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REPENSANDO O ISLÃ A PARTIR DA AMÉRICA: REFLEXÕES SOBRE “PRIMITIVISMO” E “CIVILIZAÇÃO” EM SAYYID QUTB

RETHINKING ISLAM FROM AMERICA: REFLECTIONS ON “PRIMITIVISM” AND “CIVILIZATION” IN SAYYID QUTB

Bruno Ferraz Bartel
Universidade Federal do Piauí, Brasil

REPENSANDO O ISLÃ A PARTIR DA AMÉRICA: REFLEXÕES SOBRE “PRIMITIVISMO” E “CIVILIZAÇÃO” EM SAYYID QUTB

Afro-Ásia, núm. 64, pp. 431-468, 2021

Universidade Federal da Bahia

Recepção: 8 Outubro 2020

Aprovação: 8 Abril 2021

Resumo: Este artigo analisa os impactos da viagem de Sayyid Qutb (1906-1966) aos Estados Unidos da América para a formulação de suas concepções religiosas. A experiência do ativista na América, realizada entre os anos de 1948 e 1950, marca um conjunto de ideias elaboradas por ele sobre a religião islâmica no Egito e o modo como ela deveria guiar seus praticantes frente à expansão cultural norte-americana nos países do Oriente Médio na conjuntura mundial pós-Segunda Guerra Mundial. Argumento que o encontro com a América não se restringiu apenas a um mero exercício de produção de alteridades – exaltação de encantamentos ou evitações –, mas uma fonte potencializadora de reflexões sobre sua própria conduta como muçulmano. Para compreender a dinâmica desses questionamentos, o conceito de objetificação adquire uma relevância significativa.

Palavras chave: Sayyid Qutb, Alteridade, Estados Unidos da América.

Abstract: This article analyzes the effects of Sayyid Qutb’s (1906-1966) trip to the United States of America on the development of his religious ideas. The journey, which took place between 1948 and 1950, led him to a set of ideas about the role of Islam in Egypt and the way it should guide its followers, in the face of American post-war cultural expansion in the Middle East. The paper argues that the encounter with America was not merely an exercise in the production of alterities, in the sense of intensifying fascination or repulsion; it also served to stimulate self- reflection on his own conduct as a Muslim. The concept of objectification takes on great relevance in understanding the dynamics of these questions.

Keywords: Sayyid Qutb, Alterity, United States of America.

O verdadeiro valor de toda civilização que o homem conheceu não está nas ferramentas que ele inventou ou no quanto poder ele exerce.1

Este artigo analisa os impactos da viagem de Sayyid Qutb (1906- 1966) aos Estados Unidos da América (EUA) para a formulação de suas concepções religiosas. Ativista islâmico egípcio proeminente de sua época e membro do grupo Irmandade Muçulmana,2 Qutb foi executado pelo regime de Gamal Abdel Nasser (1918-1970) em 1966. A experiência do ativista na América, realizada entre os anos de 1948 e 1950, marca um conjunto de ideias elaboradas por ele sobre a religião islâmica no Egito e o modo como ela deveria guiar seus praticantes frente à expansão cultural norte-americana nos países do Oriente Médio, na conjuntura mundial pós-Segunda Guerra Mundial.3 Qutb é o responsável por vários trabalhos teóricos sobre o papel do Islã.4 Contemporaneamente, esses trabalhos têm sido a base para a construção de um projeto realizado por intelectuais sob o rótulo de “Islã Político”, que pode ser entendido como um sistema difuso de ideias no qual cada ativista islâmico busca reformar o maior número possíveis de muçulmanos, independentemente das distintas realidades locais em que se inserem.5

Argumento que o encontro com a América (literalmente um “Outro”, na perspectiva de Qutb) não se restringiu apenas a um mero exercício de produção de alteridades – do ponto de vista da exaltação de encantamentos ou evitações –, mas uma fonte potencializadora de reflexões sobre sua própria conduta como muçulmano. Ademais, a experiência com os “padrões culturais” americanos à época da viagem repercutiu na construção de dois momentos significativos para as obras intelectuais de Qutb. No primeiro deles (1951-1954), algumas de suas concepções sobre as virtudes islâmicas foram reforçadas a partir do contraste com o estilo de vida americano. Num momento posterior (1955-1966), esse exercício contribuiu para formular um conjunto mais elaborado de reflexões sobre quais caminhos o Islã teria que percorrer para promover a sua comunidade ( umma ) em termos expressamente políticos.6

Para compreender a dinâmica desses questionamentos, o conceito de “objetificação” desenvolvido por Dale Eickelman e James Piscatori adquire uma relevância significativa,7 já que figura como parte do processo pelo qual questões fundamentais de crentes muçulmanos podem vir à tona na consciência de um grande número deles, tais quais: “Qual é a minha religião? Por que ela é importante para a minha vida? Como as minhas crenças guiam a minha conduta?”.8 O conceito de “objetificação” não pressupõe a noção de que a religião seja uma entidade uniforme ou monolítica, muito embora ela seja precisamente isso para alguns dos indivíduos que creem nela. Essas perguntas “objetivas”, amplamente compartilhadas entre os praticantes de uma comunidade religiosa, consti- tuem-se em recursos modernos que, cada vez mais, moldam o discurso e a prática de muçulmanos em todas as classes sociais ou estilos de vida.9 Além disso, alguns desses questionamentos procuram legitimar as ações e crenças de seus praticantes, afirmando que eles defenderiam um retorno às formas tradicionais, supostamente “autênticas”.

Neste sentido, o conceito de objetificação pode ser usado para analisar toda uma gama de reflexões que estão presentes em diversos grupos sociais, uma vez que a religião islâmica forma um sistema em que seus adeptos podem descrever, caracterizar e, fundamentalmente, se distinguir de outros sistemas de crença. A crença nas fronteiras que criam a experiência de lidar com outros grupos sociais “homogêneos” – um “nós” em oposição a “eles” – é o que torna possível a utilização de determinadas passagens produzidas por Qutb como parte desse processo de reflexão sobre o mundo.

Narrativas de viagens sempre foram importantes fontes de produção para a maioria dessas objetificações.10 Um exemplo célebre é a figura do egípcio Rifa’a al-Tahtawi (1801-1873), que integrou a missão diplomática na França durante o governo de Muhammad Ali (1769- 1849). Nas descrições do autor, presentes no livro A extração do ouro ou uma visão geral de Paris (Takhlis al-Ibriz ila Talkhis Bariz) , al-Tahtawi produziu uma oscilação de alteridades, que variavam desde a simples admiração acrítica dos costumes da população observada até um modo entusiasta diante da organização da vida pública, principalmente durante o reinado de Carlos X (1824-1830).

As narrativas de Rifa’a al-Tahtawi, desenvolvidas no período entre 1826 e 1831, giravam em torno de dois pilares. O primeiro era o choque diante da proeminência da avareza entre os franceses em detrimento do sentimento de generosidade, e da dominação exercida pelas mulheres sobre os homens na França. O segundo era o elogio da limpeza, da educação dada aos filhos, do amor ao trabalho e desaprovação da preguiça, da curiosidade intelectual, mas, sobretudo, da moralidade social no ordenamento público.11 Essas preocupações iniciais (o elogio à virtude pública e, ao mesmo tempo, a reprovação das moralidades entre os europeus) se transformariam e se somariam a um conjunto de muitos outros temas familiares do pensamento árabe e islâmico.12 Elas tinham como mote a importância de reformar a estrutura do corpo político vigente no Egito por meio de empréstimos de, pelo menos, algumas dessas formas observadas na sociedade francesa.13

A vivência por um determinado período no seio das sociedades visitadas (europeias e norte-americanas) e o contato direto com as formas liberais desenvolvidas e estruturadas em seus respectivos contextos históricos proporcionariam algumas reflexões que seriam retomadas mais adiante por outros reformadores islâmicos na segunda metade do século XX e início do XXI.14

Duas reflexões de Qutb, baseadas em sua breve estadia nos EUA, despertaram o interesse daqueles que o retomariam mais tarde. A primeira delas visava imputar ao Islã uma força capaz de mobilizar os indivíduos para a crítica do processo de ocupação de territórios de maioria muçulmana praticado pelas potências imperialistas europeias (França e Reino Unido) até a década de 1960. A segunda dirigia-se à capacidade dos adeptos de não se contentarem com as promessas advindas dos movimentos nacionalistas árabes. Segundo Qutb, os governos recém-criados, muitas vezes organizados por elites corruptas, dificultariam a implementação das doutrinas reformadoras almejadas para as diversas sociedades que formariam a umma islâmica e dos projetos de se viver sob a égide da lei islâmica ( sharia) .

Os processos de mudanças implementados pela relação e influência estrangeira instigaram as populações locais do Oriente Médio a repensar suas sociedades e os sistemas de crenças e valores que lhes davam legitimidade. Populações otomanas, egípcias, sírias, libanesas e tunisianas constituíram exemplos de transformações promovidas por esses relacionamentos ao longo dos séculos XIX e XX. Essas sociedades de maioria islâmica, ilustram esse processo de forma bastante veemente a partir das diversas situações históricas que garantiram a alteração, de tempos em tempos, do código cultural em uma prática política, adotada pelos indivíduos de forma consciente ou inconsciente – algo sobre o que o conceito de objetificação nos ajuda a refletir. Algumas ponderações feitas por Qutb caminharam nesse sentido. A reflexão dele sobre a sociedade americana do final da década de 1940 pode ser tomada como um exemplo de “objetificação”. A descrição dele sobre a tensão entre a virtude moral e a produção de bem-estar material que reconhece no “Ocidente” (repre- sentado aqui pelos EUA) e a forma de encarar esses dois temas do ponto de vista da religião islâmica permite que se possa analisar o desenvol- vimento de suas concepções políticas, delimitadas e pautadas por seus questionamentos iniciais decorrentes da experiência com a América.

O artigo está dividido em duas partes. Na primeira, apresento um breve relato da trajetória de Qutb, visando contextualizar a biografia do autor e articulá-la com as principais questões referentes ao campo políti- co-religioso egípcio até a década de 1960.15 Na segunda, esboço dois pontos desenvolvidos por Qutb de modo contrastivo com a sociedade americana, registrados no texto “América que eu vi” ( Amrika allati Raʾaytu ), publicado em 1951.

Percursos e dilemas

Sayyid Qutb era o mais velho de cinco filhos e nasceu na vila de Musha, perto de Asyut, no Egito, em 1906. Hamid Algar registra o empenho dele na escola primária local para aprender o Islã, fato que lhe rendeu uma completa memorização do Alcorão desde muito cedo.16 Três anos depois, sua família se mudou para Helwan (próximo à capital), permitindo-lhe ingressar na escola preparatória. Tal formação lhe possibilitou, mais tarde, em 1929, a admissão em Dar al-Ulum , prestigiada faculdade de formação de professores do Cairo. A ida para a faculdade marcaria o início de seu longo e frutífero envolvimento com a temática da educação e das dificul- dades na promoção do acesso igualitário ao ensino no Egito. Ao se formar em 1933, foi nomeado para lecionar na mesma instituição; posteriormente, ingressou no serviço do Ministério da Educação do Egito.

Uma das questões políticas latentes no país durante o período de formação e ocupação profissional de Qutb era o processo de indepen- dência do Egito do Império Britânico. Em 1922, o Reino Unido retirou sua jurisprudência sobre os territórios egípcios e reconheceu Ahmad Fuad (1868-1936) como monarca (Fuade I), porém, esse processo de independência era meramente uma formalidade, uma vez que o governo britânico se reservava o direito de interferir nos assuntos internos do país de tempos em tempos, quando seus interesses fossem ameaçados. Um exemplo desse condicionalismo foi a constituição promulgada em 1923, que estabelecia a monarquia constitucional como sistema político vigente, ainda que as intervenções da administração inglesa persis- tissem. Após um período de intensa movimentação política, as primeiras eleições para o parlamento se concretizaram em 1924, com destaque para o partido nacionalista Wafd , cujo líder, Sa‘d Zaghlul (1859-1927), tornou-se primeiro-ministro em janeiro, mantendo-se no cargo até novembro do mesmo ano.

Os membros do partido Wafd nutriam um forte desejo de libertar o país do poder britânico. Apesar desta suposta unidade, alguns aconte- cimentos marcantes os impediram de alçar maiores voos políticos. Em novembro de 1924, após o assassinato do comandante do exército britânico Lee Oliver Fitzmaurice Stack no Cairo, a polícia local suposta- mente descobriu ligações entre a morte do oficial e as ações de militantes do Wafd . Como consequência, o primeiro-ministro Zaghlul preferiu demitir-se para evitar tensões com as forças de intervenção inglesa. As eleições seguintes, que sucederam a este incidente diplomático, deram novamente a vitória ao partido nacionalista; entretanto, o rei Fuade I, temendo o grau de ação política de seus membros, ordenou o fechamento do parlamento e, em 1930, apoiado por políticos que eram totalmente contrários aos ideais do Wafd , impôs uma nova constituição ao Egito, reforçando o poder da monarquia diante das demais instituições.

O ano de 1933 marcou o início da prolífica carreira literária de Qutb. Seu primeiro livro, Missão do poeta na vida e poesia da geração atual ( Muhimmat al-Sha’ir fi al-Haya wa Shi’r al-Jil al-Hadir ), assen- taria seu gosto pela literatura, fazendo dela, juntamente com a dimensão educacional, uma de suas principais preocupações ao longo da vida. As poesias, esboços autobiográficos, críticas literárias, romances e contos escritos por ele tratam basicamente de duas temáticas: o amor e o casamento. Num momento posterior, a partir de uma nova inter- pretação do Islã, centrada em julgamentos morais e posicionamentos político-ideológicos, ele repudiaria grande parte desses trabalhos do início da carreira. Mesmo assim, cabe destacar que esses escritos serviram para aproximá-lo de figuras importantes da cena literária egípcia, como Abbas Mahmud al-Aqqad (1889-1964) e Taha Hussein (1889-1973). Esses autores possuíam afinidades com questões culturais e literárias em voga nos países ocidentais, tais como o individualismo e o existencialismo, que Qutb também compartilhava.

Assim como seu mentor literário, al-Aqqad, Qutb foi um membro ativo de oposição dentro do partido Wafd nas décadas de 1930 e 1940, além de um crítico proeminente da monarquia egípcia. Isso o levaria mais tarde a um inevitável conflito com seus superiores no Ministério da Educação. Há relatos que sinalizam os esforços por parte de Taha Hussein para dissuadi-lo a renunciar a seu cargo no ministério. Em 1947, já fora do governo, Qutb solicitou a Hussein para que ele se tornasse o editor-chefe de dois periódicos, O Mundo Árabe ( al-‘Alum al-‘Arabi ) e O Novo Pensamento ( al-Filer al-Jadid ), entretanto, essas novas emprei- tadas profissionais acabaram por se transformar em verdadeiros fracassos. Com relação ao primeiro, sua curta carreira foi justificada por diver- gências editoriais; quanto ao segundo, que procurava de maneira hesitante apresentar um modelo de sociedade islâmica egípcia livre da corrupção, tirania e domínio estrangeiro, a tiragem foi encerrada após a publicação de apenas seis edições.

Enquanto tentava publicar seus escritos em uma variada gama de periódicos literários e políticos, Qutb viu-se obrigado a se recon- ciliar com seus antigos colegas de trabalho no Ministério da Educação. Em 1948, o ministério o nomeou como membro de uma missão de estudos, que partiria rumo aos EUA. Ao mesmo tempo que Qutb destacava as grandes realizações americanas em relação às suas formas de produção industrial e organização social, ele criticava duramente o que considerava serem características de ordem materialista, racista e de permissividade sexual, classificando-as como dominantes entre a população americana.

O conjunto dessas impressões negativas, advindas das reflexões sobre o estilo de vida da sociedade americana, foram fundamentais para a maioria das ideias dele sobre a constituição da religião islâmica como alternativa civilizacional frente aos valores dos EUA que, nessa época, já se difundiam pelo mundo. O período de sua permanência na América coincidiu com a Primeira Guerra Árabe-Israelense (1948- 1949).17 Nessa conjuntura, ele afirmou assistir com mágoa à aceitação acrítica das teses sionistas pela opinião pública americana e registrou o surgimento do preconceito contra imigrantes árabes ou adeptos do Islã no país. Após concluir o mestrado em educação na Universidade do Norte do Colorado (UNC), Qutb decidiu renunciar à possibilidade de permanecer nos EUA para a obtenção do doutorado, e retornou ao Egito em 1951.

Um de seus livros mais lidos, A justiça social no Islã ( al-Adalah al-ijtima’iyyah fi al-Islam ), publicado durante o período sabático na América, obteve grande aceitação por parte de figuras ligadas à Irmandade Muçulmana, justamente em decorrência das críticas direcionadas ao quadro social em que o Egito se encontrava, mas também devido à ênfase na justiça social como o imperativo islâmico capaz de subverter a desordem vigente e de guiar as condutas necessárias para as resoluções dos desafios que então se apresentavam.

Posteriormente, Qutb criticou o livro de Taha Hussein intitulado O futuro da cultura no Egito ( al-Mustaqbal al-Thaqafa fi al-Misr ) que, segundo ele, apresentava o país como parte de uma sociedade que compartilhava uma essência mediterrânea. A crítica também seria muito apreciada nos círculos da salafiyya egípcia durante toda década de 1950.18 Qutb se encontrava cada vez mais afinado com os ideais da Irmandade Muçulmana desde que, segundo ele, testemunhou a recepção extática pelos americanos às notícias do assassinato, em 12 de fevereiro de 1949, de Hasan al-Banna, fundador do grupo.19 A percepção dele sobre a Irmandade Muçulmana como defensora do Islã haveria de ser ampliada ainda mais após seu retorno ao Egito. Sobre isso, o britânico e pesquisador de línguas médio-orientais James Heyworth-Dunne (1904-1974) afirmou, certa vez, que a Irmandade Muçulmana repre- sentaria a única barreira concreta ao estabelecimento da “civilização ocidental” em todo o Oriente Médio.

Exageros orientalistas à parte,20 a cooperação de Qutb com a Irmandade Muçulmana começou quase imediatamente após o retorno dele dos EUA, embora sua participação formal no grupo somente tenha acontecido em 1953.

Essa nova aliança marcou uma etapa importante na vida política e intelectual de Qutb. Ele havia abandonado o partido nacionalista Wafd após a morte de seu fundador, Sa‘d Zaghlul, para ingressar em 1938 no partido de Ahmad Mahir (1888-1945), que reivindicava um maior grau de fidelidade aos ideais originais do Wafd . Qutb também se envolveu, num curto espaço de tempo, em atividades políticas ligadas a outros dois grupos partidários, o Partido Patriótico ( Hizb al-Watani ) e o Jovem Partido do Egito ( Hizb al-Misr al-Fatah ). No entanto, nenhum desses partidos políticos engajou suas energias nacionalistas e devoções religiosas tão plenamente quanto a Irmandade Muçulmana. Segundo Qutb, o significado do grupo não poderia ser comparado à de um mero partido político, uma vez que seu objetivo, desde a sua fundação, em 1928, era o estabelecimento de virtudes islâmicas como regra para todas as dimensões da vida social do Egito. O encontro entre Qutb e figuras proeminentes da Irmandade Muçulmana é consi- derado um marco para o movimento de “radicalização do Islã”, como se convencionou denominá-lo posteriormente. Esse movimento teve como sua referência primeiramente o Egito, e somente depois tornou-se um modelo a ser exportado para outros contextos de maioria islâmica.

Em 1951, Qutb começou a escrever para os seguintes perió- dicos da Irmandade Muçulmana: A mensagem ( al-Risala ) , A chamada ( al-Da’wa ) e A nova bandeira ( al-Liwa’ al-Jadid ). Neste período, ele renunciou ao cargo no Ministério da Educação, ignorando inclusive o apelo de última hora para se tornar conselheiro especial do ministro. Devido à sua afiliação direta aos líderes da Irmandade Muçulmana e, em reconhecimento de seus talentos, Qutb se tornou o editor-chefe do principal jornal do grupo ( al-Ikhwan al-Muslimin ). Em janeiro de 1954, este diário seria banido da imprensa egípcia e Qutb embarcaria em uma longa provação de prisão e perseguição pública, que culminaria com seu martírio doze anos depois, em 1966.

Alteridade e objetificação baseados nos EUA

Em 1948, o Ministério da Educação do Egito enviou Qutb para estudar métodos pedagógicos nos EUA. O objetivo era a aplicação desses métodos num amplo programa educacional idealizado pelo governo. Lá, ele frequentou várias instituições, incluindo o Wilson Teachers College, em Washington, DC (agora Universidade do Distrito de Columbia), o Colorado State College for Education, em Greeley (hoje Universidade do Norte do Colorado) – onde obteve o título de mestre em educação – e a Universidade Stanford, em 1950. Além desses lugares, ele conheceu outras cidades americanas e europeias até o seu regresso ao Egito.

Dois anos depois de partir rumo aos EUA, Qutb publicou o relato de sua estadia na revista egípcia A mensagem ( al-Risala ), sob o título “América que eu vi” ( Amrika allati Raʾaytu ).21 A ideia inicial do texto era, aparente- mente, oferecer uma visão geral sobre como os EUA poderiam contribuir para o Egito de maneira que fosse conciliável com os valores islâmicos; entretanto, na conclusão o texto acaba por conduzir a um olhar crítico sobre as caracte- rísticas recorrentes da vida cotidiana do povo americano, de modo a evitá-las. Para Qutb, o modelo de vida patrocinado pela América, do seu “ponto de vista mais profundo”, era incompatível com a moralidade islâmica.

A monarquia egípcia, liderada pelo rei Farouk (1920-1965), possuía expectativas de que a comitiva que Qutb e outros intelectuais integravam ficasse impressionada com a cultura americana e retornasse ao Egito com um conjunto de habilidades educacionais “modernas” a serem aplicadas pelo governo. No entanto, a impressão negativa por parte de Qutb do estilo de vida americano resumiu o tom de sua experiência no exterior a partir dos estudos realizados no Colorado State College for Education. Além disso, para o pesar de parte da monarquia egípcia (1936-1952) e do governo posterior de Nasser (1954-1970), Quṭb escreveu ensaios críticos sobre o “Ocidente” e contrários aos regimes seculares que governavam o Egito e demais países do Oriente Médio, fundamentando-os a partir de sua experiência no Colorado.22

Em 23 de julho de 1952, um golpe de estado contra a monarquia egípcia foi orquestrado por um grupo de soldados que se autodenomi- navam “Movimento dos Oficiais Livres” ( Harakat al-dubbat al-ʾahrar ). Os participantes do golpe eram formalmente liderados pelo general Muhammad Najib (1901-1984), mas também era notório que Nasser se colocava como a principal força motriz por trás do grupo.

Para se ter um quadro da força e das consequências que as ideias produzidas por Qutb tiveram para o desenvolvimento da Irmandade Mulçumana, é necessário regressar a suas reflexões sobre a América. A partir daqui, concentro as minhas análises em dois pontos que visam resumir, da perspectiva de Qutb, o estilo de vida americano. Esse par será relevante para discutir não somente um conjunto significativo de ideias elaboradas pelo autor, mas, sobretudo, as proposições morais de ação para os muçulmanos, tendo como destaque o seu papel de reformador do Islã a partir do contexto egípcio.

Qutb cultivou, por um curto período, um certo encantamento pelos EUA, país que tinha se mantido afastado das aventuras coloniais que caracterizavam as relações europeias com o mundo árabe. Com o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a antiga divisão política entre colonizadores e colonizados seria superada do ponto de vista dos campos diplomáticos, em decorrência do novo mundo em formação. Não era um completo absurdo imaginar que os EUA pudessem representar um paradigma anticolonial a ser exportado para outras nações, tal qual ainda era o Egito percebido por Qutb: uma nação subjugada que vislum- brava ser libertada e sobrepujar seus antigos colonizadores britânicos.24 Segundo Qutb, o poder da América residia justamente no modo como os americanos se posicionavam diante de seus antigos colonizadores, e não nas antigas premissas europeias de superioridade racial-cultural e de classes privilegiadas. Além disso, a representação dos EUA como uma nação de imigrantes se traduzia em possibilidades de relações permeáveis com o resto do mundo. Não demorou muito para que árabes, assim como demais grupos étnicos, criassem suas próprias redes dentro deste novo país acolhedor e próspero do pós-Segunda Guerra Mundial, fazendo com que os laços de afinidade os aproximassem dos ideais que a América alegava defender.

Entretanto, essa América idealizada seria totalmente descon- truída por Qutb logo nos seus primeiros contatos com a dinâmica social americana. Nos seus trabalhos, ele descrevia os EUA como um país materialista, lascivo e racista, que discriminava negros e imigrantes não provenientes da Europa. As críticas iniciais feitas a esse modelo de vida apontavam para a necessidade de uma interpretação reformista do Islã em termos político-ideológicos, uma vez que isso permitiria, segundo seu ponto de vista, combater as injustiças promovidas pela América.

Antes mesmo da viagem, Qutb conjecturava sobre as ambigui- dades e (im)perfeições morais da população que em breve ele iria encontrar nos EUA.25 Alguns desses questionamentos baseavam-se na condição de ser muçulmano em um país radicalmente distinto do Egito, e podem ser percebidos nas seguintes indagações sobre as formas de comportamento a serem assumidas no encontro com esse Outro:

Devo ir para os Estados Unidos como qualquer estudante normal com uma bolsa de estudos, com que só se come e dorme, ou devo ser especial? […] Devo me ater às minhas crenças islâmicas, enfrentando as várias tentações pecaminosas, ou devo me entregar às tentações ao meu redor?26

Parte considerável dessas inquietações era sobre o modo como ele deveria lidar com as “tentações” do novo local de residência. Ele questionava se deveria resistir ou entregar-se a elas; o que mais lhe preocupava era saber se deveria se ater rigidamente às suas crenças islâmicas ou trocá-las pelo materialismo e pelo ilícito ( haram ) do “Ocidente”. Como ocorre com qualquer imigrante, esse embate inicial o forçava a definir a sua posição diante do novo mundo que ele experimentaria. E, conforme ele afirmou: “Decidi ser um verdadeiro muçulmano!”. Mesmo que isso afirmasse momentaneamente seu compromisso com o Islã, outros questio- namentos insistiam em persegui-lo: “Estou sendo honesto ou isso foi um mero capricho?”.27 Esse tipo de dualidade marcaria toda a análise das suas observações sobre o estilo de vida da sociedade americana.

O primeiro ponto do texto “América que eu vi” se refere ao papel do materialismo como produtor de efeitos nocivos para as sociedades. Esse entendimento estava associado principalmente ao fenômeno do individua- lismo praticado pelos americanos, conforme ele observava: “Aqui, neste lugar estranho, nesta enorme oficina que chamam de ‘o novo mundo’, sinto como se meu espírito, pensamentos e corpo vivessem na solidão”, escreveu Qutb a um amigo no Cairo. Mais tarde, ele registraria a mesma apreciação a um amigo dos tempos de Dar al-Ulum : “O que mais preciso aqui é de alguém com quem conversar […] conversar sobre outros temas além de dólares, astros do cinema, marcas de carros — uma conversa real sobre as questões do homem, filosofia e alma”.28 A questão material como parte da sociabilidade americana e marco primordial de todo o período dos “anos dourados” dos EUA seria minimizado por ele por meio da crítica sobre a prosperidade de um país não estar necessariamente atrelada ao seu desenvolvimento intelectual.

Na análise da centralidade moral que a dimensão econômica representava para a vida americana, Qutb observou que havia pouca diferença entre os sistemas comunistas e capitalistas. Segundo ele, ambos os regimes procuravam satisfazer apenas as necessidades materiais da humanidade, deixando de lado o “espírito humano”. Certa vez, ele chegou a estimar que, num futuro não muito distante, quando o traba- lhador comum deixasse de sonhar com a busca incessante da riqueza, os EUA poderiam se voltar ao comunismo. Mais adiante, concluiu que nem mesmo o Cristianismo seria capaz de bloquear essa tendência, uma vez que ela residia apenas no domínio do espírito, ou seja, “como uma visão num mundo ideal e puro”.29

O Islã, por outro lado, se apresentaria, segundo Qutb, como “um sistema completo”, contendo leis, códigos sociais, regras econômicas e o próprio método de governo. Nesse sentido, ele afirmava que somente a religião islâmica ofereceria uma fórmula capaz de criar uma sociedade justa baseada em sua cosmovisão de imanência divina ( al-kaynunah al-rabbaniya ). Nesta perspectiva, o mundo não poderia ser resumido a uma batalha entre capitalismo e comunismo. Para Qutb, a “luta pelo real”30 seria regida pelo embate entre o Islã e a ideologia materialista, independentemente dos nacionalismos assumidos.31

O materialismo americano era visto ainda pelo viés do tipo de desenvolvimento científico praticado no país, de acordo com Qutb. Ele compartilhava da premissa de que a ciência avançava a partir de um dinamismo fundamental e que esse movimento envolvia a acumulação perpétua de distintos conhecimentos. Entretanto, sua interpretação sobre a conduta científica americana não enxergava perspicácia nos usos e na ênfase na ciência aplicada, tão propalada no país durante sua estadia.

Na visão de Qutb, esse ambiente acabaria por deformar o caráter dos homens. “Na América, o homem nasceu com a ciência, mas acreditava somente nela”,32 escreveu. Para ele, a origem desse dilema era o grau de individualismo empregado na sociedade dos EUA para atingir determi- nados fins; aliás, essa seria toda a fonte de corrupção entre os americanos desde a fundação do país: “Porque eles [americanos] trouxeram uma mistura de descontentamento com a vida do Velho Mundo e o desejo de se libertar de suas tradições rígidas, fossem tradições onerosas, corruptas ou sãs e necessárias”.33 Em contraposição, ele acreditava que a religião islâmica era o único agente social capaz de combinar as benesses advindas da ciência produzida pela humanidade e o desenvolvimento da dimensão humana.34 Esse pensamento seria a base de muitas interpretações poste- riores sobre o “primitivismo americano”.

Segundo Qutb, o tipo ideal de sujeito social com base na dimensão humana encarnado pela população dos EUA era muito limitado, mesmo que, conforme alegava, “no caso da América, o homem primitivo [cidadão] está armado com a ciência, com a qual nasceu e que guiou seus passos”.35 A crítica dele se voltava ao uso desse “poder” pelos ameri- canos enquanto força promotora de bem-estar coletivo, uma vez que “a ciência em si mesma, e especialmente a ciência aplicada, não desem- penha nenhum papel no campo dos valores humanos, ou no mundo da alma e dos sentimentos”.36 Nesse sentido, ele afirmava que a crença dos EUA no valor do tecnicismo, apoiada apenas na dimensão material, seria a responsável, num futuro próximo, pela decadência da sociedade.

Um exemplo desse uso da ciência por Qutb era a transformação da natureza pelo emprego da força física: “Eles [americanos] enfrentaram a natureza com as armas da ciência e a força dos músculos, de modo que nada existia neles além do poder bruto da mente e do desejo avassalador pelo prazer sensual”.37 Esse prazer em si, centrado e mobilizado pelo uso do corpo, serviria de contraponto para analisar as interações sociais que constituíam o estilo de vida americano.

Em primeiro lugar, Qutb reconheceu a natureza dos americanos como um povo aguerrido, que se referenciavam na guerra como um valor moral. Nas suas palavras, “o americano é, por sua própria natureza, um guerreiro que adora combater. A ideia de combate e guerra corre forte em seu sangue”.38 Entretanto, ele enxergava uma ambivalência nessa repre- sentação. Ao mesmo tempo que os americanos enfatizavam a vitalidade de seus corpos, o mero culto corporal era, em si, uma fonte de moralidade: “A vitalidade física é sagrada para o americano, e a fraqueza, não importa qual seja sua causa, é um crime”.39 Para Qutb, ao contrário, a concepção de um corpo desconectado de qualquer projeto ou desenvolvimento intelectual não seria aceitável.

Em segundo lugar, mesmo que o recurso à brutalidade fosse uma representação indelével dos americanos, seu uso era minimizado, segundo Qutb, em favor de um valor mais importante para a vida social americana: as relações econômicas. Ele descreveu a “obsessão” pela materialidade dos americanos da seguinte forma:

Percebe-se que o americano é primitivo em decorrência de sua apreciação da força muscular e da força da matéria em geral. No que parece, ele negligencia princípios, valores e maneiras em sua vida pessoal, familiar e social, exceto no campo do trabalho e nas relações econômicas e monetárias.40

De todos os temas tratados envolvendo a ideologia materialista e o uso da força física nas diversas situações da vida social nos EUA, o futebol americano foi aquele que adquiriu centralidade nas considerações de Qutb sobre o grau de “primitivismo” associado às condutas morais da população. A partir dele, o valor corporal mobilizado pelos americanos fincaria seu pilar enquanto “cultura espúria”, a partir da qual o culto à violência revelaria a face mais obscura dos EUA, um país até então tido por todos como “moderno”.

Ao contrário, cada jogador tenta pegar a bola com as mãos e correr com ela em direção ao gol, enquanto os jogadores da equipe adver- sária tentam atacá-lo de qualquer maneira necessária, seja por meio de um golpe no estômago ou esmagando os braços e pernas com muita violência e ferocidade. A visão dos fãs enquanto seguem esse jogo, ou assistem a partidas de boxe ou sangrentas e monstruosas “lutas livres” […] é uma excitação animal nascida de seu amor pela violência intensa. Sua falta de atenção às regras e ao espírito esportivo, na medida em que eles estão encantados com o sangue que flui ou demais membros esmagados, chorando alto e todos torcendo por seu time. Destrua a cabeça dele. Esmague suas costelas. Bata-o com um golpe. Esse espetáculo não deixa dúvidas quanto ao primitivismo dos sentimentos daqueles que se apaixonam pela força muscular e a desejam.41

A visão de Qutb sobre os Estados Unidos era a de “um primiti- vismo que lembra as eras das selvas e cavernas”.42 Para ele, as reuniões sociais contemplavam somente conversas superficiais. Qutb costumava dizer que, embora os americanos lotassem museus e concertos, não era porque adorassem ir lá para ver ou ouvir algo, mas sim, por suas necessi- dades frenéticas e narcisistas de serem vistos e ouvidos.

A demasiada informalidade estética dos vestuários americanos também incomodava Qutb. Certa vez, ele registrou:

O primitivismo dos gostos não pode ser ilustrado com mais clareza do que a partir dessas cores berrantes e barulhentas e elaborados por meio de padrões grandes, um leão ou um tigre pulando no peito, um elefante ou boi selvagem prostrando nas costas, uma garota nua esticada em uma gravata de cima para baixo, ou uma palmeira que sobe de baixo para cima.43

Na visão de Qutb, esses exemplos indicavam o grau de materia- lismo da população. Entretanto, o materialismo não superava o caráter individualista presente nas interações sociais. Aqui, a forma de lidar com a temática da morte e as referências jocosas sobre falecidos causavam-lhe aversão. Uma vez, enquanto visitava o hospital George Washington, ele presenciou os comentários sobre o estado de um funcionário do próprio hospital que se ferira em um acidente no elevador. O estado crítico de saúde o levaria à morte horas depois, porém, o que chamou a atenção de Qutb neste episódio foi o fato de um dos pacientes da ala caminhar para ver, por si mesmo, o estado lamentável do funcionário. Assim que terminou de espiá-lo, ele saiu para compartilhar o que vira com os demais colegas, que estavam reunidos no corredor.

Aqui estava esse americano que começou a rir e a rir enquanto imitava a aparência do homem ferido e moribundo, e a maneira como seu pescoço foi atingido pelo elevador, sua cabeça esmagada e sua língua pendurada na boca ao lado do rosto! Eu esperei ver sinais de nojo ou desaprovação por parte dos ouvintes, mas a grande maioria deles começou a rir alegremente com esse ato odioso.44

Outra situação contada por um amigo e que lhe causou estra- nhamento refere-se ao modo como as pessoas se comportavam, na sala de recepção de um funeral, com os familiares do morto. Qutb narrou a impressionante falta de respeito quando todos os que estavam ali começaram a zombar e a fazer piadas sobre o falecido e demais indivíduos presentes. Ele destacou a sua consternação em saber que a própria esposa do finado, bem como outros membros da família, riam sobre a situação ao lado do corpo.

À medida que ampliava sua rede pessoal de contatos, novos relatos se incorporavam a suas reflexões. Um dia, um conhecido que ocupava o cargo de diretor de bolsas do governo egípcio e sua esposa foram convi- dados para uma festa em Washington, mas ela adoeceu. O amigo de Qutb julgou melhor ligar e se desculpar por não comparecer à festa em razão da enfermidade da cônjuge; contudo, os anfitriões americanos responderam que as desculpas não eram necessárias, já que ele poderia comparecer sozinho. Para os anfitriões, isso não se constituiria num problema, já que uma das mulheres convidadas, que perdera recentemente o marido, também estaria sozinha. Conforme afirmou: “Ela, portanto, estaria sozinha lá, então era sua boa sorte que agora ela pudesse ter um companheiro!”.45 Qutb partilhou ainda sua própria experiência envolvendo uma

mulher que o ajudava com o inglês nos primeiros tempos de sua estadia na América. Ele contou ter ouvido a seguinte sentença proferida pela amiga dela, antes de sua saída da casa: “Tive sorte porque fiz um seguro de vida dele. Mesmo o tratamento custou muito pouco porque eu o havia segurado com a Blue Cross [nome da companhia de seguro]”.46 Após a fala, Qutb descreveu o sorriso esboçado pela amiga. Mais tarde e a sós com a interlo- cutora, disse ter presumido que a amiga dela comentara sobre o cachorro, e confessou, inclusive, que ficara surpreso pelo fato dela não demonstrar nenhum sinal de angústia com a morte do animal de estimação. Só mais tarde ele seria informado de que a mulher falava sobre o próprio marido, que havia morrido há três dias.

Essa conjuntura “insensível”, do ponto de vista de Qutb, expressaria os efeitos do materialismo e individualismo praticados pelos americanos. Cabe destacar que não eram apenas as interações da vida social que resumiam os impactos nocivos descritos por ele sobre a América. A dimensão religiosa dos EUA seria igualmente permeada por essas duas caraterísticas.

Qutb afirmou que o país tinha poucos religiosos nas igrejas, haja vista sua baixa frequência durante o dia e ao longo da semana. Ademais, ele caracterizaria as igrejas americanas muito mais como espaços de entrete- nimento do que como locais de culto ou devoção. O que mais lhe chamou a atenção inicialmente foi o modo como os americanos usavam as mulheres para atrair as pessoas para os espaços religiosos, visto que, segundo ele, “não há escrúpulos em usar as garotas mais bonitas e graciosas da cidade, envolvê-las em música, dança e publicidade”.47 Além disso, ele destacou o perfil mercadológico e frívolo das igrejas, fosse pela importância dada às relações econômicas na vida religiosa, fosse pela constatação de que se realizavam atividades banais nesses espaços, tais como “lanches, jogos mágicos, quebra-cabeças, concursos e diversão”.48

Não há nada de estranho nisso, pois o pastor não sente que seu trabalho seja diferente do de um gerente de teatro ou de um comerciante. O sucesso está em primeiro lugar, antes de tudo; os significados não são importantes, visto que esse sucesso refletirá nele com os seguintes bons resultados: dinheiro e estatura. Quanto mais pessoas se juntarem à sua igreja, maior será sua renda. Da mesma forma, seu respeito e reconhecimento são elevados na comunidade, porque o americano, por sua natureza, é tomado com grandeza em tamanho e número. É a primeira medida que ele sente e avalia.49

Duas situações relacionadas às igrejas ainda seriam destacadas por Qutb: a transformação do espaço de uma igreja para sediar uma festa, à noite, para um grupo de jovens, consentida e com o suporte da autoridade religiosa local; e os comentários recorrentes de pastores sobre a impor- tância da presença de mulheres atraentes em suas comunidades religiosas. Sobre esses registros, Qutb propunha a seguinte reflexão: “Mas nenhum deles se pergunta: qual é o valor de atraí-los para a igreja, quando eles se apressam dessa maneira e passam o tempo dessa maneira? A frequência à igreja é uma meta em si mesma? Não é para a edificação de sentimentos e comportamentos?”.50 Assim, nem mesmo a perspectiva religiosa da América poderia proporcionar algum tipo de amadurecimento ao homem americano, tendo em consideração o nível de “primitivismo” associado ao seu modo de entendimento das relações humanas.

O segundo ponto a ser ressaltado na publicação “América que eu vi” se refere às meditações de Qutb sobre a sexualidade. Sem dúvidas, esse é um dos temas mais recorrentes do texto. O autor conta que uma vez um ascensorista se ofereceu para ajudar ele e um de seus amigos a encontrarem um “entretenimento” na cidade, incluindo na conversa a busca pelo ato sexual. O sujeito aproveitou a oportunidade para contar o que acontecia em alguns “daqueles quartos”, que podiam abrigar casais de rapazes ou moças. Muitos, segundo o funcionário, o interpelavam para que garrafas de coca-cola e bebidas alcoólicas fossem enviadas ao recinto. Uma vez lá, as pessoas não se importavam com a presença dele, já que não mudavam de posição quando ele entrava. Perguntado por Qutb se não sentiam vergonha, o ascensorista retrucou: “Por quê? Estão apenas se divertindo, satisfazendo seus desejos particulares”.51 Relatos como esse formariam a maioria das impressões de Qutb sobre o estilo de vida sexual dos americanos.

A ideia de um corpo que pudesse exercer uma sexualidade plena lhe causava incômodos morais. Sobre o recurso da força física para empreender os desejos humanos, Qutb observou que entre os americanos “as moças encontram os rapazes e, pela força do corpo e de seus músculos, o rapaz obtém a submissão da moça. Assim o marido obtém seus direitos, e esses direitos desaparecem completamente no dia em que o marido falha em ‘executá-lo’, por um motivo ou outro”.52 Esses atos licenciosos eram percebidos por ele como o reflexo de uma sociedade na qual a temática sexual beirava a banalidade, uma vez que as “relações sexuais sempre se conformaram às leis da selva”.53 Mais do que isso, existiria uma relação entre controle do desejo sexual e a emergência de processos civiliza- tórios, já que ele reiterava que “controlar esses desejos é uma prova da liberdade da escravidão e de ir além dos primeiros degraus da evolução da humanidade, e que um retorno à liberdade da selva é uma escravidão envolvente e uma recaída aos primeiros níveis primitivos”.54

Qutb também estava familiarizado com o célebre “Relatório Kinsey”, que data do mesmo período de sua chegada aos EUA – tendo-o mencionado em textos posteriores para ilustrar sua visão sobre os ameri- canos como um povo “primitivo”.55 “Um rebanho impulsivo e iludido que só conhece a luxúria e o dinheiro”,56 disse ele numa ocasião. Com base nesse estudo, Qutb questionava a surpresa diante dos altos índices de divórcio na população, afirmando que isso já seria de se esperar numa sociedade na qual “cada vez que um marido ou esposa observa uma nova personalidade cintilante, investe em sua direção como se fosse uma moda nova no mundo dos desejos”.57 Aqui, novamente, observa-se a tese de que os efeitos provo- cados pelo materialismo e pelo individualismo seriam nocivos aos países que desejassem incorporar os valores “modernos” da América.

Em sua busca por entender melhor a centralidade da temática do sexo no país, Qutb obteve a seguinte resposta de uma aluna de seu centro acadêmico: “a questão da relação sexual é simplesmente biológica”.58 Ainda que o recurso à biologia fosse um caminho recorrente para repre- sentar os impulsos humanos entre os americanos, ele insistiu na temática, desenvolvendo uma enquete entre mulheres (professora e alunas) para explorar mais o assunto. Ao questionar uma professora, recebeu com espanto a resposta:

Vocês, orientais, complicam esse assunto simples introduzindo um elemento moral. O garanhão e a égua, o touro e a vaca, o carneiro e a ovelha, o galo e a galinha – nenhum deles pensam nas consequências morais quando realizam relações sexuais. E, assim, a vida continua, simples, fácil e despreocupada.59

O status social desta mulher, como professora, tornava as suas palavras, na opinião de Qutb, um fator subversivo, já que ela contribuiria para a “destruição” de gerações de jovens por meio de uma filosofia “amoral”.

Somando-se a essa lista de exemplos extraídos das interações sociais americanas nas quais o corpo figurava numa posição proeminente, Qutb escreveu que “o garoto americano sabe muito bem que um peitoral largo e apertado define uma atração que não pode ser negada por nenhuma garota, e que seus sonhos não caem tanto sobre ninguém quanto caem sobre os cowboys”.60

Ainda sobre esse assunto, ele relatou os desejos de uma jovem enfermeira de um hospital, que, ao invés de idealizar a figura de um “homem perfeito”, preferia a companhia de dois braços fortes com os quais pudesse realmente contar um dia. Em outra circunstância, ele se consternou diante das preferências femininas pela “por rapazes com ‘músculos de boi’”.61 As informações eram referentes a uma enquete realizada pela revista Look com várias jovens de diferentes idades, níveis de educação e classes sociais.

Cabe ainda mencionar que, segundo Qutb, nem mesmo os espaços religiosos ficavam livres dessa “cultura espúria” americana. O episódio narrado por ele procura dar conta de um baile organizado numa igreja, perto do centro acadêmico que frequentava. Ele já tinha visitado mais de cinquenta igrejas em Greeley quando, numa noite de domingo, após a realização das refeições locais, uma delas revolveu promover um baile. Conforme seu relato, o salão de dança foi decorado com luzes amarelas, vermelhas e azuis. Após algum tempo, “eles dançavam ao som do gramofone, e a pista de dança estava repleta de pés batendo, pernas atraentes, braços abraçavam cinturas, lábios encontravam lábios e peitos encontravam peitos. A atmosfera era cheia de desejo”.62 O que chocava Qutb era o ar de aprovação demonstrado pelo pastor da congregação, que, inclusive, estava encarregado de criar o efeito de uma atmosfera romântica a partir do controle da luminosidade do local. O pastor observava o ritmo da comunidade que dançava uma faixa musical famosa entre os jovens daquele verão (Baby, it’s cold outside), antes de ir embora “deixando os homens e as mulheres para aproveitar esta noite com todo o seu prazer e inocência!”, concluiu Qutb, com sarcasmo.63

Não somente a dança era uma fonte de julgamentos morais por parte de Qutb. Outras dimensões estéticas americanas também seriam alvo de suas predileções analíticas, tais como a música e o cinema. No caso específico do jazz, um gênero musical que se encontrava em plena expansão no mundo – vide o estilo Bebop –, tratava-se de um item primordial do “primitivismo americano”. Aliás, Qutb não se preocupou em esboçar comentários raciais negativos sobre as influências do jazz para a juventude no país. Nas seguintes palavras, ele resumiu o impacto desse gênero musical na sociedade:

É essa música que os selvagens bosquímanos criaram para satis- fazer seus desejos primitivos, seu desejo de barulho, por um lado, e a abundância de ruídos de animais, por outro. O prazer do jazz pelo americano não começa completamente até que ele o junte para cantar por meio de gritos grosseiros. E quanto mais alto o barulho das vozes e dos instrumentos, até que soe nos ouvidos em um grau insuportável, maior a apreciação dos ouvintes. As vozes de apreciação são elevadas e as palmas das mãos são erguidas em aplausos contínuos que podem ensurdecer os ouvidos.64

O conjunto desses relatos sobre os americanos contrasta com a visão idílica da América como a “Terra Prometida”. Para um visitante recém-chegado, os recursos materiais e a mão de obra disponível justifi- cavam, por exemplo, as fábricas, institutos, laboratórios e museus erguidos como novos símbolos de poder. Além disso, princípios de administração e organização condicionavam os avanços nos rendimentos da população durante o período dos “anos dourados”, em nome de uma suposta genero- sidade e prosperidade para aqueles que participassem dos “sonhos” desta nação. A própria América evocava esses “prazeres que não reconhecem limites ou restrições morais, sonhos capazes de tomar forma corporal no domínio do tempo e do espaço”, segundo Qutb.65

Mesmo que todas essas “conquistas” fossem reconhecidas por Qutb, o balanço da viagem à América, em termos de alteridades, indicou o exercício reflexivo do autor,66 que procurou ir além das meras descrições sobre a religião, ciência e tecnologia ou vida cultural americana. Decerto, o Islã constituiu um sistema de pensamento que preconiza uma concepção de totalidade sobre a vida social, por meio das formas assumidas historica- mente, sobretudo, a partir do contato com o Outro.67 No caso de Qutb, sua trajetória pessoal desde os tempos de Dar al-Ulum permitiu que o ativista questionasse o papel da América enquanto um modelo a ser replicado em outras nações: “Qual é o seu valor na escala dos valores humanos? E o que isso acrescenta ao relato moral da humanidade? E, no final da jornada, qual será sua contribuição?”.68

A objetificação dos conteúdos apresentados durante a estadia de Qutb nos EUA expressa a desconfiança e desaprovação moral sobre os americanos. Ademais, ele considerava o modo como a América entoava seus ideais como um elemento de risco aos valores essenciais do Islã. Qutb resumiu assim a sua reflexão inicial sobre a aptidão dos americanos quanto à promoção de formas civilizacionais compatíveis com o conjunto das coletividades humanas no pós-Segunda Guerra Mundial:

Receio que não exista um equilíbrio entre a grandeza material da América e a qualidade de seu povo. E temo que a roda da vida tenha mudado, o livro do tempo tenha fechado e a América não tenha acres- centado nada, ou quase nada, ao relato da moral que distingue o homem do objeto e, de fato, a humanidade dos animais.69

Um processo civilizatório, para Qutb, não se encerra em si, a partir da capacidade de impulsionar os recursos que conduzem à criação, organização e reprodução apenas em termos de materialidade. Para tal empreendimento, não se pode menosprezar o papel histórico e, por vezes, psicológico, segundo ele, que um determinado povo adquire nesta dinâmica. No caso americano, o seu estado se encontrava “deformado”, haja vista a presença desses elementos entre os seus pais fundadores. De acordo com Qutb, já estava difundido entre eles “um desejo duradouro de riqueza, por qualquer meio, e pela posse da maior parte possível de prazeres e compensação pelo esforço despendido para adquirir riqueza”.70 Nesse sentido, a noção de civilização de Qutb consiste num projeto que visa alcançar um ideal desde os primórdios, em oposição a um tipo de racionalismo utilitarista que calcula suas realizações a partir do afasta- mento de suas tradições constituídas.71

O conjunto dessas problemáticas apresentadas por Qutb é paralela ao contexto ideológico desenvolvido pela Irmandade Muçulmana que separava o “Islã” do “Ocidente”. O processo de objetificação empreendido por Qutb convergiu para o reconhecimento – seguindo o movimento de todos os reformadores islâmicos do século XIX – da “queda do Islã” como um processo civilizatório. A necessidade de um renascimento que outrora já havia sido vislumbrado72 permaneceu como um horizonte durante a sua estadia nos EUA. Além disso, o grau em que essa condição se verificava entre seus compatriotas egípcios apontava para o período corrente de desunião entre os muçulmanos, e para a sua incapacidade de elaborar uma saída própria, longe da importação de modelos ou ideais advindos das potências imperialistas.

Por outro lado, as visões sobre as práticas imperialistas e os modelos de democracia presentes no “Ocidente” permitiram um ponto de contato entre o cenário das controvérsias levantadas por Qutb e as ideias políticas advogadas pela Irmandade Muçulmana. Como salientou certa vez Richard Mitchell, esse movimento social reconhecia nas potências imperialistas uma força que tanto espalhou o “desânimo e a derrota moral” quanto desviou os egípcios de sua religião tradicional para “um pacifismo morto, humilhação subserviente e aceitação do status quo”.73 Esse posicionamento tinha implicações nos próprios entendimentos sobre a relação entre democracia e corrupção dos indivíduos e, portanto, das sociedades. Nas palavras de Qutb, o “individualismo” conduzia à licenciosidade, colocava os homens e as classes contra uns contra os outros e promovia a “irresponsabilidade moral”, a “degeneração” e o “caos social”. Num outro plano, a democracia se tornava sinônimo de capitalismo, com sua base exploradora de usura legalmente reconhecida pelos governos locais. Por fim, a dinâmica do materialismo da maior democracia do Ocidente (EUA) marcava os esforços perigosos dessa nação em exportar o seu modelo civilizacional para outros povos com base numa suposta ideia de promoção de igualdade e justiça social. Para Qutb, a América seria somente a defensora e líder do “império do homem branco”.74

Para além disso, a tensão resultante da defesa da superioridade moral dos muçulmanos diante do poder econômico, militar e educacional da América seria a responsável pela criação de algumas outras objetifi- cações elaboradas por Qutb em concordância com o contexto ideológico vivido pelos membros da Irmandade Muçulmana. Para o principal líder do movimento (al-Banna), por exemplo, a ideia de corrupção do Islã era entendida como consequência direta dos impactos da “civilização ocidental” sobre as populações de maioria islâmica. A representação essencializada do “Outro” se reproduzia no olhar de Qutb sobre os Estados Unidos a partir de três dimensões.

Em primeiro, a desilusão com a América foi retratada a partir do seu testemunho das formas de corrupção derivadas do materialismo “ocidental”. Num certo sentido, essa experiência possuía similitudes com os modelos colonialistas europeus já vivenciados por ele em seu país. Assim, o texto “América que eu vi” de Qutb somava-se à linha de interpretação desenvolvida pela Irmandade Muçulmana, tal qual o seu fundador (al-Banna) havia registrado sobre as forças de intervenção inglesa no Egito.

Em segundo, a descrença na capacidade dos americanos de levarem o processo civilizatório aos muçulmanos conduziu Qutb a reafirmar o papel do Islã como um sistema total, completo em si mesmo e, como árbitro final da vida em todas as suas categorias, aplicável a todos os tempos e lugares. No mais, a ênfase no plano moral da religião islâmica permitiu que Qutb consolidasse o seu ceticismo sobre as reais contribuições dos EUA no campo da promoção de virtudes éticas compatíveis com o Islã.

Por fim, a dúvida de Qutb sobre o modelo de “sucesso civiliza- tório” da vida social na América se transformou para ele na incredulidade acerca das velhas estruturas políticas do Egito. Após refletir sobre o tipo de materialismo encontrado na América, o olhar de Qutb sobre as inconsistências das políticas desenvolvidas pelos partidos políticos de sua época (especialmente o Wafd ) estabeleceu uma crescente descon- fiança quanto às formas tradicionais de solucionar os dramas de seu país. Esse posicionamento se justificava devido às contínuas referências aos países ocidentais (EUA por parte de Qutb e Reino Unido por parte da Irmandade Muçulmana) como exemplos de racionalização e organização da vida social. No entanto, essas referências tinham limitações em virtude das questões morais associadas ao desenvolvimento desses projetos para a implementação de transformações reais na sociedade. Neste contexto, as práticas advindas das potências imperialistas e do governo egípcio vigente fundiam-se e tornavam-se o mesmo problema aos olhos de quem questionava as fontes de suas autoridades.

Considerações finais

O panorama retratado por Qutb de sua estadia na América possuía dois eixos: a representação dos EUA como um país capaz de realizar feitos importantes, como no caso dos avanços científicos desenvol- vidos, mas desde que se minimizasse o papel do tecnicismo aplicado; e o perigo contido nas sociabilidades e interações sociais desprovidas de moralidade, que poderiam colocar em risco os valores do Islã na construção de suas bases enquanto um projeto civilizacional. Quanto ao primeiro, a ambivalência dos EUA colocava a questão de uma vigilância constante sobre os valores que difundiam, já que para a humanidade “se beneficiar do gênio americano, eles [países árabes] devem adicionar uma grande força à força americana. Mas a humanidade comete o mais grave dos erros e corre o risco de perder sua consideração moral, se faz da América o exemplo de sentimentos e maneiras”.75 Já a racionalidade técnica – algo vital para os países árabes naquele momento –, segundo Qutb, necessitaria de uma incredulidade moral. Isso porque, na América, o que importava eram “as virtudes da produção e organização, e não as da moral humana e social. As da América são as virtudes do cérebro e da mão, e não as do paladar e da sensibilidade”.76

Se a viagem ensaia os relatos e as formas simbólicas que se mesclam entre o viajante e o narrador (no caso, o espaço e o tempo) e, mais do que isso, “se esses relatos e essas formas são conduzidos por um discurso que insere a subjetividade na objetividade do real, do histórico, do social e do político”77 por parte de seu autor, a América para Qutb consistiu em uma “alteridade radical”78 ou seja, “inassimilável, incompreensível e mesmo impensável”.79 Em dezembro de 1949, por exemplo, as cartas escritas por ele aos amigos mudaram de tom. O termo “alienação” diante do Outro surgia para descrever seu estado de “alma e corpo”. Posteriormente, ele tomou a decisão de abandonar todos os cursos.

Qutb ainda passaria mais oito meses nos EUA, a maior parte no estado da Califórnia. O país que se desenhava diante dele era bem diferente da visão promovida pelos americanos. Para ele, tanto na literatura quanto no cinema, e em especial na televisão, os árabes se retratavam como sexualmente curiosos, mas inexperientes, enquanto os EUA se asseme- lhavam mais ao país delineado pelo Relatório Kinsey.

Do ponto de vista religioso, o país era entendido como um “deserto espiritual”, mesmo que houvesse uma ilusão aparente em decorrência da proliferação de igrejas, publicação de livros e organização de festas e eventos religiosos no espaço público. Qutb sustentava que a verdadeira divindade americana era o materialismo. “A alma não tem valor para os americanos”, escreveu a um amigo. “Uma dissertação de doutorado trata do melhor meio de lavar a louça, que parece mais importante para eles do que a Bíblia ou a religião”.80 Essa consideração seria corroborada, anos mais tarde, pelos movimentos de contracultura, tais como beatniks e hippies , por meio do tema da alienação da América.

A viagem, portanto, não surtiu o efeito tão desejado que os amigos e demais burocratas no Egito esperavam. Em vez de buscar dialogar com as expressões liberais na temporada em que esteve nos EUA, Qutb esfor- çou-se por interpretar o Islã aproveitando-se do contexto reformista em voga nas sociedades de maioria muçulmana do início do século XIX até as últimas décadas do século XX. O conjunto dessas impressões negativas, quando publicadas, se somaria a outros relatos que contribuíam para moldar a percepção árabe e muçulmana sobre o panorama pós-Segunda Guerra Mundial, numa época de grande apreço aos EUA e seus valores.

De fato, a preocupação central de Qutb era com a “modernidade”, conforme entendida no contexto americano àquela época. Segundo ele, noções como secularismo, racionalidade utilitarista, subjetividade individualista, papeis de gêneros, tolerância com formas decadentes e, principalmente, materialismo como um fim em si mesmo foram introduzidos nas sociedades árabes durante a colonização europeia. Os EUA os apresentavam novamente, e de maneira exponencial. Posteriormente, essa polêmica se apresentaria nos seus escritos reformistas direcionados aos egípcios que desejavam compatibilizar tais valores com o Islã.

Uma leitura literal das obras de Qutb serviu para que autores interessados nas sociedades de maioria islâmica desenvolvessem a tese, por exemplo, de que o “Islã” e a “modernidade” seriam incompatíveis.81 Após os acontecimentos do dia 11 de setembro de 2001, em Nova York, essa tese reapareceu sob os mais variados formatos.82 De fato, o que existe é uma complexa rede de relações envolvendo processos religiosos e programas de modernidade já ocorridos em múltiplos contextos que formam o Oriente Médio.83 Apesar de não corroborar a tese da incompati- bilidade entre a religião islâmica e o “projeto de modernidade ocidental”, Qutb possuía uma visão estática, fundamentada na homogeneização de distintas formas assumidas pelo “Islã” historicamente.84

Para evitar tais dilemas, o estudo da objetificação tal qual apresentada nos escritos de Qutb torna-se capaz de superar as duas situações. Primeiro porque indica que não se pode tomar a religião islâmica como um bloco homogêneo, ignorando as particularidades locais. E, em segundo lugar, impede-se uma idealização do Islã, tomando-se como referência não somente o período de vida do Profeta ou as suas fases de expansão e consolidação rumo a outros territórios, mas também o encontro histórico85 e literário86 com o Outro.

Sayyid Qutb é retratado como um pensador e ativista islâmico importante para o desenvolvimento do Islã Político (al-islam al-siyasi) – colocado algumas vezes, inclusive, num papel equivalente ao exercido pelo aiatolá Ruhollah Khomeini (1902-1989), durante a Revolução Iraniana, no final da década de 1970. Entretanto, o processo temporal contemplado neste texto apresenta muito mais um sujeito em formação do que uma figura de autoridade religiosa, capaz de responder aos apelos de seus contemporâneos na resolução de questões pertinentes ao futuro da religião (al-din) ou, como muitas vezes o próprio Qutb indicou, de suas formas civilizacionais. De qualquer modo, a “alteridade radical” com a América o forçaria a ir além da reprodução contrastiva em termos cogni- tivos. As objetificações iniciais emergiriam para formar, mais tarde, um conjunto de afirmações e proposições para o desenvolvimento de novas formas de interpretação do Islã, bem como para as condutas daqueles que desejassem fazê-lo convergir com outras moralidades.

Notas

1 Sayyid Qutb, “The America That I Have Seen” in Kamal Abdel-Malek (org.), America in an Arab Mirror. Images of America in Arabic Travel Literature: An Anthology: An Anthology 1895-1995 (Nova York: St. Martin’s Press, 2000), p. 10. Todas as traduções, seja em inglês, seja em árabe, foram feitas por mim.
2 O grupo dos Irmãos Muçulmanos (Jamiat al-Ikhwan al-Muslimun) , também conhecido como Irmandade Muçulmana, foi fundado em 1928 por Hassan al-Banna (1906-1949). A situação de dependência colonial do Egito em relação à Inglaterra levou o fundador do grupo a rejeitar os modelos políticos europeus, como a democracia liberal, uma vez que eles não trariam uma “verdadeira” independência para o país. Como resposta a essa condição, al-Banna propunha um movimento social que mobilizasse os egípcios em torno do Islã e criasse as bases para a construção de uma “verdadeira liberdade” diante do modelo colonial britânico. Essa mobilização teria como finalidade a produção de um quadro político-institucional dentro do qual os muçulmanos poderiam viver de acordo com os seus valores. Assim, o projeto dos Irmãos Muçulmanos seria marcado por um discurso de autenticidade cultural expresso através do Islã, que seria construído em oposição à cultura “estrangeira”, trazida para o Egito por meio do contato colonial com a Europa.
3 Entendo o termo religião tal qual assumido por Talal Asad, que o definiu como uma categoria antropológica que tem por base um processo histórico e transcultural e de exercício do poder. Sobre isso, ver: Talal Asad, Genealogies of Religion: Discipline and Reasons of Power in Christianity and Islam , Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1993.
4 Destaco as seguintes publicações: “A justiça social no Islã” ( al-Adalah al-ijtima’iyyah fi al-Islam ) de 1949; “Batalha entre Islã e capitalismo” ( Ma’rakat al-Islam wa al-Ra’s Maliyya ) e “A paz mundial e o Islã” ( al-Salam al-‘Alami wa al-Islam ), ambos de 1951; “Estudos Islâmicos” ( Dirasat Islamiyya ) de 1953; “À sombra do Alcorão” ( Fi Zilal al-Qur’an ), publicado inicialmente em 1954; “Esta religião é o Islã” ( Hadha al-Din ), “O futuro desta religião” ( al-Mustaqbal li-hadha al-Din ) e “O Islã e os problemas da civilização” ( al-Islam wa Mushkilat al-Hadara ), publicados provavelmente depois de 1954; “Características e valores da conduta islâmica” ( Khasais al-Tasawwur al-Islami wa Muqawamatuhu ) de 1960; e “Sinais na estrada” ( Ma’alim fi al-Tariq ) de 1964.
5 O termo compreende uma corrente religiosa que objetiva fazer do Islã e do uso da lei islâmica ( sharia ) um modelo político alternativo à noção de democracia proveniente do “Ocidente”. Por existirem diferentes visões concorrentes no campo político-reli- gioso, o que se define como Islã Político não constitui um movimento uniforme, pois os significados e as ações associados a cada uma de suas manifestações públicas têm variado de acordo com o contexto cultural elaborado. As teses de François Burgat, Gilles Kepel e Olivier Roy constituem um esforço de compreender esse fenômeno não somente nos países de maioria islâmica, mas, inclusive, fora deles: François, Burgat, Islamism in the Shadow of al-Qaeda , Austin: University of Texas Press, 2008; Gilles Kepel, Le Prophète et Pharao , Paris: La Découverte, 1984; Olivier Roy, The Failure of Political Islam , Cambridge: Harvard University Press, 1994.
6 Aaron Hagler, “The America That I Have Seen: The Effect of Sayyid Qub’s Colorado Sojourn on the Political Islamist Worldview”, Religion in the Rocky Mountains & Great Plains Conference , Denver, 2013 .
7 Dale Eickelman e James Piscatori, Muslim Politics , Princeton: Princeton University Press, 1996.
8 Eickelman e Piscatori, Muslim Politics , p. 38.
9 Bruno Latour descreveu a história ideológica do desenvolvimento da “razão ocidental” por meio da crítica de seu efeito ilusório. O autor afirma que esse ideal jamais chegou a penetrar, nem mesmo na totalidade, o que se convencionou a definir como “Ocidente”. Neste sentido, compreendo operacionalmente a Modernidade como um discurso ou projeto que objetiva institucionalizar vários princípios, às vezes, confli- tantes e frequentemente em transformação. Sobre isso, ver: Bruno Latour, Jamais fomos modernos: ensaio de Antropologia simétrica , Rio de Janeiro: Editora 34, 1994; Talal Asad, Formations of the Secular: Christianity, Islam, Modernity , Stanford: Stanford University Press, 2003.
10 Para fins analíticos, a viagem de Qutb deve ser enquadrada a partir dos impactos produzidos pelo colonialismo europeu ao longo dos séculos XIX e XX nos conti- nentes africano e asiático. Num primeiro momento, as populações subjugadas foram silenciadas, depois, adquiriram um ilusório senso de pertencimento nacional instigado por seus representantes, que aceitaram os termos da dominação colonial. Sobre isso, ver: François Burgat, L’Islamisme en face , Paris: La Découverte, 1995. O processo de objetificação vivenciado por Qutb faz parte de um conjunto de relações histori- camente específicas e de processos discursivos sobre o Islã. Sobre isso, ver: Asad, Genealogies of Religion , p. 29.
11 Albert Hourani, O pensamento árabe na era liberal (1798-1939) , São Paulo: Companhia das Letras, 2005; Daniel Newman, An Imam in Paris: Account of a Stay in France by an Egyptian Cleric (1826-1831) , London: Saqi, 2004.
12 Hourani, O pensamento árabe na era libera l, p. 101. O autor cita alguns desses debates, tais como a afirmação de que “dentro da umma universal, há comunidades nacionais que exigem a lealdade de seus súditos; que o objetivo do governo é o bem-estar humano neste mundo bem como no próximo. Que o bem-estar humano consiste na criação da civilização, o último fim mundano do governo; que a Europa moderna, e especificamente, a França fornece a norma da civilização; que o segredo da força e da grandeza europeias reside no cultivo das ciências racionais; que os muçulmanos, que no passado tinham estudado as ciência racionais, haviam negligenciado esse estudo e se atrasado por causa da dominação dos turcos e mamelucos; e que podiam e deviam entrar na corrente principal da civilização moderna, adotando as ciência europeias e os seus frutos”.
13 Hourani, O pensamento árabe na era liberal , p. 87. A ideia de reforma incidia sobre determinadas questões gerais da teoria política, tais como: o que é uma boa sociedade, que norma deve orientar o trabalho da reforma? Essa norma pode ser derivada dos princípios da lei islâmica, ou é necessário recorrer aos ensinamentos e à prática da Europa Moderna? Há realmente alguma contradição entre os dois?
14 Entendo o termo liberal tal qual assumido por Albert Hourani, que o definiu não apenas por meio da influência de suas ideias sobre a construção de instituições democráticas ou direitos individuais, mas também sobre a força e a unidade nacionais, e o poder dos governos que elas promoveriam.
15 Segundo Pierre Bourdieu, a noção de campo serve como instrumento ao método relacional de análise das dominações e práticas específicas de um determinado espaço social, ou seja, ela caracteriza a autonomia de certo domínio de concorrência e disputa interna. Sobre isso, ver: Pierre Bourdieu, “Gênese e estrutura do campo religioso” in A economia das trocas simbólicas (São Paulo: Perspectiva, 2005), pp. 27-78.
16 Hamid Algar, “Introduction” in Sayyid Qutb, Social Justice in Islam (Nova York: Islamic Publications International, 2000), pp. 1-18.
17 A guerra árabe-israelense de 1948 é reconhecida do ponto de vista dos israelenses como a Guerra da Independência ou também como Guerra da Liberação, em oposição aos palestinos que a interpretam como parte da “Catástrofe” ( al-Nakba ) que se abateu sobre suas populações e territórios.
18 O projeto da salafiyya , ou salafismo, está centrado na ideia de que a volta às “origens” é uma condição para regenerar o Islã. Tem por objetivo expurgar as inovações e adições que supostamente desvirtuaram a mensagem profética e causaram o seu declínio civilizacional. Embora as diferentes correntes da salafiyya dialoguem entre si, elas nunca constituíram um movimento unificado, pois o significado das origens e de como elas deveriam ser recuperadas varia de acordo com o contexto cultural no qual cada uma delas tem sido elaborada.
19 “Os seguidores do xeique Hassan eram fanáticos por ele, e muitos proclamavam que somente ele seria capaz de salvar os mundos árabe e islâmico” (Albion Ross, “Moslem Brotherhood Leader Slain As He Enters Taxi in Cairo Street”, The New York Times ).
20 Popularizado como um campo de estudos (científico e artístico) desde o século XVIII – mas tendo adquirido particularidades institucionais a partir das experiências colonia- listas europeias entre os séculos XIX e XX por meio de mecanismos de dominação, reestruturação e de autoridade sobre os continentes africano e asiático –, as formações discursivas do Orientalismo se concentravam, sem distinções, sob os modos de vida de povos localizados numa faixa específica do globo terrestre, incluindo o Extremo Oriente, a Índia, a Ásia Central, o Médio Oriente (popularizado pelo termo “Mundo Árabe”) e a África. Essa forma de agir, pensar e sentir distinta por meio da invenção de um “Outro” – radicalmente oposto aos modos de vida e estilos europeus – estabe- leceu uma distinção ontológica e epistemológica em termos do que se definiu entre o “Oriente” e (na maioria das vezes) o “Ocidente”.
21 O impacto dessas publicações no espaço público em sociedades de maioria islâmicas possui uma relação de longa data. No caso do nacionalismo árabe, é importante destacar o papel que a imprensa obteve, assim como em muitos outros contextos, na mobilização das massas e na formação da opinião pública, inclusive para questionar as formas de autoridade coloniais implementadas pelas potências imperialistas, até o período de descolonização africana e asiática. Sobre isso, ver: Benedict Anderson, Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo , São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
22 Mesmo que a experiência nos EUA date dos anos de 1948 a 1950, alguns autores sugerem que a crítica posterior às formas do nacionalismo egípcio já eram exercidas por Qutb muito antes do Golpe de Estado de 1952.
23 Qutb chegou a publicar uma carta aberta aos líderes da revolução aconselhando que a única forma de combater a corrupção moral do antigo regime (Farouk) era impor uma “ditadura justa”, ou seja, através da concessão do poder político aos “virtuosos”. Nasser, então, teria convidado Qutb para se tornar um consultor do Conselho do Comando Revolucionário. Qutb esperou inclusive sua nomeação em um cargo no ministério do novo governo de Nasser, mas, quando lhe ofereceram a opção entre ser o novo ministro da Educação do país ou se tornar o gerente-geral da Rádio do Cairo, ele recusou tanto um quanto outro. Nasser acabaria nomeando-o como chefe do Conselho Editorial da Revolução, cargo que ele mesmo deixaria alguns meses depois. A negociação entre esses dois homens (Qutb e Nasser) refletia a cooperação inicial estreita entre a Irmandade Muçulmana e o Movimento dos Oficiais Livres numa revolução social que ambas as organizações imaginavam poder controlar, e cujos rumos desejavam conduzir.
24 Lawrence Wright, O vulto das torres: a al-Qaeda e o caminho até 11/9 , São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
25 A moralidade não é um sistema coerente, mas um conglomerado incoerente e não sistemático de diferentes registros morais que existem paralelamente e frequente- mente se contradizem. Sobre isso, ver: Samuli Schielke, “Ambivalent commitments: troubles of morality, religiosity and aspiration among young Egyptians”, Journal of Religion in Africa , v. 39, n. 2, (2009), pp. 158-185 . A (im)perfeição moral, por sua vez, é crucial para o mundo religioso, uma vez que permite colocar estruturas e ideias da vida social em termos das trajetórias de vida dos sujeitos. Sobre isso, ver: Andreas Bandak e Tom Boylston, “The ‘orthodoxy’ of orthodoxy on moral imper- fection, correctness, and deferral in religious worlds”, Religion and Society: Advances in Research , n. 5, (2014), pp. 25-46 .
26 Salah Abdel Fatah Al-Khaledi, Sayyid Qutb: min al-milad ila al-istishihad , Damasco: Dar al-Qalam, 1991, p. 194.
27 Sayyid Qutb apud Salah Abdel Fatah Al-Khaledi, Amrika min al-dakhil bi minzar Sayyid Qutb , Jeddah: Dar al-Manarah, 1986, p. 27.
28 Sayyid Qutb apud Salah Abdel Fatah Al-Khaledi, Sayyid Qutb: al-adib, al-naqid, wa-al-da’iyah al-mujahid, wa-al-mufakkir al mufassir al-rai’id , Damasco: Dar al-Qalam, 2000, pp. 157-158.
29 Gamal al-Banna apud Wright, O vulto das torres , p. 15.
30 Clifford Geertz, Observando o Islã: o desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonésia , Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
31 A experiência de objetificação como consequência da viagem à América consolidou os elementos fundamentais das formulações de Qutb acerca do Islã. A crítica ao pragma- tismo e ao materialismo é uma delas. Em sua visão de mundo, ambas as dimensões deformariam as obrigações morais dos sujeitos em relação aos seus semelhantes. Essa linha de raciocínio corresponde em parte ao pensamento de Muhammad Asad (1900-1992). Em seu livro, escrito em 1934, Asad faz um apelo aos muçulmanos para que estes evitem a imitação cega das formas e valores sociais do “Ocidente”. Essa advertência, por assim dizer, visaria preservar as heranças islâmicas compreendidas em torno do termo “civilização muçulmana”. Sobre isso, ver: Muhammad Asad, Islam at the Crossroads , Nova Delhi: Kitab Bhavan, 1934.
32 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 12.
33 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 12.
34 Não me refiro aqui a nenhuma concepção de espiritualidade presente no Islã. A noção de pessoa, tema clássico no âmbito da ciência antropológica, tampouco daria conta de sua complexidade. Penso aqui nos processos envolvendo as práticas disciplinares de Talal Asad, ou seja, “os múltiplos percursos nos quais os discursos religiosos regulam, informam e constroem selves religiosos”, responsáveis pela condução da “invenção do eu” de Roy Wagner, isto é, de tornar-se um sujeito atuante no mundo. Sobre isso, ver: Asad, Genealogies of Religion , p. 125; Roy Wagner, A invenção da cultura , São Paulo: Cosac Naify, 2010.
35 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 13.
36 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 13.
37 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 13.
38 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 14.
39 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 14.
40 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 14.
41 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 14.
42 Qutb apud Al-Khaledi, Amrika min al-dakhil bi minzar Sayyid Qutb , p. 154.
43 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 25.
44 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 16.
45 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 17.
46 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 17.
47 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 19.
48 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 19.
49 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 19.
50 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 21.
51 Qutb apud Salah Abdel Fatah Al-Khaledi, Sayyid Qutb , pp. 195-196.
52 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 22.
53 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 23.
54 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 23.
55 Albert Kinsey (1894-1956) foi um biólogo que pesquisou a diversidade sexual dos americanos desde 1941. Seu livro Sexual Behavior of Human Male , publicado em 1948, chocou parte da sociedade através de suas hipóteses lançadas sobre a vida sexual dos americanos. Após um período curto de celebridade, diversas críticas acadê- micas foram emitidas questionando inclusive a construção dos dados apresentados no trabalho. Margaret Mead (1901-1978) classificou a obra como um puritanismo disfarçado, pois em nenhum momento havia a sugestão de que o sexo podia ser algo ligado ao prazer. Por outro lado, Geoffrey Gorer (1905-1985) identificou problemas estatísticos na pesquisa, pois algumas amostras escolhidas pelo autor não poderiam representar toda a sociedade americana.
56 Sayyid Qutb, “Hamaim fi New York”, Majallat al-kitab , v. 8, (1949), p. 666.
57 Qutb apud Al-Khaledi, Amrika min al-dakhil bi minzar Sayyid Qutb , pp. 185-186.
58 Qutb apud Al-Khaledi, Amrika min al-dakhil bi minzar Sayyid Qutb , p. 194.
59 Qutb apud Al-Khaledi, Amrika min al-dakhil bi minzar Sayyid Qutb , p. 194.
60 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 22.
61 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 22.
62 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 20.
63 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 20.
64 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 24.
65 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 10.
66 O papel da literatura de viagem indica a potencialidade da agência dos sujeitos. Se “a literatura engendra o saber no rolamento da reflexividade infinita”, ela permite, então, que o saber reflita sobre o próprio saber; e que a produção de um discurso não seja apenas considerado em termos epistemológicos (genealógicos), mas também dramá- ticos (estéticos). Sobre isso, ver: Roland Barthes, Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do colégio de França, pronunciado dia 7 de janeiro de 1977 , São Paulo: Cultrix, 2004, p. 108.
67 Bernard Lewis, The Muslim Discovery of Europe , Nova York: WW-Norton & Company, 1982.
68 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 10.
69 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 10.
70 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 13.
71 Talal Asad define tradição como “discursos que visam instruir os praticantes a respeito do propósito e da forma correta de uma determinada prática que, precisamente porque foi estabelecida, tem uma história. Esses discursos se relacionam conceitualmente com um passado (quando a prática foi estabelecida e a partir da qual o conhecimento sobre o seu propósito e performance correta foi transmitido) e um futuro (como o propósito daquela prática pode ser mais bem assegurado no curto e no longo prazo ou porque ela deveria ser modificada ou abandonada) através de um presente (como ela é ligada a outras práticas, instituições e condições sociais)” (Talal Asad, The Idea of an Anthropology of Islam , Washington, DC: Center for Contemporary Arab Studies, 1986, p. 14).
72 Jack Goody, Renascimentos: um ou muitos? , São Paulo: Editora Unesp, 2011.
73 Richard Mitchell. The Society of the Muslim Brothers , Oxford: Oxford University Press, 1993, p. 218.
74 Qutb apud Mitchell, The Society of the Muslim Brothers, p. 226.
75 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 26.
76 Qutb, “The America That I Have Seen”, p. 27.
77 Wladimir Krysinski, “Discurso de viagem e senso de alteridade”, Organon , v. 17, n. 34 (2003), p. 25 .
78 O papel da alteridade é reduzir o Outro a um Outro. Entretanto, “a constituição da alteridade radical passa pela revelação e pela valorização de alguns traços significa- tivos ou de alguns comportamentos, individuais ou coletivos que intencionalmente e pelo desejo de discernir a verdadeira diferença, escapam aos estereótipos”. Sobre isso, ver: Krysinski, “Discurso de viagem”, p. 35.
79 Jean Baudrillard e Marc Guillaume, Figures de l’altérité , Paris: Descartes & Cie., 1994, p. 10.
80 Qutb apud Al-Khaledi, Amrika min al-dakhil bi minzar Sayyid Qutb , pp. 196-197.
81 Ibrahim Abu-Rabi, Intellectual Origins of Islamic Resurgence in the Modern Arab World, Albany: State University of New York Press, 1996; Ernest Gellner, Nations and Nationalism , Ithaca: Cornell University Press, 1983; Bernard Lewis, “The Roots of Muslim rage”, The Atlantic , set. 1990 .
82 Paul Berman, Terror and Liberalism , Nova York: Norton, 2003.
83 George Antonius, The Arab Awakening , Beirute: Libraire du Liban, 1969; Roy Mottahedeh, The Mantle on the Prophet: Religion and Politics in Iran , Oxford: OneWorld Publications, 2002; Kamal Salibi, A House of Many Mansions , Los Angeles: University of California Press, 1988; Keith Watenpaugh, Being Modern in the Middle East: Revolution, Nationalism, Colonialism, and the Arab Middle Class, New Jersey: Princeton University Press, 2006.
84 O pensamento de Qutb, por vezes, estava completamente impregnado de reificações. Não eram somente os muçulmanos que agiam, conforme sua visão de mundo. Em vez disso, ele afirmava que “o ‘Islã’ acredita, ‘o Islã’ mantém, ‘o Islã’ estabelece, ‘o Islã’ gera – em uma palavra, que ‘o Islã’ é o ator”. Sobre isso, ver: Shahrough Akhavi, “Sayyid Qutb” in John Esposito e Emad El-Din Shahin (orgs.), The Oxford Handbook of Islam and Politics (Oxford: Oxford University Press, 2013), p. 164. Além disso, a ideia de desmonte da estrutura política e filosófica da modernidade e o desejo de devolver o Islã às suas origens impolutas estava fundamentada na crença do estado de unidade divina, ou seja, a união completa entre Deus ( Allah ) e a humanidade. Sobre isso, ver: Wright, O vulto das torres , p. 23.
85 Beatriz Bissio, O mundo falava árabe: a civilização árabe-islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta , Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013; Albert Hourani, Uma história dos povos árabes , São Paulo: Companhia de Bolso, 2006.
86 Abdel-Malek, America in an Arab Mirror .
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