DOSSIÊ
REPENSANDO O TRÁFICO TRANSATLÂNTICO DE AFRICANOS ESCRAVIZADOS NA ERA DA ILEGALIDADE
REPENSANDO O TRÁFICO TRANSATLÂNTICO DE AFRICANOS ESCRAVIZADOS NA ERA DA ILEGALIDADE
Afro-Ásia, núm. 65, pp. 12-65, 2022
Universidade Federal da Bahia
Às vezes te sinto como avó, outras vezes te sinto como mãe.
Quando te sinto como neto me sinto como sou.
Quando te sinto como filho não estou me sentindo bem eu, estou me sentindo aquele
que arrancaram de dentro de ti.
À Africa - Oliveira Silveira
Os textos reunidos neste dossiê derivam da jornada “A Abolição do Tráfico Transatlântico de Africanos Escravizados: os 170 Anos da Lei Euzébio de Queirós”, evento online promovido pela Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros (RHN), entre 31 de agosto e 4 de setembro de 2020. 1 O que trazemos a público é uma pequena amostra dos trabalhos apresentados na ocasião. 2 Mas, ainda assim, é representativa da iniciativa que pretendeu dar visibilidade à produção de historiadores negros e historiadoras negras, estudiosos do tráfico de escravizados no seu ocaso ou que abordaram aspectos mais circunscritos ao tema em suas pesquisas. Este dossiê, intencionalmente, destaca as contribuições de pelo menos duas gerações de estudiosos e estudiosas, cujo ingresso na univer- sidade se deu no bojo dos debates sobre a reescrita da história do Brasil por mãos negras, iniciados na década de 1970, e no contexto de implemen- tação e consolidação das políticas de ação afirmativa e das cotas raciais, a partir de 2002. 3
O propósito do evento organizado pela RHN foi usar uma efeméride oficial, os 170 anos da Lei Euzébio de Queiroz, para refletir de forma crítica sobre o processo de abolição do tráfico transatlântico de escravizados para o Brasil. Malgrado a importância dessa data, ela passou praticamente esquecida da agenda nacional de discussões (sobretudo quando comparada aos debates atualmente em curso sobre o bicentenário da Independência). 4 Esse silêncio evidencia o longo caminho a ser percorrido no reconhecimento do papel do Brasil no comércio transa- tlântico de africanos e do impacto do tráfico negreiro em nossa sociedade. Segundo estimativas recentes, o Brasil foi destino final de cerca de 45% dos africanos vitimados pelo tráfico transatlântico. Na maior migração forçada da história da humanidade, que espalhou devastação no continente africano, o Brasil ocupa dúbio lugar de destaque, não só como destino principal das vítimas do tráfico como também base logística e financeira do comércio de seres humanos para si próprio e outros países das Américas. A abolição do tráfico de escravizados merece reflexão no momento atual. Em 2022 completam-se dez anos da lei 12.711/2012, a Lei de Cotas, e considerando os ataques que essa política pública tem recebido nos últimos anos, nunca é demais relembrar as sequelas do tráfico negreiro e da escravidão no Brasil contemporâneo. Relembrar a data, e a dimensão global do fenômeno, torna-se ainda mais necessário quando o próprio presidente do Brasil atribui aos africanos a respon- sabilidade pelo comércio de pessoas escravizadas. Durante o evento da RHN, questionamos de que forma a história do tráfico transatlântico de africanos escravizados e da escravidão se conectam com nossa atualidade de opressão racial. No país que mata um homem negro a cada 23 minutos, um dos países que mais encarcera e asila sua população negra (é a terceira população carcerária do mundo, após os EUA e a China), é imprescindível uma discussão pública sobre o infame comércio, sua persistência apesar das leis antitráfico e, particularmente, sua abolição.
Cobrindo uma vasta gama de atores históricos, o dossiê situa o tráfico e o movimento antitráfico numa perspectiva global, buscando dar conta de conexões que se estendiam por vários continentes e incluíam atores diversos. Aqui, é preciso dizer, a história global surge não na vertente estruturalista, sobretudo centrada na Europa, e que apaga dinâmicas locais e atores sociais marginalizados. 5 Pelo contrário,o objetivo é construir uma narrativa histórica que dê conta dos múltiplos atores que participaram do embate pelo fim do tráfico. 6 Ao lado da preocupação com a reconstrução de trajetórias individuais, um dos pilares do dossiê é o enfoque em conexões, redes, e imbricamentos transimperiais e supranacionais. 7
Tanto o tráfico quanto sua abolição se prestam muito bem a uma perspectiva que rompe com as amarras da história nacional. Antes do século XX, raros foram os fenômenos históricos com tamanha amplitude geográfica ou tantos atores políticos, sociais e econômicos. Não se pode dizer, no entanto, que tal enquadramento seja inédito na historiografia brasi- leira, que se caracteriza por lapidares exemplos de história social construída numa perspectiva transnacional. Autores como Lisa Castillo, Nicolau Parés e João Reis têm demonstrado as vantagens de trabalhar as complexidades das relações sociais e humanas entre o micro e o macro. 8 O que se faz aqui, portanto, é avançar por trilhas que vários mestres já apontaram.
Nem tampouco é cabível olvidar as muitas contribuições de várias gerações de historiadores a um dos temas maiores da formação da nação brasileira. De Pierre Verger a Robert Conrad, Luis Henrique Dias Tavares e Leslie Bethell, passando mais recentemente por Jaime Rodrigues, Dale Graden, Tamis Parron e Beatriz Mamigonian, o tema do fim do tráfico tem sido esmiuçado a partir de múltiplos ângulos. 9
Da diplomacia às redes de comércio que sustentavam o odioso comércio de seres humanos através do Atlântico, assim como estudos sobre o prota- gonismo dos próprios escravizados, esses estudiosos destacam como a abolição se confundiu com a formação do estado nacional brasileiro desde os seus primórdios.
A história do comércio transatlântico de africanos escravizados é uma das mais profícuas áreas de estudos na nossa historiografia. As primeiras reflexões remontam ao final do século XIX e início do século XX. 10 Ao longo das décadas seguintes, as pesquisas sobre o tráfico negreiro, sobretudo em sua dimensão demográfica, dominaram o cenário histo- riográfico, em que pese trabalhos de referência que influenciaram uma mudança de perspectiva, mais focada nos indivíduos que compunham a rede negreira transatlântica, dentre os quais Fluxo e refluxo , de Pierre Verger, que ocupa lugar de destaque nessa prateleira. 11
Um dos tópicos de maior destaque nessa historiografia é a abolição do tráfico transatlântico de africanos escravizados. 12 A historio- grafia inglesa, por exemplo, tem problematizado as causas da supressão do tráfico negreiro e as consequências dessa medida nas colônias britâ- nicas. 13 Além das ações de políticos, juízes e clérigos, a atuação ativa de africanos libertos, como Ottobah Cugoano e Olaudah Equiano – autor de uma autobiografia que se tornou best-seller , no qual descrevia os horrores da escravização, na África, e do transporte para as Américas –, foi funda- mental para moldar a opinião pública britânica para a causa abolicionista. 14 Casos como o do Zong, negreiro britânico que lançou ao mar 132 africanos para reclamar indenização (e que contou com a atuação de Equiano) ou a chocante imagem do superapinhamento de cativos no porão do Brooks, outro navio inglês, também foram decisivos para convencer os legisla- dores a desistirem do tráfico a partir de 1807. 15
Em 2007, duzentos anos após a abolição do tráfico inglês, historiadoras e historiadores britânicos retomaram a atenção ao tema. Além dos livros e artigos produzidos sobre a data, a efeméride abriu uma oportunidade para se discutir o significado e as memórias do tráfico e da escravidão na sociedade britânica. 16 Embora a historiografia tenha uma perspectiva crítica sobre as razões britânicas para o abandono do tráfico, o senso comum ainda aponta “a causa dos escravos” como o fator primordial para essa decisão. Outros autores buscam causas econômicas que expliquem a decisão britânica de abrir mão desse lucrativo comércio. Basta lembrar que a Grã-Bretanha foi a nação que mais transportou gente escravizada através do Atlântico no século XVIII, superando até mesmo os luso-brasileiros, senhores daquele comércio nefasto. Há quem defina essa postura econômica como um suicídio econômico, pois a decisão veio num momento de expansão da produção açucareira após a queda de Saint-Domingue, o maior produtor mundial de açúcar até o desman- telamento de sua produção pela Revolução Haitiana (1791-1804). Com o crescimento negativo da população escravizada nas colônias açucareiras britânicas no Caribe – principalmente a Jamaica, a maior delas –, o fim do tráfico apontava para o fim da própria escravidão. Visto sob essa ótica, a abolição do comércio negreiro britânico parecia, de fato, um contras- senso, um economicídio. 17
Outras nações seguiram o exemplo britânico. Os EUA decre- taram o fim do comércio negreiro em 1808, embora navios de bandeira norte-americana tenham carregado africanos escravizados até a década de 1860. 18 A França pós-napoleônica e a Holanda fizeram o mesmo nas décadas seguintes. Em pouco mais de quatro décadas de campanha abolicionista britânica, o tráfico negreiro, negócio conduzido pelas elites metropolitanas e coloniais – mas não apenas por elas – converteu-se em atividade abominável, criminosa. No entanto, apesar das leis antitráfico, o comércio negreiro continuou fazendo vítimas e espalhando instabilidade e violência no continente africano. O fenômeno refletia não só a associação umbilical entre escravidão e capitalismo nas Américas, como autores como Seth Rockman e Sven Beckert têm chamado atenção, como também a capacidade de adaptação dos traficantes às leis antitráfico. 19
Enquanto as nações europeias caminhavam para o final do tráfico, o Brasil continuava firme no infame comércio. O assunto é por demais conhecido entre nós, mas algumas palavras são necessárias para situar o leitor. Após a chegada da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, a Grã-Bretanha conseguiu arrancar do governo português um acordo para suprimir, a partir de 1810, o tráfico em certas áreas ao norte do equador, inclusive a Costa da Mina, zona de operação dos negreiros da Bahia. Os cruzadores britânicos capturaram vários navios baianos na região, para protesto dos negreiros, que argumentavam que as embarcações apresadas eram “más presas”, isto é, injustamente aprisionadas. Em 1815, no Congresso de Viena, Inglaterra e Portugal celebraram um tratado que abolia o tráfico ao norte do Equador, inviabilizando todo o tráfico baiano na região. 20 Mas os baianos não desistiriam assim tão fácil.
Já na década de 1960 Pierre Verger apontou para as manobras e subterfúgios adotados pelos traficantes da Bahia para escapar da repressão britânica, como a produção de documentos falsos sobre o destino dos navios que partiram de Salvador, o que causou bastante confusão historiográfica ao tratar dos números do tráfico da Bahia no período da ilegalidade. Essa abordagem tem sido recuperada recentemente pelos trabalhos de Paulo César Oliveira de Jesus e Carlos da Silva Jr., dois autores que participam deste dossiê. Outros trabalhos lançaram um olhar mais geral sobre as discussões diplomá- ticas entre britânicos, portugueses e brasileiros nas décadas seguintes. 21
Além de Verger, Luis Henrique Dias Tavares também voltou sua atenção ao tema em Comércio proibido de escravos (1988), obra importante, porém pouco lida – e ainda menos citada. 22 O autor parte de documentos produzidos pelos ingleses,juntamente com fontes portuguesas e brasileiras para construir o mosaico que constituiu as ações para o fim do tráfico no Brasil. O livro também dedica algumas páginas a apresentar os debates sobre o fim do tráfico entre outras carreiras nacionais e antecipa vários debates atuais – e tidos como novos em nossa historiografia –,principalmente sobre a relação entre o tráfico negreiro e o capitalismo global oitocentista. No final da mesma década, estudos sobre desembarques clandestinos em vários pontos do Brasil mostraram as potencialidades de se analisar as experiências regionais nas dinâmicas da ilegalidade. 23
A expansão dos programas de pós-graduação no Brasil também colaborou para o crescimento dessa área de pesquisa.
As dinâmicas negreiras nos dois lados do Atlântico, a organização da comunidade traficante, os portos clandestinos de desembarque de cativos, os debates para a extinção do tráfico e a rede miúda do comércio de africanos escravizados foram o objeto de estudos mais localizados. 24 Além disso, como apontamos acima, a regionalização dos estudos permitiu observar como cada província se comportou diante da proibição do tráfico, a partir de 1831. As pesquisas de Marcus de Carvalho se destacam nesse tema, descrevendo as dinâmicas da clandestinidade a partir das discussões entre as autoridades pernambucanas, os portos de desembarque dos africanos contrabandeados e mesmo as ligações entre Pernambuco e a costa africana por meio de empreendimentos comerciais constituídos do outro lado do Atlântico. 25 Trabalhos mais recentes, como de Aline de Biase Albuquerque, têm se dedicado a compreender a articulação das elites locais para a continuidade do contrabando de cativos, a partir da trajetória do Visconde de Loures, figura respeitada em Pernambuco e negreiro de longa data. 26 O texto de Aderivaldo Santana publicado neste dossiê se engaja diretamente com a historiografia pernambucana sobre o comércio negreiro. A historiografia brasileira sobre o tráfico beneficiou-se ainda da aproximação com a produção africanista, permitindo aprofundar a articu- lação do tráfico negreiro com as dinâmicas sociais e políticas na África. Afinal, a perspectiva atlântica nos estudos sobre o tráfico não deve deixar de lado as experiências africanas na era da abolição. 27 Na Libéria, por exemplo, uma política antitráfico foi conduzida pelas autoridades locais, o que incluía ataques aos barracões dos negreiros e a recepção aos africanos recapturados pela marinha norte-americana. Serra Leoa, por sua vez, se converteu em espaço africano onde eram julgados os navios apreendidos pelos cruzadores britânicos, além de também receber os africanos recapturados no tráfico negreiro. 28 Noutros, como o Daomé, o tráfico continuava como atividade lícita, com a forte presença de comerciantes brasileiros e cubanos. 29 Em Angola, centro nervoso do comércio negreiro no Atlântico Sul, redes comerciais locais e transatlânticas se adaptaram às transformações no comércio negreiro a partir da década de 1830, com a proibição do tráfico português. 30 Ao mesmo tempo, os comerciantes desenvolveram estratégias para burlar a fiscalização contra a venda de seres humanos e manter as atividades ilícitas, sobretudo com os brasileiros, seus principais parceiros comerciais. 31
Mesmo trabalhos sobre o tráfico – mas que não tratavam exata- mente da extinção do comércio negreiro – contribuíram para retomar o interesse pelo continente africano como parceiro comercial na história do tráfico, recuperando, em grande medida, a trilha aberta por Verger trinta anos antes. 32 Ubiratan Castro de Araújo, por exemplo, em artigo nesta mesma revista, analisou um ano na carreira entre a Bahia e Lagos. O autor chama a atenção para “uma economia do tráfico coordenada por convenções específicas, construídas historicamente e reafirmadas quotidianamente por todos os agentes do tráfico, do lado da Costa d’África e do lado da Bahia”. 33 O impacto do comércio transatlântico de africanos escravizados e da campanha antitráfico na África aparecem, de maneiras diferentes, nos artigos de Roquinaldo Ferreira e Lucilene Reginaldo e de Juliana Farias.
O lançamento, em 2004, do Slave Voyages – base de dados online sobre o tráfico que contabiliza atualmente mais de 36 mil viagens –, contribuiu para alguns desses estudos, sobretudo os de natureza demográ- fica. 34 Mas não só de números vive a história do tráfico. As trajetórias de vida daqueles embarcados à força nos tumbeiros começaram a ser contadas a partir de biografias de africanos escravizados, alguns já na época da ilegalidade, bem como daqueles que se engajaram no comércio negreiro depois de libertos. Esse tipo de análise micro-histórica está aqui representado pelo artigo de Valéria Costa e Flávio Gomes.
Além dessas histórias de vida daqueles envolvidos nas transações negreiras, no convés dos navios, temos também as lutas pela liberdade dos ilegalmente desembarcados no Brasil. As histórias dos africanos resga- tados de navios negreiros nos oceanos Atlântico e Índico servem como uma janela para compreender as experiências dessas pessoas e as batalhas pela liberdade. Os estudos sobre africanos recapturados se iniciam em fins da década de 1980 e se expandem nas décadas seguintes. 35 As histórias de homens e mulheres vitimados pelo tráfico ilegal têm sido objeto de trabalhos mais recentes. Destacamos, entre outros, a tese de Joice Oliveira, que focaliza o comércio interno de escravizados entre a Bahia e o Sudeste paulista, passando pelo Rio de Janeiro, com atenção especial às alianças e redes de solidariedade construídas pelos cativos. 36
Há ainda que se destacar como as interpretações sobre as leis de supressão ao tráfico (1831 e 1850) foram utilizadas na arena jurídica. Embora não trate exatamente sobre o comércio negreiro, esse tema importa, pois muitos africanos escravizados mobilizaram o argumento da importação ilegal (após 1831) para reivindicar a sua liberdade nos tribunais brasileiros, mesmo muitas décadas após a abolição definitiva do tráfico, em 1850, e tendo o advogado Luiz Gama como um dos seus principais porta-vozes. 37 O mesmo argumento reapareceu no debate atual das políticas de ações afirmativas, em particular sobre o sistema de cotas no acesso ao ensino superior. A cumplicidade do Estado brasileiro com o tráfico transa- tlântico ilegal e suas vítimas foi o principal argumento do historiador Luiz Felipe de Alencastro no seu parecer durante audiência pública no Supremo Tribunal Federal, em março de 2010. A alta corte de justiça brasi- leira assegurou, por unanimidade, a constitucionalidade das cotas. 38
Além das dimensões econômicas, sociais e culturais (já mencio- nadas) que esse deslocamento forçado de milhões de pessoas operou nas sociedades africanas, há que se lidar com as traumáticas memórias do tráfico e da escravidão atlântica. Há uma já estabelecida historiografia que aborda essa questão em perspectiva transatlântica e transnacional. 39 Os episódios cotidianos de violência institucional contra a população negra e os protestos contra o racismo sofrido pelos afrodescendentes, amplificados pelo coletivo Black Lives Matter após o assassinato do afro-americano George Floyd pela polícia de Minnesota, em maio de 2020, reacenderam o debate sobre as memórias do tráfico de africanos escravizados na sociedade, sobretudo considerando que muitos comer- ciantes negreiros continuam a ser homenageados nas ruas das antigas metrópoles escravistas. Nesse sentido, projetos como o Salvador Escravista contribuem com subsídios históricos para provocar um debate acerca do papel desses indivíduos na construção das desigualdades e do racismo que caracterizam a sociedade brasileira. 40
Investigar os significados profundos dessas memórias traumáticas – ou, como se tem chamado recentemente, “memórias sensíveis” – é o que faz Francisco Phelipe Cunha Paz em seu artigo. A tensão entre os poderes públicos e a comunidade negra aparece nas decisões sobre o processo de patrimonialização e memorialização do sítio arqueológico do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, porta de entrada de milhões de africanos escravizados no Brasil. A partir de 2011, com os projetos de revitalização da área portuária do Rio de Janeiro, os escombros do antigo porto negreiro vieram à tona e, com ele, as dolorosas memórias do comércio negreiro. As escavações arqueo- lógicas revelaram também muitos artefatos e líderes religiosos foram convocados para identificar os objetos. O artigo de Phelipe Cunha, portanto, dialoga tanto com o papel dos poderes públicos no processo de patrimonialização do Cais do Valongo quanto com os sentidos atribuídos ao local pela comunidade negra da região.
A respeito da abolição do tráfico de escravizados entre a África e o Brasil, a historiografia brasileira é atravessada por, ao menos, quatro interpre- tações mais relevantes, elaboradas nos últimos noventa anos. A primeira delas, que vigorou até a década de 1940, entendia a questão como uma disputa entre os parlamentos britânico e brasileiro, cujos trabalhos pendiam a favor e contra os ingleses. A segunda interpretação, publicada entre os anos 1930 e 1950, apontou a hegemonia inglesa na história do fim do tráfico negreiro; a terceira, produzida entre as décadas de 1960 e 1980, destacou a associação dos parlamentos, apesar de favorecer a partici- pação dos britânicos naquele episódio; uma quarta abordagem, que vem ganhando força com base nas pesquisas elaboradas nos últimos trinta anos, evidencia a complexidade do comércio negreiro, propondo que, provavel- mente, sua superação envolveu um amplo consenso internacional. 41
Sem negar a importância da diplomacia internacional na supressão do tráfico brasileiro, vale destacar as ações de resistência dos escravizados, que também tiveram papel fundamental no processo de abolição do tráfico negreiro, como argumenta Dale Graden. As revoltas escravas no Brasil oitocentista – e, em particular, a Revolta dos Malês, de 1835, na Bahia, que pôs a sociedade escravista em sobressalto –, desempenharam um papel em moldar as políticas imperiais nos anos finais do comércio transatlântico no Brasil. 42 Essa é uma, dentre outras variáveis, que não deve ser ignorada ao avaliar os motivos que levaram o governo imperial a extinguir o tráfico negreiro em 1850. 43
Os textos de Paulo de Jesus e Carlos Silva Jr. dialogam com essa historiografia mais recente. Ambos os temas propostos pelos autores correspondem aos primeiros vinte anos do combate abolicionista inglês e reforçam a emergência de um novo contexto atlântico decorrente das implicações da política Fox-Granville (Charles Fox e Granville Sharp) que extinguiu o comércio negreiro para Inglaterra e suas colônias, em fevereiro de 1807. 44 Após proibir a participação de seus súditos no “infame comércio”, a Coroa britânica atuou como polícia marítima inter- nacional, restringindo – num primeiro momento – o tráfico português aos seus domínios na África e nas Américas, e em seguida pressionou energicamente o Brasil independente a abolir definitivamente o tráfico. A importância da Bahia como região que sofreu profundos impactos da interferência inglesa na economia dos negócios dos negreiros na Costa da Mina, sobretudo após a assinatura do tratado de Aliança e Amizade (1810), é o principal destaque dos dois artigos que compõem essa parte do dossiê. Os autores, Paulo de Jesus e Carlos Silva Jr. descrevem, entre outros temas, como a interpretação enviesada do artigo X do dito tratado provocou prejuízos financeiros e afetou diretamente os investi- mentos dos negreiros baianos.
Ampliando o debate para além da abolição gradual do tráfico e sua negociação entre ingleses, portugueses e brasileiros, o artigo de Paulo de Jesus também alude ao tema das apreensões lícitas e ilícitas de embar- cações luso-brasileiras. Dando conta do ocorrido, o autor descreve algumas das apreensões dos 22 navios, 18 deles enviados a partir de Salvador, acusados de descumprimento do supramencionado tratado, detalhando os valores reclamados à Inglaterra pelos navios capturados indevidamente entre 1811 e 1815. Ademais das questões contenciosas, outros temas também recebem destaque, como a participação de mulheres que atuaram como carregadoras (armando navios negreiros) no tráfico de africanos escravizados, tema que até o presente momento foi pouco abordado na historiografia sobre o tráfico transatlântico de escravizados. O autor detalha a relevância do papel da imprensa baiana e seu apoio incondicional aos traficantes locais. Numa defesa desavergonhada dos negócios do infame comércio, salvaguardando a ordem escravista, os periódicos denunciavam as irregularidades e abusos dos cruzadores ingleses nas capturas realizadas na costa africana. Tais denúncias serviram de base para que os comerciantes baianos exigissem um posicionamento do monarca Dom João VI com relação à aplicação do artigo X do Tratado de Aliança e Amizade.
Apesar do prejuízos causados aos traficantes baianos, pelo uso intenso do patrulhamento repressivo na África Ocidental, os resultados nem sempre foram satisfatórios para a política antitráfico inglesa, como também demonstram Paulo de Jesus e Carlos da Silva Jr., ao explicarem quais foram as reações e as alegações utilizadas pelos comerciantes da praça da Bahia que, assim como os negreiros africanos, possuíam uma extraordinária capacidade de se (re)organizarem para seguir comerciando na ilegalidade.
Convergentes e complementares, os artigos cobrem boa parte do debate diplomático-militar das primeiras três décadas do século XIX, início da Segunda Escravidão , 45 período significativamente próspero para a agricultura açucareira baiana, beneficiária das transformações econômicas após a revolta de São Domingos. Os engenhos baianos foram abastecidos por uma crescente chegada de mão de obra escravizada. É com base no crescimento exponencial do desembarque de escravizados que Carlos da Silva Jr. reavalia os números do tráfico para a Costa da Mina, sobretudo nos casos em que os negreiros chegavam na Bahia com passaportes de Cabinda quando na verdade haviam traficado em Uidá, Onim e nos demais portos da também conhecida Costa dos Escravos. 46 Como demonstra o autor, tal prática mascarou a demográfica presença dos africanos jejes e nagôs na Bahia (1815-1831), posto que – na maior parte dos casos – os escravizados eram identificados com o nome do porto de onde eles eram deportados.
A estrutura dos negócios, o envolvimento de cidadãos portugueses, brasileiros e africanos, a falsificação de passaportes e o embandeiramento (troca de bandeiras), principais estratégias utilizadas pelos negreiros luso-brasileiros, foram evidenciadas pelos dois autores, mas, segundo eles, essas não foram as únicas formas de resistência aos tratados antitráfico. Como discorre Carlos da Silva Jr., a participação dos negreiros africanos na Costa da Mina, entre eles, o mais famigerado de todos, Francisco Félix de Souza (o Chachá de Ajudá), demonstra como os negreiros que atuavam na outra margem do Atlântico se acomodaram às novas exigências do tráfico face à pressão militar dos cruzadores ingleses.
Ser um traficante bem-sucedido como o Chachá era uma tarefa com grandes exigências sobre a capacidade de se reorganizar e antecipar os passos dos seus inimigos, como fica demonstrado com a aquisição de diversas feitorias ao longo da costa, conectadas por um sistema lacustre. Félix de Souza conseguiu ludibriar alguns cruzadores ingleses ao transferir seus escravizados entre suas feitorias, garantindo assim a continuidade do abastecimento do infame comércio. Por meio desse e de outros exemplos, como no caso do rei de Onim e sua embaixada enviada ao Brasil, Silva Jr. questiona o significado da abolição do tráfico na perspectiva dos reinos africanos, que visavam garantir a manutenção do infame comércio, independentemente das decisões do parlamento inglês.
O dossiê aponta para a necessidade de situar (ou ressignificar) a abolição do tráfico transatlântico num contexto mais amplo – verdadeiramente global no escopo geográfico – de recriação de formas de trabalho forçado. Aqui, as reflexões de autoras, como Clare Anderson e Lisa Lowe, são particularmente relevantes, pois se contrapõem à noção do abolicionismo como um triunfo do liberalismo e apontam para os entrelaçamentos entre a abolição e o avanço do jugo imperial sobre espaços e populações não europeias. 47 Perspectiva semelhante é esposada por Mariana Candido, que usa o caso de Angola para argumentar que, ao invés de aumentar, o acesso à liberdade teria diminuído durante a chamada era do abolicionismo. 48
Desde a década de 1820, como demonstram os trabalhos de Céline Flory e François Zuccarelli, os franceses já se valiam do discurso aboli- cionista para legitimar a exploração da força de trabalho de ex-cativos, tanto no Senegal quanto nas colônias francesas do Caribe. 49 Tal estratégia ganharia ainda mais impulso após a abolição da escravidão, em 1848, quando o governo francês passou a patrocinar vários esquemas de migração forçada tanto no Atlântico quanto no Índico. 50 Das proximidades do rio Congo, por exemplo, mais de vinte mil africanos foram levados para o Caribe francês (Guadalupe e Martinica) e para a Guiana, numa migração forçada cujas características eram quase indissociáveis do tráfico de escra- vizados – ainda ativo na região. 51
É nesse contexto historiográfico que deve ser entendido o texto de Juliana Farias, que usa o caso do Senegal para analisar os corolários do abolicionismo numa região de influência francesa na África ocidental. Numa nuançada análise, centrada não em entidades abstratas, mas em trajetórias pessoais de africanos e africanas, Farias demonstra que o que foi gestado pelo abolicionismo francês não foi a liberdade, mas, sim, novas formas de exploração da mão de obra africana. Tal fato, como Farias assinala, refletia a circulação transimperial de ideias sobre a gestão de africanos recapturados – aqueles retirados de navios negreiros apreendidos pelas marinhas britânica, espanhola, francesa, portuguesa e brasileira. Tanto no caso francês como no português, o destino dos recapturados foi influenciado por políticas que os britânicos tinham adotado em suas colônias, as quais se baseavam na exploração do trabalho desses africanos. 52
A demanda pelo trabalho dos recapturados, como Farias igualmente acentua, tinha também relação direta com o avanço territorial francês na costa da África Atlântica. Num livro recente, o historiador David Todd argumenta que o colonialismo francês se caracterizou pela informalidade entre 1815 e 1880. Segundo Todd, a Argélia teria sido a única região da África verdadeiramente submetida ao jugo colonialista francês na primeira metade do século XIX. 53 À colônia do norte da África, na verdade, deve ser adicionado o caso do Senegal, onde os franceses tinham uma presença costeira que remontava ao século XVII. Ali, como demonstra o historiador senegalês Joseph-Pierre Diouf, uma série de ações militares e iniciativas econômicas, ainda nas décadas de 1840 e 1850, lançariam as bases de um controle territorial mais firme nas décadas seguintes. 54
O contexto francês serve em parte de pano de fundo para o texto de Aderivaldo Santana, que traz à tona relações pouco conhecidas entre Pernambuco e o Calabar. O fio condutor é o caso do navio Clementina, apreendido com 175 africanos na costa de Pernambuco em 1831. Do lado brasileiro, a apreensão evidencia o compromisso inicial do governo brasileiro com a abolição do tráfico transatlântico, que seria revertido posteriormente em meio a uma viragem conservadora no país e ao vertiginoso crescimento da produção cafeeira no Vale do Paraíba. Do lado africano, lança luzes sobre a recomposição de interesses mercantis na costa do Calabar como conse- quência da abolição do tráfico inglês em 1807. Até então, a região tinha gravitado na órbita de influência britânica, mas o fim do tráfico britânico criou um vácuo ocupado por traficantes de diversas nacionalidades, incluindo franceses, como o texto de Santana demonstra.
Assim como Farias, Santana destaca o destino dos africanos retirados de navios apreendidos na travessia do Atlântico. De livres, os chamados Africanos livres – expressão que reitera a violência cometida contra essas vítimas do tráfico – só tinham o nome. Na verdade, eram submetidos a condições que pouco se distinguiam do cativeiro, deixando clara uma faceta pouco estudada do projeto abolicionista: a criação de novas formas de exploração da mão de obra de ex-escravos africanos. Tal fenômeno, é preciso destacar, tinha contornos globais. Seja no Atlântico ou no Oceano Índico, tinha como pilar o chamado aprendizado, cujo intuito seria preparar os ex-escravos para a liberdade, mas que na realidade se tornou a pedra angular do trabalho forçado de africanos recapturados. 55
A atenção às chamadas biografias atlânticas é uma das inovações mais promissoras na historiografia do tráfico e tem lugar de destaque neste dossiê. Elas têm permitido compreender a circulação e a mobilidade de indivíduos, uma dimensão central no negócio atlântico de compra e venda de seres humanos. 56 Além disso, ao trazerem à luz experiências pessoais diversas, em maior ou menor grau, iluminam aspectos históricos pouco palpáveis ou mesmo invisíveis, num enquadramento de pesquisa macro e quantitativo. Esse é o ponto de partida comum de dois artigos do dossiê: o de Flávio Gomes e Valéria Costa e o de Roquinaldo Ferreira e Lucilene Reginaldo. Ambos têm como objeto trajetórias de personagens com algum grau de excepcionalidade – cada um a seu modo e muito diferentes entre si –, que servem como janela, conduzem a narrativa e circunscrevem os temas abordados pelos autores. A redução de escala a fim de perscrutar detalhes das relações interpessoais dos seus personagens principais e de outros que estão no seu entorno evidencia a opção pela micro-história. 57
Mas isso não significa, de forma alguma, o abandono de uma perspectiva de análise global. Pelo contrário, o interesse último é revisitar temas conhecidos ou escrutinar aspectos pouco explorados da história do tráfico no período ilegal, no caso dos artigos em destaque, em diferentes contextos do Atlântico. Mas no “jogo de escalas”, que se desenrola em uma via de mão dupla, há espaço para a exposição dos dissabores, do protagonismo e do destino – vulgar ou trágico – dos personagens.
A título de introdução, Gomes e Costa apresentam um panorama dos estudos que se debruçaram – ou privilegiaram – trajetórias de africanos e afrodescendentes, dando especial destaque à historiografia produzida nas últimas décadas. O interesse pelas movimentações e conexões atlânticas de libertos e pessoas de cor livres, envolvidas nas tramas do tráfico, antecede, e muito, as iniciativas mais recentes. Não é novidade, pelo menos entre os historiadores brasileiros, a contribuição pioneira de Pierre Verger, atento desde suas primeiras pesquisas às biografias desses indivíduos “no fluxo e no refluxo do tráfico” entre a Bahia de Todos os Santos e o Golfo do Benim. 58 Duarte José Martins da Costa foi um entre muitos marinheiros africanos – categoria composta por escravizados e libertos – que traba- lharam em embarcações envolvidas no comércio ilegal de pessoas nas décadas de 1830 e 1840. 59 A propósito, nas encruzilhadas do tráfico, o caminho de Duarte cruzou o de outro africano, Rufino José Maria, o Alufá Rufino, muito bem conhecido dos historiadores contemporâneos graças ao fabuloso livro de João José Reis, Flávio Gomes e Marcus de Carvalho. 60
Gomes e Costa revisitam vários temas explorados pela historio- grafia do tráfico por meio da imersão na história de vida do personagem e é justamente aí que se encontram algumas das suas contribuições originais. Na década de 1840, Duarte deixou o Rio de Janeiro para estabelecer residência em Recife, onde se insere na “rede miúda” do tráfico local, composta por uma variedade de pessoas que movimentavam o pequeno comércio de cativos de porta em porta e nas pequenas e médias casas de venda de escravos. A atenção dos autores a essa rede revela relações estreitas entre Pernambuco e Angola no período do tráfico ilegal, que extra- polavam e particularizam o comércio de seres humanos. Nesse aspecto, os autores contribuem com novas evidências para o tema do comércio bilateral entre as duas regiões no período do tráfico ilegal. De outra parte, a vida de Duarte, assim como do nosso conhecido Alufá Rufino, nos insere nos meandros da participação dos libertos no tráfico brasileiro. É tema espinhoso, delicado, doloroso e até antipático, mas que ainda assim precisa ser estudado. Mesmo na condição de minoria, “negros crioulos e africanos de diversas origens, nas duas margens do Atlântico, também estiveram envolvidos” no tráfico. 61 Entretanto, essa carreira não estava aberta a todos os libertos, sendo uma “minoria dentro do que já era a minoria dos libertos”. 62 No fim de sua vida, Duarte não tinha sequer uma casa própria, acabou pobre, assim como a maioria dos forros engajados no tráfico, viveu (e morreu) na pobreza, penando com as sequelas do cativeiro. Com relações estreitas com outro tema igualmente espinhoso e delicado (os libertos e escravos proprietários de escravizados) esse tem sido um dos ramos mais profícuos da historiografia brasileira sobre o tráfico, resultando na produção de livros e artigos sobre a temática. 63
O artigo de Ferreira e Reginaldo nos leva ao outro lado do Atlântico, inserindo o contexto africano, especificamente a região do Congo e Angola, na conjuntura final do tráfico de escravizados. Para tanto, tomam como fio condutor a trajetória de Nicolau de Água Rosada, um membro da nobreza do Reino do Congo. Socialmente muito distante do marinheiro liberto Duarte, Nicolau era filho de Henrique II, o rei que firmou um tratado antitráfico entre Portugal e o reino do Congo em 1845. Ele foi educado na cultura ocidental, fazendo parte dos seus estudos em Luanda, com uma estadia de quase dois anos em Portugal. Na década de 1850, tornou-se funcionário da administração colonial portuguesa e depois se notabilizou pela oposição a projetos lusos de expansão territorial no baixo Congo. Paradoxalmente, Nicolau de Água Rosada foi acusado de ser aliado dos portugueses, sendo brutalmente assassinado por africanos contrários ao avanço da presença europeia no Baixo Congo em 1861.
Como revela a breve nota biográfica, a trama que envolve a vida de Nicolau extrapola os limites territoriais do Congo e Angola e do domínio português naquela região. Nesse particular, os interesses e a atuação da diplomacia brasileira em Angola, no período do tráfico ilegal ganha destaque. O tema, mais recentemente, tem merecido a atenção dos histo- riadores brasileiros. 64 O artigo de Ferreira e Reginaldo, ao focalizar a atuação do médico brasileiro Saturnino de Souza e Oliveira, estreitam o diálogo e contribuem com essa historiografia. Mas fazem isso sem perder de vista a conjuntura maior que envolve a trajetória de Nicolau, marcada por múltiplos atores e interesses geopolíticos, como as disputas sucessórias no Reino de Congo, a importância do tráfico para as elites locais, a intervenção da Inglaterra nos projetos de expansão territorial de Portugal, além dos interesses brasileiros em Angola após a proibição do tráfico em 1850.
Partindo do evento dramático (o assassinato de Água Rosada), os autores buscam novas entradas para a interpretação dessa conjuntura, bastante visitada pela historiografia especializada, diga-se de passagem. Examinando atentamente a trajetória de Água Rosada, particularmente sua relação com o comissário britânico Edmond Gabriel e com o cônsul brasileiro Saturnino de Souza e Oliveira, os autores propõem leituras novas e originais sobre a atuação britânica, as manobras diplomáticas brasi- leiras e também sobre o protagonismo político de Nicolau. Nesse ponto específico, problematizam as interpretações que o eternizaram como marionete dos interesses estrangeiros ou como nacionalista avant-garde . Cabe ressaltar que isso é possível em razão das fontes britânicas e luso-angolanas – muitas inéditas – analisadas pelos autores.
Fica dessa maneira delineado este dossiê. Os textos, cada um à sua maneira, se unem no esforço de apresentar uma história do comércio negreiro em suas múltiplas dimensões, rompendo barreiras nacionais (inclusive historiográficas), dialogando com a produção africanista e com a nossa rica historiografia. Cobrindo um período de mais de 40 anos, quando as negociações para o fim do tráfico já estavam na ordem do dia, os artigos das historiadoras e historiadores iluminam a participação de diferentes regiões e sujeitos nas redes transatlânticas do comércio de seres humanos. Esperamos que os trabalhos aqui apresentados contribuam para aumentar o interesse das novas gerações de historiadores na história do tráfico, “o mais grandioso drama dos últimos mil anos da história da humanidade”. 65
Gostaríamos de agradecer à Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros pela organização da jornada “A Abolição do Tráfico Transatlântico de Africanos Escravizados: os 170 Anos da Lei Euzébio de Queirós”, a semente desse trabalho: Itan Cruz Ramos (pela arte do material de divulgação), Iracélli da Cruz Alves (quem primeiro sugeriu a organização de um dossiê), Aline Najara da Silva Gonçalves, Maria Emília Vasconcelos dos Santos e Gustavo Teixeira Bronze (pela mediação das mesas). Estendemos nossos agradecimentos aos outros participantes da jornada que, por razões diversas, não puderam se juntar a nós neste dossiê: Guilherme Oliveira da Silva, Raíza Canuta, Ynaê Lopes dos Santos, Isabel Cristina dos Reis, Mônica Lima, Luciana Brito e Júlio César Medeiros. Ana Flávia Magalhães Pinto e Cândido Domingues foram responsáveis pela revisão do press release , e a eles também agradecemos. Finalmente, cabe aqui um agradecimento especial à Afro-Ásia ,na figura de Iacy Maia Mata, por acolher com entusiasmo a nossa proposta de um dossiê temático sobre o comércio transatlântico de africanos escra- vizados protagonizado por pesquisadores negros.
Referencias