BIBLIOTECA DE CLÁSSICOS
APRESENTAÇÃO
Marc Schiltz chegou à Nigéria em 1962, dois anos depois da independência do país. Padre católico recém-ordenado, ele pertencia à sociedade Missionaries of Africa, atuante no continente desde o século XIX. Nos anos 1960, uma abertura doutrinal permitiu aos missionários acrescentar à liturgia elementos da cultura local – inclusive a língua – desde que não estivessem em conflito com as doutrinas católicas. Nesse contexto, Schiltz se dedicou a aprender iorubá. A crescente proficiência na língua despertou um profundo interesse nas manifestações culturais iorubás, inclusive a religio- sidade tradicional.
No período posterior à guerra de Biafra (1967-1970), surgiu um movimento de renascença cultural e intelectual iorubá, respaldado por alguns líderes tradicionais, como os reis das cidades de Oṣogbo e de Ìlá Òràngún. Nesse contexto, Schiltz conheceu muitos intelectuais e artistas locais, como o padre e etnólogo Thomas Moulero, natural do reino de Ketu, e os dramaturgos nigerianos Duro Ladipo e Elijah Kolawale Ogunmola. Conviveu também com estrangeiros que participavam daquele movimento, entre eles o fotógrafo e etnólogo Pierre Verger, o antropólogo Robin Horton, o documentarista etnográfico Frank Speed, o escritor Ulli Beier e a artista plástica Suzanne Wenger.1 Horton, que à época lecionava na Universidade de Ilê-Ifé (atual Universidade Obafemi Awolowo) e que abordava a religio- sidade iorubá nos seus estudos, foi um importante interlocutor quando Schiltz tomou a decisão de estudar antropo- logia, com um projeto de doutorado sobre a migração do pequeno município de Ìgànná, no reino de Oyó, para os grandes centros urbanos como Lagos e Ibadan.2 A religiosidade dos migrantes foi um dos temas abordados, dando origem a um levantamento de dados sobre os cultos aos orixás, entre eles Airá e Xangô. Nesse aspecto da título honorífico, conferido pelo rei de Ila-Odo, uma pequena cidade de Oyó. Poucos anos depois, foi para a Universidade de Papua Nova Guiné, como professor. Durante seus primeiros anos lá, Schiltz produziu alguns artigos sobre aspectos da cultura iorubá, entre eles um estudo sobre Xangô e Airá.3 Contudo, o contexto cultural de Papua Nova Guiné gerou outros horizontes de pesquisa, resultando em publicações sobre temas relevantes ao novo ambiente.4 Depois de uma década naquele pequeno país do Oceano pesquisa, Schiltz teve interlocutores privilegiados: Julius Bayo Oyésòro, filho do rei de Ìtàsá, e o padre Moulero, que realizava, há anos, pesquisas pioneiras sobre os reinos iorubás de Kétu e Ṣábẹ́. Ambos compartilharam com Schiltz dados valiosos sobre os cultos nesses locais.
Quando Schiltz deixou a Nigéria, em 1975, já prestes a abandonar o sacerdócio católico, gozava de um Pacífico, Schiltz foi para o Queen’s College, em Belfast, Irlanda do Norte. De todos os lugares em que o antro- pólogo viveu, entretanto, foi a Nigéria que tomou como foco de um livro autobiográfico escrito nos anos 1990.5 Posteriormente, Schiltz voltou a escrever sobre a cultura iorubá, publi- cando, entre outros textos, uma versão ampliada do estudo sobre Xangô e Airá, aqui traduzida para o português.6 O texto aqui traduzido, original- mente intitulado “Yoruba Thunder Deities and Sovereignty: Àrá versus Ṣàngó” , é uma rica etnografia sobre as inter-relações, afinidades e rivalidades entre os orixás Airá e Xangô. Para o público brasileiro, uma das grandes contribuições do estudo é a abundância de informações sobre o culto a Airá no contexto iorubá. No candomblé ketu, Airá é frequentemente tratado apenas como uma qualidade de Xangô. Na verdade, porém, a situação é mais complexa, pois o próprio Airá tem várias qualidades, entre elas Airá Intilé. Este, segundo a memória oral, teria sido patrono do antigo Candomblé da Barroquinha. Frequentemente tida como matriz de toda a nação ketu, essa comunidade, desaparecida no século XIX, teria dado origem aos terreiros da Casa Branca e do Gantois. Apesar da evidente importância histórica do culto a Airá no Brasil, pouco se sabe sobre ele na África. A obra de Pierre Verger, ainda a maior referência em língua portuguesa sobre os orixás na África, quase nada diz a respeito do culto a Airá.7 Mesmo na bibliografia inter- nacional, em contraste com as fartas informações sobre Xangô, referências a Airá são quase inexistentes. Isto decerto decorre do pequeno número de adeptos do culto a Airá, que, como Schiltz demonstra, é restrito a alguns poucos enclaves na região ocidental da Iorubalândia.
Além de oferecer dados pioneiros sobre o culto a Airá, o trabalho de Schiltz também se destaca por abordar o campo ritual como dinamicamente interligado ao âmbito político. No início dos anos 1980, a maioria dos estudos sobre a religiosidade iorubá pressupunha a existência de conti- nuidades históricas e geográficas nas identidades das divindades, bem como na mitologia a seu respeito. Em contra- posição, o estudo de Schiltz demonstra as limitações dessa perspectiva, ao focalizar precisamente as variações geográficas e temporais dos dois cultos. Para Schiltz, essas divergências são indícios de trajetórias históricas distintas, fornecendo uma janela para compreender o papel da política na evolução de particularidades rituais. No panteão de Oyó, Xangô ocupava uma posição privilegiada como orixá patrono do reino e a expansão do seu culto foi impulsionada pelo aparelho político-militar da metrópole, gerando tensões nos locais subordinados à sua soberania política e religiosa. Em alguns locais onde o culto a Airá já existia quando o culto a Xangô foi instalado, a memória das tensões é expressa metaforicamente através da linguagem de gênero, com Xangô caracterizado como a “esposa” de Airá.8 Essas evidências sobre a mutabilidade do conceito de gênero como atributo de um orixá relembra a famosa polêmica sobre Oduduá, ancestral primordial do povo iorubá, travada entre Juana Elbein dos Santos e Pierre Verger em 1982. Enquanto a primeira defendia que Oduduá era feminino, Verger insistia que era masculino.9 Na verdade, a depender do local, talvez ambos tivessem razão: na região ocidental da Iorubalândia, há lugares onde Oduduá é considerado feminino, apesar de, na maioria do território iorubá, ser tido como masculino.
Da perspectiva da história do candomblé ketu, talvez a infor- mação mais impressionante no artigo de Schiltz seja a discussão da história da antiga cidade de Ìtílé, um centro do culto a Airá, destruído nas guerras do século XIX, onde o rei era conhecido pelo título onítílé . A semelhança do título com o nome Intilé – associado ao orixá patrono do desaparecido Candomblé da Barroquinha – proporciona um enorme avanço na compreensão do histórico dessa entidade tão impor- tante nos primórdios do candomblé, sugerindo que o culto remonta à gente de Ìtílé, vendida ao tráfico negreiro em decorrência dos conflitos armados que atingiram a cidade. No entanto, a imensa quantidade, riqueza e grau de detalhes dos dados etnográficos apresentados no texto de Schiltz, abrangendo mitos, rituais, migrações etc., possibilitam uma multiplicidade de reflexões sobre diversos assuntos relacionados aos cultos estudados, tornando o texto uma referência para leitores de vários campos acadêmicos e para o próprio povo de axé.