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NEM SÓ ÚTERO, NEM SÓ SEXO: O CORPO E A CONDIÇÃO FEMININA NA LITERATURA DE BUCHI EMECHETA
NEITHER ONLY UTERUS, NOR ONLY SEX: THE FEMALE BODY AND FEMININITY IN THE WRITING OF BUCHI EMECHETA
NEM SÓ ÚTERO, NEM SÓ SEXO: O CORPO E A CONDIÇÃO FEMININA NA LITERATURA DE BUCHI EMECHETA
Afro-Ásia, núm. 64, pp. 400-430, 2021
Universidade Federal da Bahia
Recepção: 11 Setembro 2020
Aprovação: 27 Abril 2021
Resumo: A representatividade do corpo entra cada vez mais em crise. Há um corpo que se expõe não só como organismo, mas como potência de conexão entre o mundo e a linguagem. Este texto reflete sobre esse corpo e sobre a escrita de autoria feminina na obra As alegrias da maternidade , de Buchi Emecheta, na perspectiva crítica de autoras como Bibi Bakare-Yusuf, Ifi Amadiume, Oyèronkẹ́ Oyěwùmí, entre outras, e à luz do conceito de escrevivência de Conceição Evaristo. Em Buchi Emecheta, a inversão discursiva e temática do topoi masculino tem como recorte o contexto do período colonial (a diegese do romance) e o período pós-colonial (anos 1970, contexto da produção da obra). Outras narrativas e discursos literários são conside- rados na discussão no intuito de construir uma tessitura dos papéis do corpo nas (de) codificações coloniais e pós-coloniais da Nigéria.
Palavras chave: Escrevivência, Literatura africana, Autoria feminina, Resistência, Análise literária.
Abstract: Increasingly, the representativeness of the body is in crisis. The body exists not only in the physical realm, but also as connective force between the world and language. This paper reflects on the question of the body and women’s writing, in Buchi Emecheta’s novel, The Joys of Motherhood, by utilizing critical perspectives of authors such as Bibi Bakare-Yusuf, Ifi Amadiume, Oyèronk Oyěwùmí, as well as Conceição Evaristo’s concept of “escrevivência” [“writing-living”]. In Buchi Emecheta, the discursive and thematic inversion of male topoi is framed inthe context of the colonial period (the novel’s diegesis) and the post-colonial period (1970s, when the work was produced). Other narratives and literary discourses are considered in the discussion, in order to add nuance to the discussion of the varying roles of body in colonial and postcolonial (de)codifications of Nigeria.
Keywords: Writing-living, African literature, Female authorship, Resistance, Literary analysis.
Nem só útero, nem só sexo. Em tempos de proliferação de prefixos que mais limitam do que explicam, de uma sociedade cada vez mais dirigida por uma gestão do medo, em que noções primordiais de democracia, ética e cidadania são propositadamente e convenientemente deturpadas, o discurso que fala do corpo ganha dimensões que atravessam as pautas culturais, políticas e sociais. No âmbito cultural, o discurso literário tem se (ou tem sido) movimentado por corpos historicamente excluídos ou silenciados. A questão dos corpos inarmônicos, a condição da mulher negra e a escrita de autoria negra africana (e afrodescendente), por exemplo, cujos projetos estéticos e políticos têm discutido a percepção e a construção do corpo, desconstruindo estereótipos e provocando interrelações, têm ganhado mais espaço no universo literário, oficializando outras crônicas.1 Na contemporaneidade, os discursos e os paradigmas próprios do feminismo negro também conquistam, progressivamente, mais visibilidade e aderência nas leituras e nos(as) leitores(as). Há um movimento que se desenha nas vicissitudes da urgência contemporânea e que se materializa em estratégias de existência e de reexistência, cujas incorporações atravessam a escrita, a leitura, o letramento, bem como suas diversas manifestações culturais.2
Nesse caminho, há na literatura africana e afrodescendente, sobretudo das mulheres negras no contexto diaspórico, singularidades estéticas e temáticas expressivas: a desconstrução do discurso coloni- zador, o remanejamento da identidade feminina, o corpo em confronto com as relações ditas patriarcais e coloniais, a desmistificação da representatividade do corpo negro subalternizado, a retomada de uma subjetividade ancestral e mítica – que não equivale ao exótico3 – etc. Essas singularidades temáticas da literatura africana e afrodescendente não estão estagnadas e nem retesadas apenas nelas. A literatura de autoria feminina ainda possui como agentes-símbolos, para Isabel Magalhães, a potencialidade estética da escrita, o corpo e a memória.4 Isso significa que a substância original de uma escrita de autoria feminina, ficcional ou não, evidencia um corpo-experiência totalmente imbricado na memória, que se tornará como uma sinédoque (ou uma metonímia) do escrever.
Há, nesse sentido, todo um deslocamento e rearranjo da linguagem para um outro tipo de relação com o corpo. Em outros termos, como afirma Lígia Diniz, o corpo é entendido como esfera de apreensão e resposta ao mundo sensível, “e se ele sem dúvida responde, sob a forma de afetos, aos estímulos do texto literário, é incabível rejeitar a proposição de que mundo material e mundo ficcional-imaginário interpenetram-se por meio do corpo”.5 Vejamos que não se trata de apagamento entre a linha tênue do real e ficcional, mas de (re)colocar a dimensão do corpo na escrita.
Tais proposições se aproximam da ideia ou conceito de escrevivência de Conceição Evaristo.6 Para a escritora, o aspecto do “ponto de vista” do texto é realmente primordial para a constituição da literatura afro-brasileira e não é, em momento algum, uma construção espontânea. Ao realocar, ou imiscuir, a questão do corpo e da sua experiência na dimensão da escrita, Conceição retoma, discute e inverte a proposição da “morte do autor” bartheana7 e, em sua tese de doutorado, reforça que o ponto de vista tem um corpo, uma subjetividade que lhe confere experiência ímpar e, portanto, uma outra dimensão de autoria. Essa escrita, ainda conforme Conceição, é a síntese indissociável do seu “corpo-mu- lher-negra em vivência” com sua inventividade ficcional. Para ela:
a sociedade que me cerca, com as perversidades do racismo e do sexismo que enfrento desde criança, somada ao pertencimento a uma determinada classe social, na qual nasci e cresci, e na qual ainda hoje vivem os meus familiares e a grande maioria negra, certamente influiu e influi em minha subjetividade. E pergunto: será que o ponto de vista veiculado pelo texto se desvencilha totalmente da subjetividade de seu criador ou criadora?8
Corpos individuais produzem experiências únicas, vivências ímpares fazem corpos singulares. A escrita, esse corpo móvel e experiência original da escritora, evidencia a singularidade posta não só como “ponto de vista”, mas como subjetividade que marca “seu criador ou criadora” na escrita. Para Evaristo, essa clareza da condição corpórea é a tomada de consciência de tudo que a forma como pessoa, como mulher, como simbologia mística, que envolve toda sua escrita, que se enreda com a sua poética “como um lugar de autoafirmação [...] de minhas especificidades como sujeito-mulher-negra”.9
Em “da grafia-desenho de minha mãe um dos lugares de nasci- mento de minha escrita”, Conceição (re)visita a lição ancestral da mãe que escreve-desenha o Sol. Esse gesto, que a escritora insere na esfera do ritual (tamanha a força desse movimento materno), presentifica o acontecimento Sol. Essa personificação, para Evaristo, torna-se uma entidade modulada na escrita-movimento-corpo cuja presença se faz pela evocação ancestral materna: “ela chamava por ele, assim como os artistas das culturas tradicionais africanas sabem que as suas máscaras não representam uma entidade, elas são as entidades esculpidas e nomeadas por eles”.10 Esse corpo de escritora, então, é batizado pelo gesto e escrita ancestral da mãe e transitará em caminhos singulares de corpos e entre urgências, ou entre o ficcional e as suas experiências de vida.
Assim, perfazendo uma análise literária, ancorada em perspectivas históricas, antropológicas e socioespaciais, e assumindo os riscos das lacunas que não se preenchem nos limites de um artigo, mas que incitam à reflexão, pretendemos aqui analisar a questão do corpo na perspectiva crítica dos estudos de autoras como Bibi Bakare-Yusuf, Ifi Amadiume, Oyèronkẹ́ Oyěwùmí, entre outras, à luz do conceito de escrevivência de Conceição Evaristo e da narrativa contundente de Buchi Emecheta, especificamente na obra As alegrias da maternidade (2017), colocando em evidência a literatura de autoria feminina.
Nem só útero: Buchi Emecheta
Para que se possa compreender melhor a escrita de Buchi Emecheta e o cenário em que se passa o romance As alegrias da maternidade , faz-se necessária uma breve abordagem histórica da Nigéria, com atenção para aspectos socioespaciais e conjunturais que desencadearam (ou aprofun- daram) movimentos migratórios e mudanças de comportamentos, seja do âmbito social, seja no familiar. Longe de um simplismo determinista, tal abordagem pretende considerar o contexto histórico-social nigeriano presente nas entrelinhas do romance.11
País mais populoso do continente africano e sétimo do mundo,12 a República Federativa da Nigéria serviu, entre os séculos XVII e XIX, de porto para o comércio e o escoamento de negros(as) escravizados(as) para a América. De colonização britânica, a Nigéria passou por um longo e conflituoso processo de afirmação nacional. Em 1886, os ingleses criaram a Companhia Real do Níger, tornando a Nigéria, em 1901, seu protetorado e, em 1914, oficialmente uma colônia britânica.
Depois da Segunda Guerra Mundial, entre um multifacetado ativismo nacionalista, marcante no processo de descolonização africana,13 uma profunda fragmentação política e identitária e uma economia fragi- lizada pelo alinhamento aos interesses comerciais britânicos, a Nigéria conquista sua independência em 1960. Uma conquista certamente negociada, como afirmam Toyin Falola e Matthew Heaton.14 Mas as negociações pela independência não puderam evitar que as profundas divergências políticas (e étnicas) internas culminassem na guerra civil nigeriana (Guerra de Biafra). Os anos de 1966 e 1967 foram marcados por sucessivas e sangrentas lutas sob regimes militares. Os igbo, etnia numerosa que dominava a região leste da Nigéria, tomam o poder em 1967 e declaram independência formando o estado de Biafra. Essa guerra civil se estendeu até 1970 e deixou um rastro de mais de dois milhões de mortos, sendo novamente anexada à Nigéria no mesmo ano. Somente em 1979 houve eleições livres no país, e Shehu Shagari assumiu o poder. No entanto, em 1983, outro golpe militar tomou o poder e instaurou o Supremo Conselho Militar, perdurando, com eleições canceladas pelo governo, até 1999, quando Olusegun Obasanjo se tornou presidente (reeleito em 2003). Entre 2015 e 2020, o general aposentado e eleito Muhammadu Buhari conduziu um dos países mais ricos do continente africano.15
Nas entrelinhas socioespaciais dessa história, e em consequência de um cenário político-econômico tão controverso quanto conflituoso, está o processo de urbanização em uma Nigéria pós-colonial (contexto em que emerge a obra As alegrias da maternidade de Buchi Emecheta – escrita em 1977 e publicada em 1979). Em 1960, apenas 15% da população nigeriana era urbana; em 1980, essa situação de domicílio representava 21,5% do total; e mais recentemente, em 2017, a estimativa era que a população residente em cidades seria de 49,5%, só ultrapassando a rural em 2018.16
Na Nigéria, forçadas por circunstâncias políticas associadas aos conflitos internos e externos, milhares de famílias procedentes das aldeias foram levadas às cidades (sobretudo à então capital Lagos). No espaço urbano, fora do contexto sociocultural de origem, sem qualificação para as opções urbanas de trabalho e sem recursos, essas famílias tinham grande dificuldade de prover a subsistência. Juntava-se a isso o comportamento sociocultural reprodutivo de constituir famílias numerosas, aspecto funda- mental de um casamento bem-sucedido para a etnia igbo, que encontrava sérias restrições nas moradias diminutas e na conquista de ocupação e renda. Os jovens e adultos homens, quando não recrutados e forçados ao serviço militar, eram absorvidos em serviços gerais de baixa remuneração. Para as mulheres, em tais circunstâncias e nesse contexto, também pressio- nadas a gerar renda, as dificuldades eram ainda maiores, considerando a responsabilidade com a criação e educação dos(as) filhos(as).
Nesse breve contexto espaço-temporal, em que se verifica a diegese colonial do romance (1940-1950) e pós-colonial da obra (1977-1979), é que se percebe a complexidade dessa Nigéria marcada pelas vicissitudes e pelos impactos do capitalismo e da urbanização. É também no caminho desse enredamento que os efeitos desta globalização reestruturam o ambiente familiar e suas relações.
Sobre a escritora, Florence Onyebuchi “Buchi” Emecheta nasceu na cidade iorubá de Lagos, em 1944. Ainda muito jovem, ela foi para a cidade natal de seus pais, Ibuza, onde passou significativa parte de sua infância.17 A grande paixão da menina era ouvir as histórias dos mais velhos, em especial da maneira igbo de contar. Ouvi-los era reconhecer uma biblioteca viva, como diz o provérbio africano, supostamente de Mali, atribuído a um de seus maiores expoentes griot ,18 Amadou Hampâté Bâ (falecido em 1991): “Em África, quando morre um ancião arde uma biblioteca. Desaparece uma biblioteca inteira sem que as chamas acabem com o papel”. Buchi Emecheta tem plena consciência desse poder das narrativas, pois elas não só conectam o sentir-se africano com o mundo concreto e com o espiritual, mas o situa na vida social, revelando e construindo sua identidade.
Depois de muito tempo e insistência, Emecheta foi matriculada em uma escola missionária apenas para meninas. Sua infância, carregada de desafios e pobreza financeira, foi rigorosa e acrescida pela perda do pai aos oito anos. Em 1954, com apenas dez anos de idade, mostrando grande desenvoltura nos estudos, Buchi ganhou uma bolsa de estudos em uma escola de elite situada em Lagos e, no mesmo ano, sua mãe faleceu. A pequena menina foi repassada de parente a parente. Durante as férias escolares, enquanto seus colegas de sala voltavam para suas famílias, Buchi ficava no seu dormitório e na biblioteca, encontrando refúgio nos livros.
Aos onze anos de idade, Emecheta ficou noiva do estudante Sylvester Onwordi e, aos dezessete, já estavam casados. Não demorou muito para que ficasse grávida. Com dois filhos e um casamento infeliz e abusivo, a família se mudou para Londres. Não raras foram as cenas de ciúmes e de possessão. Aos 22 anos, ela consumou o divórcio e Sylvester negou a paternidade dos filhos. Isso significava uma situação financeira complicada e com cinco filhos em um país estranho. Obstinada em conseguir sua graduação, ela se manteve segura de seu propósito e trabalhou em diversos lugares, estudando à noite. Em 1974, Buchi era graduada em Sociologia.
Em 1972, depois de inúmeras rejeições, nascia, efetivamente, a escritora com a primeira publicação de No fundo do poço (traduzido e publicado pela Dublinense). Depois, em 1974, ela publica Cidadã de segunda classe (traduzido e publicado pela Dublinense), ambos com caráter autobiográfico. Em 1976, Buchi se mudou para New Jersey e publicou The bride price ( O preço da noiva , tradução livre). É a partir dessa obra que sua temática muda e o resgate histórico da Nigéria, bem como o questionamento da condição feminina, tornam-se cenário em suas narrativas. Em The slave girl ( A pequena escrava , tradução livre), de 1977, a escritora abre espaço para questionar o patriarcalismo tribal sobre as mulheres africanas e seus corpos.
Em 1979, Emecheta publicou As alegrias da maternidade . É o primeiro livro da escritora traduzido para o português e editado pela TAG Comércio de Livros, de Porto Alegre. Embora o título sugira a serenidade e os deleites de ser mãe, a personagem principal, Nnu Ego, reluta e sofre com uma Nigéria em transição. Entre Ibuza e Lagos, a personagem se concentra na perspectiva de ser mãe. Espelho de uma cultura em que gerar filhos é ser mulher afortunada, Nnu Ego não consegue, mesmo sendo mãe, transitar fluidamente entre a nova e urbanizada Lagos da primeira metade do século XX e suas tradições tribais.
Consciente do seu lugar de escrita, da sua dimensão de corpo discurso e poder, Buchi Emecheta critica o topoi masculino, evidenciando os entretons e as complexidades do poder feminino e da maternidade entre os igbo, refletindo sobre os tensionamentos dos choques culturais de uma Nigéria em transição. Depois da obra As alegrias da maternidade , a escritora se dedicou a diversos outros romances, aventurou-se no universo infantojuvenil, em autobiografia e em projetos televisivos.
Em 25 de janeiro de 2017, então com 72 anos, muito fraca por causa da demência, Buchi Emecheta morreu. Sua voz obstinada e sua sensibilidade para expor as inquietações da condição feminina expandem as represen- tações da mulher africana, e a elevam entre grandes ecos da literatura nigeriana como Flora Nwapa (primeira mulher nigeriana a publicar um romance, em 1962 – Efuru ), Sefi Atta, Chinua Achebe, Chimamanda Ngozi Adichie e Wole Soyinka (Nobel de Literatura em 1986).
O corpo e a condição feminina na literatura de Buchi Emecheta
Se os olhos das mulheres estão sempre em vigília, como poetiza Conceição Evaristo,19 a cura vem em movimentos de ondas e pelas vozes ancestrais que despertam para a luta e acordam a Casa Grande. Tema comumente encontrado no cenário da literatura, o corpo feminino, principalmente de mulheres negras, nunca dorme o sono dos justos.20 No entanto, há um movimento-corpo que entra na casa dos(as) leitores(as) e se senta, sem pedir licença, na sala de estar: é mais do que literatura de resistência – é projeto político de existência.
A proposição de Bibi Bakare-Yusuf é de que há uma armadilha perniciosa na continuidade do discurso, quase que irrefletido, de que as mulheres são sempre vítimas e os homens “vitimizadores”.21 Para a pesquisadora, assumir essa conformação é negligenciar os mecanismos que reafirmam narrativas que o próprio feminismo quer criticar. Propagar esse discurso é não reconhecer os verdadeiros agentes, suas posicionali- dades e identidades. Isso não significa negligenciar a violência de gênero, mas compreender um sistema institucionalizado de maneira profunda e nas suas mais diversas e perversas complexidades. Segundo Bibi, “[a]o invés de ver o patriarcado como um sistema fixo e monolítico, seria mais útil mostrar como o patriarcado é constantemente contestado e reconsti- tuído”.22 Nesse sentido, ultrapassar uma longa trajetória da dicotomia entre vitimização ou sucesso da condição feminina, comumente explorada nos discursos e nas personagens femininas literárias, é, para Rachel Soihet, expandir, de modo proativo, as abordagens teóricas, epistemológicas e analíticas de um universo que já se apresenta, na literatura brasileira, sufocada por arquétipos, estereótipos e superficialidades.23
Começar esse tópico da análise com esse enunciado é assumir um posicionamento: é preciso expor e extrapolar as estéticas canonizadas, as dimensões de historicidade patriarcais e inscrever o corpo como discurso de subversão. Nesse sentido, a literatura de autoria feminina possui peculiaridades de um universo atravessado por experiências de um corpo e discurso não só inquietante, mas limítrofe entre enfrentamento sociopolítico e ficção, de empoderamento e (re)existência em todas as suas esferas.
Corpo, escrita, memória, poder, sexualidade, gênero: termos que só se tornam conceitos a partir de onde se fala, como se fala e quem pronuncia. Nesse caminho, a literatura se apresenta como cenário dialógico em que emerge um tempo e um espaço fraturados por conceitos evanescentes. É posicionalidade e exposição de experiências, lacunas corpóreas e de identidades em devir.24 As literaturas ditas de resistência, assim, são uma conclamação – quase inevitável – para revelar as marcas da memória de corpos (anteriormente) excluídos e de vozes que durante muito tempo foram silenciadas. Um chamado urgente que se materializa na voz e escrita de autoria feminina, principalmente de negras.
Em As alegrias da maternidade (2017), a condição da mulher africana na Nigéria colonial é, num primeiro momento, guiada pela ideia de procriação. O primeiro casamento da personagem principal, Nnu Ego, assinala uma realização do desejo e da paixão pelo ideal de homem, Amatokwu. Sem o êxito da maternidade em Nnu Ego, Amatokwu desposa uma jovem de outra tribo que, em seguida, lhe dá um filho. Nnu Ego prontamente assimila essa maternidade emprestada e compartilhada e se volta completamente à criança, enquanto Amatokwu preenche seu tempo com a tentativa de engravidar novamente a jovem esposa. A proximidade de Nnu Ego com o bebê e o seu grande desejo de ser mãe fizeram com que, em certo dia, ela tentasse amamentar a criança. Visto como uma afronta à tradição e aos costumes da tribo,25 Amatokwu se enfurece com a cena e agride Nnu Ego com uma paulada na cabeça. O pai de Nnu Ego, um respeitado e forte líder de uma tribo de Ibuza, Nwokocha Agbadi, compreende a situação delicada da filha e a recolhe para cuidados físicos e espirituais.
Nnu Ego volta para sua tribo, se recupera e é reconduzida a outro casamento. Dessa vez, sem conhecer o marido, Nnaife Owulum, a perso- nagem sai da comodidade da aldeia de Ibuza e vai para o mundo urbano de Lagos – uma cidade que passa pela urbanização e modernização, movimentada pelos remanescentes colonizadores e seus colonizados, agora mão de obra barata para distintos serviços. É nessa diegese ficcional (que reverbera os processos socioespaciais da Nigéria colonial e pós-colonial) que os conflitos e as supostas “alegrias da maternidade” entram em tensão. Na ficcionalidade, Nnu Ego é repassada ao marido como mercadoria.
As esferas de controle, principalmente quando se fala em patriarcado, não possuem equivalência em muitas sociedades africanas. Isso significa que a importação e imposição de uma concepção de luta do feminismo anglo-francófono permite conclusões equivocadas e que não dimensionam as nuances e especificidades complexas das estruturas culturais de uma África diversa. O patriarcado, conceito essencialmente ocidental, como sinalizam Bibi Bakare-Yusuf, Molara Ogundipe-Leslie, Nah Dove, Ifi Amadiume, Oyèronkẹ́ Oyěwùmi, é imposto como universal a muitas sociedades, em particular às africanas. No entanto, é preciso entender que há um sistema complexo de dominação e que ele se aproxima (ou é em muitas culturas) do patriarcalismo. Se não é pertinente falar em patriarcado em muitas sociedades africanas, é possível pensar em um sistema articulado de esferas de controle em que o homem, muitas vezes branco, de cis-heteronormatividade, seja o sujeito da fala e que seu discurso, investido “de um poder advindo do lugar que ocupa na sociedade, delimitado em função de sua classe, de sua raça e, entre outros referentes, de seu gênero”,26 seja definido como parâmetro. Se pensarmos no patriarcado como uma unidade de estrutura e organização social,27 que coloca a figura do homem na dominação de um sistema chamado de patriarcalismo, estamos colocando a unidade e as relações de poder em simetria. Uma vez que se trata de um conceito, uma estrutura de opressão imposta, principalmente, pela colonização europeia em vários países de África, o patriarcalismo, enquanto mecanismo opressivo que trabalha na esfera do público e do privado, penetra nas sociedades pelos discursos do poder falocêntrico no âmbito social e econômico, como uma organização do próprio estado. O patriarcado, na sua origem, é a governança do pai na estrutura familiar, ou seja, dentro da ideia ocidental de núcleo familiar (o que também não é uma concepção geral para toda África, princi- palmente para a etnia igbo – cuja ideia de família, como veremos mais adiante, se constrói no compartilhamento da função maternal), as decisões e os provimentos são competências do pai, por sua vez, homem. Nesse sentido, o patriarcalismo, que possui a ideia de centralidade na figura masculina, evidencia, nas macros e micros camadas sociais, culturais e econômicas, o falocentrismo e o sexismo. A ideia de hierarquia e superio- ridade do homem, baseada na diferenciação do sexo, não fazia sentido em muitos países e etnias africanas pré-coloniais porque as funções não são desempenhadas pelo sexo, mas por outras dimensões, como anterio- ridade, parentesco etc. Obviamente o termo “patriarcado” possui longa (e difusa) origem conceitual, e que essa concepção se fazia presente em algumas etnias africanas,28 mas essa ideia de patriarcado pré-colonial se debruçava em outra perspectiva e que não se aproximava da inferiorização da mulher. Ambos, homens e mulheres, traziam e ainda trazem dentro de si a natureza e a força do feminino e do masculino; aspecto que foi evidente- mente separado na cultura ocidental. Segundo Nah Dove, o patriarcalismo estabelece uma relação muito próxima com a estruturação do racismo,29 e, para Amadiume, ele seria também uma forma de opressão cultural e uma estratégia externa que compromete o desenvolvimento econômico.30
A mulher objeto, o corpo como lugar de conquista, presente em muitas narrativas da literatura ocidental sobre os corpos negros, ao mesmo tempo em que sinaliza essa violência, desconsidera outras potencialidades discursivas e acaba reforçando a dicotomia público e privado, matéria e imaterial, tradicional e não tradicional, homem e mulher etc. É sobre isso a proposição de Bakare-Yusuf, colocada anteriormente, de que seria mais pertinente mostrar como o sistema do patriarcalismo é contestado e reconstruído constantemente. Mostrar quem manipula as marionetes é mais interessante e, ao mesmo tempo, mais complexo do que indicar os bonecos. O romance de Buchi Emecheta, nesse sentido, subverte a ideia de vitimização das mulheres africanas, colocando-se como articuladora de uma (re)escrita de temáticas labirínticas como maternidade, poligamia, os corpos em estreito confronto com as relações coloniais e pós-coloniais, as ambivalências da conjugalidade, o tradicional versus o urbano e o colonial. Nessa escrita de Emecheta, o(a) leitor(a) é quem escolhe seu posicionamento de empatia ou repulsa com as personagens; como acontece em narrativas de Alice Walker ( A terceira vida de Grange Copeland ), Ayòbámi Adébáyò ( Fique comigo ), Chimamanda Adichie (No seu pescoço), Taiye Selasi ( Adeus, Gana ), Toni Morrison ( O olho mais azul ), Maya Angelou ( Eu sei por que o pássaro canta na gaiola ) etc. Depois de uma longa e cansativa viagem de Ibuza para Lagos, Nnu Ego percebe que seu segundo marido, mesmo sem conhecê-la e vendo-a visivelmente contrariada com a negociação de seu matrimônio, não abdica de possuí-la:
Ele exigiu seu direito de marido como se estivesse decidido a não lhe dar a oportunidade de mudar de ideia. Ela imaginara que teria permissão para descansar, pelo menos na primeira noite depois da chegada, antes de ser agarrada por aquele homem faminto, seu novo marido. [...] Aquele era tomado por uma paixão animal. [...] Aguentou a situação e relaxou como haviam dito para fazer, fingindo que a pessoa em cima dela era Amatokwu, seu primeiro e querido marido. O apetite daquele homem era insaciável e, quando amanheceu, ela estava tão exausta que chorou de alívio e começou a adormecer pela primeira vez, quando o viu abandonar o quarto para ir desempenhar suas tarefas de empregado do homem branco.31
Desorientada pela longa viagem, desconcertada pela primeira impressão do marido em comparação com o ideal de homem de sua tribo, Nnu Ego percebe que a mudança em sua vida não está somente na dimensão geográfica. A primeira relação sexual entre Nnaife e Nnu Ego, obviamente diferente de como foi com Amatokwu, coloca o(a) leitor(a) diante de uma cena, no mínimo, incômoda. Embora o episódio ofereça similitude com muitos casos de relacionamentos abusivos de outras mulheres, Buchi Emecheta evidencia, nessa mesma passagem, a constrangedora condição social de Nnaife, e que tanto incomodará sua esposa Nnu Ego.
O relacionamento sexual, descrito no viés da “paixão animal”, que requisita a empatia no choro de alívio da personagem, é, também, momento de confronto com a função exercida por Nnaife de empregado dos brancos. No entanto, é preciso compreender a diegese da obra na perspectiva de uma Nigéria colonial e em transição. Compreender que as estruturas e as relações conjugais eram diferenciadas, que os parâmetros que embasavam o casamento e suas representações simbólicas, em Lagos (para ficarmos no contexto da obra), estabelecem outras diretrizes de jogo. Em uma Nigéria colonial, em transição, as concepções tribais e urbanas se encontravam em diálogos ambivalentes e tensivos. Requerer de sua esposa a relação sexual estava no jogo tácito, ou, muitas vezes, explícito e violento, dos acordos nupciais. Como assinala a senegalesa N’Goné Fall, “[a] guerra e a violação partilham uma longa história, enquanto exercício de violência para conquistar uma terra ou possuir um corpo”.32 Para Ifi Amadiume, é importante destacar que, embora aconteçam transgressões e violências sexuais contra mulheres africanas, essa não é a história sexual de toda uma África.33 Essa “violação do corpo”, essa primeira experiência sexual de Nnu Ego com Nnaife, sinaliza ao(à) leitor(a) também uma mudança significativa na história da personagem.
No decorrer da narrativa, Nnu Ego experimenta muitas contradições socioculturais em Lagos. Talvez o maior desconforto dela seja na posição de Nnaife como empregado de uma mulher branca. Nnu Ego, diferentemente das outras mulheres de Ibuza, questiona e afronta Nnaife. Esse deslocamento narrativo de Buchi Emecheta, mesmo em contexto pós-colonial de sua escrita (1977), é momento de subversão. Ao colocar Nnu Ego nessa condição de questionadora e de afronta aos padrões esperados de uma mulher de sua tribo, Buchi sinaliza a transgressão do papel de corpo aleijado e sem protagonismo. Aqui, Emecheta alarga o verbo escrever e insere no discurso a vivência de seu corpo-mulher-ne- gra-escritora. Na dimensão de escrevivência , proposta por Conceição Evaristo, o realocamento do viver na escrita aprofunda e estreita a relação escritora, leitura e mundo (individualizado ou coletivo). 34
Voltando ao livro, as discussões entre o casal se tornam constantes e Nnaife sempre reclama para si o papel de condutor da vida de Nnu Ego: “Por acaso não paguei seu dote de esposa? Não sou seu proprietário?”.35 A relação se torna cada vez mais conturbada por conta da personalidade questionadora de Nnu Ego, a concepção machista e da ideia de hombridade de Nnaife:
Olhe para você: me parece que está com jeito de grávida. Está diferente de quando chegou. O que mais uma mulher pode querer? Comigo você ganhou um lar e, se tudo correr bem, o filho que você e seu pai tanto desejam. [...] No dia em que voltar a pronunciar o nome de Amatokwu dentro desta casa, vou lhe aplicar a maior surra da sua vida. Mulher mimada, egoísta! Você que pôs em dúvida a hombridade de Amatokwu e o obrigou a casar de novo às pressas e ter um filho atrás do outro [...].36
Nnaife entende o que a maternidade significa para Nnu Ego e sua tribo, e explora o sentimento causado por essa ausência. A questão da maternidade, para muitas culturas, obviamente, é diversa, complexa e ambígua. Para Bakare-Yusuf, “[o] que é necessário é uma investigação genealógica sobre as relações de poder, os regimes de representação, estruturas religiosas, políticas e filosóficas que moldam os discursos e experiências da maternidade e da paternidade em África, tanto no presente e no passado”.37 Isso significa que o topoi do discurso e da manutenção dessa narrativa da maternidade precisa ser abordado nas suas dimensões socioculturais, espaciais e históricas.
Em muitas culturas tradicionais africanas, nesse caso em parti- cular a igbo, o conceito de patriarcado não faz muito sentido. Segundo Ifi Amadiume, um dos pontos importantes da organização e estrutura social dessa etnia está na sua concepção, em esferas diferenciadas, mas articu- ladas, de resoluções dos problemas comunitários: as decisões e partilhas são tomadas não em função do sexo, mas das melhores opções para a manutenção saudável e equilibrada da sua comunidade.38 O sistema de sexo dual, como pontua a pesquisadora nigeriana, é uma estrutura impor- tante para a organização econômica, social e cultural da etnia igbo, pois considera diferentes conjuntos de valores que não são opostos, ligados à maternidade compartilhada, à paternidade e um terceiro, concomitante aos outros dois, que revelaria decisões não baseadas no sexo, nem nos papéis políticos que lideranças desempenham na comunidade, mas no ser humano e no parentesco. Contudo, as decisões importantes sobre produção e partilha dos alimentos são tomadas pela figura da mãe, ou seja, pela mulher. Buchi Emecheta, nesse romance, se aproxima (não em temporalidade) de uma maternidade que é, ao mesmo tempo, idealizada (por Nnu Ego) e distópica, menos metafórica. Na literatura africana de autoria feminina, principalmente a nigeriana, há uma tendência, cada vez mais acentuada e propositiva, de reconfiguração e reescrita das narrativas do universo feminino. Para a feminista nigeriana Ifi Amadiume, a sociedade igbo é assentada no que ela chama de “unidade matricên- trica”, de “maternidade compartilhada”.39 Nesse sentido, esse desejo de Nnu Ego na maternidade não se trata apenas de um ideal de mulher, mas a configuração realizada de um desejo comunitário de sua tribo.
A feminista Glória Anzaldúa ressalta que o perigo, no momento da escrita, é de “não fundir nossa experiência pessoal e visão do mundo com a realidade, com nossa vida interior, nossa história, nossa economia e nossa visão”.40 Para Glória, em diálogo com a ideia de escrevivência de Conceição, que aproximamos da escrita de Buchi, é justamente essa “falha”, essa dificuldade de não expandir para o movimento do escrever esse corpo já em escrita “que nos valida como seres humanos, nos valida como escritoras. [...] O perigo é ser muito universal e humanitária e invocar o eterno ao custo de sacrificar o particular, o feminino e o momento histórico específico”.41 Essa travessia, que também é momento de cuidado e de expandir o escrever, abre potencialidades dialógicas entre o ficcional e o corpo. Embora se reconheça a necessidade do distanciamento entre ficção e realidade, e que há uma linha tênue nessa separação, a escrita de autoria feminina aproxima, como na proposição de escrevivência de Conceição Evaristo, a experiência desse corpo único de mulher escritora com a sua própria literatura. Essa escrita de autoria feminina, fundamen- talmente negra, colocada aqui nas linhas de Buchi Emecheta, no prisma da escrevivência de Evaristo, torna-seespaçoparadiálogosdepráticaseepiste- mologias de resistências aos lugares comuns e hegemônicos do discurso. A leitura dessas mulheres, da literatura dos(as) que foram (ainda são) subalternizados(as) e silenciados(as) e que praticam desobe- diência discursiva ( queer , trans, LGBTQIA+ etc.), a leitura de novas cosmologias pedagógicas, a utilização de teóricos(as) das “margens e resistências” são práticas epistemológicas efetivas. É na perspectiva da reposicionalidade, das reconstruções discursivas e de urgências políticas que a literatura de autoria feminina, principalmente a negra, fundamenta suas proposições.
Buchi Emecheta, como Conceição Evaristo (entre outras), procura a essência que perpassa não só a escrita, mas também que atravessa o corpo, a experiência única dessa vivência. Escrever, por exemplo, para Marina Colasanti, nascida em Asmara (capital da Eritreia, Nordeste da África), é a busca de uma essência profunda das coisas e dos seres.42 Não se trata, como observa Colasanti ao se referir ao mito de Proteu, de se metamorfosear em outro, é algo mais complexo que se presentifica no movimento da escrita e no nascimento da palavra poética. Para Conceição Evaristo, Buchi Emecheta e tantas outras escritoras que incorporam a experiência e o corpo nessa busca da essência, essa grafia-escrita anuncia a presentificação de uma ancestralidade, de um corpo insubsistente, de resistências e enfrentamentos diários, de uma (re)discussão de projeto e estética literária e, principalmente, de se inverter ou rasurar a histori- cidade sociocultural ocidentalizada e machista. A continuidade discursiva de dominação masculina, na literatura, segundo Catarina Martins, precisa ser reconfigurada, reescrita de maneira emancipatória. O papel orgânico da escrita de autoria feminina, para a pesquisadora, “não pode ser menosprezado e tem vindo a ser cada vez mais valorizado por feministas africanas como campo privilegiado de produção de um imaginário novo e de narrativas alternativas”.43 Para além dessas discussões e dessa teia que pretende tudo envolver e reduzir, é preciso garantir que a escrita de autoria feminina, como adverte Liane Schneider, “esteja carregada de todas as tensões que compõem o tecido cultural, não sendo inscrita nem limitada por uma visão binária e naturalizada de mundo”.44 Voltando ao romance de Buchi Emecheta, Nnu Ego acredita na força da maternidade e sabe da importância que isso tem na constituição de sua família. Mesmo não amando seu marido, Nnu Ego tolera a situação do casamento, pois: “[e]le me transformou numa mulher de verdade – em tudo o que quero ser: mulher e mãe”.45 A unidade matriarcal em povos igbo, como pontua Camille Scholl ao se referir aos estudos de Ifi Amadiume, é extremamente complexa e profunda, principalmente na questão da maternidade. Nos estudos de Ifi Amadiume sobre uma comunidade do grupo igbo, em Nnobi (localizados no território da atual Nigéria), a mater- nidade é algo que se aproxima da divindade Idemili (e a mulher seria a materialização dessa entidade).46 Embora o recorte seja na perspectiva comunitária, Ifi Amadiume registra uma definição de matriarcado que se associa com o papel de mulher e mãe em Nnu Ego. Se nos voltarmos para a diegese colonial da obra de Emecheta, encontraremos concepções próximas às dadas pela pesquisadora. Camille Scholl afirma ainda que, para Ifi Amadiume, a estrutura de poder “mãe”, configurada dentro de uma “unidade matricêntrica”, desenha as relações parentais de muitas sociedades africanas. Essa unidade se relaciona com a questão de paren- tesco entre as famílias africanas e em nada se conforma com a dimensão do gênero. Segundo Oyěwùmi, “[n]ão é de se surpreender, então, que a mais importante e duradoura identidade e nome que as mulheres africanas reivindicam para si é a ‘mãe’. [...] A ideia de que as mães são poderosas é muito mais uma característica definidora da instituição e seu lugar na sociedade”.47 Para teóricas como Niara Sudarkasa, Oyèrónkẹ Oyěwùmí e Nkiru Nzegwu, segundo Bakare-Yusuf, “[a] noção de “patriarcado” é consequentemente, visto como um conceito importado e imposto”.48 Nnu Ego, então, torna-se mãe, e o sentimento de completude envolve esse corpo-mulher: “Agora estava segura, enquanto dava banho no menininho e preparava a refeição do marido, de que teria uma velhice feliz, de que quando morresse deixaria alguém atrás de si que se referiria a ela como ‘mãe’”.49 Contudo, a primeira criança do casal morre em quatro dias. Em desespero, ela se martiriza e condena a existência do próprio corpo: “Pela primeira vez desde que vira o filho na esteira, lágrimas de choque e frustração escorreram pela face de Nnu Ego. Quem lhe daria a força para contar ao mundo que fora mãe, mas fracassara?”.50 Após o diminuto período de luto, a personagem é convocada social- mente por uma conhecida para que não desaponte sua tribo: “‘Deixe que ele durma com você. Por favor, não desaponte sua gente’”.51 Assim, Nnu Ego é reinserida na esfera da vida reprodutiva e, consequentemente, na sociedade. Pouco tempo depois nasce o segundo filho. Os zelos e a dedicação desse corpo à maternidade acabam solapando o corpo feminino da mulher Nnu Ego.52 Aos poucos, a personagem caminha para uma entrega que definha a sua juventude. Em algumas passagens da obra, a personagem reflete sobre sua condição feminina: “‘Não era justo, ela achava, o modo como os espertos dos homens usavam o sentido de responsabilidade de uma mulher para escravizá-la na prática’”.53 Esse corpo-questão que se revela, paulatinamente, em Nnu Ego parece dialogar com o mesmo corpo-escrita-vivência de Buchi.
Outro tema visível na narrativa de As alegrias da maternidade é a condição econômica de uma Lagos pós-colonial. A situação financeira de Nnaife e Nnu Ego acompanha os altos e baixos de uma cidade que oferece poucas oportunidades de trabalho mal remunerado e de geração de renda, que afronta a lembrança recente da condição comunitária de irmandade tribal:
Pensara muito no velho ditado, segundo o qual dinheiro e crianças não combinam. Se você dedicasse todo o seu tempo a ganhar dinheiro e enriquecer, os deuses não lhe dariam filhos; se quisesse ter filhos, teria de esquecer o assunto dinheiro e se conformar com a pobreza. Nnu Ego não se lembrava de onde havia saído esse ditado, repetido por sua gente; talvez fosse porque em Ibuza a mãe que amamentava não podia passar muito tempo no mercado vendendo sem ter de correr para casa para dar o seio ao bebê. E, claro, bebês estavam sempre doentes, o que significava que a mãe perdia muitos dias de mercado.54
Aliás, o parâmetro comparativo de Nnu Ego sempre passa pela vida na comunidade de Ibuza. Na esteira do diálogo com outros romances africanos, como Efuru (1966), de Flora Nwapa, por exemplo (pensando apenas no modelo de concepção comunitária rural escrito nos finais dos anos 1940, na representatividade da cultura igbo e nos aspectos da colonia- lidade na Nigéria dos anos 1950, de uma escrita de autoria feminina), Buchi Emecheta explora a urbanidade desagregadora e segregadora de uma Lagos colonial e urbana, questiona a feminilidade que passa pela maternidade e repensa as imposições tradicionais em uma localidade inóspita. Tudo coloca Nnu Ego e seus filhos em constante privação, inclusive a poligamia de Nnaife. Em certa altura da narrativa, ele herda as esposas de um irmão falecido. Uma das esposas, Adaku, juntamente com suas duas filhas, vem morar no diminuto quarto do casal, em Lagos; e os códigos da poligamia são escancarados logo na primeira noite: Adaku se entrega em euforia ao novo marido, o que deixa Nnu Ego desconcertada. A novidade desse corpo invasivo, bem como a extrema dificuldade financeira da família, torna a convivência agudamente tensa entre as duas mulheres. Com temperamento diferente (autônoma e direta), Adaku questiona a hierarquia de Nnu Ego e a coloca em tensão diante de suas convicções de corpo-útero-sexo. Adaku é assertiva, confronta a sociedade e redefine o papel da condição feminina nigeriana em Lagos. Ao abandonar o casamento, Adaku se torna uma bem-sucedida empresária através da prostituição. Para Catarina Martins (2011), Adaku é a personagem que representa a diferenciação entre uma narrativa masculina e uma narrativa de autoria feminina:
No contraste entre estas duas mulheres esboça-se uma redefinição da identidade feminina, em oposição ao tropo da maternidade. [...] Ao contrário do que acontece na narrativa masculina, em que a prostituta é condenada como corrupção do corpo alegórico da nação, o corpo da mulher e a sua rentabilização econômica aparecem aqui como um meio de confrontar a dominação masculina no espaço público e de conquistar a emancipação: Adaku não só alcança um estatuto social elevado, como é capaz de ajudar Nnu Ego, e de fornecer às filhas uma educação ocidental que permite a independência econômica, consa- grando a emigração para o espaço urbano e a escolarização como vias de conquista de poder para as mulheres.55
Corpos e atitudes diferenciadas, Adaku é a personagem que mostra outras possibilidades de vida à Nnu Ego. Servindo de contraponto à perso- nagem principal do romance, Adaku refuta a condição desigual atribuída à educação dos filhos em detrimento das filhas e se apresenta como movimento de resistência e subversão das tradicionalidades que não se aplicam na realidade colonial e “moderna” de Lagos. Novas necessidades se erguem e renovadas estratificações sociais são construídas nessa Lagos em transição. Nnu Ego e Adaku são pontas discursivas que se enlaçam ao reconhecer a mulher como corpo silenciado e em desacordo com a nova estrutura social que se ergue na diegese da obra. Ao assumir seu corpo-sexo (o que já descola o lugar comum de muitas narrativas), Adaku engendra suas próprias regras, inverte e afronta uma construção de hegemonia machista. Materialidades em corpos-personagens, Nnu Ego e Adaku são, não apenas construções discursivas de enunciado-corpo, mas locus de questionamentos e empoderamento. Nessa Lagos rumo à ocidentalização e ainda colonial, Buchi Emecheta, num contexto já de escrita pós-colonial (final da década de 1970), confronta a impossibilidade da continuação literal das tradições comunitárias em contexto de dominação e importação de costumes britânicos (como é o caso da Nigéria).
Marcada por sucessivas privações financeiras, contraposta a uma urbanidade capitalista e individualista e em patente descontentamento com o casamento, Nnu Ego questiona a condição de mulher, de corpo-útero, mas sempre com o pensamento firme de que seus filhos lhe devolveriam a alegria e o cuidado numa velhice digna de quem se dedicou aos zelos maternais. O corpo como escrita de resistência e questionamento singu- lariza, em contexto literário de autoria feminina, como agente não só de um discurso diferenciado, mas de uma dimensão de corpo que ultrapassa as metáforas de vida cotidiana. Estreitar a escrita de Buchi Emecheta com a substância da sua arte literária é inscrever na linguagem o corpo empoderador, como sinaliza Conceição Evaristo em sua escrevivência .
Para Isabel Magalhães, na literatura, sendo ela ficcional ou não, a presença do corpo não é só fisicamente necessária por obviedade, como também revela, principalmente em textos de autoria feminina, outra dialogia entre corpo e linguagem. Uma ponte que só é possível pela conectividade que o corpo feminino tem inscrito na sua dimensão de linguagem, “que liga de um modo vital escrita-vida-leitura”.56 É nessa chave de compreensão, “escrita-vida-leitura”, que se caminha na discussão da literatura de Buchi Emecheta. Para Ana Rita Santiago da Silva, essa escrita de autoria feminina “se pretende ‘transgressora’ e ‘revolucionária’, uma vez que almeja quebrar com tramas opressivas e de aprisionamentos do pensamento masculino, já postos pela linguagem, por conseguinte pela comunicação, concepções de mundo e pelas relações de poder”.57
A literatura africana e afrodescendente de autoria feminina é lugar em que se conjugam identidades, corpos e memórias – vetores indispensáveis que marcam o discurso autoral e transvertem as narrativas. São identidades e discursos silenciados que encenam corpos não só discursivos, mas repletos de memórias e de vestígios. Contudo, a literatura africana (afrodescendente) de autoria feminina, por muito tempo ficou nos trilhos forjados sobre a “diferença de papéis sexuais, como em identidades nacionais, igualmente reificadas, igualmente dogmáticas, e igualmente sexuadas”.58 Somente quando a sociedade brasileira assumir verdadeiramente a complexa e profunda desigualdade racial, as contradições brutais na estrutura social, é que se chegará mais perto de uma democracia, de uma atitude cidadã e ética. Para Lélia Gonzalez, só assim é que se percorrerá um firme e efetivo caminho de enfrentamento do racismo e do sexismo no Brasil,59 para não mais se contar histórias de ninar na Casa Grande.60 Assumir a escrevivência de autorias de resistência é realocar um projeto político e social na pauta das urgências de maneira humanizada e assertiva.
Buchi Emecheta, com sua escrita repleta de seus rastros, de reflexões pertinentes e diálogos honestos, coloca o(a) leitor(a) frente ao corpo feminino e à condição da mulher africana, provocando-o ao enfren- tamento nos seus campos de conflitos. Assim sendo, Nnu Ego é parte e rastro desse discurso da condição feminina nigeriana e do corpo-útero. Em certa altura, em profunda reflexão de vida, ela assume e entende a exigência de se repensar os discursos colonizadores e machistas, o corpo feminino, a condição da mulher, nas expectativas e histórias impostas.
Nunca, nem mesmo na morte. Sou uma prisioneira de minha própria carne e de meu próprio sangue. Será que essa é uma posição tão invejável assim? Os homens nos fazem acreditar que precisamos desejar filhos ou morrer. Foi por isso que quando perdi meu primeiro filho eu quis a morte, porque não fora capaz de corresponder ao modelo esperado de mim pelos homens de minha vida, meu pai e meu marido, e agora tenho que incluir também meus filhos. Mas quem foi que escreveu a lei que nos proíbe de investir nossas esperanças em nossas filhas? Nós,mulheres, corroboramos essa lei mais que ninguém. Enquanto não mudarmos isso, este mundo continuará sendo um mundo de homens, mundo esse que as mulheres sempre ajudarão a construir.61
Nnu Ego, nesse momento final, questiona sua condição feminina e os perigos de histórias únicas (amplamente debatido por Chimamanda Ngozi Adichie),62 numa explícita crítica à continuidade da fábula requentada de que há uma superioridade do homem. Em desconstrução ao discurso tradicional, da valorização de narrativas que delimitam os espaços dos corpos femininos, Buchi Emecheta coloca em questão o poder da mulher na recondução de seus papéis e no futuro de uma nação. A prosperidade nacional, sempre colocada nas mãos dos filhos homens, na reflexão de Nnu Ego, é frágil, questionável, passível de mudança pela inflexão da mulher (se assim desejar). No momento em que a personagem questiona suas amarras, ela encara e vislumbra a possibilidade de inversão desse discurso de topoi masculino, muitas vezes prolongado pelas próprias mulheres, das práticas sociais de não valorização do poder da mulher.
Enquanto mulher negra na diáspora, Buchi Emecheta avança em questões modernas e atuais dentro de uma interseccionalidade que sinaliza para as desconstruções de estereótipos, principalmente da fragilidade feminina e de uma identidade subalterna das mulheres negras africanas. Corpo-mulher-escrita: a autora centra suas narrativas em personagens complexas, mas em constante relação conflituosa com o seu próprio ser, sua condição feminina, seu lugar de pertencimento social e histórico. A mulher, principalmente na obra As alegrias da maternidade , caminha na ambivalência das tradicionalidades e um novo mundo que sempre a impulsiona para novas construções sociais.
Considerações finais
O romance As alegrias da maternidade (2017), de Buchi Emecheta, é uma obra que reflete a resistência de mulheres africanas negras. Na articulação da reescrita do topoi da chamada “literatura masculina”, Buchi Emecheta se ergue como uma das principais escritoras nigerianas. Temas como o parentesco, a maternidade, o corpo feminino, a condição da mulher negra e suas relações coloniais, bem como o trato do urbano e o tradicional, contextualizam uma Nigéria em tempos distintos, mas aparentemente próximos: da década de 1940-1950 (diegese da obra) e a pós-colonial (anos 1970, contexto de sua publicação).
A literatura africana de autoria feminina, em especial a negra, é singular porque busca e promove empoderamento, ação e reação políticas às mais diferentes formas de dominação e violência exercidas sobre a mulher, sobre seu corpo e sua vontade. As alegrias da mater- nidade é uma declaração de amor, de resistência e superação. Eis em Nnu Ego um corpo de protagonismo político, ora tácito ora explícito, que reflete sua condição de mulher e mãe e se motiva ao exercício de poder sobre si, seu corpo e suas ideias. Eis a metáfora da mulher africana que não é mais amarra e nem instrumento de subjugação social e política, mas sim um corpo-escrita cuja escrevivência se projeta para além das narrativas ficcionais.
Entrelaçar a obra de Buchi Emecheta com a escrevivência de Conceição é compreender que a escritora nigeriana teve uma vida pessoal repleta de obstáculos e abdicações, assim como Nnu Ego. Dona de um discurso questionador e, por vezes, direto, Buchi Emecheta, em As alegrias da maternidade , expõe, ao mesmo tempo, uma feminilidade frágil, mas em nada limitada pela constituição biológica de mulher. Ao contrário, Nnu Ego, em dimensões diferenciadas e guardando uma distância segura entre o ficcional e o real, sem reduzir a escrita de Buchi ao biográfico nessa obra, torna-se um corpo mãe que inverte e critica a invisibilidade social e física da mulher negra nigeriana.
Enquanto só vista como metáfora discursiva, a mulher perde concretude e visibilidade, deixando a condução das suas existências e práticas diversas nas mãos de discursos coloniais e machistas. A literatura africana de autoria feminina negra, compreendida como instrumento de poder discursivo, é a estratégia mais assertiva de decolonização das narrativas que tornam o corpo e a condição feminina invisíveis. É também através da linguagem que a escrita de autoria feminina encontra respaldo e recurso contra a falácia da superioridade europeia, cuja estética ainda é dominadora.
Notas