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PRIMAVERA ISLÂMICA NA HISTORIOGRAFIA AFRICANISTA
Thiago Henrique Mota
Thiago Henrique Mota
PRIMAVERA ISLÂMICA NA HISTORIOGRAFIA AFRICANISTA
Afro-Ásia, núm. 64, pp. 642-649, 2021
Universidade Federal da Bahia
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RESENHAS

PRIMAVERA ISLÂMICA NA HISTORIOGRAFIA AFRICANISTA

Thiago Henrique Mota
Universidade Federal de Viçosa, Brasil
Afro-Ásia, núm. 64, pp. 642-649, 2021
Universidade Federal da Bahia
NGOM Fallou, KURFI Mustapha H., FALOLA Toyin. The Palgrave Handbook of Islam in Africa. 2020. Londres. Palgrave Macmillan. 774pp.

Os estudos sobre o Islã na África, no âmbito da historiografia internacional, encontram-se em plena primavera. As primeiras décadas do século XXI deram espaço a um significativo desabrochar de perspectivas, objetos de análise e sujeitos de pesquisa, atualizando e expandindo o conhecimento sobre diversificadas experiências muçulmanas vividas no continente africano, do século VII aos dias atuais. Fechando a centúria que nos antecede, Nehemia Levtzion e Randall L. Pouwels organizaram a importante coletânea The History of Islam in Africa , recebida no ano 2000 como a primeira obra de síntese continental (ou quase), compreensível para um público mais amplo que aquele especializado no tema.1 Vinte anos depois, eis que vem à luz The Palgrave Handbook of Islam in Africa , organizado por Fallou Ngom, Mustapha Kurfi e Toyin Falola, com o objetivo declarado de sintetizar o conhecimento existente sobre Islã na África em escala continental, recuperando aspectos gerais e avançando em relação à publicação de Levtzion e Pouwels. Trata-se de uma valiosa contribuição a um campo de estudos que, nos últimos anos, tem se mostrado fértil, mas pouco explorado.

Como Ngom, Kurfi e Falola abrem o livro, já na primeiríssima frase, posicionando-o em relação à síntese de referência anterior, algumas palavras sobre ela podem ser úteis. O primeiro aspecto relevante observado na relação entre as obras é o perfil dos autores. Marcado pelo espírito do tempo em que a hegemonia masculina e branca procedente do norte global reinava sem impedimentos na academia, o livro de Levtzion e Pouwels é formado por vinte capítulos escritos por homens brancos, dois por mulheres brancas e dois por homens negros. Já a composição do volume que agora nos ocupa é mais diversa. Formado por 33 capítulos, conta com várias contribuições de pesquisadores de origem africana, americana, asiática e europeia. A equidade de gênero precisa avançar. Embora as pesquisas publicadas por mulheres correspondam a cerca de 25% dos artigos, elas indicam o caminho percorrido nos últimos anos, quando comparadas aos menos de 10% dos capítulos de autoria feminina na obra lançada em 2000. A diversidade na composição da coletânea é importante por permitir aprofundamentos analíticos amparados em sensibilidades e tradições intelectuais distintas.

Outra comparação necessária diz respeito à estrutura e abrangência dos livros. A publicação de Levtzion e Pouwels, dois historiadores, foi um trabalho eminentemente de cunho historiográfico formado por quatro partes. Nelas, discutiam-se os mecanismos de entrada do Islã na África (com um capítulo sobre Egito e norte africano e outro sobre Mar Vermelho e Oceano Índico), o Islã na África Ocidental e sudanesa, a religião nas porções oriental e austral do continente e, por fim, uma seção com temas gerais: legislação, educação, irmandades religiosas, práticas de cura, papel das mulheres e relações entre o Islã, a música, a literatura e outras manifestações culturais. Já a coletânea de Ngom, Kurfi e Falola (respectivamente antropólogo, sociólogo e historiador) avança sobre esses tópicos, preservando a condição de historicidade do tema e ampliando o diálogo para além do campo disciplinar da História.

Organizado em cinco partes, o livro traz, na primeira delas, possibilidades de entendimento da difusão islâmica na África além da abordagem clássica marcada por vetores geográficos. Aqui, aspectos como tradição intelectual, ensino, aprendizagem e política são apontados como recursos que potencializaram a expansão religiosa, superando o difusionismo através de áreas de contato como perspectiva de análise preferencial. Sem desprezar a Geografia, a seção oferece uma importante reflexão amparada em teoria geográfica útil ao entendimento de representações cartográficas da religião. As demais seções abordam relações entre instituições e práticas no Islã (Parte II); religião e criatividade na arquitetura, literatura, dança, música e caligrafia (Parte III); epistemologias ou sistemas de conhecimento a partir das experiências muçulmanas africanas (Parte IV); e modos de participação islâmica africana na construção da Modernidade, no mundo contemporâneo (Parte V).

Este livro consegue escapar da estrutura organizacional cronológico-geográfica em favor de uma análise histórico-temática, ao endereçar questões que perpassam diferentes regiões africanas ao longo do tempo, incluindo estudos pautados em perspectivas histórica, política, econômica, geográfica, demográfica, nos estudos de gênero e nos estudos culturais. As autorrepresentações islâmicas, acessadas a partir de fontes majoritariamente endógenas, são o eixo comum às cinco partes. Embora as abordagens estejam ancoradas em diferentes campos disciplinares, a composição interna dos capítulos, na maioria das vezes, não tem, no entanto, a interdisciplinaridade em sua constituição.

No capítulo introdutório, os organizadores argumentam que os estudos sobre Islã na África têm enfrentado obstáculos historicamente edificados. Dentre eles, destacam a abordagem que considera o deserto do Saara como divisor do continente; a tradicional clivagem racial inaugurada por Paul Marty entre Islam Blanc e Islam Noir , Islã branco e negro, puro e corrupto, respectivamente; e a ênfase em tradições orais, em oposição ao rico e diverso corpus textual escrito em árabe ou em línguas africanas através do alfabeto árabe, a chamada aljamia. Por outro lado, no segmento dos trabalhos que consideram as fontes escritas para o estudo de experiências islâmicas, apontam a sobrevalorização da língua árabe, que ignora a intensa produção islâmica africana (passada e contemporânea) em aljamia. Nesse aspecto, Ngom, Kurfi e Falola argumentam a favor da necessidade de superar um paradoxo linguístico inscrito no estudo do Islã em sociedades africanas:

São poucos os especialistas no Islã na África e africanistas em geral que falam fluentemente e têm competência para leitura nas línguas dos textos usados nas comunidades que estudam, enquanto é impensável estudar comunidades chinesas, americanas, árabes, francesas, alemãs ou russas sem fluência e literacia em seus idiomas e sem habilidade para ler os textos necessários ao acesso a pontos de vista internos em suas fontes de conhecimento (p. 2).

Essa crítica é importante, sobretudo no espaço universitário brasileiro onde ainda se ouve pelos corredores de departamentos de História que “faltam fontes para a história da África”. Não faltam fontes. Há fontes de variadas naturezas, muitas das quais acessíveis em língua portuguesa. Além dessas, há um enorme volume de textos escritos em línguas africanas, para os quais faltam leitores habilitados entre os pesquisadores acadêmicos. Essa informação é particularmente válida para trabalhos dedicados ao período posterior ao século XVIII, pois as conquistas políticas muçulmanas daquela época resultaram em ampla produção textual em línguas africanas. Para períodos anteriores, há poucos textos identificados, embora se saiba que essa produção já existia desde o século XIII.2 Projetos que lidam com humanidades digitais têm disponibilizado vários textos em aljamia para consulta online, contribuindo para a disseminação do acesso e do conhecimento da produção intelectual africana.3 São aspectos como este, que evidenciam a produção de culturas islâmicas africanas e sua divulgação através de diversas formas locais de expressão, o que percorre todas as seções do livro.

Refletindo sobre as escritas islâmicas africanas, contribuições relevantes são feitas ao longo da coletânea. Particularmente, destaco o capítulo de Richard Wright, ao argumentar que uma história intelectual islâmica africana precisa mergulhar nos textos escritos localmente, em detrimento de situar-se a partir de referências a eles em fontes árabes ou apenas sua identificação em bibliotecas africanas. Já o capítulo de Abdalla Uba Adamu relaciona a produção artística de talismãs na África Ocidental com a compreensão de que a escrita aljamia proporciona aos muçulmanos africanos uma escrita árabe afrocentrada, ancorada em tradições estéticas próprias. O capítulo de Liazzat Bonate sintetiza informações sobre a escrita aljamia em várias regiões do continente africano, do oeste ao sul, passando pelo norte, Sahel e região índica. Destaco ainda o capítulo de Sara Fani sobre a natureza dos livros, sua constituição física, formas de catalogação e preservação do patrimônio manuscrito islâmico africano. Trata-se de contribuições relevantes para melhor entendimento dos processos de escrita, preservação e usos do letramento ao redor da África.

Estes aspectos são destacáveis porque a coletânea evidencia que o principal avanço conquistado no campo dos estudos islâmicos africanos nos últimos anos ocorre no campo da história intelectual, com destaque para a aljamia e para os chamados “Estudos de Timbuctu”, cujas abordagens cobrem a história das ideias, dos manuscritos e das bibliotecas. Apesar disso, como um manual para estudos do Islã no continente africano, The Palgrave Handbook of Islam in Africa tem abordagem pautada em vários campos disciplinares. Em suas páginas, as contribuições procedem de lugares teóricos como Antropologia, Ciência Política, Comunicação, Dança e Artes do Teatro, Estudos Comparados, Estudos Islâmicos, Filosofia, Geografia, História, Linguística, Literatura, Música, Sociologia, Teologia e estudos das religiões.

No que tange aos estudos definitivamente fincados no campo da História, os maiores avanços na obra procedem do recorte cronológico referente aos séculos XIX e XX. O estudo dos jihads ganha importantes contribuições: com espírito de síntese, Fulera Issaka-Toure demonstra a necessidade de historicização constante do conceito, para cada caso específico. Aplicando tal perspectiva, Amir Syed demonstra como a ideia de jihad foi frequentemente reformulada pelas sociedades muçulmanas, resultando em interpretações distintas sobre movimentos políticos genericamente classificados como “jihads”, mas estruturalmente diferentes, quando analisados em suas especificidades, entre os séculos XVII e XIX. Para o período anterior ao século XVI, no entanto, permanece a interpretação clássica, e já superada pela contribuição de Paulo Farias a partir do estudo de estelas funerárias oeste-africanas, acerca de um Islã de corte como resultado da ascensão de governantes Askias sobre os Sonnis, no Songai.4

Metodologicamente, ao lado da escrita aljamia, a retomada das tradições orais permite novas análises. Esse corpus documental não é visto como composto por narrativas fatuais, mas como mecanismo explicativo de transformações históricas que precisam ser compreendidos em seus contextos de produção e enunciação (capítulos 3 e 7). A isso se somam abordagens pautadas na diversidade de experiências muçulmanas assentadas no pluralismo jurídico (capítulo 11), nas distintas fontes para acessar o papel desempenhado por mulheres na produção de ideias islâmicas (capítulo 12), nas relações da religião com manifestações artísticas (arquitetura, dança, música, caligrafia) e nas diversas formas de atuação política muçulmana nos e em relação aos Estados nacionais, que convergem para a participação islâmica na produção da modernidade (capítulos da Parte V). O amplo arco teórico, cronológico e metodológico implica abordagens distintas, que trazem contribuições para diversas áreas do conhecimento.

Como toda coletânea, esta tem artigos de qualidade desigual. Alguns são efetivos e atualizados na elaboração de sínteses de seus respectivos campos, enquanto outros repetem compilações anteriores, por vezes excessivamente vinculados às abordagens presentes no volume de Levtzion e Pouwels, sem incorporar os significativos avanços dos últimos vinte anos. Em linhas gerais, no entanto, a florescente bibliografia sobre Islã na África que vem desabrochando nas duas primeiras décadas deste século, principalmente em língua inglesa e francesa, está presente na concepção da maior parte dos capítulos. A diversificação no conjunto de pesquisadores que colaboraram para a coletânea faz com que várias tradições intelectuais sejam reconhecidas, apontando contribuições de pesquisas realizadas em instituições africanas, europeias e americanas e suas publicações, em diversos países. Trata-se de um livro de interesse para pesquisas feitas no Brasil, uma vez que estudos que contemplam experiências muçulmanas na África também vicejam por aqui.5 Assim como a tradução de publicações brasileiras para línguas estrangeiras fortaleceria o campo internacional de estudos sobre Islã na África, uma publicação desta obra em língua portuguesa seria bem vinda entre nós.

O livro resenhado atinge, então, seu objetivo de atualizar a síntese publicada por Levtzion e Powels, revelando-se uma importante obra de divulgação dos estudos sobre Islã na África. Porém, trabalhos como este, além de evidenciar os avanços e novas configurações de um determinado campo de estudos, também deixam claro seus pontos de vulnerabilidade e as lacunas a serem preenchidas. No primeiro caso, o debate sobre experiências islâmicas anteriores ao século XIX teve pouco desenvolvimento nas últimas décadas, permanecendo marcado pela análise política (jihad, construção de Estados muçulmanos, conversões entre governantes, imposição religiosa). A força das análises sobre apropriações das culturas islâmicas por variados grupos sociais em períodos mais recentes lança dúvidas sobre a real capacidade impositiva das elites sobre as sociedades, no passado mais remoto. Por outro lado, tal fragilidade lança luz sobre uma lacuna a ser preenchida: uma história social do Islã na África antes do século XIX ainda não foi realizada. Os avanços mais significativos no campo dos estudos islâmicos africanos estão na seara da história intelectual e, a partir dela, estendem-se aos estudos da cultura e da política, como o volume deixa claro. Resta saber como as sociedades, em suas dinâmicas, conflitos e ressignificações, participaram desse amplo processo de produção de ideias muçulmanas. Eis uma nova espécie de estudos a florescer neste tempo primaveril.

Material suplementar
Notas
Notas
1 Nehemia Levtzion e Randall L. Pouwels (orgs.), The History of Islam in Africa , Athens: Ohio University Press; Oxford: James Currey; Cape Town: David Philip, 2000. Sobre a recepção da obra, ver M. Mirzeler, “The History of Islam in Africa (review)”, Africa Today , v. 48, n. 2 (2001), pp. 168-170.
2 Fallou Ngom, Muslims beyond the Arab World: The Odyssey of ʿ Ajamī and the Murīdiyya , Nova York: Oxford University Press, 2016, p. 8.
3 Há muitos documentos digitalizados disponíveis online e, em alguns casos, há informação sobre o conteúdo traduzida para línguas ocidentais, particularmente o inglês. Alguns dos projetos podem ser consultados nos sites a seguir: British Library’s Endangered Archives Programme ; Boston University’s African Ajami Library ; West African Arabic Manuscript Database ; West African Arabic Manuscripts-MES: Electronic Resources ; Michigan State University’s African Online Digital Library ; Northwestern University’s Arabic Manuscripts from West Africa: A Catalog of the Herskovits Library Collection ; NEH Collaborative Ajami Project at Boston University ; The Library of Congress’ Islamic Manuscripts from Timbuktu ; The Ajami Project at Hamburg University ; Arabic manuscript by Sheikh Sana See . Todos os sites foram verificados em 15 de maio de 2021.
4 Paulo Fernando de Moraes Farias, Arabic Medieval Inscriptions from the Republic of Mali . Epigraphy, Chronicles and Songai-Tuareg history , Oxford: Oxford University Press, 2003.
5 Dentre outros trabalhos, cito Beatriz Bissio, O mundo falava árabe: a civilização árabe-islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta , Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012; Patrícia Teixeira Santos, Fé, guerra e escravidão: uma história da conquista colonial do Sudão (1881-1898) , São Paulo: FAP-Unifesp, 2013; Regiane Augusto de Mattos, As dimensões da resistência em Angoche: da expansão política do sultanato à política colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842-1910) , São Paulo: Alameda, 2015; Thiago Henrique Mota, Portugueses e muçulmanos na Senegâmbia: história e representações do Islã na África , Curitiba: Editora Prismas, 2016.
Autor notes

mailto:thiago.mota@ufv.br

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