisões, limitando-se ao acréscimo de alguns elementos bibliográficos e de sua experiência de campo sobre o folclore local (vasta, mas pouco específica), o que explica a presença insistente de termos e expressões empregadas pela imprensa local na série de reportagens do Jornal de Alagoas de 1912.

Os Institutos Históricos e Geográficos: “guardiões da História Oficial”

Segundo a historiadora Lilia Schwarcz, o pioneiro Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) cumpria o papel de construir uma história da nação, de recriar o passado, de solidificar mitos de fundação, de ordenar fatos.37 Schwarcz constatou a existência de ao menos vinte diferentes Institutos Históricos e Geográficos nos diferentes estados do Brasil. Os momentos de formação variam, mas boa parte se inscreve no fim do século XIX e começo do XX. Segundo a autora, o pioneiro IHGB demarcou os espaços e conquistou respeito nacional, enquanto os outros tiveram função de garantir suas respectivas especificidades regionais, sempre contribuindo para a definição de certa hegemonia cultural. Unificar a nação, ainda segundo a autora, significava construir um passado que se pretendia singular.

O recrutamento dos membros dos Institutos era (e ainda é) baseado em determinantes sociais e não em competências científicas, uma composição reveladora de espaços marcados por relações pessoais e políticas. A distribuição dos cargos é assinalada por Schwarcz: os membros que entravam por mérito acadêmico ocupavam majoritaria- mente postos de secretários ou de oradores, enquanto os presidentes ocupavam funções figurativas. Ou seja, aos secretários e oradores eram dados papéis mais laboriosos.38

A partir de 1930, o estado começa a se concentrar em outros domínios educacionais e culturais, o que representou uma queda institu- cional para os Institutos Históricos e Geográficos, reduzidos à colaboração dos próprios membros – muito embora o fato não tenha representado o colapso imediato das instituições, já que seus colaboradores compuseram o quadro das novas escolas e universidades num primeiro momento. Ainda segundo Schwarcz, a atualidade dos Institutos Históricos e Geográficos significa a perpetuação de um modelo completamente defasado.39

O Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL)

O Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL) foi fundado em 2 de dezembro de 1869, o terceiro do país, com um quadro de membros composto por políticos, médicos, comerciantes, militares e membros da Igreja Católica. O Instituto se engaja, segundo seu estatuto, a promover trocas culturais com outras instituições nacionais e internacionais, assim como promover cursos, concursos, conferências, exposições, seminários e atividades com temas de seu interesse. Sobre a admissão de novos membros, o estatuto coloca como condições preliminares significativa atuação profissional ou importante produção científica, artística ou cultural “segundo o julgamento da direção”. É igualmente enfatizado que o valor das taxas de admissão não deve ser inferior a um salário mínimo – quer dizer, não é qualquer um que pode arcar.

O Museu do IHGAL, segundo Carmen Dantas foi a primeira insti- tuição a criar um museu público em Alagoas e, graças à sua antiguidade, reúne em seus arquivos várias coleções.40 O IHGAL conserva peças de antigas refinarias de açúcar, assim como documentos relativos à escravidão, ao movimento abolicionista e ao Quilombo dos Palmares. Conserva também alguns objetos pessoais de Lampião e Maria Bonita. O museu também possui uma vasta coleção de objetos maçônicos, objetos de personalidades importantes do estado, um conjunto de materiais prove- nientes da Guerra do Paraguai, canhões e armas holandesas, francesas e portuguesas. No que chamam de “segmento etnográfico”, possuem um conjunto de cerâmicas originárias da Ilha de Marajó, uma coleção de peças indígenas alagoanas e a Coleção Perseverança.

Em relação à Coleção Perseverança, é importante frisar a ausência de qualquer tratamento das peças, de técnicas de arquivamento, conservação e organização museológica. Da mesma maneira, em termos de exposição dos objetos, pode-se constatar uma série de elementos que merecem revisão, permitindo não só a valorização do arquivo mas também uma definição lógica da ordem, cronologia, historicidade e origem dos objetos. O mesmo pode ser dito sobre o que é de ordem da interação com o público visitante, notadamente estudantes e pesquisadores.

O Museu do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas é um museu silencioso. Ele não narra a história das peças, não fala de suas origens. Ele não as analisa, não argumenta nem problematiza nada, não se dirige aos visitantes. Não tem nem mesmo funcionários capacitados para a organização de visitas. Mesmo que de maneira indireta, o Museu do IHGAL coloca em valor e legitima a violência sofrida pelos xangôs. O que predomina é a preservação de um ambiente de barbárie e violência extrema. Muitos foram os que detiveram a palavra sobre o assunto: primei- ramente os próprios ladrões das peças, os milicianos que as expuseram ao escárnio da população, como troféus; posteriormente, intelectuais interessados em uma “História Oficial”, mas nunca os proprietários de origem desses objetos de culto. A comunidade religiosa nunca pôde se expressar sobre o assunto, mesmo que inúmeras tentativas de fazê-lo tenham ocorrido.

As informações e classificações existentes sobre as peças da Coleção Perseverança são sucintas e extremamente duvidosas, como a própria direção do museu reconhece. O arranjo dos objetos não é fruto de pesquisa etnográfica nem museológica. Para Lody, “a Coleção Perseverança é hermética, pois não há acréscimo de novos objetos (novos testemunhos) que acompanhem a dinâmica das representações do xangô em Alagoas”. 41 Sendo assim, não tendo sido objeto de um trabalho etnográfico, ela não faz jus ao título de “Coleção Etnográfica” que lhe é atribuído – mesmo porque as peças não foram coletadas a partir de uma démarche etnográfica; muito pelo contrário. Os objetos não são nem mesmo identificados ou referenciados, como exige a composição de qualquer coleção do gênero. Mesmo que exista um sistema de fichas, ele não segue nenhuma norma museográfica atual. O estado de conservação das peças se encontra no limite do deplorável: elas não são higienizadas com frequência e, quando são, não é com produtos adequados. Muitas peças são cobertas de poeira, à mercê de cupins e outros insetos.

Com efeito, a Coleção está enclausurada num silêncio que contribui para que um segmento da sociedade continue inferiorizado. Seu estado atual é revelador de uma mentalidade secularmente preparada para negar essas comunidades e suas referências. A Coleção é um retrato da violência que ainda hoje está presente no quadro social brasileiro. Violência física, mas igualmente simbólica, afinal, silenciar também é violentar.

Como se num discurso implícito e autorizado, aufere-se uma categoria, a de coleção. Então passa o espólio – o que foi expropriado dos terreiros de xangô – por ritual ungido por intelectuais e, principalmente, pela casa-depósito, o Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, sacrali- zando do que foi salvo das mãos de policiais uma coleção. Fez-se assim uma coleção. Não se discutiu o que trazia em seu bojo de simbólico, histórico, político, religioso, moral, ético. É uma coleção sobre o xangô, ou, melhor, é uma coleção sobre o negro nas Alagoas; melhor ainda, é uma coleção sobre o negro brasileiro pertencente ao Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, que já munido de sua coleção sobre o negro, fica suprido desse conteúdo. Dessa forma, une-se às coleções de etnografia indígena e sobre o europeu, no caso, preferencialmente representado por manifestações populares. O acervo está completo. Foi atendido o ideal do tripé da nacionalidade. O índio, o negro e o branco. Assim, reificam-se um olhar e uma compreensão geral altamente reducionista do Brasil e do brasileiro. 42

O silencio no qual a Coleção Perseverança está fechada também tem lugar no controle de acesso exercido pelo IHGAL para com a sociedade em geral; mas, sobretudo, em relação aos pesquisadores interessados em seus arquivos. Este controle é constatado tanto em minha experiência pessoal de contato com a instituição quanto em entrevistas realizada com outros pesquisadores e com a comunidade religiosa afro-alagoana. Para obter uma visão mais larga da relação do IHGAL com seus visitantes, mobilizei igualmente as novas tecnologias de rede social, e o que encontrei em duas plataformas de aconselhamento de viagens (Google e TripAdvisor), se mostrou interessante: as duas plataformas nos dão acesso a páginas com informações gerais, endereço, horário de visitação, fotos disponibilizadas por internautas que visitaram o local e o mais impor- tante: comentários e opiniões dos visitantes, que podem publicar suas experiências em estabelecimentos públicos e restaurantes, por exemplo.

Mesmo que existam comentários positivos, as críticas deixadas pelos visitantes giram em torno dos mesmos pontos aqui já evocados, como a falta de informação sobre as peças, o tratamento museológico inadequado e a falta de uma equipe especializada e acessível.43

A descoberta do orixá perdido

Já contava cinco anos de experiência de campo com os xangôs alagoanos quando ouvi falar de Baiani pela primeira vez. Isso aconteceu em 2015 em Salvador, quando finalizava minha dissertação de mestrado e, já que preparava um projeto de doutorado com a Coleção Perseverança como objeto central, realizava algumas entrevistas. Egbomi Cici, autoridade do candomblé baiano, contadora de estórias e pesquisadora da Fundação Pierre Verger, foi quem me trouxe esta informação.44 Eu conseguira fotografar as peças da Coleção Perseverança detalhadamente e construíra um inventário fotográfico com o objetivo de levar a Coleção ao encontro de interlocutores fora de Maceió. Realizei, com ela, ao longo de alguns dias, um trabalho detalhado de reconhecimento das peças, contando não só com seu conhecimento religioso mas também com sua experiência de pesquisa. Sem hesitar, ao ver o capacete oval completamente bordado em búzios ( Figuras 1 e 2 ), ela me disse: “esse é um capacete de Bani”. Repito: eu, que vinha de uma experiência etnográfica profunda nos xangôs alagoanos, nunca havia escutado falar nesse orixá.

: Capacete em búzios, Coleção Perseverança
Figuras 1
: Capacete em búzios, Coleção Perseverança
Fonte: fotos da autora.

: Capacete em búzios, Coleção Perseverança
Figuras 2
: Capacete em búzios, Coleção Perseverança
Fonte: fotos da autora.

As informações dadas pelo IHGAL na legenda exposta com o capacete atestam o profundo desconhecimento não só a respeito desse orixá, mas também sobre o universo religioso em geral:

Em sua forma semiesférica lembra uma meia cabaça. A cabaça é um objeto religioso fundamental para o Xangô enquanto religião, servindo também como base para a coroa de Xangô. A peça enfatiza poder e status revelando também o que há de mítico e heroico na figura de Ogum. É, provavelmente, também incluído na indumentária de Xangô.45

Nos catálogos oficiais da Coleção Perseverança, o capacete é apresentado como “capacete de Ogum-China”.46 Ora, o capacete afinal pertenceria a Xangô ou Ogum? Qualquer conhecedor das religiões afro-brasileiras sabe que as vestimentas sagradas dos orixás são demasia- damente específicas, de modo que não é possível achar um capacete que sirva ao mesmo tempo em Ogum e Xangô, até porque, segundo a mitologia, os dois orixás não se dão lá muito bem.

Voltemos à entrevista com Egbomi Cici, em Salvador. Naquele dia, ela me apresentou a esse orixá e me contou suas histórias. Em uma grande sincronicidade, no dia seguinte a essa conversa, recebi um convite para uma festa em homenagem justamente a Baiani na Casa de Oxumarê, uma das grandes casas tradicionais de Salvador. O convite continha uma ilustração do orixá homenageado feita pelo artista plástico Caco Bressane:

: Ilustração do orixá Baiani
Figura 3
: Ilustração do orixá Baiani
Fonte: ilustração de Caco Bressane, impressa no convite para o evento em homenagem ao orixá, 2015.

Qual não foi minha surpresa ao constatar o tal capacete na ilustração de Baiani. Assistindo à celebração, pude ver os mesmos capacetes usados pelos orixás que dançaram no salão. Fotografias não eram permitidas no momento, mas, naquela noite, saí da Casa de Oxumarê com o sentimento de ter descoberto algo extraordinário: um orixá desapareceu dos terreiros de Alagoas.

Recordei-me então de uma das informações divulgadas pela imprensa local no período da repressão: Tia Marcelina seria detentora de uma tal “coroa de Dadá”. Fui ligando os pontos. Segundo os jornais, a coroa seria uma importante distinção do rito nagô transmitida à Tia Marcelina, que a teria adquirido originalmente na África, onde teria nascido.

Durante as sessões de apreciação das fotos das peças da Coleção Perseverança, praticamente todos os meus interlocutores de Maceió passaram pelas imagens do tal capacete sem nada dizer de específico sobre ele, mesmo alguns dos mais antigos religiosos da cidade. Com uma grande autoridade religiosa alagoana, antes de começar a ver as fotos, conversávamos sobre o assunto e ela falava de Tia Marcelina como a “grande matriarca e fundadora do candomblé em Alagoas, herdeira da Coroa de Dadá”. Em contrapartida, diante das várias fotos do dito capacete, ela me assegurou não conhecer o objeto.

Encontrei duas exceções entre meus interlocutores alagoanos. Pai Célio de Iemanjá, babalorixá e historiador alagoano, disse-me em entrevista que o capacete poderia ser do orixá Oxóssi ou de “’Baianin’ ou Dadá”. Disse-me também que teria visto esse capacete na Casa de Oxumarê em Salvador e num terreiro em São Paulo. Segundo ele, o culto desse orixá não existe em Maceió. Era tudo o que sabia. Coloquei a mesma questão ao babalorixá alagoano Pai Manoel do Xoroquê, se ele conhecia o tal orixá. Disse-me que se tratava de um orixá “da família de Xangô” que não existe mais em Alagoas. Disse também que obteve tal conhecimento de seus “mais velhos”.

Em Salvador, por outro lado, pude mostrar as fotos do capacete a vários interlocutores, entre adeptos e intelectuais, jovens e velhos, e ninguém hesitava: era consenso que se tratava do “ adê de Bani”. Em minha visita ao seu terreiro, Pai Balbino Daniel de Paula, mais conhecido como Obarayi, importante autoridade do candomblé baiano, reconheceu o tal capacete da Coleção Perseverança e contou-me que Baiani é um orixá muito raro, existente somente na Casa Branca do Engenho Velho, no Ilê Axé Opô Afonjá , na Casa de Oxumarê e em seu próprio terreiro, o Ilê Axé Opô Aganju . Quer dizer, somente se encontra esse orixá nas casas mais tradicionais da Bahia.

Assim, comecei uma investigação sobre o orixá perdido. E descobri ainda mais.

: Dadá/Baiani em painel de Carybé no MAFRO, Salvador – BA
Figura 4
: Dadá/Baiani em painel de Carybé no MAFRO, Salvador – BA
Fonte: fotos da autora.

Segundo meus interlocutores baianos, a mitologia em torno desse orixá é muito variada, a começar por seus nomes: ele pode ser chamado de Dadá Ajaká, Bayanni/Baiani ou Bani. Ele aparece em diferentes variações de histórias míticas, às vezes como irmão de Xangô, às vezes como sua irmã ou ainda como sua mãe. Numa passagem de “Notas sobre o culto dos orixás e voduns”, Verger se refere a Dadá como o deus dos vegetais.47

Algumas histórias míticas contam que se trata do irmão de Xangô, que reinou em Oyó antes dele, segundo o que me contou um ogã baiano da Casa de Oxumarê. O Oba (o rei) Dadá Ajaka era muito calmo e pacífico, o que despertava críticas ao seu governo. Xangô, percebendo a fragilidade do irmão, o destrona e toma o poder para si. Dadá então deixa o Reino de Oyó para assumir o governo de uma pequena cidade vizinha. Humilhado por ter sido destronado, Dadá passa a usar uma coroa ( adê ) que cobria seus olhos. Essa coroa chama-se adê Bayanni ou “coroa de Dadá”. Algumas histórias contam também que Dadá seria o pai de Aganju, o Xangô mais jovem. Outras variações míticas dizem que Dadá teria renunciado ao trono por não se importar com poder e pacificamente dado a coroa ao seu irmão mais novo Xangô.

Verger reúne algumas informações sobre esse orixá. Bowen confirma que Dadá é o irmão mais velho de Xangô.48 Burton escreve que Dadá é o “deus ou protetor dos recém-nascidos” e que é adorado “sob a forma de uma cabaça de onde pendem longas tiras”.49 A história mítica que me foi contada pelo ogã baiano também foi coletada por Epega.50

Segundo contou-me o antropólogo e ogã baiano Ordep Serra em entrevista pessoal, na Bahia há quem diga que Baiani é a mãe de Xangô. No entanto, Serra diz que se trata de uma confusão com Iya Massé ou Iamassé. Ora, existe certa associação de Baiani com estereótipos femininos, como a vaidade, a beleza e o caráter calmo, o que causa confusão. Isso poderia ser uma memória subliminar do mito da suposta feminilidade de Xangô.

Numa outra variação mítica também contada por Ordep Serra, Dadá aparece enquanto a irmã querida, sempre ao lado de Xangô, que ajudava sua mãe Iamassé a cuidar do menino de temperamento explosivo. Um dia, Dadá chama sua mãe para ver o que Xangô tinha acabado de aprontar. Chegando à cena da travessura, Iamassé assiste Xangô às garga- lhadas dançando em cima de uma grande fogueira, brincando com as chamas. A variação interpretativa entre mãe e irmã de Xangô também é brevemente observada por Verger.51

Baiani é um orixá raro. Raramente desce e é caracterizado de maneira geral como um orixá que não se incorpora. Não é todo mundo que o conhece. Na Casa Branca do Engenho Velho, segundo o que me explicou Ekede Sinha, uma das grandes autoridades da Casa, Baiani é cuidado, mas não existem iniciados a ele consagrados. Mesmo assim, sua festa pública é realizada, ocasião em que a coroa é trazida pelo salão por um cortejo.

Uma festa similar é realizada no terreiro de Obarayi, o Ilê Axé Aganju , em Lauro de Freiras, a menos de 30 km de Salvador. Nessa Casa, porém, a interpretação litúrgica separa a divindade em duas: Dadá é o irmão mítico de Xangô; Baiani, a irmã. Nos sete dias do calendário ritual dedicado às comemorações de Xangô, as cerimônias são encerradas com o Odun Iamassé, uma procissão em homenagem à mãe de Xangô – a festa é descrita na bela obra biográfica “Obarayi: Babalorixá Balbino Daniel de Paula, Dono do Fogo”.52 Nesse dia, todos os membros da família religiosa colocam uma pluma em seus ojás (turbantes). De tarde, Obarayi vai para a frente da casa de Xangô53 com um estandarte nas mãos. Do mais velho para o mais novo, os iniciados entregam seus ojás, que vão adornar o estandarte feito em madeira e cada um recebe outro ojá simbolizando o axé de Iamassê. As egbomis (as mais velhas da Casa) e as pessoas que possuem cargo relacionados a Xangô confeccionam a charola, o pequeno andor que carregará a coroa de Baiani.

Seguindo a descrição, vemos a formação da fraterie de Xangô: além de Baiani, “a irmã mítica de Xangô, durante as cerimônias seu outro irmão Dadá será lembrado”, “ele é o protetor das crianças, principalmente daquelas nascidas com um ‘tufinho’ de cabelo no centro da cabeça”.54 Depois de um xirê55 realizado no barracão, a procissão se inicia com todos enfileirados atrás de Obarayi portando o estandarte enfeitado de ojás, e de Mãe Meire, a colabá , quer dizer, aquela que carrega o labá de Xangô, uma grande bolsa em que ele guarda sua riqueza. Os mobás , homens que possuem cargos relacionados a Xangô, carregam a charola ornamentada com a coroa de Dadá. Dão uma volta por todo o terreiro, passando pelas casas dos orixás que estão todas de portas abertas para reverenciar a mãe de Xangô. Diante do Igbalé, a casa dos ancestrais, a procissão se demora em homenagem aos espíritos dos antepassados da religião. Voltam ao barracão ao som de fogos de artifício e se põem ainda em fila no centro do salão. Os mobás pousam a charola num banco enfeitado para este fim e um prato é colocado no chão para a reza de Iamassé, chamada adurá. Em seguida, o alujá56 começa, os filhos se prostram no chão, depositam uma quantia em dinheiro no prato e pousam também as penas que estavam em seus ojás. Nesse momento de alta carga sagrada de “muito axé”, muitos filhos-de-santo recebem seus orixás.

O momento é tão importante que Xangô Aganju, orixá de Obarayi vence a resistência do babalorixá e vem dançar em terra, sendo seguido pelos mobás com a charola ao redor do barracão. Ao fim da cerimônia, uma farofa é servida direto nas mãos dos visitantes.57

: Obarayi com a coroa de Baiani na charola
Figura 5
: Obarayi com a coroa de Baiani na charola
Fonte: Mariano, Obaràyí .

: Iniciado ‘bate cabeça’ para a coroa de Baiani na charola
Figura 6
: Iniciado ‘bate cabeça’ para a coroa de Baiani na charola
Fonte: Mariano, Obaràyí.

: A charola é carregada pelos mobás pelo barracão
Figura 7
: A charola é carregada pelos mobás pelo barracão
Fonte: Mariano, Obaràyí.

Ordep Serra chama atenção para o lado feminino que circunda Xangô, característica que seria de certo modo intrínseca à sua própria natureza. Serra observa também que existe um aspecto ambigênero em Xangô, algo que é pouco discutido.

O oxê (machado) de Xangô indica igualmente esse caráter ambigênero. Existe um deus grego, chamado Zeus Labrandos, que também possui um machado duplo que significa os dois sexos. Nós no Brasil tornamos Xangô como completamente masculino, mas inúmeras estatuetas de Xangô são mulheres, com seios e oxês na cabeça. A ligação do feminino e masculino é do domínio de Xangô. Agnelo, grande autoridade já falecida da Casa Branca do Engenho Velho me dizia que Iansã e Xangô se confundem e às vezes é muito difícil distinguir um do outro. É também interessante se lembrar que em Cuba, Xangô é sincretizado com Santa Bárbara. Além disso, Xangô não fica sem uma mulher ao lado. A cada vez que se assenta Xangô, é preciso assentar Iansã também, ou Oxum, ou Iemanjá. Ele não fica sozinho! E ainda tem mais: na Casa Branca, por exemplo, somente as mulheres são iniciadas como yaôs. Os homens não podem incorporar os orixás.

Só as mulheres “dão santo”! Agnelo me disse: isso foi uma ordem expressa de Xangô. Ele só queria mulher! Eu, então, conjecturo que isso é dado a esta forte relação de Xangô com o feminino.58

No Brasil, de maneira geral, esqueceu-se um pouco do bigênero divino de Xangô rememorado por Serra. Ainda restam certos traços de androginia em relação aos orixás Oxumarê, Logun Edé e Ossain, até mesmo em Oxalá e Oxóssi. Xangô, por sua vez, se tornou um forte símbolo de masculinidade, um grande guerreiro, dono de um harém e marido de várias mulheres. Mas existem variações.

Em uma sessão de apreciação do inventário da Coleção Perseverança com Doté Amilton, líder do terreiro jeje Hunkpame Savalu Vondun Zo Kwe em Salvador, ele me chama a atenção para a presença de Baiani na Coleção Perseverança para além do capacete: ele estaria igualmente presente em um conjunto de estatuetas que revelam figuras de mulheres com bebês nos braços e oxês na cabeça ( Figuras 8 – 17 ).

: Estátua, Coleção Perseverança
Figuras 8
: Estátua, Coleção Perseverança
Fonte: fotos da autora.

: Estátua, Coleção Perseverança
Figuras 9
: Estátua, Coleção Perseverança
Fonte: fotos da autora.

: Estátua, Coleção Perseverança
Figuras 10
: Estátua, Coleção Perseverança
Fonte: fotos da autora.

: Estátua, Coleção Perseverança
Figura 11
: Estátua, Coleção Perseverança
Fonte: fotos da autora.

: Estátua, Coleção Perseverança
Figuras 12
: Estátua, Coleção Perseverança
Fonte: fotos da autora.

: Estátua, Coleção Perseverança
Figuras 13
: Estátua, Coleção Perseverança
Fonte: fotos da autora.

: Estátua, Coleção Perseverança
Figuras 14
: Estátua, Coleção Perseverança
Fonte: fotos da autora.

: Estátua, Coleção Perseverança
Figuras 15
: Estátua, Coleção Perseverança
Fonte: fotos da autora.

: Estátua, Coleção Perseverança
Figuras 16
: Estátua, Coleção Perseverança
Fonte: fotos da autora.

: Estátua, Coleção Perseverança
Figuras 17
: Estátua, Coleção Perseverança
Fonte: fotos da autora.

Pai Manoel do Xoroquê, autoridade do candomblé alagoano, sobre as mesmas estatuetas, me indicou algo parecido. Para ele, tratam-se de representações de Iamassê, a mãe de Xangô: “Xangô é o justiceiro, não é? Pois bem. Mas ‘a justiça’ é um nome feminino. Tudo está dito: a justiça é a mãe do justiceiro”.59

Três das cinco estatuetas da Coleção Perseverança têm elementos ligados a Xangô: colares rituais com as cores dele, oxês na cabeça (ou traços de sua existência) da mãe e do bebê que porta nos braços. Um outro elemento curioso é uma parte oval nas costas das estatuetas, figurando um símbolo que pode parecer uma meia-lua,chifres, ou ainda oxês. Segundo Doté Amilton, a existência de bolsas nas costas das estátuas é uma característica da nação jeje, como me mostrou alguns exemplos em seu terreiro. Segundo ele, essas bolsas significam fortuna e são “escondidas” nas costas das imagens, não muito visíveis. Pai Manoel compartilha da mesma opinião: seriam essas estruturas “bolsas de mistérios”.

Essa interpretação também foi compartilhada com outros inter- locutores, que evocaram a possibilidade dessas estruturas ovais poderem guardar “axé” em seu interior – quer dizer, preparados mágicos, feitos de ingredientes secretos. Obarayi, Pai Balbino Daniel de Paula, me chamou a atenção a uma outra possibilidade: de serem essas bolsas uma marca de um artista específico, uma espécie de assinatura do artesão.

Conclusão

A transformação dos xangôs alagoanos pode ser sentida desde a cultura material até os mais profundos aspectos litúrgicos e rituais. Com certa nostalgia, essas constatações surpreenderam meus interlocutores. Assim, é possível afirmar que a presença de Baiani na Coleção Perseverança seja uma das maiores “descobertas” desta difícil pesquisa em busca das origens das peças. O conhecimento litúrgico necessário ao culto desse orixá desapareceu completamente em Alagoas, de modo que ele não faz mais parte do panteão afro-alagoano.

Junto a outras que fogem aos limites deste recorte, essa desco- berta é reveladora de grandes e significativas perdas litúrgicas da comunidade religiosa afro-alagoana, ainda mais ao constatar-se que esses elementos ainda estão presentes nos candomblés baianos, o que poderia significar um intercâmbio interestadual também perdido. Sobre isso, uma grande autoridade religiosa da Casa Branca do Engenho Velho me sugeriu que o conhecimento ritual pode ser reestabelecido e evocou, inclusive, a possibilidade de irem a Alagoas para contribuir com a reintrodução do culto. “O axé está lá. As coisas se perdem, mas podem ser reestabelecidas”, me disse. Essa proposição se tornou o eixo principal de uma pesquisa já em andamento.

Chego ao termo deste trabalho esperando que os resultados obtidos possam servir para movimentar os estudos sobre os xangôs alagoanos, trazendo elementos para a realização de novas pesquisas.

O “secretário perpétuo” do IHGAL, Abelardo Duarte, prova- velmente inconsciente da real significação de suas palavras, finaliza a apresentação do segundo Catálogo da Coleção Perseverança com uma frase sintomática: “agora, tudo está em silêncio, os deuses e divin- dades permanecem tranquilos e as toadas são vozes ocultas no tempo e no espaço”.60

Ora, é justamente essas vozes durante muito tempo ocultadas (e não ocultas) no tempo e no espaço que este trabalho tenta libertar.

Jacques Le Goff me instiga quando escreve que “a memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”.61

Meu trabalho aqui é um combate contra o silêncio.

Notas

1 Casas de culto afro-brasileiro que também podem ter outras designações, como roça, barracão e ilê axé .
2 Yvonne Maggie, Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil , Brasília: Ministério da Justiça, 1992; Luiz Mott, “O calundu-angola de Luzia Pinta: Sabará”, Revista do IAC , v. 2, n. 1 (1994), pp. 73-82.
3 Maggie, Medo do feitiço .
4 Ulisses Neves Rafael, Xangô rezado baixo: religião e política na Primeira República , São Cristóvão: Editora UFS, 2012.
5 Marc Bloch, Apologie pour l’histoire ou métier d’historien , Paris: Armand Colin, 1949.
6 Rafael, Xangô rezado baixo .
7 A designação popular de “xangô” foi adotada por intelectuais como Gonçalves Fernandes, Renê Ribeiro e Roger Bastide ao conjunto de religiões afro-brasileiras presentes nos estados de Pernambuco e Alagoas, que compartilham especificidades rituais – Gonçalves Fernandes, Xangôs do Nordeste: investigações sobre os cultos negro fetichistas do Recife , Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937; Renê Ribeiro, Cultos afro-brasileiros do Recife: um estudo de ajustamento social , Recife: Instituto Joaquim Nabuco, 1952; Roger Bastide, O candomblé da Bahia (rito nagô) , São Paulo: Ed. Nacional; [Brasília]: INL, 1978. Xangô é também o nome de um orixá, divindade ligada ao trovão e à justiça.
8 Dois projetos de pesquisa foram realizados entre 2010 e 2012 visando o recensea- mento de artigos de jornal concernentes às religiões afro-brasileiras em Maceió entre 1900 e 2000, no quadro dos Projetos de Extensão Odè Ayé Editais 2010-2011 e 2011-2012. São eles: Religiões afro-brasileiras em notícias: levantamento e catalogação de notícias da imprensa maceioense sobre o candomblé e a umbanda (1960-2000) e Religiões afro-brasileiras em notícias: levantamento e catalogação de notícias da imprensa maceioense sobre o candomblé e a umbanda (1900-1950).
9 Rafael, Xangô rezado baixo . É igualmente importante destacar a relação da elite (sobretudo política) com as religiões afro-brasileiras. Ora, essas casas de culto são locais de cuidado do corpo e do espírito, com uma importante função social em termos de saúde. Isso, diga-se de passagem, nunca foi negado pela sociedade, mesmo pela polícia que tanto as perseguiu e controlou ao longo da história do país, como bem escreveu Yvonne Maggie, Medo do feitiço . O controle policial direcionado às práticas religiosas afro-brasileiras serviu, consciente ou inconscientemente, para legitimar sua eficácia.
10 Pedro Nolasco Maciel, “Rapsódias”, A Tribuna , Maceió, 18 mar. 1903, p. 2.
11 “Feiticeiros e feiticeiras (no Alto da Jacutinga)”, A Tribuna , 26 abr. 1904, p. 1.
12 “Comédia Eleitoral”, Correio de Alagoas , Maceió, 31 out. 1904, p. 1.
13 Certamente uma referência ao posto de ogã, importante cargo masculino da hierarquia religiosa candomblecista. É importante observar que ao longo da história do candomblé muitas autoridades foram agraciadas com estes cargos. Sobre o cargo de ogã, ver: Ordep Trindade-Serra, “Na trilha das crianças: os erês num terreiro angola”, Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Universidade de Brasília, Brasília, 1978; e Roger Bastide, Estudos afro-brasileiros , São Paulo, Perspectiva, 1973.
14 Rafael, Xangô rezado baixo .
15 Félix de Lima Jr., Maceió de outrora , Maceió: Edufal, 2001.
16 Lima Jr., Maceió de outrora .
17 “Bruxaria”, Jornal de Alagoas , Maceió, 4 fev. 1912, p. 1.
18 Rafael, Xangô rezado baixo .
19 Fernandes, Xangôs do Nordeste .
20 O historiador alagoano Clébio Araújo, “O candomblé nagô em Maceió: itinerário de uma identidade em construção”, Cadernos de Pesquisa e Extensão , v. 1. (2009), defende que essa forma “discreta” de culto não passava de um aspecto já característico da nação nagô. “Nação de candomblé” é uma categoria nativa utilizada pelos terreiros para marcar suas diferenças e exprimir suas particularidades e rivalidades. Araújo coloca a nação nagô (pelo menos em Maceió, segundo ele) enquanto caracterizada pelo recolhimento e pelo silêncio. Ainda seguindo o mesmo autor, a invisibilidade social sofrida pela nação nagô teria tornado possível uma forte demarcação de suas fronteiras identitárias, num processo de diferenciação em relação a outras tradições religiosas. Dessa maneira, seriam as “sessões de mesa” parte integrante do modelo nagô, sob forte influência do culto Jurema e de outras práticas religiosas domésticas. Todavia, os praticantes dessa nação teriam mantido o hábito ritual da entrega de oferendas no meio de pequenas matas urbanas, tocando apenas em cabacinhas. Essa hipótese não me convence. Digo rapidamente o porquê: primeiro, pela maneira como Araújo coloca, a invisibilidade social teria sido somente sofrida pela nação nagô, o que é uma teoria difícil de sustentar; segundo, a descrição de Araújo daquilo que caracterizaria a nação nagô se aproxima bastante daquela encontrada em Sergipe por Beatriz Góes Dantas, Vovó nagô e papai branco: usos e abusos da África no Brasil , Rio de Janeiro: Graal, 1988. Meus estudos sobre a Coleção Perseverança mostram traços de grandes semelhanças com a liturgia candomblecista baiana. Ora, as duas liturgias, sergipana e baiana, compreendem a nação nagô de maneiras completamente distintas. Meus resultados me levam a pensar num forte intercâmbio entre Alagoas e Bahia que teria sido quebrado em algum momento – possivelmente após a devassa seguida de diáspora vivida pelos religiosos afro-alagoanos. Isso indicaria um mesmo modo de compreensão da liturgia nagô nos dois estados: a nação nagô, originária de grupos étnicos falantes de yoruba e adoradores dos orixás, abarcaria duas subnações: o ketu e o ijexa . Como visto na Bahia, a nação é pouco sincrética e não apresenta traços do culto juremeiro. Sendo assim, minha opinião é de que o culto alagoano teria efetivamente se transformado após as mudanças que a Operação Xangô causou, tendo sofrido enorme influência da Jurema. Além disso, como dito repetidas vezes, a estética das peças da Coleção Perseverança não é mais encontrada nos terreiros alagoanos, o que demonstra essa ruptura entre antes e depois da repressão.
21 Rafael, Xangô rezado baixo.
22 Rafael, Xangô rezado baixo , p. 37. Essa informação foi recolhida pelo professor Luiz Sávio de Almeida com um antigo pai de santo de Maceió, e está exposta em seu artigo “Uma lembrança de amor para Tia Marcelina”, Revista Leitura , n. 2 (1987), pp. 49-55.
23 Rafael, Xangô rezado baixo .
24 Rafael, Xangô rezado baixo ; Irineia Maria Franco dos Santos, “‘Nos domínios de Xangô’: religiões afro-brasileiras em Alagoas e a memória do Quebra-Quebra (1912-1980)”, Anais dos Simpósios da ABHR , v. 13 (2012), pp. 1-15; Bruno Cesar Cavalcanti e Janecleia Pereira Rogério, “Mapeando o Xangô: notas sobre mobilidade espacial e dinâmica simbólica nos terreiros afro-brasileiros em Maceió” in Rachel Rocha de Almeida et al. (orgs.), Kulé Kulé: religiões afro-brasileiras (Maceió: Edufal, 2008).
25 Rafael, Xangô rezado baixo.
26 Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, Catálogo ilustrado da Coleção Perseverança , Maceió: Senec, 1974.
27 Raul Lody (coord.), Coleção Perseverança: um documento do Xangô alagoano , Maceió: Fundação Nacional de Arte, 1985.
28 Raul Lody, O negro no museu brasileiro , Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 29.
29 Osvaldo Batista Acioly Maciel, “A perseverança dos caixeiros: o mutualismo dos trabalhadores do comércio em Maceió (1879 1917)”, Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2011.
30 Rafael, Xangô rezado baixo , p. 44.
31 Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, Catálogo ilustrado da Coleção Perseverança .
32 Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, Catálogo ilustrado da Coleção Perseverança , p. 11.
33 Os pejis são quartos sagrados em que são guardados os assentamentos, altares indivi- duais de cada membro da casa. Essas instalações são lugares de alta carga de sacra- lidade por concentrarem todo o axé dos objetos reunidos. Além dos assentamentos, os pejis guardam outros objetos, como estatuetas, figuras de orixás e entidades, vasos, peças em ferro, velas, moedas, peças de vestimenta (paramentos) de orixás, entre outros. A dimensão estética dos pejis é variável e depende da personalidade do líder da casa de culto.
34 Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, Catálogo ilustrado da Coleção Perseverança , p. 15.
35 Lody, O negro no museu .
36 Informação verbal retirada de entrevista pessoal concedida por Carmem Lucia Dantas em janeiro de 2018.
37 Lilia Moritz Schwarcz, O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930) , São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 296.
38 Schwarcz, O espetáculo das raças .
39 Schwarcz, O espetáculo das raças .
40 Douglas Apratto Tenório e Carmen Lucia Dantas, A casa das Alagoas: Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas , Maceió: Edufal, 2007.
41 Lody, O negro no museu , p. 37.
42 Lody, O negro no museu , p. 29
43 São alguns: “É nítido [sic] os desafios que a gestão e administração passam por falta de investimento, como o material sob forte calor e falta de arejamento estando sujeito à degradação. Porém os erros não são só do Estado, como a infeliz ideia de proibir captura de imagens fotográficas de material histórico e etnográfico. […] também percebe-se [sic] erros técnicos de classificação do material, o que pode apontar alguma falta de profissionais da área, como etnógrafos e antropólogos, pois no acervo de povos nativos/indígenas classificaram ‘etnia/povo’ como ‘tribo’, um erro grosseiro”; “Mal conservado e sem guia”; “Precisa de um pouco mais de informação nas peças, tem um acervo bastante interessante e poderia ter mais informações”; “Houve um escândalo de um senhor que se dizia presidente do local, e foi extrema- mente prepotente ao utilizar uma mesa logo na entrada para fazer uma reunião com dois funcionários e aos berros fazer reclamações sobre eles. Quando uma visitante pediu para ele se acalmar, foi arrogante com a mesma no melhor estilo ‘eu sou dono de tudo isto aqui’. Lamentável”. Ver: Google. “Avaliações sobre o IHGAL” e Tripadvisor. “Instituto Histórico e Geográfico – Maceió” .
44 Egbomi Cici foi uma das pessoas mais próximas de Pierre Verger. Profunda conhe- cedora de seu trabalho, legendou milhares de fotografias de Verger e viaja o mundo dando conferências sobre temas relacionados ao candomblé. Tive o prazer de dividir uma mesa com ela com o tema “O mundo dos Orixás” em ocasião de um festival de etnomusicologia realizado pelo Adem (Ateliers d’Ethnomusicologie) em Genebra, na Suíça, em 2018.
45 Trecho da legenda expositiva do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas.
46 Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, Catálogo ilustrado da Coleção Perseverança , pp. 5-6.
47 Pierre Fatumbi Verger, Notas sobre o culto aos Orixás e Voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil e na antiga Costa dos Escravos, na África , São Paulo: Edusp, 1999, p. 295.
48 1858 apud Verger, Notas sobre o culto .
49 1863 apud Verger, Notas sobre o culto , p. 336.
50 1931 apud Verger, Notas sobre o culto .
51 Verger, Notas sobre o culto .
52 Agnes Mariano, Obaràyí: Babalorixá Balbino Daniel de Paula , Salvador: Barabô, 2009.
53 O que normalmente é um quarto sagrado, no Ilê Axé Opô Aganju é uma casa. O terreiro é enorme, cada orixá tem sua casa.
54 Mariano, Obaràyí , p. 334.
55 Roda de dança ritual.
56 Ritmo tocado para o orixá Xangô.
57 Mariano, Obaràyí .
58 Informação verbal retirada de entrevista pessoal concedida por Ordep Serra em fevereiro de 2019.
59 Informação verbal retirada de entrevista pessoal concedida por Pai Manoel do Xoroquê em março de 2019.
60 Lody, Coleção Perseverança , p. 6.
61 Jacques Le Goff, História e memória , Campinas: Editora da Unicamp, 1990, p. 477.
HMTL gerado a partir de XML JATS4R por