DOSSIÊ
A BAHIA E A COSTA DA MINA NO ALVORECER DA SEGUNDA ESCRAVIDÃO (C. 1810-1831) *
BAHIA AND THE COSTA DA MINA AT THE DAWN OF THE SECOND SLAVERY (1810-1831)
A BAHIA E A COSTA DA MINA NO ALVORECER DA SEGUNDA ESCRAVIDÃO (C. 1810-1831) *
Afro-Ásia, núm. 65, pp. 91-147, 2022
Universidade Federal da Bahia
Recepção: 22 Junho 2021
Aprovação: 11 Janeiro 2022
Resumo: Este artigo investiga as relações entre a Bahia e a Costa da Mina no alvorecer da Segunda Escravidão (c. 1810-1831). Apesar do foco historiográfico no Sudeste e no tráfico para a África Centro-Ocidental, a região do Golfo do Benim, na África Ocidental, continuou um importante mercado negreiro atlântico. A partir de 1815, os traficantes baianos desenvolveram estratégias para burlar a repressão antitráfico inglesa. Ao mesmo tempo, os portos africanos de embarque se organizaram para suprir a demanda baiana por cativos. Discute-se a participação de africanos libertos no comércio atlântico ilegal. Embora sua participação seja mais visível a partir da década de 1830, eles já compunham a tripulação das embarcações negreiras como pequenos negociantes e utilizando redes comerciais transoceânicas. Ao fim, reavalia-se números de africanos trafi- cados da Costa da Mina por navios baianos.
Palavras chave: Bahia, Costa da Mina, Segunda Escravidão, Século XIX.
Abstract: This paper examines the relations between Bahia and Costa da Mina at the dawn of the Second Slavery (c.1810-1831). Although scholars have focused their attention on the slave trade between Southeast Brazil and West-Central Africa, the Bight of Benin region in West Africa remained an important supplier of slaves. Beginning in 1815, Bahian slave traders developed strategies to circumvent British antislavery measures. At the same time, African slave ports organized trade operations to meet the demand for captives. The article also discusses the participation of African freedmen in the illegal slave trade. Although their involvement became more visible in the 1830s, prior to this they already present as members of the crew on slave ships or as small merchants, participating in transoceanic trading networks. Finally, the paper reassess the number of Africans trafficked from the Bight of Benin to Bahia.
Keywords: Bahia, Gulf of Benin, Second slavery, Nineteenth century.
Em 13 de novembro de 1812, o periódico baiano Idade d’Ouro do Brazil anunciava a partida do bergantim Pistola para a Costa da Mina, que levava a bordo embaixadores do reino do Daomé, chegados à Bahia em janeiro do ano anterior.1 Esta comitiva – mais uma das embaixadas enviadas pelos reinos africanos para tratar de assuntos do tráfico desde meados do século XVIII – visava celebrar um acordo de exclusividade com Portugal.2 No contexto das primeiras medidas inglesas para extinguir – ou pelo menos limitar – o tráfico, assegurar o monopólio do comércio com a Bahia, um dos principais parceiros daomeanos, era vital.
Porto Novo, com quem a Bahia estabelecera relações comerciais em meados do século XVIII, também enviou uma missão diplomática, em setembro de 1810, composta por um embaixador e seu secretário. A embaixada ficou retida na Bahia por mais de dois anos – seu destino final era o Rio de Janeiro –, tempo suficiente para a chegada da comitiva daomeana. A organização do comércio transatlântico de africanos escra- vizados era assunto de grande interesse entre os reinos africanos e motivo de preocupação entre as autoridades portuguesas na Bahia.
Aquela era uma conjuntura nova no Golfo do Benim. Ingleses e franceses haviam abandonado seus fortes em Uidá entre fins do século XVIII e início do século XIX.3 Os britânicos encerraram suas ativi- dades negreiras em 1807 e desde então fustigavam outras nações europeias a segui-los. Nesse sentido, a Bahia, tradicional parceira comercial na Costa da Mina, tornou-se alvo dos interesses africanos. O tratado de 19 de fevereiro de 1810, entre a Inglaterra e Portugal, limitava o comércio ao norte do Equador, e não se tinha certeza se ele garantia a continuidade do tráfico luso-brasileiro na Costa da Mina, embora o Conde de Linhares, que costurou as negociações, assegurasse que sim.
O governador da Bahia, Conde dos Arcos, pediu instruções sobre como agir em relação às propostas dos embaixadores africanos. Do Rio de Janeiro, o Conde das Galvêas instruiu o governador a não celebrar qualquer tipo de tratado comercial. Sem sucesso em sua missão, a comitiva de Porto Novo partiu em 1813, no navio Constante .4 Antes de deixarem a Bahia, porém, foram batizados, possível demonstração de boa vontade dos emissários africanos em relação aos portugueses. O embaixador, nomeado José, de nação mondobi, teve como padrinho o Conde dos Arcos. Já seu secretário, Bernardo, também mondobi, foi apadrinhado por Domingos Vaz de Carvalho, um conhecido traficante local.5
Esses episódios também revelam outras dinâmicas que se estabe- leceriam nas décadas seguintes, a saber, a participação mais efetiva de libertos africanos no tráfico. O mestre do Pistola , o navio que levou os embaixadores daomeanos a Uidá, era Antônio Narciso, um liberto jeje, um caso excepcional de um africano atrás do leme do navio.6 Estudos recentes demonstraram a constituição de uma comunidade mercantil africana, sediada na Bahia, ligada ao comércio transatlântico de africanos escravizados desde pelo menos a década de 1770.7 Além disso, escravizados e libertos participaram do tráfico negreiro como marinheiros ou assumiram posições destacadas na economia do tráfico no lado africano, como o bastante conhecido João de Oliveira.8
Por isso, observa-se no século XIX a constituição de “comunidades atlânticas” voltadas para o tráfico negreiro.9 Como mostra Luis Nicolau Parés, o patrimônio constituído por alguns libertos, no Brasil, oriundo direta ou indiretamente do tráfico, bem como o status social dele derivado “foi instrumental para a subsequente constituição de uma comunidade mercantil em terras africanas”.10
Os primeiros anos da década de 1810 também marcam as primeiras apreensões britânicas de navios portugueses na Costa da Mina desde a celebração do Tratado de 1810.11 A captura das embarcações criou um contencioso entre os homens de negócio da Bahia e as autoridades britânicas que apareceu nos jornais locais e em periódicos internacionais. As autoridades portuguesas, mobilizadas pelos comerciantes da Praça da Bahia, também demonstraram preocupação com tais episódios.12
Ainda do lado africano, além dos problemas relacionados ao fim do tráfico e a seus impactos internos, o reino do Daomé passava politicamente por um momento delicado, com a fragilidade do governo de Adandozan (1797-1818).13 Ao mesmo tempo, Lagos ascendia no comércio transa- tlântico, beneficiado pela conjuntura interna na região e pelo contexto transatlântico, e isto significava aprofundar os laços comerciais com a Bahia e, mais tarde, com Cuba.
Essas mudanças profundas na organização do comércio transa- tlântico de seres humanos ocorreram no alvorecer do que a historiografia tem convencionado chamar de “Segunda Escravidão”. Este modelo inter- pretativo enfatiza as transformações experimentadas pelo escravismo nas Américas a partir da reorientação na economia capitalista mundial oitocen- tista, tendo a Inglaterra como epicentro desse fenômeno. Como mostra Dale Tomich, as mercadorias produzidas por mão de obra escravizada entraram no consumo da classe trabalhadora europeia e, para atender a essa demanda, exigia-se o aumento dos produtores escravizados para fornecer produtos mais baratos para os operários europeus. Além do algodão, matéria prima industrial fornecida pelos Estados Unidos, o café, do Brasil, e o açúcar, de Cuba, também se integraram a esse mercado internacional de commodities tropicais. Esse processo resultou na revitalização da escravidão nessas áreas – embora não haja evidência de qualquer definhamento do escravismo brasileiro no período – e numa divisão capitalista internacional do trabalho.14 No caso brasileiro, a expansão da agricultura cafeeira estimulou o contrabando de milhares de africanos escravizados com a conivência das autoridades governamentais do alto escalão, agentes públicos responsáveis pela repressão ao tráfico de escravos, a imprensa, entre outros órgãos.15
O desenvolvimento capitalista e o comércio transatlântico de africanos escravizados caminhavam lado a lado, apesar do lobby antitráfico britânico, que lhe servia de contraponto;16 entretanto, outras áreas do Brasil também se beneficiaram dessa conjuntura no mercado internacional de commodities. A produção açucareira baiana, por exemplo, apresentava indicadores positivos entre o final do século XVIII até 1821, sendo mais tarde afetado pela guerra de independência do Brasil na Bahia. Assim, a Bahia estava mais interligada ao fenômeno, pelo menos em seus primeiros anos, do que reconhece essa historiografia.
Outrossim, essa abordagem de alguma forma ignora os impactos desse recrudescimento do tráfico de escravos na África Atlântica.17 Como os autores de um estudo recente reconhecem, “tanto a África quanto os complexos escravistas atlânticos passaram por transformações como parte da profunda expansão política, econômica e geográfica e da reestru- turação da economia-mundo capitalista no decorrer do século XIX”.18 Essa transformação, no caso africano, passava pelo engajamento de certas regiões com a produção de commodities para as indústrias europeias, como o comércio de azeite de dendê, que se expandiu durante a vigência do comércio transatlântico de africanos escravizados.
Apesar disso, a maior parte dos trabalhos não articula as mudanças sociais, econômicas e políticas em curso na África com as transfor- mações na economia global do período. Assim, a África assume uma posição passiva, de fornecedor de força de trabalho para as plantations no Brasil e em Cuba. Cabe perguntar, no entanto, como os comerciantes africanos agiram e reagiram à escalada da demanda por braços africanos nas primeiras décadas do século XIX e às ações de repressão ao tráfico. Discutir a participação africana como parceira comercial nas redes do tráfico ilegal, a partir da análise das relações entre a Bahia e a Costa da Mina, será o objetivo deste artigo.
O período aqui analisado (c. 1810-1831), a primeira fase da ilega- lidade, corresponde à montagem do sistema de contrabando negreiro.19 Nesse período forjaram-se os estratagemas para burlar os tratados bilaterais antitráfico entre a Grã-Bretanha e Portugal (e, mais tarde, com o Brasil), primeiro ao norte do Equador e, a partir de 1831, por toda a África. Pode-se atribuir a reduzida ênfase ao intervalo 1815-1831 a certo riocentrismo – ou, neste caso, “valecentrismo”, em alusão ao Vale do Paraíba – na historiografia brasileira e à associação entre a ilegalidade do tráfico e a construção do estado nacional brasileiro.20
Como o Tratado de 1815 afetava principalmente o comércio negreiro da Costa da Mina, os traficantes baianos tomaram a dianteira em desenvolver artimanhas para escapar da repressão inglesa no Atlântico. Foi a época da abolição “para inglês ver e baiano ensinar”, na sagaz expressão de Paulo de Jesus.21 Embora possa se pensar que o comércio com a Costa da Mina é um problema (historiográfico) baiano, este foi o período do aprendizado da ilegalidade, quando o esquema do contra- bando – dissimulação com passaportes falsos, a operação do tráfico na margem africana, o conluio com as autoridades locais – foi montado, testado e aprovado (ou abandonado) e depois replicado e aprimorado em outras partes do Brasil na segunda época da ilegalidade (1831-1850).
Sabe-se que os traficantes baianos acobertavam suas atividades ilícitas ao norte do Equador com passaportes para a África Centro-Ocidental, quando seu destino real era a Costa da Mina.22 Assim, os números desse tráfico precisam ser reavaliados, tema tratado na parte final deste artigo. Essa dimensão quantitativa tem implicações importantes do ponto de vista da configuração étnica da escravidão africana na Bahia, pois amplia signi- ficativamente o contingente populacional de jejes e nagôs ali introduzidos durante estes dezesseis anos (1815-1831). Essa revisão também coloca em perspectiva a questão dos africanos livres, apreendidos durante a repressão ao tráfico transatlântico, uma vez que estes jejes e nagôs também foram escravizados ilegalmente, de acordo com as convenções antitráfico entre Portugal, Brasil e a Grã-Bretanha.
Este artigo está dividido da seguinte forma: na primeira seção, discuto brevemente a prosperidade da indústria açucareira baiana e o aumento do comércio transatlântico de africanos escravizados na Costa da Mina nas primeiras décadas do oitocentos. Nessa parte, também abordo as apreensões das patrulhas britânicas na região e os protestos dos homens de negócio da Bahia. Na parte seguinte, trato das negociações do Congresso de Viena e como ele afetou o tráfico ao norte do Equador. Na sequência, atravesso o Atlântico e analiso o comércio negreiro na Costa da Mina em tempos de proibição. A próxima seção discute a participação de africanos libertos no comércio negreiro a partir de alguns casos particulares. Por fim, ofereço uma nova estimativa do tráfico baiano no Golfo do Benim entre 1816 e 1830, a partir de uma análise crítica aos dados do Slave Voyages .
Da prosperidade açucareira às “injustiças” na Costa da Mina (c. 1790-1815)
Com a Revolução Haitiana (1791-1804), a indústria açucareira baiana viu uma oportunidade para se reposicionar no mercado internacional. Esse episódio desarticulou a produção da ilha de Saint-Domingue, abrindo uma perspectiva promissora para os senhores de engenho baianos. O renas- cimento da indústria baiana vinha de antes, desde o final da década de 1770. Outros eventos atlânticos, como a Revolução Americana, abriram uma brecha para o incremento da produção açucareira na América portuguesa. Havia uma conjuntura favorável para a expansão da indústria do açúcar, com a construção de novos engenhos e o aumento da produção. Nesse ínterim, a ilha de Cuba reorientou os recursos econômicos e áreas cultiváveis para o plantio da cana. A açucarocracia baiana, atenta à competição internacional, buscou melhorias qualitativas e quantitativas para equiparar-se ao cresci- mento do açúcar cubano.23 A prosperidade agrícola baiana, por sua vez, alavancou o aumento do volume do tráfico da Costa da Mina para a Bahia.
Com a abolição do tráfico inglês, em 1807, os navios da Bahia dominaram o comércio negreiro no Golfo do Benim. O rei Adandozan do Daomé rapidamente se movimentou para assegurar a fidelidade comercial portuguesa, através de trocas de correspondências com o príncipe regente, D. João VI. Entre os assuntos tratados nas cartas, o rei do Daomé se jactava de sua capacidade militar de suprir a demanda dos negreiros luso-brasileiros por cativos.24 Essa conjuntura iria mudar novamente, a partir dos acordos diplomáticos europeus que atingiriam em cheio o comércio transatlântico daomeano.
Em fevereiro de 1810, um tratado bilateral entre Portugal e a Grã-Bretanha limitava o tráfico negreiro luso-brasileiro na África Ocidental. O artigo X proibia o tráfico português ao norte do Equador, exceto nas possessões portuguesas ou naquelas áreas que eram alvo de suas pretensões (os portos ocidentais e orientais da região), e nesta região se incluía a Costa da Mina.25 Em teoria, o tratado indicava a disposição portuguesa – ainda que duvidosa – em pôr fim ao comércio de escravos; na prática, o acordo tergiversava sobre o fim do tráfico, tornando a Costa da Mina uma zona livre para os negreiros luso-brasileiros.
Não foi esse o entendimento da Inglaterra, que empreendeu uma campanha agressiva em relação ao tráfico português naquela área. Fazendo uso das interpretações do tratado, que autorizaria o tráfico somente em Uidá – a única área em que os portugueses, de fato, tinham um empreen- dimento, o forte São João Batista –, os cruzadores ingleses capturaram diversos navios traficando nos portos da região (Popo Grande e Popo Pequeno, Porto Novo, Badagri e Lagos).26
Os incidentes começaram em 1811. Em 22 de setembro daquele ano, o governador de São Tomé, Luis Joaquim Lisboa, alertou ao Conde das Galvêas sobre chegada àquele porto da fragata britânica Thais , acompa- nhada pelo navio baiano Vênus , apresado em 29 de agosto sob “pretexto” de ter realizado o tráfico em Cabo Mesurado. Outro navio português, o Calipso , foi capturado em Badagri por supostamente ter comerciado cativos na fortaleza de Acra e em Comenda.27 É provável que este navio estivesse realizando outros tipos de negócios na Costa do Ouro, pois em julho de 1812 o capitão do Amelia informou que os fortes britânicos na região estavam fornecendo canoas – indispensáveis para a navegação entre o litoral e as lagoas – para os navios negreiros portugueses.28
Em janeiro de 1812, o capitão do Amelia já havia identificado a presença de duas canoas de Cape Coast a bordo do navio Bom Caminho , que se encontrava em Popo Pequeno pronto para seguir a Uidá. Ele instou os governadores dos fortes ingleses a se absterem de tal comércio, sob pena de conduzi-los à Serra Leoa para julgamento.29 Um aviso foi enviado aos gover- nadores dos fortes ingleses, advertindo sobre as penalidades previstas aos envolvidos segundo o Ato do Parlamento britânico de 11 de maio de 1811.30
Ainda em 1812, o governador de São Tomé relatou as “sucessivas hostilidades” das embarcações da Royal Navy contra os navios portugueses. Eram especialmente ativas as fragatas Kangoroo – que havia tomado o navio Vigilante –, comandada por John Lloyd, e Amelia , sob a liderança do Comodoro Frederick Paul Irby, que até aquele momento remetera treze embarcações do Brasil para Serra Leoa.31 Outras embarcações baianas foram apresadas pelos cruzadores britânicos no início daquele ano em Porto Novo: os navios Destino, Desengano e Feliz Americano . Durante a visita às embarcações, o capitão do Amelia notou que eles carregavam canoas de “Elmina & outros estabelecimentos britânicos”, ferindo assim os termos do Tratado de 1810.32
Em abril daquele mesmo ano, o Amelia admoestou os navios Lindeza, Prazeres e Flor do Porto, ancorados em Onim, a não se engajarem no comércio de africanos.33Essas apreensões, observadas na “Costa d’África à exceção de Ajudá”, prejudicavam não apenas os negociantes da Praça da Bahia, mas também colocavam a economia de São Tomé “na mais deplorável decadência”, dependente dos navios negreiros que por lá passavam para reabastecimento e pagamento de taxas.34 No Natal de 1812, outro navio baiano foi conduzido à Serra Leoa por ter feito comércio de escravos em Cabo Lahu, onde foram encontrados quatro escravos a bordo na ocasião.35
Enquanto as ações britânicas ocorriam no Atlântico, as disputas internas pelo controle do comércio de escravos no litoral africano conti- nuavam. Uma carta de ordens de 1811, encontrada no bergantim Prazeres , capturado em Onim em 1812 (não ouviu as advertências do capitão inglês), mencionava uma guerra na região, provável referência aos conflitos entre o Daomé e Porto Novo pelo mercado de escravos, que datavam da década anterior.36 Isso é consistente com o relato britânico de que os “nativos de Ajudá e Porto Novo estavam em Guerra”. Segundo esse relatório, os daomeanos queimaram as canoas dos navios parados em Porto Novo, forçando a exclu- sividade do tráfico em Uidá. Esses conflitos se acirraram ainda mais depois da retirada de ingleses e franceses do comércio de escravos e das apreensões inglesas, que reduziram o número de navios na região.37
Com o Tratado de 1810, o tráfico em Uidá era a única alternativa para escapar do risco de captura pelos navios da Royal Navy. Cerca de 45 navios da Bahia estavam empregados no comércio negreiro da Costa da Mina naqueles dias, principalmente nos portos de Popo Pequeno, Uidá, Porto Novo, Badagri e Lagos. Embora seja bastante conhecida a diversi- ficação dos portos de comércio da região, é muito provável que a maioria dessas embarcações se dirigisse a Uidá.38 Eventualmente, Uidá também era alvo das atividades repressivas britânicas. Em março de 1812 o navio Quiz capturou dois navios negreiros luso-brasileiros naquele porto. A tripulação tentou escapar mas foi recapturada pelo Kangoroo e os navios levados para Serra Leoa.39
Os britânicos fustigavam outras áreas de tráfico na Costa da Mina. Em novembro de 1813, autoridades de São Tomé relataram apreensões na “Costa de Leste”, os portos orientais da Costa da Mina – também conhe- cidos como “portos de baixo”. O navio Disforio foi tomado em Badagri; em Porto Novo, o bergantim Providência ; e no “Porto da Mina” (uma referência a Popo Pequeno, provavelmente) a sumaca São José . Os ingleses “não reservam outro porto mais que o de Ajudá” para o tráfico, explicava o governador de São Tomé.40
Os capitães baianos protestaram. Em 1812, Antonio Ribeiro Pontes Braga, primeiro piloto do Calipso , reclamou da atuação do capitão do H. M. S. Thais , Edward Scobell, durante a captura do brigue. Segundo o piloto, o navio baiano se encontrava no porto de Onim “a fazer a sua negociação de escravos” (e não em Badagri, como informou o documento anterior) quando foi abordado pelo cruzador britânico. Mesmo após apresentar todos os documentos exigidos, o capitão Scobell enviou quatro escaleres, acompanhados por um oficial do navio britânico, e passou a transportar vários barris e outros bens do Calipso para o Thais . Perguntado pelo piloto “a Razão porque ele cometia semelhantes despotismos”, o oficial respondeu apenas ter recebido ordem do capitão inglês. Este, por sua vez, disse ao piloto Antônio Braga que “na Serra Leoa os abria Requerendo a Corte”. O piloto do brigue português protestava em nome do senhorio do navio, Guilherme José Ferreira, da Praça da Bahia, “Como a todos os mais [armadores] que tiverem direito de Reclamar qualquer prejuízo que lhe resultasse da violência Com que o dito Capitão da dita Fragata se apossou do Brigue Calipso”.41
Também reclamaram (e amplamente) os proprietários das embar- cações apreendidas. As autoridades portuguesas receberam várias queixas sobre as capturas e tentaram equacionar a questão. Em 1812, o Conde dos Arcos informou ao Conde das Galvêas que o navio São Lourenço , “por uma série de acasos felizes”, escapou da apreensão, mas que isso “despertou as dores já adormecidas desta Praça com a terrível notícia da continuação das hostilidades, que a Marinha Britânica continua a fazer na Costa de Leste”. Seis proprietários de navios, representantes dos homens de negócio da Bahia, foram a sua presença narrar o “novo e atrocíssimo atentado” e pediram providências.42
Os jornais locais também tomaram partido da causa negreira. O periódico Idade d’Ouro do Brazil , por exemplo, noticiou as tomadias do capitão inglês Frederick Irby, carrasco dos negreiros baianos. Além disso, seus editoriais alimentavam a ambiguidade do Tratado de 1810, dando a entender que todos os portos da Costa da Mina estavam à disposição dos portugueses (“naqueles portos chamados entre nós Costa da Mina, que pertencem à sua Coroa, ou a que a sua Coroa tem pretensões em razão do descobrimento e da antiga posse de negociar ali”).43 Foi com base nisso que José Gomes Ferreira, proprietário do Feliz Americano , apreendido em Porto Novo em 1812 e condenado pelo tribunal de Serra Leoa, requereu uma indenização de mais de 97 contos de réis.44
Essa discussão iria extrapolar as fronteiras territoriais. Do coração da City, os portugueses se manifestaram pelos periódicos O Investigador Portuguez em Inglaterra e Correio Braziliense que, até pelo menos 1815, defendiam o comércio de africanos escravizados.45 Acusavam os britâ- nicos de “arbitrariedades” ao extrapolar as convenções do Tratado de 1810. Para justificar as capturas, os ingleses usavam de interpretações “tão violentas, tão forçadas, e torcidas, e até tão ridículas” que revelavam sua “ambição, e sede de presas”. Mesmo depois que os comerciantes da Bahia se ajustaram às diretrizes, traficando apenas em Uidá, os cruzadores britânicos continuaram suas ações de captura, reclamavam os homens de negócio da Bahia em 1813.46 De fato, entre 1810 e 1812, pelo menos dezessete navios de bandeira portuguesa foram apreendidos, doze dos quais pertencentes a comerciantes da Bahia.47 Tampouco os navios de Pernambuco, que não tinham relações tão umbilicais com a Costa da Mina quanto a Bahia, escapavam da perseguição da marinha britânica.48
Em novembro de 1813, os donos de navios pernambucanos também protestaram contra as ações inglesas.49 Os pedidos de indenização duraram até 1815, quando a Convenção de Viena tratou de regular essa questão.50
Há, em geral, acordo de que as ações inglesas de 1811-1812 ocorreram de forma ilegal, embora o próprio Tratado de 1810 carregue as suas ambiguidades. Como mostra Valentim Alexandre, os defensores do tráfico luso-brasileiro consideravam os termos do tratado “suficientemente latos” para garantir a continuidade indefinida do tráfico na região.51 Um dos mais proeminentes juízes do Almirantado britânico escreveu, em 1814, que lhe era “absolutamente impossível” oferecer qualquer explicação sobre o tratado anglo-português de 1810 “por sua própria Fraseologia obscura e equívoca”, e que a reivindicação portuguesa de soberania na Costa da Mina era “de forma alguma compreendida”.52 Provavelmente os comandantes da Royal Navy acompanharam essa mesma linha de pensa- mento, assediando os navios portugueses no Golfo do Benim.
A preocupação com as capturas de navios e seu impacto sobre o comércio da Costa da Mina também pairava sobre as autoridades africanas. A queda no número de embarcações portuguesas comprometia a economia local e diminuía os dividendos para os reinos africanos, numa época de aumento da oferta de cativos no contexto dos desdobramentos do jihad de 1804 e dos conflitos que se espalhavam pelo território iorubá.53 Em carta escrita em 1812 a D. João VI, o rei de Onim, “Adoxá” (Adele), informava que não lhe constava que o rei de Porto Novo, de Epé ou mesmo de Badagri (este último parte de seus domínios, como reivindicava) tivesse celebrado qualquer acordo com os britânicos que para eles fossem “sem atenção tomar os navios da nação amiga e aliada, bem como aconteceu no meu Porto que fizeram prisioneiros a três navios Portugueses que se achavam a largar no dia seguinte, e todos muito felizes”. Para evitar contratempos, convidava as autoridades portuguesas a construírem “quantos Fortes quiser e terem o título de Praias Portuguesas, sem que para isso eu queira tributo, ou débito algum, só sim desejo a boa amizade, e a potência do Comércio”. Ainda enviava ao Brasil um intérprete, “Agosçu” (Agossu), que acompanharia o capitão Inocêncio Marques de Santana, homem de muitas aventuras e desventuras na Costa da Mina, em seu retorno à Bahia. Uma embaixada informal, pode-se dizer.54
A correspondência demonstra que os reinos africanos acompanhavam, atentos, às discussões atlânticas.55 Primeiro, ao argumentar que não se havia celebrado tratado de supressão do tráfico entre os reinos africanos e a Inglaterra, o rei de Onim indicava que as medidas britânicas eram “letra morta”, sem aplicação em seus domínios. Dialogava com a mesma linguagem jurídico-diplomática que causara as ambiguidades do tratado anglo-português de 1810 e os protestos dos comerciantes da Bahia. Ao não ser convidado a participar das negociações pela restrição do tráfico ao norte do Equador, defendia que a área sob seu controle continuava livre para os negreiros luso-brasileiros. Em 1816, houve uma frustrada tentativa britânica de estabelecer uma política antitráfico mais agressiva em relação à África, mas os legisladores concluíram que não era direito de uma nação “compelir qualquer um a receber uma gentileza”.56
As palavras do rei de Onim ecoam o debate historiográfico sobre o significado da abolição do tráfico transatlântico de africanos escravizados da perspectiva dos reinos africanos. As discussões sobre o comércio ilegal e o comércio “lícito” devem levar em conta como as autoridades locais compreendiam a questão e como esse entendimento foi crucial para a manutenção do tráfico até a década de 1860.57 A interrupção do forneci- mento de cativos era fundamental para o sucesso das medidas antitráfico, e este objetivo dependeria do diálogo e do convencimento. Lição aprendida bem mais tarde pela Grã-Bretanha, que usou da diplomacia e da força para atingir seu propósito.58
Ao mesmo tempo, com o convite para o estabelecimento de “Praias Portuguesas” em seu litoral, o rei de Onim demonstrava profundo conhecimento dos termos do Tratado de 1810, provavelmente através de conversas entre seus representantes e os traficantes no litoral. Buscava então uma alternativa para proteger os interesses portugueses na Costa da Mina e os seus próprios. As “Praias Portuguesas” permitiriam que os vasos luso-brasileiros traficassem em Lagos sem o incômodo inglês e, de quebra, concentraria as atividades negreiras em seu território.
A repressão britânica não coibiu as atividades negreiras baianas no Golfo do Benim. Entre 1811 e 1814, entraram na Bahia 78 navios negreiros, 60 dos quais vindos da Costa da Mina. Ao longo daqueles anos, a Bahia importou 17.912 cativos da região, cerca de 75% de todos os africanos introduzidos na Bahia no período. Além dos tradicionais portos de embarque na região (Uidá, Porto Novo, Badagri e Onim), havia pelo menos uma novidade: “Judó, Porto Novo da Costa da Mina”.59 Aabertura de novos portos era uma estratégia para ampliar os locais de embarque e, dessa maneira, escapar das apreensões britânicas, sobretudo a partir da década de 1830, quando a marinha inglesa estabeleceu o bloqueio a alguns portos na África Ocidental.60 Embora os cruzadores ingleses patrulhassem o litoral, suas ações se concentravam nas principais áreas de embarque. Henry Huntley, oficial britânico, escreveu que Francisco Félix de Souza mandava os negreiros partirem para outros portos sempre que percebia a aproximação de um cruzador britânico a Uidá e enviava os cativos pelas lagoas até o novo ponto de embarque, que era realizado “rapidamente”.61 Assim, a diversificação de portos – ou mesmo a circulação entre os já existentes – dificultava a repressão ou, do ponto de vista dos traficantes, facilitava o contrabando.62
Nesse caso específico, o porto de “Judó” se referia a Adjido.
Há pelo menos dois locais com esse nome: um primeiro, situado há alguns quilômetros da cidade de Badagri, e outro, nas imediações de Popo Pequeno. Ambas as localidades se relacionam com as atividades negreiras do Chachá. Afundação da primeira resultou do restabelecimento de Francisco Félix na “Costa de Leste”, especificamente em Badagri, onde abrira esse porto na década de 1790. Tradições familiares mais recentes asseguram que o Chachá se instalou primeiro em Badagri, durante seu segundo retorno à Costa da Mina (provavelmente no local de sua antiga feitoria de Adijdo), e só depois em Uidá. O navio Heroína , capturado em Lagos em 1826, teria passado antes por “Judó, um local entre Badagri e Lagos”.63
Tradições da família Souza também mencionam a instalação de Francisco Félix de Souza em Popo Pequeno, onde teria aberto uma segunda feitoria de mesmo nome. Há de fato uma localidade com esse nome na região, que se encontrava no banco norte da lagoa a oeste de Popo Grande, protegida das investidas dos esquadrões britânicos, com acesso apenas por canoas.64 Ainda de acordo com as mesmas tradições, seu filho, Isidoro, após retornar do Brasil em 1822, ficou incumbido de cuidar dos negócios do pai em Badagri, tendo se instalado mais tarde, em 1840, em Popo Pequeno.65 Isidoro teria, portanto, operado os negócios do Chachá nas feitorias de Badagri e Popo Pequeno, ambas denominadas Adjido. Pode-se especular que esta foi uma estratégia para confundir a marinha inglesa. Seu estabelecimento comercial em Uidá, conforme as tradições, também era denominado Adjido;66 entre- tanto, o entreposto de Pequeno Popo teria sido construído na década de 1800, portanto antes dos tratados anglo-portugueses para a supressão do tráfico ao norte do Equador, de modo que tal hipótese deve ser descartada. Em 1827,o Vênus , navio baiano de propriedade de Antônio Pedroso de Albuquerque,foi capturado pela patrulha britânica carregado com 191 escravos em “Ajudo”, identificado erroneamente como Uidá.67 Mas é difícil saber se a captura ocorreu no estabelecimento de Badagri ou de Popo Pequeno.
Segundo as tradições, o Chachá teria se refugiado em Popo Pequeno por volta de 1810, após uma disputa com Adandozan, rei do Daomé, retornando depois da ascensão do rei Gezo, em 1818. Isso o colocaria em Adjido/Popo Pequeno em 1814, ano daquele embarque baiano. Como vimos, Francisco Félix incumbiu seu filho de coordenar a feitoria de Popo Pequeno, e deve tê-la deixado preparada para receber navios do tráfico. Segundo o inglês John Duncan, que visitou o lugar em 1845, havia “vários barracões” para guardar os cativos, sendo a feitoria um “grande estabelecimento”.68 Caso o embarque de Adjido em 1814 tenha ocorrido no estabelecimento em Badagri, isso antecipa o retorno de Francisco Félix à parte oriental da Costa da Mina em pelo menos uma década ou indica que seus negócios na região nunca foram plenamente abandonados, hipótese mais provável. Afinal, uma vez estabelecido em Popo Pequeno, Francisco Félix deve ter deixado representante ou feitor em Badagri a cuidar dos seus negócios. Se ocorreu em Popo Pequeno, sugere que ele continuava operando o tráfico na região antes mesmo de seu retorno a Uidá, na década seguinte, e, nos dois casos, demonstra a participação do Chachá no comércio ilegal de escravizados antes mesmo do estabelecimento do Tratado de 1815.69
Por outro lado, o abandono dos fortes europeus não provocou a esperada diminuição do comércio transatlântico de africanos escravizados no Golfo do Benim. Como afirma Robin Law, esses estabelecimentos tinham a função de “facilitar os contatos e organizar os serviços para os mercadores em trânsito e, em alguma medida, de estocar escravos em antecipação pela chegada de navios”. Assim, seu abandono provocava “um vacuum na organização do comércio em Uidá”.70
Não foi esse o caso: Francisco Félix de Souza administrava o forte português desde pelo menos 1804, ano do falecimento do último gover- nador, Jacinto José de Souza. Mesmo a interrupção das comunicações entre as autoridades portuguesas na Bahia e o forte entre 1803 e 1815 não impediu a continuidade do tráfico. O governador da Bahia, Conde dos Arcos, chegou a propor o abandono definitivo do empreendimento em face da proibição de 1815, mas o governo do Rio de Janeiro ainda acreditava na utilidade daquela possessão para o comércio de outros gêneros.71
Quanto aos outros fortes, há muito abandonados, não se criou o “vacuum” sugerido por Law, ou, se surgiu, foi rapidamente ocupado pelos comerciantes africanos. Em 1816, o oficial Frederick Irby, do Amelia , informou que cabeceiras (chefes locais) se apoderaram dos fortes inglês e francês em Uidá para “conduzir o Comércio de Escravos”, utilizando como local de armazenamento de cativos. Os três fortes (aqui incluído o forte português) estavam ocupados pelos “Negros”, e, mais importante, navios negreiros continuavam a obter escravos nos estabelecimentos, o que ele sabia “porque os Navios que examinamos estavam próximos de lá”.72
Do Congresso de Viena à Lei de 1831,o aprendizado da ilegalidade (1815-1831)
No Congresso de Viena, as principais potências europeias se reuniram para restabelecer o status quo anterior à Era Napoleônica. A Grã-Bretanha aparecia como a grande potência, e a reorganização política na Europa, com o estabelecimento de uma paz duradoura, bem como a organização marítima no Atlântico, era vital para a manutenção dos seus interesses comerciais, agora dirigidos pelas novas forças industriais.73 A questão do tráfico de escravos estava na ordem do dia.
Os debates envolvendo os plenipotenciários portugueses visavam, entre outras questões, controlar o ímpeto britânico em relação à abolição completa do tráfico. Como acertadamente demonstrou um estudo recente, “o Congresso de Viena criou uma nova oportunidade para a corte no Rio de Janeiro defender os súditos portugueses envolvidos no tráfico de escravos e regular as ações britânicas no Atlântico”.74
Como notou Leslie Bethell, a abolição ao norte do Equador (uma das exigências britânicas) significava que Portugal abandonava a porção menos substancial do tráfico, o da Costa da Mina. Menos substancial, demogra- ficamente falando, mas não menos importante, considerando o duradouro comércio entre a Bahia e a Costa da Mina. Os plantadores da Bahia, vimos anteriormente, experimentavam um período de prosperidade, com expansão agrícola e consequente aumento do comércio negreiro com a África Ocidental.75 A recusa das autoridades portuguesas no Rio de Janeiro em aceitar de imediato os termos britânicos não era apenas uma questão de soberania – impedir a ingerência inglesa num assunto nacional; ela também visava proteger uma das mais importantes áreas do comércio ultramarino, a de produção açuca- reira. Por exemplo, a Bahia produzia aproximadamente doze mil toneladas de açúcar em 1815, segundo os dados compilados por Bert Barickman.76
Assim, aceder às exigências britânicas de supressão do tráfico ao norte do Equador significava ferir economicamente uma das mais impor- tantes regiões do Brasil, entrando em rota de colisão com os interesses dos plantadores e traficantes da Bahia. Os plenipotenciários portugueses em Viena, no entanto, eram realistas: a Inglaterra já estorvava os navios portu- gueses na Costa da Mina há pelo menos quatro anos, e não demoraria para extinguir totalmente o comércio luso na região usando “força arbitrária”. Ceder à exigência britânica, nesse caso, significava ter alguma vantagem nas negociações do Congresso de Viena, inclusive garantindo uma área segura de tráfico, a África Centro-Ocidental.77
Após tensas negociações, os diplomatas portugueses foram bem-sucedidos em assegurar a continuidade do comércio de escravos ao sul do Equador, enquanto convertiam a região ao norte – isto é, toda a Costa da Mina – em território proibido. Dessa maneira, satisfaziam – ainda que parcialmente – as demandas abolicionistas inglesas ao passo que preservavam o tráfico em Angola, a principal zona de produção de cativos no espaço imperial português. Por outro lado, os ingleses se comprometiam a pagar indenização de £ 300,000 pelos navios captu- rados até aquela data, abrindo ainda mão de uma dívida de £ 600,000 da coroa portuguesa.78 Mais tarde, a Convenção Adicional de 1817 garantiu o direito a visitas e o estabelecimento de comissões mistas para averi- guação dos casos relacionados ao tráfico.79
Nesse sentido, a decisão pelo abandono da Costa da Mina como área de aquisição de cativos tinha um efeito duplo: acenava para os ingleses com a disposição em extinguir o tráfico em futuro próximo e em alguma medida obrigava os traficantes da Bahia a se engajarem mais efetivamente no comércio com Angola. Não funcionou, pelo menos não da maneira esperada.
Comércio negreiro na Costa da Mina em tempos de ilegalidade
É lícito supor que as decisões do Congresso de Viena e o recuo – ainda que breve – das atividades negreiras luso-brasileiras na Costa da Mina entre 1815 e 1817 tenham precipitado o golpe de estado que levou o rei Gezo (1818-1858), meio-irmão de Adandozan, o rei deposto, ao poder no Daomé, auxiliado por Francisco Félix de Souza.80 O preço dos escravos no litoral despencou a partir de 1807 e por toda a década de 1810, e isso deve ter contribuído para essa crise política. Os escravos na África Ocidental, que custavam cerca de £ 25,3 durante o intervalo entre 1803-1807, eram vendidos por £ 14,7 entre 1808-1814, e nova queda foi registrada entre 1815-1820 (£ 7,7).81 Os traficantes portugueses (isto é, baianos) e espanhóis (cubanos) se beneficiaram dessa baixa de preços, adquirindo escravos entre £ 2 e £ 5, segundo um observador inglês, embora ele ressaltasse que essa conjuntura era temporária.82 A redução dos lucros do tráfico contribuiu significativamente para a queda de Adandozan. A diminuição das atividades cerimoniais em honra aos ancestrais ocasionou a perda de apoio político entre as elites locais que,aliadas a Gezo e a Francisco Félix de Souza, pavimentaram o caminho para sua deposição.83
A retração do comércio negreiro nos anos imediatamente subse- quentes ao Congresso de Viena pode ser observada a partir do volume do tráfico. Entre 1810 e 1814, aproximadamente onze mil pessoas ao ano deixaram o Golfo do Benim em direção ao Brasil (àquela altura Cuba ainda não atuava significantemente na região). Nos três anos subsequentes (1815-1817), o número caiu drasticamente para pouco mais de quatro mil ao ano, e, em 1817, apenas 1,751 pessoas atravessaram o Atlântico a bordo de navios negreiros luso-brasileiros. Para ilustrar, entre 1800 e 1809, 80% dos mais de noventa mil escravos da região foram embar- cados para o Brasil.
A proibição legal não significou em absoluto a abolição efetiva do tráfico de escravos no Golfo do Benim. Passados os primeiros anos da proibição de 1815, o comércio de escravos revigorou na Costa da Mina.84 As apreensões britânicas no litoral do Golfo do Benim incomodavam os reis daomeanos, pois atingiam o status de porto neutro que Uidá ostentava, outrora respeitado pelas potências europeias. Em 1845, por exemplo, o rei Guezo exortou os cruzadores britânicos a não abordar quaisquer navios até que “eles tivessem deixado a costa totalmente”, ordens repetidas pelo seu sucessor, o rei Glele (1858-1889).85
Diante do avanço da repressão inglesa, os traficantes da Bahia encontraram subterfúgios para a continuidade do tráfico na Costa da Mina. O mais conhecido foi a solicitação de passaportes para Molembo e Cabinda, na África Centro-Ocidental,86 mas, uma vez exaradas as licenças, os negreiros baianos se deslocavam para o Golfo do Benim.87 O relatório de um comandante inglês, de dezembro de 1821, já destacava o uso dos passaportes falsos pelos traficantes luso-brasileiros, acentuando o papel de Francisco Félix de Souza, operando de Uidá, em fornecer cativos para os navios negreiros.88
A marinha britânica apertava o cerco sobre os negreiros, aprisionando 54 navios no Golfo do Benim entre 1822 e 1830, dos quais quarenta tinham passaporte para Molembo, navios baianos, em sua maioria.89 No cômputo geral, nota David Eltis, as taxas de capturas de navios da Bahia (e de Cuba) excederam os 20% por todo o período do tráfico ilegal, enquanto o Sudeste brasileiro só experimentou essa taxa de perdas a partir de 1839, com o Equipment Act .90
Lagos aparece na correspondência com uma significativa partici- pação, beneficiado pelo colapso do reino de Oyó e pelas guerras intestinas na iorubalândia que geraram um estoque amplo de prisioneiros de guerra para exportação.91 Enquanto isso, em Uidá, o Chachá cuidava da política do tráfico transatlântico e Gezo tratava dos assuntos domésticos de grande importância. Era necessário resolver as “medidas problemáticas” do governo daomeano quanto ao fornecimento de cativos, sustentado apenas pelas próprias guerras daomeanas, como notou um observador no final da década de 1810.92 O rei Gezo buscou atrair mercadores do interior a Uidá, operando como intermediário entre o interior e o litoral. Além disso, o conflito entre o Daomé e Oyó, que resultou no fim do jugo iorubá sobre o reino fon, interrompeu o suprimento regular de cativos por um tempo. Uma vez restabelecidas as comunicações entre o litoral e o interior, o Daomé lançou uma série de expedições contra seus vizinhos, em especial os mahis e os iorubás.93 A informação, de 1821, de que cem navios paravam anualmente em Uidá e Lagos é exagerada, mas revela a prosperidade do tráfico naquela área no início da década de 1820.94
Na década de 1820, os britânicos voltaram seus olhos (e canho- neiras) para Popo Pequeno, na parte ocidental da Costa da Mina. Seu alvo eram os navios que lá traficavam, mas também os comerciantes africanos. Nas duas últimas décadas do setecentos, a região cresceu em importância no mercado atlântico. Ao contrário do Uidá, onde os europeus experimen- tavam um controle estrito do comércio pelo rei do Daomé, na Costa da Mina ocidental havia relativa liberdade comercial. Além disso, Popo Pequeno também oferecia serviços (fornecimento de canoas, provisões) e outros bens de interesse europeu (marfim).95
Em outubro de 1822, a sumaca Nova Sorte foi capturada em “Mina Pequena” pelo brigue britânico Snapper . A embarcação baiana estaria lá por conta de um “forte temporal” que a teria danificado severamente. A apreensão britânica teria sido conduzida com “o maior arbítrio (sic) e injustiça”, segundo o senhorio do navio. Ele contou que o comandante do navio desembarcou parte da tripulação (sessenta homens), “fez guerra ao rei daquele lugar” e carregou 121 africanos na embarcação britânica como se fossem parte da carga do Nova Sorte .
Cândido Fernandes das Mercês,homem preto,embarcado na escuna União ,foi testemunha dos acontecimentos. Ele disse que no primeiro dia os britânicos apenas solicitaram os documentos do Nova Sorte , mas que no dia seguinte “mandou requisitar do Cabeceira, ou Rei daquela terra os escravos, que suspeitava haver em terra perten- centes àquela sumaca”, ameaçando ainda “arrasar a povoação”. Como o rei negou as acusações, “mandou marear o brigue [inglês] e aproxi- mando-se da terra o mais que pôde, e então mandou fazer fogo de canhão sobre a terra, por muito tempo e com o destroço da povoação”. Depois desceu à terra com “bastante gente armada”, surpreendendo o rei e “foram com ele terra adentro procurar pretos”, resultando na pilhagem de “cento e tantos”. O caixa do Nova Sorte , Joaquim Meirelles, e mais quatro homens da tripulação se esconderam “sertão adentro”, e quando voltaram, dois dias depois, os ingleses já tinham se retirado do porto e eles perderam seus pertences, “por terem os negros gentios roubado tudo”. O Nova Sorte foi considerado “má presa”, e seu proprietário solicitou indenização de 101 contos de réis.96
Esse episódio aconteceu poucos meses antes da eclosão de uma guerra civil em Popo Pequeno, em 1823. Francisco Félix de Souza – sempre ele – teria tido uma desavença com o cabeceira Ansan, da parte holandesa da cidade, incitando contra este uma revolta. O Chachá, já reinstalado em Uidá, mantinha interesses comerciais em Popo Pequeno, provável motivo do conflito. Participou ativamente dessa disputa George Lawson, seu associado na localidade. Filho de um impor- tante chefe local, Lawson foi educado na Inglaterra e trabalhou a bordo de navios britânicos antes de retornar a Popo Pequeno, provavelmente em 1812. A facção de Lawson saiu vitoriosa, e Ansan e seus derrotados seguidores se estabeleceram na margem direita das lagoas, fundando a vila de Agoué.97 A localidade parece ter rapidamente se convertido noutro polo negreiro, pois, em 1827, o brigue Bahia, de José de Cerqueira Lima, foi capturado em suas proximidades com “negros escravos a bordo”.98
Nesse mesmo local se estabeleceria, décadas mais tarde, o liberto jeje Joaquim d’Almeida.99 Infelizmente, é difícil saber – a se acreditar na narrativa da tripulação do Nova Sorte – se esse episódio teve relação com o conflito que eclodiria meses depois.
Outros episódios afetaram o embarque de cativos no Golfo do Benim no contexto da ilegalidade pré-1831. Entre as correspon- dências encontradas a bordo da escuna Emília , confiscada em Onim pelos britânicos em fevereiro de 1821, estava uma troca de cartas entre Caetano Alberto de França e seus associados.100 Numa delas, de 12 de fevereiro de 1821, ele justificou a demora no retorno à Bahia “pelas guerras que há no sertão entre os gentios, o que fez não aparecer cativos em abundância”. Caetano Alberto provavelmente se referia às guerras de Owu, conflito entre Owu, reino apoiador do cambaleante império de Oyó, de um lado, e a aliança entre Ifé e Ijebu, de outro.101 O historiador Olatunji Ojo associa essas guerras ao interesse dos merca- dores ijebus em controlar a parte da rota do tráfico que, do interior da iorubalândia, levava os cativos até Lagos.102 Esta localidade, por sinal, dependia do fornecimento de escravos pelos comerciantes ijebus, de modo que esse conflito desarticulou a oferta de escravos em Lagos, justificando o comentário de Caetano Alberto de França. O conflito, que teve início por volta de 1812, só se concluiu em aproximadamente 1822, após um longo cerco das forças conjuntas de Ifé e Ijebu iniciado cinco anos antes.103
Além desse conflito “no sertão”, Caetano França relatou que “Cá correu a notícia de que os Negros, em Badagri, mataram a José de Souza Marques, e outro que julgo ser Francisco Bento, porém não há maior certeza”.104 Naquele ano, Adele foi deposto do trono de Lagos por seu irmão, Osinlokun, e se refugiou em Badagri, onde se estabeleceu e assumiu o papel de rei até 1835, quando retornou a Lagos após a morte de Osinlokun.105 Caroline Sorensen-Gilmour menciona “um grupo de traficantes residentes portugueses/brasileiros” que mantinha uma relação próxima com o chefe de um dos bairros de Badagri. Estes luso-brasileiros deviam estar associados ao empreendimento em Adjido, de Francisco Félix de Souza.106 Segundo o diário de Hugh Claperton, que visitou Adjido em 1825, o local era uma vila “de considerável comércio em escravos”.107 Ele também afirmou que os portugueses em Badagri, em número de sete ou oito, o olhavam com “suspeita e alarme” e tentavam persuadir Adele e o povo local a eliminá-lo, por supostamente ser um espião inglês, mas não informa se eram comerciantes itinerantes ou já estabe- lecidos na região. O fato é que na época de sua última visita lá havia cinco feitorias, e Clapperton considerava o tráfico em Badagri “quase exclusivamente confinado aos agentes da nação portuguesa [isto é, brasileiros]”.108 É possível que os dois homens mencionados por Caetano França – negreiros instalados ou negociantes de passagem por Badagri – tenham sido apanhados no rescaldo do conflito.
Voltemos aos traficantes da Bahia e seus estratagemas. Diante das frequentes apreensões de navios ao norte do Equador, eles passaram a solicitar passaportes com escala nas ilhas de São Tomé e Príncipe. Assim, encontravam justificativa para sua presença além dos limites do tratado. Também aproveitavam a passagem pelas ilhas para adquirir passaporte português e assim escapar às proibições. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a escuna Destemida , apanhada pelo cruzador britânico Druid com cinquenta africanos trazidos de Uidá com a intermediação de Francisco Félix de Souza.109 O capitão contou mais uma história fantasiosa: a escuna estaria “fazendo água”, o que o levou a embarcar “cinquenta Domésticos livres” na Costa da Mina para salvar o navio. Também mencionou que sua tripulação era itinerante; partiu com 18 tripulantes, mas como alguns desembarcaram na costa, teve de repor com outros seis “pretos marinheiros” que “foram do Brasil à costa em outros navios”.110
As correspondências a bordo da embarcação permitem observar a organização do tráfico. O navio era pilotado por Raimundo de Arribas, espanhol naturalizado português, morador na ilha do Príncipe. Esse é um indício de parcerias hispano-brasileiras no tráfico. Nicolau Parés já havia identificado um “triângulo” Havana-Bahia-Lagos a partir de 1830,111 mas há mais dados sobre essa parceria. Em outubro de 1830, poucos meses antes da apreensão, um certo Andres Fernandez escrevia de Uidá ao seu “muy Estimado Senhor” José Álvares da Cruz Rios.112 É uma carta de agradecimentos, mas cifrada, cujo conteúdo é de difícil compreensão. Ainda assim, demonstra as conexões entre traficantes baianos e espanhóis, alguns dos quais provavelmente sediados no Golfo do Benim. No caso de José da Cruz Rios, foi a primeira parceria registrada com traficantes hispânicos, mas não a última. Em 1836, ele dividia a propriedade do brigue Luisa com outros dois negreiros, John Bradisco e Estéban Balaguer. A embarcação, que partiu de Porto Rico, terminou apreendida e conduzida para Serra Leoa.113
Outro nome nas cartas do Destemida é o de Manoel Joaquim de Almeida, pernambucano metido no tráfico desde pelo menos 1816 como capitão negreiro.114 Nessa correspondência, do final de 1830 e provavelmente escrita da Costa da Mina, Manoel Joaquim lamentava a “infelicidade” ocorrida com uma escuna não nomeada – provavelmente uma apreensão pelos cruzadores britânicos.115 O destinatário não está claro, mas em todo caso reforça a ideia de que o capitão pernambucano participava, direta ou indiretamente, de uma viagem envolvendo parceiros comerciais de outras nações.
Mais claras, por outro lado, são as correspondências de Francisco Félix de Souza. Em carta para o capitão Arribas, o Chachá enviava uma canoa para que ele se deslocasse até Uidá, pois “não posso ir abaixo por estar aprontando os fardos para [ilegível] André embarcar”, certamente se referindo a Andres Fernandes, o correspondente de José Álvares da Cruz Rios.116 Noutra, de 24 de outubro de 1830, avisava a José da Cruz Rios da partida da Destemida com “50 dentes de elefante” – uma metáfora para a carga de cativos, os tais “domésticos” mencionados por Arribas no depoimento à Comissão Mista.117 Essas correspondências escancaram a rede mercantil constituída na Costa da Mina para viabilizar o comércio negreiro, apesar da forte repressão inglesa no período.
“E tendo que viajar de barbeiro para os portos da África”: os libertos do tráfico
Há ainda, na década de 1820, a participação mais efetiva de africanos libertos no tráfico. Como mostra David Eltis, o período da ilegalidade abriu espaço para a entrada de pequenos investidores no comércio negreiro, entre os quais estavam ex-escravos.118 Eltis dedica sua atenção ao período pós-1831, quando a repressão se tornou mais intensa. Até aquela data, porém, o Foreign Office e o parlamento britânico estavam com os olhos voltados para os “peixes grandes” do tráfico, gente como os irmãos Rios, Antônio Pedroso de Albuquerque, José de Cerqueira Lima, além, é claro, de Francisco Félix de Souza.
O progressivo aumento da presença africana no convés dos navios, como pequenos traficantes, datava do século XVIII. No caso da Bahia, estes africanos estavam reunidos “corporativamente”, como demonstra Luis Nicolau Parés, em torno da Irmandade de Bom Jesus das Necessidades e Redenção (IBJNR), que reunia africanos libertos barbeiros-sangradores das nações mina e jeje.119 Estes dois grupos controlavam o mercado de barbeiros-sangradores em Salvador. Segundo dados da Fisicatura Mór do Reino no Rio de Janeiro, órgão responsável por exarar licenças para a prática, entre 1809 e 1828, jejes e minas representavam 100% (22) dos barbeiros libertos na Bahia e 79% (15) dos escravizados.120 Em 1812, o traficante Joaquim José de Oliveira anunciava o interesse em comprar um barbeiro e um tanoeiro nas páginas do Idade d’Ouro , sem dúvida para o negócio do tráfico.121 Além das práticas curativas desempenhadas durante a travessia atlântica, as responsabilidades dos barbeiros incluíam o “cuidado nos levantes, que estes ordinariamente sucedem”, como escreveu um traficante a bordo do Prazeres , em 1811.122
A participação de barbeiros-sangradores no tráfico vinha de longa data, fosse a bordo dos navios ou em terra firme, na margem africana do Atlântico. Em novembro de 1759, José da Cruz de Jesus Maria, africano mina, estava “de Partida para a Costa da Mina à Fortaleza de Ajudá” para se engajar no ofício de barbeiro.123 Em junho de 1781, ainda na Costa da Mina, José da Cruz batizou na Bahia, por procuração, dois africanos, Joaquim e Francisco. Os batismos ocorreram na freguesia de Nossa Senhora do Pilar, morada do padrinho – e provável procurador de José da Cruz durante sua ausência na África, onde provavelmente servia como agente dos libertos envolvidos no tráfico com Uidá.124
Em seu estudo sobre a presença de marinheiros africanos na carreira luso-brasileira, Mary Hicks também chamou atenção para a sua alta incidência como investidores do tráfico nas primeiras décadas do século XIX, entre eles vários barbeiros.125 Por exemplo, entre os tripulantes do navio Heroína , propriedade de Joaquina Margarida Cardoso, viúva de Manuel Cardoso dos Santos, notório negreiro, estava Francisco Nazaré. Ele era um mina forro de 26 anos, ex-escravo de Antonio Narciso, o capitão jeje que conduziu os embaixadores do Daomé de volta a Uidá em 1812. Viajava como sangrador, com soldada de duzentos mil réis, quantia nada pequena.126 O Heroína foi apreendido em Uidá, em outubro de 1826, pelo Maidstone . Em sua defesa, um dos tripulantes afirmava que o navio, cujo destino declarado era Molembo, foi empurrado para a Costa da Mina por uma tempestade, mas os indícios a bordo – aguardente, tabaco, coral e chita – levaram as autoridades inglesas em Serra Leoa a considerá-lo “boa presa”.127 Em seu depoimento, em 16 de fevereiro de 1827, Francisco Nazaré alegou carregar tabaco, fazendas e arroz para a troca por escravos.128
Apesar desse revés, lá estava ele, um ano mais tarde, de volta aos negócios. Em seu testamento, de 1828 – embora só tenha falecido em 1832 –, Francisco Nazaré se preparava para embarcar como “barbeiro para os portos da África” na galera Fortuna . O navio, comandado por Antônio Pereira Carneiro, recebeu autorização para zarpar em 25 de junho daquele mesmo ano, poucos dias antes da escrita do testamento. O destino declarado era Cabinda, mas navegava de fato para a Costa da Mina. No Fortuna , o liberto mina tinha uma carregação de “cinquenta e tantos mil réis em diferentes miudezas próprias do negócio da Costa [da Mina]”.129 Fazia investimento pequeno, talvez para se precaver de outro prejuízo. Com esse valor, poderia comprar apenas um cativo, se os valores apresentados em 1823 pelo preto Cândido das Mercês, marinheiro do União , não estivessem defasados (um escravo comprado por sete peças, cada uma avaliada em oito mil réis).130
Foi uma viagem bem sucedida. A embarcação escapou dos cruzadores britânicos e descarregou aproximadamente 533 africanos no porto de Salvador.131 Francisco Nazaré continuou na carreira negreira, mas acabou falecendo na costa africana em 1832, provavelmente durante uma das suas viagens. Não estava no topo da pirâmide dos barbeiros-traficantes. Ao falecer, o total de seus bens era de quinhentos mil réis (não incluindo as dívidas), valor de suas quatro cativas, duas africanas nagôs e duas crioulinhas.132
Outros membros da rede de Antônio Narciso também estavam metidos no tráfico. É o caso de Bento Martins da Costa, de nação jeje. Ainda não identifiquei a data de seu batismo, mas sei que já era cativo em 1781, quando apadrinhou Antônio, escravo do capitão Joaquim de Sousa, do navio Nossa Senhora da Lapa e os Santos Reis Magos .133 Bento alforriou-se pela quantia de 150 mil-réis “em praça”, isto é, comprou a sua liberdade após o leilão dos bens de seu proprietário Antônio Martins da Costa Guimarães, falecido em dezembro de 1810.134 Em meados da década de 1820, Bento Martins, já forro e com mais de 40 anos, cruzou o Atlântico como cozinheiro no Príncipe de Guiné , sob o comando de Manoel Joaquim de Almeida.135 Àquela altura, já fazia parte da rede comercial do seu conterrâneo jeje Joaquim d’Almeida.136 No final daquela década, Bento Martins foi cozinheiro do São Benedito , que chegou à Bahia vindo de Uidá em 18 de junho de 1830.137
Mas as circulações atlânticas de Bento Martins não pararam por aí. Em 1844, ele e André Martins (um ex-escravo, talvez) partiam para a Costa da África “a negócio”.138 O bem-sucedido liberto jeje Joaquim de Almeida já se encontrava na Costa da Mina, especificamente em Agoué, provável destino de Bento. Não me foi possível estimar quanto tempo Bento passou por lá, mas em 2 de julho de 1848 retornava a Salvador a bordo do brigue americano Codete , vindo de Onim, na companhia de um grupo de libertos, entre eles Henriqueta Joaquim (ou Joaquina), casada com Benedito Fernandes Galiza, compadres de Joaquim de Almeida.139 Ele também ficou pouco tempo em Salvador, pois em 30 de junho de 1849 ele desem- barcava em Salvador, vindo de Uidá, junto com Francisco Martins e José, ambos libertos.140 É provável que esse José fosse o mesmo José Martins que consta como terceiro testamenteiro de Bento Martins. Depois disso, perco o rastro de Bento Martins, que deve ter passado a ficar mais tempo pela Bahia, gerindo talvez os negócios dos seus associados do lado de cá do Atlântico.
Bento Martins faleceu em março de 1863, aos “oitenta e tantos anos” na freguesia do Paço.141 Em seu testamento, de novembro de 1862, escolhia como primeiro testamenteiro a Antônio de Araújo Santana, um barbeiro de nação mina que participava do tráfico como agente de terceiros. Em 1829, ele mandava da Costa da Mina vários escravos consig- nados a Geraldo Rodrigues Pereira, um próspero liberto, também mina.142 Bento Martins solicitou ao seu testamenteiro que fosse enterrado “palcamente” na Quinta dos Lázaros e que avisasse às irmandades do Bom Jesus das Necessidades e Redenção – a conhecida irmandade de minas e jejes – e do São Benedito de São Francisco sobre sua passagem. Ao falecer, deixara poucos bens – alguns “trastes” e apenas seis cativos, os quais deixava forros (exceto Maria, nagô, coartada em 200 mil-réis) –, sinal de que os lucros do tráfico não foram tão alvissareiros quanto foram para seus outros conterrâneos.143
Até o momento falamos de dois africanos da rede de Antônio Narciso Martins da Costa Guimarães ou, simplesmente, Antônio Narciso, nome importante entre os libertos do tráfico entre 1810 e 1831. Ele aparece, já liberto, “capitão” e associado a gente do tráfico baiano, desde a década de 1770. Em 1771, um escravo seu, José, foi padrinho no batismo de Manoel, de nação mina, cativo de Teodózio Gonçalves da Silva, traficante em atividade desde a década de 1750, o que sugere sua participação nas redes do tráfico desde então. Àquela altura, Antônio Narciso (no documento grafado apenas como Narciso) vivia na rua da Fonte dos Padres, freguesia do Pilar, residência de alguns dos membros da IBJNR e de outros libertos associados ao tráfico, como o próprio João de Oliveira, que lá se fixou após seu retorno à Bahia.144 Além disso, seu escravo Bento, de nação mina, foi padrinho no batismo do escravo de um capitão negreiro. Não era coincidência.145
No comando do Pistola , o capitão jeje viajou para a Costa da Mina três vezes entre 1812 e 1813. No Constante , foram mais três viagens (1815, 1817 e 1818). Em 1819 comandou o Generoso e, em 1825, o São José Vencedor , todas viagens bem-sucedidas. Suas habilidades linguís- ticas – como jeje, era falante de gbe – definitivamente facilitavam e mesmo garantiam melhores negociações nos portos da Costa da Mina onde se falavam as línguas desse grupo. Ao discutir o sucesso econômico de Joaquim d’Almeida, que se converteu na década de 1840 em “negociante atlântico”, Luis Nicolau Parés demonstra que “no momento em que a conjuntura do tráfico ilegal aumentava o preço dos escravos e favorecia o papel do feitor capaz de negociar com os fornecedores locais [...] o domínio das línguas vernáculas devia ser uma vantagem preciosa”.146 Ademais, o conhecimento da cultura e da diplomacia comercial no Golfo do Benim, fundamental nas negociações com os comerciantes africanos, deve ter sido um importante ativo para esse grupo.147
Ao longo de treze anos no comando de navios, e alguns outros em outras posições na hierarquia marítima, Antônio Narciso acumulou algum pecúlio, de modo que comprou a sumaca Bom Jesus dos Navegantes . Em 1825, Narciso armou a embarcação, escolhendo como capitão a Manoel José Pereira. Antes dessa viagem, Manoel Pereira só havia comandado uma embarcação, a escuna Formiga , com destino declarado de Ambriz.148 Nessa viagem andava embarcado um certo Gregório Narciso, tanoeiro, escravo ou liberto de Antônio Narciso, mas o resultado não foi o esperado. A sumaca terminou capturada pelo cruzador H. M. S. Esk em Onim em 17 de julho do mesmo ano.149
Segundo a fantasiosa história do capitão Manoel José Pereira – que também afirmou não entender de navegação! –, confirmada por Gregório, o navio teria sido atacado por uma escuna espanhola, o que o obrigou a ali parar por provisões. Apesar disso, afirmava que os cativos foram embarcados em Molembo uns 15 dias antes da captura, e que “nunca comprou um escravo em Onim, ou no Golfo do Benim”. Os cativos no porão, contudo, afirmaram terem sido vendidos em “Aco” (Lagos). Acrescentaram que estavam havia apenas cinco dias a bordo – e não 15 dias, como disse o capitão – quando ocorreu a captura, e que desde o seu embarque “nunca viram terra”. O navio foi condenado e os africanos emancipados em 14 de setembro de 1825. Não encontrei evidência de que Antônio Narciso tenha retornado ao tráfico depois desse revés, vindo a falecer poucos anos depois.150
Há mais exemplos desse tipo. Felipe Serra era um jeje liberto solteiro que vivia do ofício de sangrador desde pelo menos 1807.151
Em 1824, aos 40 anos de idade, estava embarcado no Minerva , que partiu da Bahia em 14 de novembro de 1823, sob o comando de Manoel Joaquim d’Almeida, em direção a Molembo, com escala em São Tomé e Príncipe, e foi capturado em 30 de janeiro de 1824 em Lagos. Segundo comen- tários do oficial responsável pela apreensão, o navio se encontrava em “circunstâncias suspeitosas”, e os tripulantes chegaram a adquirir cativos, que ficaram depositados na feitoria de Lagos. O navio foi considerado má-presa e o árbitro da Comissão Mista recomendou o pagamento de 58 contos de réis de indenização.152
Mas a história não acaba aí. Felipe Serra assinou, com outras oito pessoas – entre elas o próprio Manoel Joaquim, André Pinto da Silveira e José Marques Oliveira, outro barbeiro jeje – um protesto contra a tomada do navio Cerqueira , do poderoso traficante José de Cerqueira Lima, em Lagos no mesmo dia do confisco do Minerva e da escuna Crioula , de André Pinto da Silveira.
Segundo Manoel Cardoso dos Santos, que escreveu o protesto, o navio foi obrigado a parar em Onim por conta da “inconstância dos ventos” – sempre o vento – e acabou se retardando naquele porto por três semanas por conta da guerra local contra Badagri. Nesse ínterim, os ingleses se aproximaram das feitorias comerciais em Lagos e após alguma discussão, apreenderam as embarcações. No momento da captura, os capitães se achavam na feitoria de Manoel Joaquim d’ Almeida. Além disso, exigiram que o rei daquele porto – talvez um cabeceira – lhes entregasse os cativos que os portugueses tinham adquirido. Diante da negativa, os britânicos retornaram aos navios e atiraram contra a terra, “matando e ferindo um grande número de negros”.153
Anos mais tarde, Felipe Serra envolveu-se em outra controvérsia.Em 1835, com mais de 50 anos e com tenda de barbeiro em Salvador,partia para uma nova empreitada: viajava à Costa da Mina para administrar a feitoria de outro grande traficante, Joaquim José Duarte, proprietário de nove embarcações entre 1817 e 1822.154 Sua viagem ocorreu pouco mais de um mês após a eclosão da Revolta dos Malês, que pôs as autoridades locais em estado de desconfiança e paranoia em relação aos africanos. Por isso, Felipe Serra foi impedido de regressar ao Brasil em 1837 com base na lei provincial no 9, de 13 de maio de 1835.155 Ele protestou, alegando ter deixado filhos, casa e “o mais que respeitam aos interesses da sua vida” na Bahia, provavelmente cativos. Ainda justificou seu pleito com base na sua participação nas guerras de independência do Brasil na Bahia, “fazendo as suas funções de soldado armado e súdito também de sua Majestade Imperial”, se considerando, portanto, “Cidadão Brasileiro”. Ele anexou à sua petição uma carta que atestava sua “capacidade, conduta civil e moral, e morigeração”. Entre os signatários estavam Francisco Luiz de Sousa Paraíso, um traficante local da família Paraíso, e André Pinto da Silveira, dono do Crioula , apreendido em Lagos junto com o Minerva . Apesar dos esforços, as autoridades locais não aceitaram seus argumentos e negaram-lhe o retorno à Bahia.156
Há ainda o caso de Geraldo Rodrigues Pereira, um bem-sucedido liberto mina também metido no tráfico transatlântico. Foi escravo de João Ferreira de Bittencourt Sá, mas em 1809, já forro, assumiu as funções de ajudante de entradas e assaltos, ou ajudante do famigerado capitão do mato, na freguesia comercial da Conceição da Praia. Mas é provável que seu envolvimento no tráfico negreiro tenha resultado de suas viagens atlânticas. Em 1812, Geraldo trabalhou embarcado como marinheiro com soldada de 45 mil réis a bordo do brigue Feliz Americano , apreendido pelos ingleses em Porto Novo, como vimos anteriormente.157 Os dois postos – no mar e na terra – davam acesso a circuitos comerciais e a homens de negócio envolvidos no tráfico atlântico. Também era filiado à IBJNR, espaço corporativo dos africanos minas e jejes que garantia distinção social e privilégios comerciais aos seus membros.158
Geraldo casou-se em 1814 com Maria Angélica do Coração de Jesus, filha de um abastado africano, João Gomes da Conceição, natural da Costa da Mina, também membro da IBJNR.159 Dois anos mais tarde Geraldo Pereira viajou para a costa da África, onde feitorizou um empreendimento de traficantes de Havana em Onim. Mas já estava de volta à Bahia em 1823, vivendo na freguesia do Pilar, local de moradia de muitos libertos dessa rede comercial transatlântica.160
Em 1826, Geraldo partiu para a costa africana mais uma vez, acompanhado de quatro “crias”. Uma dessas pessoas, Bento (mais tarde Bento Rodrigues), foi enviado novamente em 1829, talvez para auxiliar o parceiro comercial de Geraldo Rodrigues Pereira, o também mina Antônio de Araújo de Santana, que se encontrava na Costa da Mina e que, como vimos, foi o terceiro testamenteiro de Bento Martins da Costa. Bento Rodrigues retornou à Bahia em 29 de março de 1830, poucos dias após a passagem de Geraldo Pereira, que o deixou alforriado em testamento.161 Geraldo deixou em seu inventário post mortem a extraordinária quantia de mais de 33 contos de réis, o que o colocava entre os africanos mais ricos da cidade. Nesse documento, havia dívidas ativas e passivas, além de imóveis e uma escravaria de 15 pessoas, a maioria africana.162 Além desses, tinha seis escra- vizados recém-chegados, marcados a ferro, e mais 15 cativos novos da sociedade formal que tinha com o jeje Inocêncio de Araújo Santana, provavelmente senhor de Antônio de Araújo Santana. 163
Como demonstra Luis Nicolau Parés, “a década de 1820 foi um período crítico para o avigoramento dos homens de negócio afro-baianos”, principalmente de indivíduos como Antônio Narciso e Geraldo Rodrigues Pereira.164 Outros como Francisco Nazaré, Bento Martins da Costa, Gregório Narciso e Felipe Serra são indicativos “do processo de crescente participação dos africanos no tráfico que se deu a partir do anúncio, em 1826, da iminente proibição do comércio atlântico”.165 A insegurança decorrente dessa conjuntura deve ter facilitado aos libertos, principalmente aos já engajados no comércio negreiro como marinheiros, cozinheiros e barbeiros-sangradores ampliar suas operações. Ao mesmo tempo, as redes sociais construídas na Bahia devem ter otimizado a entrada de novos membros a esse grupo.166
Os libertos também aproveitaram essa janela de oportunidade para ampliar sua escravaria, como o próprio Luís Xavier de Jesus, também metido no tráfico e que batizou sete africanos em 1830, às vésperas da proibição.167 A corrida negreira dos cinco anos imediatamente anteriores à lei de 1831 também deu vazão a outro fenômeno, o de escravos-senhores, isto é, a participação mais intensa de escravos no mercado negreiro, e a outro fenômeno correlato, o das “alforrias por substituição”.168
O tráfico Bahia-Costa da Mina, 1815-1831: uma aproximação
A análise do tráfico baiano na Costa da Mina a partir de 1815 lança luz sobre algumas das estratégias adotadas pelos comerciantes de escravos para burlar compromissos diplomáticos e leis formuladas para combater o comércio negreiro. Embora a historiografia sobre o tráfico no século XIX tenha enfatizado a relação entre os traficantes e as autoridades governamentais a partir de 1831, os dados fornecem ampla evidência de que os subterfúgios utilizados pelos traficantes já estavam em pleno fôlego desde pelo menos meados da década de 1810, durante o aprendizado da ilegalidade.
Similarmente, a insistência pela manutenção do tráfico na Costa da Mina, mesmo em face do perigo, oferece testemunho tanto da dependência do tráfico na Costa da Mina quanto do papel que o suprimento de escravos vindos do continente africano desempenhava na economia baiana oitocen- tista. A despeito do crescente papel do café na economia nacional a partir da década de 1820, o açúcar continuava a ser um produto importante na pauta de exportações brasileiras.169
Qual o impacto do comércio baiano de escravos entre 1815 e 1831, e como isso se reflete na África Ocidental? Antes de iniciar uma análise mais apurada, uma mirada nos números do tráfico será útil.Entre 1815 e 1831,a Bahia despachou 681 viagens para a África à procura de escravos. São informadas as regiões africanas de destino – às vezes não tão precisos–em 651 delas, permitindo trabalhar com os dados. Logo se percebe uma mudança de rumos: 401 embarcações cruzaram o Atlântico em direção à África Centro-Ocidental, enquanto a tradicional área do tráfico baiano, o Golfo do Benim, tem apenas 171 registros.
Há ainda o crescimento do tráfico em Moçambique, principalmente no intervalo entre 1816 e 1820, quando 22 navios foram despachados para aquela região. O comércio com Moçambique era bastante complicado por conta das correntes marítimas e, principalmente, da distância, sendo a “atlantização” da África Oriental um fenômeno do final do século XVIII em diante.170 No caso baiano, esse aumento nas viagens para a região, notou Alexandre Vieira Ribeiro, tem relação com a busca dos traficantes locais por polos alternativos de embarque após a proibição do comércio negreiro ao norte do Equador, em 1815.171 O aumento do tráfico com a África Oriental é também consistente com as falas do senhor de engenho Felisberto Caldeira Brant. Em correspon- dência de 17 de julho de 1820, Brant demonstrava descrédito no tráfico com a contracosta africana (“porque não creio no comércio de escravos de Moçambique”), o que, visto sob outra chave, confirma o crescimento das expedições negreiras para aquela região.172
Por sua vez, se calcularmos apenas as viagens cujos armadores são identificados, o total despenca para 371, pouco mais da metade, ainda assim uma boa amostra. Essas 371 viagens foram organizadas por 133 armadores individuais – ou por 155, se considerarmos as parcerias (dois ou mais indivíduos). Mas fiquemos, por ora, somente com as viagens individuais. Entre esses 133 traficantes, separei apenas aqueles que armaram seis viagens ou mais, e o resultado demonstra a concentração do tráfico nas mãos da empresa traficante baiana: 9% do total de armadores (12) responderam por 40% do total de viagens (149).173
Alguns nomes se destacam nessa lista. Segundo o cônsul inglês, em 1825, “ninguém é mais notoriamente conhecido pelo engajamento no tráfico ilegal de escravos” do que José de Cerqueira Lima, dono do Henriqueta . Suas 27 viagens negreiras falam por si.174 Além dele, Vicente de Paula e Silva (26) e Joaquim José de Oliveira (23) completam essa relação nefasta de traficantes com mais de vinte viagens.175 Apenas esses três respondiam por 20% de todas essas viagens ou, dito de outro modo, um de cada cinco africanos transportados ilegalmente para a Bahia entre 1815 e 1831 nessas 371 viagens estava nos porões dos navios desses traficantes.176
Por outro lado, 78 homens e mulheres (58,6%) organizaram apenas uma viagem.177 Traficantes oportunistas se meteram no negócio de gente por um período curto, aproveitando-se da conjuntura favorável para a venda de africanos na Praça da Bahia e em outras. Vários deles continuariam no negócio depois de 1831. Manuel Cardoso dos Santos, por exemplo, seria um notório traficante na segunda fase da ilegalidade (1831-1850), realizando mais quatro viagens à África.178 Já João da Costa Júnior, armador de uma só expedição (Lagos, 1829, apreendida pelos britânicos), participaria de outra, em 1849, embora haja evidência de seu envolvimento em outras viagens negreiras.179
Outros, mais regulares, aparentemente se afastaram do comércio negreiro pouco tempo depois do endurecimento das medidas antitráfico. José Antônio Rodrigues Viana foi traficante regular entre 1812 e 1818, realizando ao todo cinco viagens. Numa delas, de 1815, fez parceria com Cuesta, Manzanal y Hermano, uma firma familiar fundada em 1805, em Cuba.180 Segundo Manuel Moreno Fraginals, foi uma das primeiras empresas negreiras de sucesso em Cuba, a ponto de “dominar completa- mente o mercado de negros em Havana”.181 A empreitada conjunta fornece uma breve (porém importante) evidência de que as relações Cuba-Bahia não passavam apenas pela competição no mercado açucareiro mundial; incluíam ainda parcerias comerciais para o fornecimento de cativos para áreas agrícolas em expansão na era da Segunda Escravidão.
Toda essa discussão conduz aos números do tráfico entre a Bahia e a Costa da Mina no contexto da ilegalidade. Vejamos as estimativas desde o início do século XIX. Entre 1801 e 1805, a Bahia importou cerca de trinta mil africanos do Golfo do Benim, e metade deste número deAngola. No quinquênio seguinte, a diferença foi ainda maior: 41.500 da Costa da Mina e pouco mais de oito mil da África Centro-Ocidental, números similares ao intervalo seguinte (1811-1815). De 1816-1820, porém, as proporções se inverteram:
16.379 da Costa da Mina contra 37 mil de Angola. Nos cinco anos seguintes a diferença do tráfico nas duas regiões africanas se aprofundou, com Angola respondendo por quase 80% dos cativos. Por fim, entre 1826-1830, mais de 90% dos escravos dessas duas regiões vinham da África Centro-Ocidental, enquanto a Costa da Mina contribuiu com pouco mais de cinco mil cativos.182 Os dados acima não condizem com os diversos relatórios das autoridades inglesas empenhadas na repressão ao tráfico. Segundo os britânicos, o comércio baiano na Costa da Mina funcionava a pleno vapor, e as capturas de navios negreiros ao norte do Equador eram cada vez mais frequentes. Alexandre Vieira Ribeiro calculou em 85 o número de apreensões de navios baianos pelas esquadras britânicas entre 1811 e 1830.183 Robin Law estima que pelo menos doze mil pessoas partiram anualmente da Costa da Mina para as Américas entre 1816 e 1830, a maioria para a Bahia.184
Da mesma forma, esses dados divergem substancialmente das informações coletadas nos inventários post-mortem dos senhores baianos. Nestes documentos, a presença de africanos falantes de iorubá oferece evidência inequívoca do tráfico de cativos com a Costa da Mina. Maria José de Souza Andrade, que levantou os etnônimos nos inven- tários baianos entre 1811 e 1830, demonstrou que quase 84% do total de africanos foi traficado do Golfo do Benim.185 Em análise do perfil étnico dos africanos escravizados em Salvador nas primeiras décadas do século XIX, João Reis identifica tendência semelhante, com os afro-ocidentais na liderança demográfica.186
Nesse sentido, os números do comércio negreiro para a Costa da Mina e Angola parecem invertidos e devem ser reavaliados.187 Uma vez que boa parte dos documentos utilizados pelo Slave Voyages são oficiais (pedidos de passaportes, registros de entradas de navios), eles acabam por alterar o resultado final, e mesmo aqueles produzidos no contexto da repressão – os relatórios do Foreign Office e dos Parliamentary Papers – são uma pequena amostra do universo da ilega- lidade que cercava o tráfico baiano.188
Na verdade, pode-se especular que 80% do tráfico baiano oitocen- tista se concentrava no Golfo do Benim, tendo por base os dados dos inventários post-mortem , com picos de até 90%. Mas não se trata de uma simples inversão dos números, pois essa conjuntura apresentou diferentes fases. É possível que, nos primeiros cinco anos após a proibição de 1815, os negreiros baianos tenham realmente recuado do tráfico na África Ocidental. O Ato Adicional de 1817, que previa o estabelecimento da Comissão Mista e o direito mútuo de visitas aos navios, deve ter sido um duro golpe nos comerciantes da Bahia. Em uma de suas correspondências pessoais, datada de 1820, Felisberto Caldeira Brant, homem interessado no incremento da produção agrícola da Bahia, deixou escapar sua preocu- pação com o possível final do tráfico. Em carta ao primo, administrador de uma de suas propriedades, Brant solicitou uma estimativa de “quantos escravos julga suficientes” para uma colheita de algodão em pluma, considerando o tempo de três anos para a produção. “Este cálculo que peço”, concluía, “é para me regular pois receio que este ano seja o último [d]o Comércio de escravos”, se referindo certamente ao tráfico com a Costa da Mina, uma vez que o comércio com Angola continuava lícito.189 Essa fala indica que, no horizonte dos senhores baianos, dependentes da mão de obra africana, o tráfico estava com os dias contados.
Assim, entre 1816 e 1820, as importações de escravos da Costa da Mina devem realmente ter arrefecido. Nesse período, estimo que as cifras apresentadas pelo Slave Voyages correspondem, de fato, às importações oriundas da Bahia. Durante esse intervalo, apenas seis dos 214 navios que deixaram a Bahia foram capturados pelos britânicos. Já para os cinco anos seguintes (1821-1825), quando a máquina da ilegalidade já estava em pleno funcionamento, pode-se sugerir a inversão dos números. O tráfico na Costa da Mina retornou com força, auxiliado pela estrutura montada do outro lado do Atlântico por Francisco Félix de Souza. O mesmo relatório do cônsul britânico de 1825 afirmava que 5/6, ou 83%, de todos os escravos que entravam na Bahia eram ilegais.190 Há uma diminuição no volume do tráfico nesse período e que deve ser atribuída, sem dúvida, às guerras pela independência da Bahia, que desarticularam o comércio marítimo entre 1823 e 1825.
Para a última fase (1826-1830), a discrepância é ainda maior, em virtude da corrida negreira em todo o Brasil às vésperas da proibição definitiva do tráfico. Em virtude disso, e sabendo do papel do tráfico da Costa da Mina para a Bahia, é lícito inverter os números: 57 mil da Costa da Mina e cinco mil da África Centro-Ocidental. No total, segundo essa nova estimativa, aproximadamente 107 mil africanos foram importados ilegalmente da Costa da Mina pelos traficantes baianos entre 1816 e 1830.
Estas estimativas, por sua vez, questionam o tamanho dos afro-ocidentais entre os chamados “africanos livres”, ou seja, os africanos ilegalmente transportados e resgatados pelos cruzadores ingleses e brasileiros. Tema de grande estima na historiografia da escravidão em anos recentes, a saga dos africanos livres – mais apropriadamente, dos “recapturados” – ou daqueles que entravam na justiça sob alegação de que foram escravizados de forma ilegal amiúde ignora a porção ocidental da África.191 Desde 1816, observa-se um número significativo de africanos da Costa da Mina introduzidos no Brasil ao arrepio dos tratados bilaterais entre Portugal e a Grã-Bretanha. Assim, aos cerca de oitocentos mil africanos ilegalmente introduzidos entre 1830 e 1856, acrescente-se os mais de 107 mil oriundos da Costa da Mina entre 1816-1830, num total de quase um milhão de pessoas ilegalmente transportadas para o Brasil.192
Durante essa fase, parte dos escravos no Golfo do Benim foi redirecionada para a economia local, sobretudo para as plantações de dendê que cresciam diante da demanda europeia pelo produto. Esse, aliás, foi mais um dos artifícios dos traficantes baianos para burlar a proibição. Embora importações do produto estejam registradas desde fins do século XVIII, elas cresceram continuamente a partir a década de 1820.193 O estabelecimento de firmas francesas no Golfo do Benim na década de 1840 demonstra o crescimento da demanda pelo produto entre as nações europeias, e por volta desse período quase todos os portos do Golfo do Benim engajaram-se no comércio “lícito” de azeite de dendê.194
Embora as duas atividades (o tráfico e a agricultura de exportação) pareçam antagônicas, Elisée Soumonnni demonstrou sua coexistência durante o reinado de Gezo. Mais ainda, o rei do Daomé estimulou a produção agrícola para os mercados internacionais durante o seu reino sem, no entanto, abrir mão das rendas do tráfico. O comércio de seres humanos e de azeite de dendê coexistiu do final da década de 1830 até meados da década de 1860, e os lucros de um e outro ramo do comércio internacional daomeano eram praticamente iguais nos anos de 1840.195
O comércio de azeite de dendê abriu, assim, uma oportunidade para os contrabandistas brasileiros se engajarem, ao mesmo tempo, no comércio “lícito” de produtos agrícolas e recobrir suas atividades ilegais na era do “contrabando sistêmico”.196 Esse processo tornou-se ainda mais evidente a partir de meados da década de 1830, com o estabelecimento de várias comunidades de africanos libertos no Golfo do Benim. Mas esse é assunto para outro artigo.
Conclusão
Este artigo defendeu a ideia de que a análise sobre a “Segunda Escravidão” deve observar outras experiências regionais e incorporar organicamente a África nas suas abordagens, não apenas como fornecedora de mão de obra para as plantations, mas como parceira na expansão da escravidão nas Américas. A partir desse ponto de vista, a análise das redes comerciais entre a Bahia e a Costa da Mina durante a primeira fase da ilegalidade demonstrou como o continente africano respondeu às demandas do mercado internacional, a partir dos seus próprios interesses. Ao mesmo tempo, iluminou interesses diversos (plantadores, donos de navios) que colaboraram para a construção da máquina da ilegalidade e como africanos libertos, na Bahia, perceberam as oportunidades abertas por essa conjuntura para participar mais ativamente nos negócios do tráfico. Em suma, este panorama permitiu, espero, compreender de maneira mais ampla os vários atores que atuaram na organização da estrutura negreira transatlântica em tempos de repressão ao comércio transatlântico de africanos escravizados.


Referencias