Resumo: Este artigo analisa a trajetória de Leonardo Africano Ferreira, médico negro e “filho de Angola”. O personagem fala em primeira pessoa, a partir de fontes, tais como sua tese apresentada à Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa e uma representação endereçada ao Governador-Geral de Angola em 1864. O argumento central do texto é de que a identidade africana e o componente racial mediaram as experiências do chamado “pluralismo médico” no qual Africano estava inserido, sobretudo dentro de um contexto burocrático e hierar- quizado, que, em meados do século XIX, que se assentou como uma política sanitária para o continente. As práticas profissional e pessoal desse personagem como médico-cirurgião vivenciadas em diferentes espaços – África, Europa e América – proporcionam elementos para perceber a inflexão para o Atlântico Sul de sujeitos frente às tentativas de soberania portuguesa no território angolano na segunda metade do século XIX.
Palavras chave: Angola, Leonardo Africano, Serviços de saúde, Atlântico Sul.
Abstract: This paper analyzes the trajectory of Leonardo Africano Ferreira, black physician and “son of Angola.” The character speaks in the first person, based on sources such as his thesis presented at the Medical-Surgical School of Lisbon and a representation addressed to Angola’s governor-general in 1864. Its main argument is that African identity and the racial component mediated the experiences of the so-called “medical pluralism” in which Africano was inserted, especially within a bureaucratic and hierarchical context that, by the mid-nineteenth century, was established as a health policy for the continent. His professional and personal practices as a doctor-surgeon experienced in different places – Africa, Europe and America – provide elements to understand the inflection to the South Atlantic of subjects against the attempts of Portuguese sovereignty in Angolan territory in the second half of the nineteenth century.
Keywords: Angola, Leonardo Africano, Health services, South Atlantic.
ARTIGOS
LEONARDO AFRICANO FERREIRA: UM MÉDICO NEGRO ENTRE ANGOLA, BRASIL E SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE (1830-1870) *
LEONARDO AFRICANO FERREIRA: A BLACK PHYSICIAN BETWEEN ANGOLA, BRAZIL AND SÃO TOMÉ AND PRÍNCIPE (1830-1870)
Recepção: 16 Junho 2021
Aprovação: 15 Dezembro 2021
Trajetórias individuais de sujeitos comuns ou membros da elite africana que viveram entre as duas margens do Atlântico luso-africano têm servido de fio condutor para a percepção das complexas redes socioculturais e comerciais empreendidas ao longo do século XIX. A tradição historiográfica africanista feita no Brasil tem investido com trabalhos pioneiros nas várias dimensões dessas conexões atlânticas, muito embora as fontes, redigidas em sua maioria em uma linguagem burocrática e extremamente formal, como nos advertiu Beatriz Heintze, induzam a ver apenas as concepções de mundo de europeus, sob o espectro de seus próprios protagonismos. 1 Não obstante, podemos encontrar fontes que foram produzidas pelos próprios africanos, redigidas em primeira pessoa, o que nos permite entender os atraves- samentos de suas trajetórias e os seus projetos de vida. É sobre essas fontes que nos debruçamos nesse texto. A trajetória de um médico negro “filho do país” – Angola – que se autodenomina “Africano”, ilumina ao mesmo tempo movimentos de inflexão desses sujeitos para o chamado Atlântico Sul ao longo do século XIX e sua busca de reconhecimento e posição no bojo da administração colonial.
O argumento deste estudo é que a identidade africana e o compo- nente racial mediaram as experiências do chamado “pluralismo médico”, sobretudo a partir da sistematização de uma burocracia e hierarquias próprias, que, em meados do século XIX, de fato se assentaram como uma política sanitária para o continente. O foco da análise incide na perspectiva da micro-história social, percorrendo a trajetória de um médico, diplomado pela Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa (EMCL) em meados do século XIX. Os aspectos excepcionais, neste estudo, ultrapassam o foco apenas na trajetória, pois nos permitem perceber um contexto mais amplo de deslocamentos geográficos e sociais de sujeitos no Atlântico luso-africano, descortinando redes de relações e significados. Cabe situar que, do ponto de vista historiográfico, na primeira metade do século XIX, a ocupação portuguesa em território angolano se restringia aos chamados “reinos” de Angola e Benguela, e a maioria da população era classificada como “preta”, com destaque para o elevado número de “pardos, mulatos ou filhos do país”. 2 Uma série de leis abolicionistas acabaram por conduzir ao encerramento do tráfico de escravizados, a partir de 1836, e a criação da categoria jurídica de “liberto” fomentou uma “evolução” em relação à condição de “escravo”. Porém, apesar da “carta de alforria” dada pelo Estado, esses “libertos” não podiam dispor livremente de si e do seu trabalho, continuando “tutelados” por uma junta especialmente designada. Sendo assim, somente muitos anos depois foi abolida de fato a escravidão nas áreas de domínio português. 3
O combate mais metódico aos embarques de escravizados assumiu um caráter internacionalizado a partir da década de 1840. Pelo prisma da administração colonial, os planos forjados para estimular a transição da economia angolana do tráfico para uma economia assentada no chamado comércio lícito utilizou como principal vetor a implementação de uma agricultura de exportação – o que, nos termos dos discursos portugueses, daria uma maior “soberania à província”, quando, na verdade, visava a continuidade dos lucros para a metrópole. 4 Nesse sentido, os impactos de tais mudanças para uma sociedade com grupos diversos e interesses conflitantes foram enormes.
Conforme explica Jill Dias, ocupar cargos dentro da estrutura colonial portuguesa, além de garantir uma certa segurança material, era também, em última análise, fonte de prestígio social e político dentro da sociedade africana. Já antes de 1850, a posição implantada pela aristo- cracia crioula vinha sendo minada devido às transformações nas esferas da economia mundial e na política portuguesa, que tentou redefinir o interesse metropolitano por Angola. 5 Com isso, alguns membros dessas famílias se queixavam acerca da discriminação contra eles em nomeações para cargos oficiais, ao passo que agentes metropolitanos passavam a concorrer a postos nas províncias africanas. 6 Marcelo Bittencourt também adverte que a perda do espaço político e econômico em meados do século XIX, na lógica de teias coloniais emergentes, traria novidades pouco favoráveis ao grupo crioulo; afinal, essa camada perderia espaço com a chegada de um maior número de homens vindos da metrópole, resultando na delimitação de espaços mais afunilados para sua atuação, sendo o componente racial um ingrediente inegável no reforço dessas tensões. 7
Leonardo Africano Ferreira nasceu em Luanda na década de 1820, mestiço, filho de um comerciante que exercia atividades mercantis com o Brasil. 8 Quanto a sua mãe, provavelmente era uma africana que, como tantas outras, mantivera relações maritais formais ou informais com homens europeus, estratégias que trouxeram a essas mulheres, em muitos casos, lugares de destaque na sociedade colonial, facilitando interações comerciais entre culturas e promovendo conexões. 9 Sua paternidade fica evidente ao mencionar, no ano de 1830, com idade entre 8 e 9 anos, uma viagem ao Brasil na companhia de seu progenitor, relatando, entre outras coisas, a primeira observação acerca de seu futuro objeto de estudo como médico: a Pulex penetrans (pulga penetrante, ou bicho de pé):
A primeira vez que tive ocasião de a observar foi em Pernambuco, – para onde, procedente de Luanda, se retirara meu pai, em janeiro de 1830; levando-me em sua companhia, tendo eu a idade de oito para nove anos: – o navio que íamos, que era uma escuna denominada
– escuna Feiticeira – levava, a seu bordo, um carregamento de escravos, cujo comércio então, era permitido pelo governo, e eram eles pertencentes a um dos passageiros, que era amigo de meu pai. No fim de dezesseis dias de viagem, chegamos àquela província do império do Brasil. 10
O amigo do pai de Africano era o negociante Joaquim Ribeiro de Brito, proprietário da escuna Feiticeira, uma já conhecida embarcação negreira. As escunas eram tipos de embarcação de casco raso, com dois ou três mastros, sendo um dos tipos prediletos para o comércio negreiro e de outros produtos durante o período de repressão mais intensa ao tráfico pelos ingleses. 11 O historiador Manolo Florentino encontrou referências a Brito como um “negociante de efeito próprio”. 12 Ele saíra de Luanda pouco antes do Natal de 1823, em direção aos portos de Cabinda e Rio Zaire, e, depois de comprar escravos ao menor preço possível, dirigiu-se aos portos de Recife, Salvador e Rio de Janeiro, desde onde, após vender os escravos, regressaria com têxteis para nova operação. 13 Identificamos diversas viagens da escuna Feiticeira entre as décadas de 1820 e 1850, sempre com carregamentos de escravizados adquiridos em Luanda e desembarcados em Pernambuco, entre duzentos e quatrocentos por viagem. 14
Joaquim Ribeiro de Brito tinha parentes no Brasil, onde estabe- leceu uma rede em torno dos negócios do tráfico. Entre seus contatos, estava Francisco Ribeiro de Brito, Joaquim Ferreira dos Santos, o Conde de Ferreira, e Francisco Antônio de Oliveira, o Barão de Beberibe – este último conhecido capitalista e negociante de escravos pernambucano. 15 O tal negociante, segundo João José Reis, havia sido patrão de Rufino José Maria – o alufá Rufino –, que trabalhava como cozinheiro em uma embarcação negreira, afirmando ser Brito um negociante brasileiro que vivia na África. Ele não era um negociante qualquer. Possuía vários navios empregados na travessia do Atlântico, e também no comércio de cabotagem pela costa angolana, negociando, além de escravos, têxteis, azeite, vinho e outras mercadorias. Segundo Reis, estaria em atividade no negócio negreiro desde 1810. Muito bem integrado à sociedade angolana, ocupou um cargo prestigioso – capitão de ordenanças na cidade de Luanda. Em diferentes fases de sua vida empresarial, suas embarcações ganharam nomes diferentes: a escuna Feiticeira, por exemplo, virou Veloz Feiticeira. 16
Os historiadores Roquinaldo Ferreira e Mariana Cândido desta- caram o papel de agentes africanos na formação dessas comunidades atlânticas de comércio de pessoas e produtos, chamando a atenção para a relevância dos estudos de caso individuais que possibilitam reconstruir trajetórias, laços pessoais, estratégias de crédito e obtenção de cativos. 17 Outro aspecto importante nessa comunidade foi, posteriormente, a formação de gerações de mestiços que se engajaram em vários mundos, sem perder o vínculo com a cultura local. Dessas interações, surgiu um novo grupo social conhecido como “filhos da terra” ou “filhos do país”, que, em décadas posteriores, exibiram comportamentos de afiliação à lusofonia, ao catolicismo e ao mundo colonial. 18 Os filhos do país confor- mavam um grupo social cuja distância era demarcada em relação ao termo “indígena”, alcançado uma posição privilegiada nas estruturas de poder colonial em Angola. Desse modo, uma aristocracia local, composta por famílias afro-portuguesas, forneceu uma dupla herança cultural que lhes permitiu manipular os sistemas coloniais, tanto europeu quanto africano.
Esse manejo como intermediários, sobretudo na expansão do tráfico para o sertão, fez com que os comerciantes brancos da costa em certa medida ficassem dependentes dos conhecimentos e experiências dos filhos do país, ao passo que também se traduzia em atritos entre os membros das oligarquias locais, governadores e outros funcionários de origem metropolitana. Os europeus também reagiam negativamente ao caráter cultural cada vez mais africanizado desse grupo. 19 Eram situações observadas já antes do século XVIII, em que elementos culturais e biológicos ressaltaram e fizeram parte de áreas para além dos chamados reinos de Angola e Benguela, enraizando-se por sua vez nos arredores dos fortes militares de Muxima, Ambaca, Massangano, Cambambe e Pundo Andongo, Canconda e Encoje. 20
Africano e o pai se instalaram em Pernambuco durante oito anos, entre 1830 e 1838, provavelmente amparados por essa rede de negociantes do tráfico – apesar de essa inflexão de angolanos para o Atlântico sul, especialmente para Pernambuco, ter construído outras relações, como a formação educacional via Faculdade de Direito do Recife. Teria o pai de Africano cuidado de sua educação em terras brasileiras, tendo em vista o tempo que viveram em Pernambuco? O médico recorda de episódios no Brasil que contribuíram posteriormente para suaa observação acerca dos danos e estragos de um pequeno inseto conhecido como pulga penetrante ou simplesmente “bicho de pé”, na vida das comunidades atlânticas.
Depois de estarmos em terra, nos primeiros dias que se seguiram o desembarque – não foram logo os escravos atacados pelo bicho de pé […] Mas decorridos esses dias, alguns deles começaram a sentir comichão nos dedos dos pés, e coçando, umas vezes, e outras não […] É de então que conheci a pulga penetrante, e depois por experiência em mim, porque fui dela acometido durante a minha estada em Pernambuco, desde 1830 até março de 1838, época em que regressei a Luanda. 21
Importa salientar que Pernambuco ficou conhecida pela historio- grafia como o terceiro maior porto de desembarque de escravizados no Brasil. Diversos estudos sobre as principais praças mercantis brasileiras inscrevem padrões semelhantes de negócios entre Rio de Janeiro, Salvador e Recife. 22 A participação dessa província nas rotas do tráfico atlântico acarretou a existência de uma numerosa comunidade de indivíduos da região centro-ocidental do continente africano, principalmente de Luanda, além de articulações entre traficantes brasileiros e negociantes afro-portugueses, que se tornaram ainda mais estreitas no século XIX. 23 As plantações de algodão em Pernambuco estavam em alta, as operações com negreiros afro-portugueses de Luanda eram feitas por meio de firmas portuguesas que tinham permanecido em Lisboa e, em troca, canalizavam para Angola produtos fabricados em Portugal. Não podemos esquecer que, em 1848, houve o fomento de uma colônia agrícola em Moçâmedes, sul de Angola, composta por colonos portugueses fugidos de Pernambuco por conta do antilusitanismo no Brasil.
As doenças e seus doentes acompanhavam o tráfico e as péssimas condições dessas viagens transatlânticas. A corrupção do bicho, por exemplo, um dos males temidos a época, era denominado pelos obser- vadores estrangeiros no século XVIII como “mal do Brasil e de São Tomé”, como afirma a historiadora Cristina Wissembach. 24 Ao longo dos séculos de tráfico e escravidão, alguns tipos de doenças persistiram e acompanharam o trânsito desses sujeitos, enquanto outras, como foi o caso do bicho de pé, desapareceram à medida que foi extinto o infame comércio.
Diversos tratados médicos foram escritos acerca de doenças causadas por patógenos (bichos) cuja prevalência era atribuída ao movimento do tráfico ou aos próprios africanos, criando um vocabulário e um perfil nosológico no qual muitas vezes a abordagem seguia unica- mente o saber médico branco e ocidental. “Achaque do bicho”, “maculo”, “corrupção do bicho”, “bicho da costa”, “tunga”, “pulga penetrante” e “bicho de pé” são alguns desses exemplos. O maculo era uma doença comum entre os escravizados africanos no Brasil colonial. Seus sintomas eram diferentes dos do bicho de pé: acometia os indivíduos a partir de uma infecção no ânus, que eliminava um muco fétido, nos casos mais severos evoluía para a gangrena do reto, levando à morte do doente. Segundo alguns médicos, também era observada a presença de larvas. Médicos como Luís Gomes Ferreira, Gabriel Soares de Sousa e Aleixo de Abreu observaram os estragos feitos pela doença, tanto no Brasil como em África.
No livro Notícias do que he o Achaque do Bicho, de 1707, Miguel Dias Pimenta realizou um estudo exaustivo e uma revisão minuciosa de obras gerais, chegando à conclusão de que a doença não havia nascido no Brasil, muito menos na África – tratava-se de uma infecção bacteriana de caráter universal, que teve uma prevalência nesses dois lugares devido às condições precárias que viviam os escravizados, sobretudo no transporte e nos barracões. 25
A tese produzida por Africano nos oferece um outro ponto de vista, que, embora seja laureado pelo saber médico ocidental, apresenta aspectos de sua própria experiência como africano, espelhando o seu olhar sobre o tráfico e os corpos envolvidos em tão duras condições de subal- ternidade. Octávio de Freitas, médico brasileiro, administrador de saúde pública, escritor, jornalista e pesquisador, formado na escola de Medicina da Bahia e de atuação marcante em Pernambuco, produziu uma obra intitulada Doenças africanas no Brasil, editada em 1935, cujo objetivo era catalogar as doenças de origem africana transportadas para o Brasil por meio do tráfico de pessoas escravizadas. Essas doenças, segundo ele, “eram peculiares às terras africanas”, uma vez que o Brasil “era desprovido de achaques e mazelas de qualquer natureza”. Tais males, a partir do seu olhar, teriam sido importados pelos africanos. 26
Sobre o bicho de pé, nomeado assim pelos brasileiros, Octavio afirmava ser um mal originário da África e que de lá viera exportado para o Brasil. Mesmo ciente de que a doença estava associada ao tráfico de escravizados, o autor conduz seus argumentos privilegiando a variável racial associada à “tropicalidade” das regiões em contato. 27 Em linhas gerais, o médico parecia estar mais preocupado com a “salubridade” dos escravizados africanos que no Brasil aportavam do que com a própria escravidão em si. Para Africano, a doença teria sido importada para o Ambriz por uma barca francesa procedente do Rio de Janeiro por meio de lastros de areia, sacas de produtos que seriam comercializadas em Angola, posteriormente transportadas aos armazéns da alfandega, propagando-se assim nas pessoas envolvidas nessas transações comerciais, num processo um pouco mais complexo. Enfatizava que observara a pulga pela primeira vez em Pernambuco e que os escravizados seriam os primeiros atacados por ela, uma vez que eram “muito maltratados e tidos apenas como bestas de trabalho”. Africano contraiu a doença no período em que esteve com seu pai naquela cidade. Tempos depois, já em São Tomé, ele também contrairia escorbuto maligno. 28
Sabemos que, para fazer uma análise detalhada de tais controvérsias médico-científicas, necessitaríamos de mais elementos. Sabemos também que este é um tema presente ao longo de muito tempo nos tratados médicos. Contudo, o ponto de vista que desnaturaliza a origem da moléstia, contribui para que possamos alcançar, mesmo que parcialmente, a percepção do africano sobre a própria doença, indo de encontro a uma lógica construída ao longo de séculos – a de atribuir aos africanos a responsabilidade pela introdução de doenças epidêmicas ou endêmicas no Ocidente. 29
A inserção de Africano nos cursos primário e superior se deu às custas da Real Fazenda. Recuperar sua formação contribui para entendermos algumas características marcantes no processo de composição, deslocamentos e sociabilidades dos filhos das elites crioulas em Angola e em outras províncias africanas. Não podemos esquecer que a proximidade ao Estado colonial garantia, entre outras coisas, possibilidades de acesso à educação, o que era um dos principais diferenciadores deste grupo. No ano de 1857, nos Annaes do Conselho Ultramarino se publicou uma lista nominal dos filhos do país que tiveram passagem pela metrópole com estudos subsidiados:
para que pudessem ser úteis à pátria, especialmente às províncias em que nasceram, sustentando, por um privilégio em beneficio daquelas províncias, à custa da Fazenda Pública um considerável número de estudantes, esperando que acabados os estudos regressariam às suas províncias natais para ali introduzirem a luz da ciência, principalmente pelas suas aplicações, e mais ainda pelo exercício da clínica medica e cirúrgica, por se entender que só dos naturais daquelas províncias se poderia confiar que resistissem bem à ação do seu clima, em geral tão danoso aos europeus. 30
Mesmo sem ter a certeza de que aqueles alunos estavam corres- pondendo às “benévolas intenções do Governo”, passaram pela metrópole, no período entre 1833 e 1857, 108 estudantes provenientes das províncias ultramarinas, sendo 13 de Cabo Verde, 17 de São Tomé e Príncipe, 19 de Angola, 2 de Moçambique, 48 do Estado da Índia e 9 de Macau, que, até aquele ano, haviam disposto da quantia de 80:750$255 (oitenta contos, setecentos e cinquenta mil, duzentos e cinquenta e cinco réis).
Entre aqueles que haviam saído da província de Angola para estudar em Portugal estava Leonardo Africano Ferreira. Os gastos inves- tidos em seus estudos somaram o montante de 1:542$287, iniciando-se os recebimentos em agosto de 1841, assegurados desde os estudos primários até a formação superior no curso da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, quando, conforme decreto de 4 de novembro de 1850, foi nomeado cirurgião-mór do distrito de Benguela. Jill Dias ressalta que, a partir da década de 1830, alguns filhos do país de famílias mais abastadas recebiam educação em escolas particulares e universidades na metrópole subsi- diados pela Fazenda Pública; no entanto, poucos regressavam a Angola. Entre esses, incluíam-se Leonardo Africano Ferreira e Innocêncio de S’antAnna. 31 Anne Stamm reforça esse dado, ao afirmar que os rapazes eram “todos de cor” e que poucos deles concluíam os estudos, expondo o exemplo de José Joaquim Geraldo Amaral, outro estudante angolano, que ocupou o cargo de chefe de guarda da alfândega de Benguela. 32
De fato, numa análise rápida do quadro de estudantes subsidiados pela Real Fazenda, entre os dezenove naturais de Angola, apenas quatro concluíram a formação superior. Foram eles: Carlos Augusto dos Santos, Innocêncio de Sant’Anna, José Joaquim Geraldo do Amaral e Leonardo Africano Ferreira. 33 Todos esses retornaram à sua província natal e ocuparam cargos na administração colonial, enquanto os demais regres- saram ao continente sem finalizar os estudos ou faleceram. 34 Na pesquisa em curso, a trajetória de Africano se apresenta nas fontes de forma mais contínua, sobretudo para os períodos de sua atuação no distrito de Benguela e na província de São Tomé e Príncipe; no entanto, também localizamos a carta de nomeação de Innocêncio de Sant’Anna, datada de 5 de agosto de 1852, para ocupar o cargo de cirurgião de segunda classe no quadro da província de Angola, achando-se devidamente habilitado para o lugar e “com o qual gosará dos vencimentos, graduação e demais prerrogativas designadas”. 35 Ao que tudo indica, ele permaneceu nessa função no concelho do Ambriz, uma vez que, em 1859, o médico assinava a estatística do movimento daquele hospital, publicada no Boletim Oficial da Província. 36
Na década de 1820, a revolução liberal e a restauração da monarquia portuguesa, seguidas no ano de 1822 pela Declaração de Independência do Brasil, impuseram transformações nas relações coloniais entre Portugal e Angola. As questões ligadas à abolição do tráfico de escravizados e à proteção dos interesses de negreiros foram determinantes. Outros elementos como a existência em Angola de um “partido brasileiro”, as relações comerciais com brasileiros da corte do Rio de Janeiro em detrimento de negociantes de Lisboa e o apoio dos habitantes de Benguela à causa da independência brasileira revelavam as transformações que estavam em curso. 37 O governo liberal chefiado por Marquês de Sá da Bandeira promulgou as primeiras medidas de promoção de uma efetiva presença portuguesa em África, apesar do caráter gradual dos decretos relacionados à abolição da escravidão. Ancorada no discurso de desenvolvimento dos recursos agrícolas e minerais de Angola, baseada no trabalho livre e na colonização branca, uma camada fina de “novidades” impulsionadas pelo liberalismo português abrigava a velha estratégia de maximizar os rendimentos coloniais através do estímulo ao livre comércio. Já nessa época, as tensões entre a comunidade crioula e o influxo de europeus para Angola alistava as bases para, segundo Jill Dias, um aumento perigoso da consciência de raça, especialmente em Luanda na década de 1830.
Na senda de expansão dos serviços sanitários, a legislação de 1825 instituiu a criação de escolas de cirurgia em Lisboa e no Porto, visando a conservação da saúde das populações do reino e das províncias do ultramar, para que pudessem os estudantes dominar a importante arte da cirurgia e assim contribuir com o progresso, que, em outros países, estava se avantajando consideravelmente. 38 No estudo de Patrícia Sanches sobre a EMCL, o objetivo foi compreender os percursos profissionais dos alunos daquela instituição entre 1837 e 1889, buscando analisar a predominância dos “filhos” da EMCL nas décadas finais do século XIX, no que se refere à ocupação de cargos nos serviços de saúde pública e nas insti- tuições médicas da capital do reino. No entanto, sobre a análise acerca da naturalidade dos alunos, segundo a autora, as informações recolhidas nos Livros de Termos de Exames e de Atos Grandes da EMCL revelaram que, contabilizando a naturalidade daqueles estudantes, apenas 196 alunos eram naturais da cidade de Lisboa e 479 de outras naturalidades, entre estes, muitos advindos das províncias do ultramar. 39
Mesmo considerando que a EMCL teve indiscutivelmente uma preponderância de estudantes de “outras naturalidades” e que os alunos lisboetas nunca foram a maioria naquela instituição, a autora ignora os possíveis desdobramentos desse desequilíbrio. Sendo a EMCL possivelmente um reduto desses jovens filhos das províncias africanas, muitos deles mestiços, o que isso significava frente aos projetos e expec- tativas futuras desses estudantes? Quais impactos nos serviços de saúde das províncias trouxeram a presença desses profissionais? Podemos supor desistências, formações políticas, retorno a suas províncias de origem, fixação em Lisboa, articulações contrárias à política colonial, entre outras possibilidades.
Publicada em 1878, a tese inaugural de Africano apresentada à EMCL tinha um total de 61 páginas e era dividida em uma introdução e mais três capítulos. A publicação, obrigatória a todos os formandos da escola, tinha o objetivo de cumprir o chamado “acto grande”, dando acesso ao diploma que permitiria exercer a profissão de facultativo. 40 A escolha da pulga penetrante como tema se deu pelo fato de esse inseto, segundo Africano, “estar hoje danificando as populações da província de Angola e as duas ilhas de S. Tomé e Príncipe que são possessões portuguesas”, 41 sendo os principais atingidos os “infelizes escravos” e ocasionando muitas mortes.
Foram esses escravos as vítimas em maior número: que desprezados e mal tratados, e olhados só como bestas de trabalho, cuja perda era fácil de ressarcir, foram sobre eles que as nossas observações se fitaram e por onde podemos adquirir o conhecimento, de quão prejudicial e pernicioso é, o pulex penetras, para os desvalidos da fortuna, e para os que só tem por apanágio a fome, a miséria e o abandono final. 42
Observada por Africano em sua já mencionada viagem ao Brasil, a presença do inseto foi registrada do outro lado do Atlântico pela primeira vez no Ambriz; de lá passou para Luanda levado pelos “pretos cabindas”, chegando em São Tomé nos fins de 1874, importado por alguns libertos, que “dele traziam os pés impregnados, e que vinham a bordo de um dos paquetes da Empresa Lusitana”. 43

O médico expunha que, em Luanda, os relatórios apresentados pelo chefe de saúde daquela província sobre a invasão da pulga tratavam a infestação de forma superficial e insuficiente, como se os danos causados pelo inseto não fossem graves, o que na sua avaliação merecia maior atenção. Ele entendia que era dever do chefe de saúde, por meio do diálogo com o governo da metrópole, nomear uma comissão extraordinária de médicos, que, naquela cidade, estudassem e investigassem as causas da propagação, assim como pensassem em agentes terapêuticos mais eficazes para tratar as lesões causadas pela pulga. Dessa maneira, e por reclamar as indicações ou os meios profiláticos para prevenir a reprodução do inseto, o médico firmava a relevância de seu trabalho.
Ainda na introdução da tese, Africano comentou as anotações do pequeno relatório sobre a pulga penetrante escrito pelo médico José Maria de Mello Dias, facultativo naval de primeira classe, feito por ocasião de uma viagem sua do porto de Cardiff ao porto de Luanda, em abril de 1876:
Que uma calamidade que aflige atualmente as populações de Angola, por ter adquirido excessivo desenvolvimento, é o bicho dos pés ou pulga penetrante, chamada maúndo pelos pretos, e tunga pelos brasileiros, a qual também existe nas regiões quentes da América meridional. 44
Africano, ao se aprofundar em outros estudos sobre a pulga, ancorou-se nos escritos do doutor Bonnet, médico de primeira classe da marinha francesa, que havia realizado observações e experiências no trata- mento da doença, em sua passagem de três anos pela Guiana Francesa. Após análise apurada quanto às classificações, anatomia, metamorfose e regiões do corpo humano nas quais a pulga agia, as observações de Africano atestavam a infestação em praticamente todas as partes do corpo: joelho, escroto, glande, cotovelos, umbigo, articulações em geral, na palma e região externas das mãos, sob o dorso e na nuca.
Nisso, não asseverou ele nenhuma falsidade: – pois que nós em Pernambuco de 1830 a 1838, observamos o inseto, invadindo todas as regiões do corpo, nos escravos, com especialidade nos escravos dos senhores, que tinham engenhos para moagem da cana sacarina; morrendo muitos desses infelizes, todos cravados de bichos, pelo desprezo e falta de asseio, por que eram tratados por seus ditos senhores; que os conservavam, além disso em quase completa nudez, fornecendo-lhes uma exígua alimentação, e esta mesma de péssima qualidade. Fatos deste gênero têm acontecido em todos os lugares infestados pelo bicho, quando se dão as circunstâncias, que referimos acerca dos escravos. 45
Sobre os meios profiláticos, Africano destacou as técnicas tradicionais de indígenas e africanos. Os primeiros untavam o corpo com tinturas acres de cheiro forte, empregavam também “desde tempo imemorial” uma infusão de folhas de tabaco, enquanto outros utilizavam a tintura de urucu. Observou que alguns “indígenas” se serviam do azeite de carrapato para prevenção e como meio de cura. Em outra passagem, citou o caso do Barão de Água Izé, que havia aprendido com um padre sobre o uso do óleo extraído da castanha de caju, num processo extenso e complicado, para a prevenção da infestação da pulga. 46
Os métodos preventivos de Bonnet estipulavam regras rígidas sobre vestuário, lugares onde se deitar, asseio do corpo, entre outros métodos pouco acessíveis para uma população escravizada – dado relevante ignorado pelos médicos europeus em suas prescrições. Em outra passagem, as obser- vações recaíam especificamente sobre a ilha de São Tomé, na qual, segundo o médico francês, “os pretos e as pretas indígenas, no maior número deles, quase nunca se lavam, por terem medo da água fria”. 47
Para os meios terapêuticos, o processo de extração era unânime e reconhecido como muito simples, mas que, pelas lentes dos médicos da medicina ocidental, ganhava uma série de considerações de ordem moral. Reconhecendo que, em muitas regiões, essa operação era de domínio dos negros e dos mulatos, o estudo indicava que entre os indígenas eram as mulheres que ficavam encarregadas do cuidado “ d’echiquer”. Como já fora observado, a pulga atacava todas as partes do corpo humano, não deixando intactas nem as partes íntimas, no que Bonnet se questionava: serão a mesmas mulheres ainda as encarregadas na extração?
Não admira. Como nessa gente não há pudor e quase nenhuma moralidade […] e também não é menos certo e corrobora o que relatam alguns viajantes do interior de Angola; que na execução dessa operação os executores dela, invertem-se; de modo que são as mulheres opera- doras nos homens – e vice-versa; pelo maior interesse que o sexo diverso por aquele que lhe é – oposto ou antagônico. É bom saber o que se disse, para que se conclua igualmente, que a pulga penetrante ainda tem a perniciosa qualidade indireta de promover a imoralidade; seguindo-se lhe a obscenidade, e a sensualidade, que são a conse- quência da depravação dos bons costumes: – como acontece em muitas das regiões interiores da Ásia, da África e América. 48
Nas cidades do Brasil, como Rio de Janeiro, Salvador e Recife, por onde o médico Bonnet mencionou ter passado, os “expulgadores” ou “pulgacidas” eram, segundo ele, “negros muito belos e conformados”, ao passo que esse método também foi observado como responsabilidade de “negras velhas”, conforme acontecia na Guiana Francesa e nas Antilhas. 49 Bonnet, em outra passagem, afirmava que era necessário ter os “olhos de uma negra” para não dirigir o instrumento em falso na arte de “expulgar”.

Por meio da tese de Africano, podemos observar que as conside- rações acerca dos métodos, tanto preventivos quanto de extração ou cura da pulga, eram baseados nas experiências e métodos das populações africanas. Há um jogo de recusa e reconhecimento sobre os cuidados, permeados pelos discursos que conferiam notoriedade aos sujeitos e à forma como a doença atravessava os continentes em navios e “cargas”, não restando dúvida sobre a associação da doença à dinâmica do tráfico de escravizados. O mesmo olhar não reflete o protagonismo desses agentes africanos e indígenas, que, em suas experiências, executavam métodos de prevenção e cura.
Estabelecido como cirurgião civil de primeira classe em Benguela, Africano substituiu José Maria Bulhões Maldonado, também cirurgião de primeira classe, que, por ordem do governador-geral, regressou a Luanda com a finalidade de intervir na invasão da febre amarela. O mesmo gover- nador recomendava que “os navios procedentes dos portos de Brasil, onde a febre amarela tem aparecido, sejam cuidadosamente vigiados”. 50 O vai e vem entre os funcionários das províncias no tocante aos serviços de saúde era constante, os facultativos não se fixavam definitivamente em Luanda nem no interior, ou em outras províncias, eram transferidos ou pediam transferências e licenças, conforme a conveniência do governo-geral ou das relações pessoais. Nesse movimento, encontramos Africano publi- cando uma nota de despedida direcionada aos amigos que ficavam em Luanda, no trânsito entre a capital da província e o distrito de Benguela, idas e vindas que aparentavam ser constantes.

Em Benguela, o médico figurava na lista de dos cidadãos daquele distrito que contribuíram para a construção do monumento em homenagem ao Conselheiro Pedro Alexandrino da Cunha, que fora governador-geral da província de Angola, com a quantia de 5$000. 51 Disposto também em contribuir com os melhoramentos dos serviços sanitários, em setembro de 1851, subscreveu a lista de pessoas a favor da construção do Hospital Civil e Militar do distrito de Benguela, com a quantia de 55$000, e, em janeiro de 1852, novamente doando a quantia de 5$000. 52

O médico alemão George Tams, na década de 1840, produziu uma rica descrição acerca da província de Angola, visitando diversos portos da costa, entre eles Benguela. Sobre o hospital e os facultativos daquele distrito, o médico observou ser o prédio um dos melhores da cidade: tinha sólidas paredes de tijolos e era coberto com telhas. Havia oito subdivisões, uma servindo de dispensa, outra estava a botica, uma parte menor era utilizada como armazém, e as cinco restantes eram destinadas aos doentes. Cada enfermaria comportava quinze doentes. O laboratório atraiu sua atenção, pois era espaçoso e tinha tipos variados de recipientes e medicamentos. A nomenclatura era toda feita em português, o latim parecia ser desconhecido do farmacêutico local – apesar de que este, segundo Tams, se “blasonava” de ter estudado em Lisboa e na Bahia. Sobre o facultativo, o médico alemão sentenciou:
Os conhecimentos do facultativo não eram muito avantajados: – qual teria sido a sua primeira ocupação em outra qualquer parte do globo, não o pude eu descobrir. Ele intentava fazer-me acreditar que havia estudado em Coimbra; mas a sua crassa ignorância imediata- mente o delatou de impostor. 53
Possivelmente o facultativo a que Tams se referia não era Africano, uma vez que este assumira o posto de cirurgião em Benguela apenas em 1850. A escassez de médicos e boticas em várias regiões da província de Angola era um tema discutido amplamente; boa parcela da população pobre buscava tratamento por meio de “milongos” nativos, por falta de recursos e em grande medida pela desconfiança em relação aos métodos da medicina ocidental. 54 Os poucos “médicos de partido” 55contratados naquela altura recusavam os vencimentos oferecidos pela Câmara, no valor de 60$000 ao ano (equivalentes a 164 réis por dia), como foi o caso do Dr. Matheus Alexandre Gueulette em ofício endereçado à Câmara de Luanda:
A Ilma. Câmara quebrantou o contrato, que comigo celebrou e assinou logo que sem medo consentimento reduziu o ordenado entre nós estipulado ao de 60$000 réis anual ou de 164 rs por dia! Dá-me, pois, direito a declarar a V. S.ª para que o faça contar a mesma Câmara, que por tal preço não posso e não devo querer continuar a ter a satis- fação e honra de me considerar como cirurgião de partido; mas como habitante domiciliário do município seja-me permitido que eu apresente a minha admiração e reconhecimento a tanta economia que a atual Câmara vai realizando benefício de certo de todos, menos dos pobres, que ficarão sem facultativo, se não houver algum que por caridade própria e não por interesses dados pelo município, lhe acuda em suas enfermidades – Deus Guarde a V. S.ª Luanda 14 de março de 1850. I. lmo Sr. João de Souza Netto. Presidente da Câmara Municipal – Matheus Alexandre Gueulette, Cirurgião Civil. 56
Os facultativos de partido, entre outras atribuições, eram respon- sáveis pelo exame médico dos presos da cadeia pública, que eram muitos, e suportavam péssimas condições de salubridade. As tentativas de inserção na profissão médica, nos postos da administração colonial, aliadas à escassez de recursos e disputas políticas, contribuíam para a desorganização dos serviços sanitários. Assim foi o caso do Dr. Januário Vianna de Resende, que, por meio de uma portaria de dezembro de 1854, foi substituído no cargo de físico-mór da província, pela ordem de el-rei Pedro V. Segundo José de Almeida Santos, o médico era um homem de “franqueza rude, exigente e minucioso em fazer aplicar o rigor da lei, atitude que fatalmente lhe iria acirrar o vespeiro de inimigos”. 57 No entanto, após apoio popular e intervenção do chefe da província junto ao trono, o Dr. Resende acabou permanecendo em seu posto. O tal médico, após edital datado de 28 de julho de 1855, que promulgava atitudes enérgicas contra sangradores e cirurgiões improvisados e punia esses “indivíduos destituídos de todos os conhecimentos”, decidiu não aplicar aos “transgressores” as penas preco- nizadas, uma vez que, naquele período, não existia em Luanda, segundo ele, qualquer sangrador ou oficial menor de saúde. 58 Nesse ensejo, o físico-mór apresentou as suas providências:
Tendo feito ver a S. Ex.ª O Governador Geral, o muito que aprovei- tarão os povos, com a existência de pessoas habilitadas na dita arte, oferecendo-me para leccionar gratuitamente, um curso em que elas se possam instruir e preparar para o competente exame público; e obtenção do respectivo diploma: tendo o mesmo Exm.º Sr. aceitado o meu oferecimento como meio mais próprio de remediar aqueles males, faço saber que: 1°) No dia 15 do mês de agosto próximo futuro, no hospital militar, darei princípio a um curso público e gratuito para a instrução de sangradores, dentistas, oficiais menores de saúde, de que já se acha aberta a matricula em minha casa; 2°) Todos os indivíduos que se quiserem matricular hão de provar que sabem ler e escrever, e que são maiores de 18 anos; 3°) Somente terão direito a fazer exame os estudantes que tiverem seguido o estudo, com matrícula, e frequência regular; 4°) Logo que tenham sido aprovados alguns destes estudantes, será severamente punido, nos termos de lei, qualquer indivíduo que, sem esta habilitação, sangrar, tirar dentes, ou exercer alguma operação de cirurgia ministrante. 59
Ao que parece, as medidas não surtiram efeito, pois foram novamente propostas por seu sucessor, nomeado em janeiro de 1856, o Dr. Jacques Nicolao de Salis. O historiador Kalle Kananoja assinala que o pluralismo médico esteve presente nas primeiras tentativas de organização dos serviços de saúde na Europa moderna, e que o cenário terapêutico incluía diferentes formas de cura. Nesse contexto, cirurgiões e barbeiros não acadêmicos recebiam treinamento prático de médicos habilitados nas universidades. Em seu estudo para a Angola setecentista, Kananoja oferece pistas sobre a transmissão de conhecimentos de médicos portugueses para africanos, uma vez que as aulas de medicina ministradas pelo médico-chefe José Pinto de Azeredo, no final do século XVIII, eram frequentemente citadas como primeiro exemplo de formação médica em Angola, podendo ter havido precedentes e planos para formar pessoal médico em Luanda já no início do século XVIII. Na mesma esteira, outro profissional também obteve autorização para exercer a medicina em Angola, tanto para curar soldados quanto para ensinar medicina a todos os residentes que quisessem aprender, permanecendo em Luanda por mais de uma década. 60
Em 1868, com apoio do cirurgião-mór da província de São Tomé e Príncipe, Africano apresentou um requerimento a Estanislau Xavier, então governador-geral daquela província, pedindo para ser provido interi- namente no cargo de cirurgião de primeira classe dentro do quadro de saúde, atingindo assim a maior posição na hierarquia do serviço médico. O documento informa que Leonardo já morava naquelas ilhas e revelava o apoio do chefe de saúde J. Tavares de Macedo ao pedido de nomeação. Nas primeiras linhas, a maioria das argumentações para nomeação citavam o alto movimento do Hospital Militar, devido ao aparecimento de febres endêmicas, pneumonias e pleurisias, que recaíam sobre os soldados europeus daquela região.
Segundo Macedo, o número de dois facultativos era insuficiente para a alta demanda no tratamento daquelas enfermidades. O governador, porém, não se mostrou convencido da necessidade e da urgência da nomeação, argumentando que, naquela data, a província contava com apenas 54 doentes, sendo 24 militares e 27 civis, o que, na sua avaliação, não era um número tão excessivo e, portanto, para ele, não havia neces- sidade de mais um facultativo. O governador também apresentou a el-rei um motivo de caráter mais subjetivo para a rejeição do pedido:
porque não goza de bons créditos nesta povoação o indivíduo proposto, por ser de caráter desordeiro, gênio turbulento e até com ideias subversivas, constando-me além disso que se acha envolvido num processo crime, motivos pelos quais não exerce a clínica particular. Entretanto submeto à consideração de V. Ex.ª a proposta feita pelo cirurgião-mór, a fim de fazer o que entender conveniente, cumprindo-me nesta ocasião lembrava a V. Ex.ª o que já disse acerca do mesmo Leonardo Africano Ferreira em um ofício confidencial de 29 de novembro do ano próximo passado. 61
Estanislau, em seu despacho, plantou uma “pulga” atrás da orelha de Sua Majestade, fazendo questão de ressaltar o “gênio turbulento” do Dr. Africano, além de mencionar a disseminação de “ideias subversivas” por onde passava. Quais ideias seriam essas? Que tipo de ações Africano punha em prática além do seu ofício como médico? Fica evidente que o governador já acompanhava de longa data a atuação do médico, chegando a remeter um ofício confidencial à metrópole.
No Conselho de Saúde Naval e do Ultramar, outras informações sobre a trajetória de Leonardo Africano são reveladas, como o degredo do médico de Angola para São Tomé “por ter sonegado papéis sendo juiz ordinário em Benguela, e lhe foi perdoado o resto da pena por indulto régio; contudo continua a permanecer em S. Tomé”. 62 Tudo indica que esta não era a primeira vez que Africano pedia uma oportunidade para assumir o posto de primeiro facultativo nas ilhas. Na ocasião anterior, segundo a administração, o requerimento não havia chegado com os documentos indispensáveis que deveriam comprovar sua atuação na segunda classe. O chefe de saúde em São Tomé e Príncipe se mostrava, por sua vez, obstinado no rogo pelo colega:
Sempre que se apresentam estas e outras necessidades da saúde pública, os governos de todos os países, considerando-as como da maior urgência e de uma ponderação, atendeu a elas com toda a solicitude; e Sua Excelência o Governador da Província não tem por certo olvidado essa consideração, porquanto tem sempre providenciado de pronto sobre todos os assuntos concernentes aos melhoramentos sanitários do país = Em Luanda foi tomada em consi- deração pelo governador geral da província a proposta do físico-mór respectivo, para a nomeação de mais um facultativo; e sendo proposto o médico Saturnino de Souza e Oliveira, foi ele, apesar de estran- geiro, nomeado facultativo oficial do quadro, e esta nomeação foi depois confirmada pelo governo de Sua Majestade = Em vista pois, do que fica exposto, tomo a deliberação de propor a Sua Excelência o Governador da Província a nomeação de Leonardo Africano Ferreira, para ser provido interinamente no lugar de cirurgião da primeira classe do quadro de saúde desta província, – que se acha vago, e isto não só pelas razões alegadas, mas também pelas razões seguintes: – que no referido cirurgião concorrem os predicados precisos para bem desempenhar as funções de que foi encarregado: – que em Benguela prestara ele bons serviços clínicos, na qualidade de cirurgião-mór daquele distrito; e também iguais serviços quando fora nomeado, em época posterior, delegado de saúde da mesma localidade, encar- regado da clínica do Hospital Militar e Civil daquela cidade: – que tem longa pratica das moléstias da África Ocidental, adquirida no seu exercício terapêutico. 63
Nas argumentações do chefe de saúde, ficava evidente um certo empenho nos melhoramentos sanitários – nesse caso, na província de Angola –, com a nomeação de um médico facultativo brasileiro. 64 Africano reunia todos os requisitos necessários para preenchimento do cargo em São Tomé: formação em escolas do reino, experiência como cirurgião em sua província de origem, conhecimento e “aclimatação” com as doenças daquela região da África, além de exercício terapêutico para com essas doenças.
A historiadora Rafaela Jobbit explica que, devido a uma série de variáveis, o chamado “pluralismo médico” era observado em províncias africanas como São Tomé e Príncipe, o que não implicava em atitudes tolerantes ou benevolentes de autoridades coloniais para com médicos não europeus. Pelo contrário, podemos dizer que a necessidade de médicos oriundos das províncias africanas algumas vezes era bem-vinda, mesmo que em cargos provisórios, devido a uma estrutura conflituosa do serviço de saúde, sobretudo em decorrência de inúmeros pedidos de licença que médicos europeus solicitavam com bastante recorrência, muitas vezes sem ao menos cumprir o tempo necessário em cada localidade. Outras impressões de comentaristas da época acerca dos serviços de saúde recaíam na sua inefi- cácia, pois, para eles, muitos profissionais tinham bastante conhecimento prático de doenças, mas nenhum treinamento formal ou diploma. 65
O deslocamento de Africano para São Tomé e Príncipe ilumina o histórico de relações muito estreitas entre as duas províncias, que interagiam de múltiplas formas – desde a circulação de agentes da burocracia colonial, até a troca de produtos agrícolas e o caso que pode ser mais emblemático nesse contexto: o resgate de libertos sob contrato de trabalho para as plantações de cacau. A legislação de 1854 criou essa categoria intermediária como forma de indenização aos antigos senhores. Os libertos trabalhariam durante dez anos, evidenciando os limites do liberalismo português, sob formas camufladas de tráfico. Segundo Roquinaldo Ferreira, duas regiões concentraram o maior número de libertos em Angola: Luanda e Golungo Alto. As razões consistiam desde a condição privilegiada da capital até a expansão econômica para o norte da província, a partir do eixo econômico do Ambriz. No Golungo Alto, expandiam-se as rotas do comércio para o sertão. 66
Esses libertos transportados para as plantações no arquipélago deveriam ser batizados e receber suas “cartas de alforria”; o concessionário deveria provê-los de alimento e vestuário, com a promessa de não infligir maus-tratos aos trabalhadores. No entanto, não era isso o que acontecia na prática, vistas as condições desumanas às quais os libertos eram expostos. Uma autoridade administrativa, em diligência rural a uma roça em São Tomé, encontrou duas mulheres de condição livre acorrentadas uma à outra, trabalhando na terra por determinação de seu proprietário. Outra situação relatadas eram a de negros livres sendo vendidos.
Um ex-governador da província de São Tomé e Príncipe revelara que, durante o seu governo, em 1865, houve rebeliões dos pretos contra os feitores e administradores, cuja causa foram os maus-tratos. Um facul- tativo, também em 1869, dizia em relatório oficial que a alimentação dada aos libertos era deficiente e que, aliada ao vestuário, era o vetor de muitas mortes em decorrência da propagação de moléstias. 67 Um personagem de destaque junto ao transporte de libertos para São Tomé e Príncipe foi João Maria de Sousa e Almeida, o barão de Água Izé, que, em 25 de outubro de 1853, por meio de decreto, obteve a concessão de terrenos na ilha do Príncipe e a permissão para transportar libertos de Angola para aquela ilha. 68
O decreto aprovado em 2 de dezembro de 1869 reorganizou os serviços médicos portugueses no Ultramar. 69 A lei estipulou que a colônia de São Tomé e Príncipe receberia um total de cinco médicos e três farmacêu- ticos.Além disso, tornouobrigatórioparaos serviços médicosaapresentação de relatórios anuais aos governadores de suas respectivas colônias, mas, em São Tomé e Príncipe, os relatórios não podiam ser feitos com tal rigor devido à falta de pessoal. Além disso, a população crescia, e a recomen- dação das autoridades era que o serviço tivesse pelo menos dez membros. Essa legislação ainda dava preferência à contratação de médicos formados em escolas de medicina de Portugal. De acordo com o relatório acerca dos serviços de saúde para o mesmo ano, produzido por Manuel Ferreira Ribeiro, facultativo de primeira classe no quadro daquela província, a ilha, por ser muito “doentia”, precisava aumentar o quadro de médicos, que ainda era insuficiente, não satisfazendo o serviço oficial, que teve apenas um médico como encarregado de todo o trabalho durante anos.
Manuel Ribeiro também reclamava a construção de um hospital civil, onde pudessem ser tratados os libertos e que, segundo ele, deveria se situar em lugar central, recebendo apenas trabalhadores.
Em S. Tomé são precisos cinco ou seis médicos, para cuja sustentação não podem concorrer os habitantes de uma colônia que principia, e por isso mesmo precisa de bons conselhos, útil tratamento e boa direção médica. A ilha de S. Tomé está em piores condições que Angola, enquanto a clima, e são nesta ilha e na do Príncipe maiores e mais sensíveis as faltas que se notam em assuntos de saúde pública! 70
Voltando aos documentos acerca do requerimento de Africano, este já acumulava experiência por duas vezes à frente da delegacia de saúde no distrito de Benguela, onde estivera encarregado do exercício clínico do Hospital Civil e Militar. É possível afirmar que a recusa deliberada e as ressalvas ao comportamento de Africano em sua atuação como médico nas províncias africanas tenham adquirido um fundo político e racial, tendo em vista as disputas de cargos na estrutura da administração colonial entre mestiços e portugueses.
A administração colonial nos territórios de Angola e Benguela era predo- minantemente militar. Na década de 1850, os antigos presídios foram transformados em concelhos. As regiões da Catumbella, Dombe Grande, Quilengues, Caconda e Egipto eram compreendidas como concelhos do distrito de Benguela. 71 Do ponto de vista de Lisboa, era preferível atribuir os lugares de comandantes e chefes militares a profissionais de primeira linha do exército português, em detrimento dos filhos do país, pois, para eles, a “parcialidade” se mostrava prejudicial ao bom funcionamento administrativo. O clima de incertezas ocasionado pela proibição do tráfico fazia com que muitos funcionários coloniais facilmente se corrompessem, aliando-se a negociantes e traficantes de escravos, a fim de suplementar seus salários. Reforçava-se, assim, não só a resistência às leis abolicio- nistas, mas também a influência de traficantes nos assuntos políticos internos na administração da colônia. 72
Em 1864, em Benguela, Africano encaminhou a José Baptista de Andrade, governador-geral da província de Angola (1862-1865), uma representação contra o juiz ordinário do julgado de Benguela, Antônio Ribeiro Mendes Negrão e o governador do distrito de Benguela, Antônio Candido Pedroso Gamito. O documento pedia providências ao governador da província “por terem estas duas autoridades perpetrado os crimes os mais infames, abusando do poder por modo indigno, para obter peitas, falsear, oprimir e prevaricar”. 73 Também tratava de fatos que levaram a sua prisão na fortaleza de Benguela.
Seguem os acontecimentos. No dia 2 de novembro de 1863, na casa de Africano, achavam-se Luiz Moreira da Silva e Antônio Fernandes de Barros, seu “constituinte”. 74 Ambos planejavam fazer uma doação de um arimo situado na Catumbela, mais três escravos e uns pardieiros para Conceição da Costa Covello Moreira, que era mulher de Luiz Moreira. 75 Como a doação deveria ser feita por escrito e assinada, Moreira, por se incomodar e com as mãos trêmulas, concedeu a Africano a qualidade de seu procurador, porém, eram necessárias três testemunhas para validação do tal documento, que, após redigido e assinado por Africano e os demais, estava pronto para um registro legal no valor aproximado de cem mil réis fortes. No entanto, esse documento que fora entregue ao aceitante, 73 dias depois de sua feitura, foi dado como falso perante o juízo de Benguela, sem que, segundo Africano, o mesmo requisitante apresentasse o documento para reconhecer sua legalidade ou ilegalidade por meio de um exame.
Os arimos eram pequenas áreas de cultivo de produtos diversos para consumo e venda nos mercados públicos; a produção também poderia ser uma fonte de abastecimento para os navios ancorados no porto. 76 A região da Catumbela era de grande importância em termos de abastecimento de alimentos para Benguela. Vila comercial e agrícola, ficava situada na margem direita do rio de mesmo nome, onde as populações indígenas se ocupavam da produção de milho, feijão, abóbora, batata doce, cana sacarina, mandioca, outras culturas alimentícias e produção de gado. 77
Antônio Ribeiro Mendes Negrão era juiz ordinário e exercia ainda o ofício de boticário naquele distrito, tendo sido nomeado para exercer tal função no Hospital Militar de Benguela, em 1848. 78 Africano afirmava ser Negrão seu “inimigo figadal” e que este sempre buscava uma forma de prejudicá-lo; os dois também haviam disputado a arrema- tação de uma botica posta em hasta pública. No dia 12 de janeiro daquele ano, Leonardo arrematou a botica com a ajuda de um fiador, porém o juiz Negrão interveio junto ao escrivão dizendo que a arrematação só teria validade se o pagamento fosse feito no prazo de três dias – o que, para Leonardo, pareceu injusto, uma vez que outros arrematantes já haviam disposto de até quatro meses para pagamentos de ações semelhantes. Sendo assim, foi inviável para o médico pagar o preço da botica naquele prazo imposto, fazendo com que o juiz invalidasse o processo. Revoltado, Africano julgava que a intervenção no caso dos documentos do arimo era uma forma de Negrão satisfazer sua sede de vingança, oriunda de ressen- timentos, provavelmente por Africano tê-lo desafiado: “avivados em seu espirito maléfico, forjou ele o plano mais indigno, tal de envolver-me em um processo crime, tendo por base uma falsa imputação”. 79 Fora esse o processo que motivara o degredo de Africano para São Tomé – pena que seria posteriormente perdoada, por meio de indulto régio, segundo a documentação de 1868, já mencionada. 80
Para Africano, o processo era integralmente sem fundamento, merecendo ser anulado, e foi esse o empenho ao longo do seu reque- rimento. À luz desse caso, podemos perceber nuances das tensões que envolviam mestiços e portugueses no bojo da administração colonial no distrito de Benguela. Africano chamava a atenção das autoridades portuguesas para a facilidade com que naquele distrito era organizado, segundo ele sobre bases falsas, um processo crime que arruinava um homem. Na sua avaliação, eram ações que atentavam contra a liberdade e a segurança individual, e ressaltava-se a postergação da lei para se atender somente aos sentimentos de vingança e, muitas vezes, a ilícitos interesses pecuniários. 81
Africano também relatou uma série de fatos que, segundo ele, denotavam o modo arbitrário e “atraiçoado” como o juiz Negrão estava conduzindo os assuntos de seu ministério, caracterizadas por ele como atitudes tirânicas que simbolizavam os tempos “nefandos do obscuran- tismo, e o império da perfeitíssima imbecilidade e supina ignorância que assolava aquele distrito”. 82
O fato de os filhos do país terem continuado a ocupar cargos administrativos em meio às disputas por espaços sociais e políticos em Angola não apaziguava os episódios de racismo praticados por funcio- nários portugueses nos quadros da administração. Nesse contexto de insatisfação, a imprensa periódica se tornava um veículo no qual eram expostos esses descontentamentos. O jornal A civilização da África Portuguesa, fundado em 1866, foi um espaço onde o jornalista José de Fontes Pereira, outro filho do país, refletiu fortemente acerca de uma consciência nacionalista angolana. 83
Africano também foi suspeito de envolvimento em uma suble-vação militar, ao compartilhar com o alferes José Clemente Maria de Andrade sua impressão sobre a forma como o juiz Negrão conduzia os assuntos relacionados à justiça naquele distrito, em meio a uma série de desavenças entre o alferes e o filho de Negrão – episódios que desagradaram profundamente o governador Pedroso Gamito. Levado à prisão, Africano ocupou uma cela solitária, que, segundo sua descrição, era um lugar onde se prendia “toda a casta de gente, a negra escrava, liberta, o negro escravo, o liberto, o soldado negro do batalhão, o empacaceiro”. 84
Suas impressões revelavam um lugar destinado apenas a outra “casta” de africanos, como os pretos escravos, pretos livres, gentios e pretos cabindas, sendo o ambiente muito insalubre e foco de doenças. Era essa uma outra face da identidade cultural dos filhos do país: orgulhosos muitas vezes de sua ascendência europeia, essa elite crioula se via, em muitos aspectos, distante dos chamados “gentios”, uma vez que sempre ocuparam, em relação ao resto da população africana, posições privilegiadas.
Dias depois, Africano voltou a ter notícias sobre o episódio envolvendo o alferes Andrade e o governador Gamito. Corria pela cidade que Africano aconselhara Andrade a prender o filho do juiz ordinário. As acusações qualificadas como “reação ou sedição, ou revolta militar”, 85 envolviam-no em mais uma trama:
Os atos do oficial Andrade, se não provar que ele teve razão para desobedecer, devem ser qualificados, como sendo uma desobediência, manifestada, por formal oposição ás ordens do governador de Benguela, mas nunca de modo algum podem receber o caráter de revolta militar, como pretende este governador, para o fim de alcançar atroz vingança sobre seu adversário, e sobre mim: e que mesmo na hipótese de serem qualificados como desobediência, tem estas muitas circunstancias atenuantes, e de tal ordem, como V. Ex.ª sabe que elas terão de conduzir necessariamente, para absolvição do réu. 86
Apesar de o alferes Andrade negar posteriormente que Africano o tivesse aconselhado a uma revolta militar naquele distrito, o juiz Negrão insistia no argumento, negando o pedido de saída da prisão solitária, afirmando ser uma forte prova a conivência do médico com a reação do oficial, da qual poderia haver resultados desagradáveis, caso medidas de precaução não tivessem sido tomadas. Negrão também alegava existirem armas na cela de Africano, reafirmando, porém, que era preso de justiça. 87 O desdobramento dessa acusação foi publicado em nota no Boletim Oficial, reafirmando a quebra do “sossego público” e os encaminhamentos para o julgamento dos envolvidos em Luanda.
Sua Majestade El Rei, a quem foi presente o ofício do Governador Geral da Província de Angola n° 120 de 15 de maio do corrente ano, remetendo a correspondência acerca do procedimento do alferes José Maria Clemente d’Andrade, que se acha preso na fortaleza de S. Miguel, por desobediência ao governador do distrito de Benguela, e comunicando que o cirurgião Leonardo Africano Ferreira, foi pelo dito governador mandado para Luanda, por prejudicial ao sossego público, manda, pela Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e do Ultramar, que o sobredito Governador Geral faça expedir as convenientes ordens, a fim de que todos os indivíduos em processo sejam julgados com a maior atividade e na conformidade das leis. Paço, em 16 de julho de 1864 – José da Silva Mendes Leal. 88
Sobre as armas, Africano rebateu dizendo ser mais uma calúnia do governador, uma vez que houve uma revista rigorosa na prisão e nada foi encontrado. Em resposta, sugeriu que Gamito, antes desses fatos, já alimentava temores de uma possível revolta, o “que lhe comprime e domina o miolo, e lhe aterra o espirito; é sempre a mesma alucinação”. 89 Possivelmente, para aquele governador, era difícil esquecer os episódios provocados por desavenças e interesses de vários povos no interior da província, o que provocara sublevações contra a presença portuguesa, nomeadamente contra governadores, como aconteceu em Dombe Grande em 1849, 1852 e 1854, ou no Humbe, em 1861. 90
Em 26 de abril daquele ano, o governador Pedroso Gamito, logo após novo pedido de suspeição 91 feito porAfricano por via do seu procu- rador e enviado aos cuidados de outro juiz chamado José Ferreira Gomes, negou a solicitação. A alegação do governador foi o não reconhecimento de Gomes como juiz competente para encerrar o processo. Importante ressaltar que o juiz José Ferreira Gomes era um homem negro nascido em Benguela, filho de Florinda José Gaspar – cujo pai era um chefe africano da Catumbela – e Francisco Ferreira Gomes, também negro, nascido no Brasil, um ativo traficante de escravos em Benguela. O clã Ferreira Gomes era um exemplo de família que constituiu intensa conexão transatlântica em decorrência do tráfico de escravizados, firmando laços sociais e culturais nas duas margens.
Outro elemento que aproxima as trajetórias de Leonardo Africano e do juiz José Ferreira Gomes foram as acusações de supostas sedições contra os portugueses. Guardadas as singularidades das trajetórias de ambos, alguns pontos em comum podem ser chaves para a interpre- tação acerca das relações delicadas que esses homens de cor inseridos na administração colonial vivenciaram no período da efetiva ocupação portu- guesa em Angola, como o porte de armas de fogo. Na época, existia um decreto que vetava o uso de armas de fogo por africanos, visando evitar “tumultos” em Benguela. As autoridades determinaram que “nenhum negro, livre ou escravizado, assim como outros indivíduos, independente- mente do seu estatuto legal, podia portar armas durante o dia ou a noite”. 92
Assim, determinou-se que Africano deveria permanecer em absoluto isolamento, não podendo receber visitas. Também estava proibido de receber correspondências, missivas e requerer a outra autoridade judicial, nem mesmo o governador. Africano ainda alertava ao tenente José Gomes Ribeiro Junior, que era comandante da guarnição de Benguela, sobre seus temores referentes à prisão, e ambos demonstraram, segundo ele, descontentamento com aquela situação. Africano ainda tentou imediatamente chamar seu procurador e o tabelião Pedro Ferreira d’Andrade para uma conversa acerca daquela condição a que fora exposto, pois, segundo ele, “a existência da minha pessoa corria grande perigo”. 93 Africano dizia querer ver o tabelião para saber se já havia sido aprovado seu codicilo (uma espécie de emenda a um testamento já existente), que vinha sendo elaborado desde janeiro do ano anterior, data muito próxima a seu envolvimento no processo. Porém, os homens foram impedidos de entrar na fortaleza e não puderam ver o prisioneiro. O temor de Africano pela própria vida não parecia ser infundado:
No dia seguinte, 27 de abril, sendo seis horas da manhã, os presos que estavam comigo foram mandados para outra prisão, e eu fiquei sozinho em completo isolamento, e fechou-se a porta do calabouço. Alguém lá de fora, sob um pseudônimo, escreveu-me clandestinamente, avisando-se que tivesse a maior vigilância, porque se projetava um terrível assassinato sobre mim! Horrorizei-me! Entrei depois em sérias reflexões, pensando sobre a facilidade da execução do plano de assassinato […] ora, subindo ou escalando os malfeitores as muralhas, e pondo eles depois uma mordaça na boca da sentinela e abrindo em seguida com uma chave falsa a porta do calabouço, ali estou eu entregue ás mãos dos sicários, para eles apunhalarem à sua vontade, ou darem-me algum tiro de espingarda; morto assim aleivosamente, iriam os sicários a casa do governador Gamito e a casa do juiz Negrão pedir a paga da pretendida e muito desejável execução do assassinato. 94
Seguramente muito preocupado, por meio clandestino, conseguiu espalhar pela cidade o que ele chamava de “projeto do seu assassinato”. Segundo ele, todos ficaram em alerta, sem nominar quem seriam essas pessoas. Ainda em sua narrativa, Africano afirmava que, em decorrência do plano inicial de assassinato não ter obtido êxito, um segundo plano foi posto em movimento, mandando-lhe a bordo do vapor D. Pedro deportado para Luanda sem sentença de um processo que ele considerava falso. Após sucessivos atritos diretos com o governador Pedroso Gamito, Africano, ao longo de sua representação, expôs outras atitudes do governador, questionando se aquele homem deveria continuar a ocupar um posto tão relevante em um distrito importante como Benguela.
O que é que se pode esperar de semelhante homem, que já teve o arrojo de dizer, que lhe aprazia muito que morresse um africano a cada dia? Assim se provoca, assim se lança a luva tantos povos das províncias ultramarinas?! E se esses povos dissessem, que o gover- nador Gamito é um ladrão, que fora conhecido por tal na África oriental, aonde como a fama afirma, roubou e roubou muito, e fora sempre tido como homem estupido e grandemente bruto? Que diria a isto o governador Gamito? Pedir as provas ou calar-se, confessando com o silencio mais esta infâmia! 95
Ainda segundo Africano, o governador Gamito quis imputar-lhe outro processo junto aos militares, pois aqueles eram seus “patrícios e seus amigos”, possivelmente outros filhos do país. A identidade de africano estava presente não apenas no nome de Leonardo, possivelmente, mesmo que de forma contraditória, sua postura considerada “subversiva” pelas autoridades coloniais entrava em conflito com as fragilidades dessa mesma administração e com as sucessivas perseguições a sua pessoa. Conforme expõe Eugénia Rodrigues, pensar esse grupo autoin- titulado “filhos do país” não significa anular as suas ambivalências, pois suas perspectivas devem ser compreendidas de forma dinâmica, havendo muitas vezes embates entre tais indivíduos. 96
Africano salientava que nunca fora empregado público venal, nunca dera emprego a pessoa alguma por dinheiro e nunca fora acusado pela opinião pública por corrupção.
nunca fui recebedor de um conto de réis fortes por cada navio que leva gente negra para além mar; nunca recebi de Guilherme Van-Dunem, nem do capitão Antonio Marques de Mello, alusões ferinas a tal respeito nem mesmo acusações, para que pudessem ser guardadas pelo ex-governador geral Sebastião Lopes de Calheiros e Menezes, nunca mandei surrar gente livre nas grades de ferro das prisões, nem mandei jamais dar palmatoadas em mulheres pretas livres por estarem a brincar em suas casas, nunca menti oficialmente ás autori- dades superiores, nunca roubei apontamentos escritos e deixados por um morto, para compor uma obra e mandá-la imprimir em meu nome, nunca menti contra a honra de ninguém, nunca faltei com a urbanidade às senhoras casadas; nunca fui acoimado de homem mal criado e falto de educação, e nunca finalmente fui qualificado de imbecil e ignorante miserável; nem nunca igualmente falei em botica alguma contra o saber de V. Ex.ª e sua elevada inteligência e consumada honra. 97
No catálogo dos governadores do distrito de Benguela, Ralph Delgado ressaltou que Gamito deixara o governo em novembro de 1864, em virtude do seu comportamento tido como censurável, vindo a ser processado pelos crimes de peculato, abuso de poder e conivência com o tráfico ilícito da escravatura. 98 Teriam as reivindicações de Africano surtido efeito perante a Coroa portuguesa? De qualquer modo, os motivos para saída de Gamito do cargo de governador do distrito de Benguela se harmonizavam com as acusações feitas por Africano em sua representação.
Uma outra versão para saída de Gamito do cargo de governador foi encontrada nas páginas do Boletim Oficial da província de Angola, do dia 10 de setembro de 1864. Ao solicitar ao governador-geral da província sua exoneração, ele justificava que já havia cumprido três anos de serviço naquele distrito. Em seu lugar, assumiu o capitão do exército português João Antônio das Neves Ferreira. 99 Ainda no mesmo boletim, o ex-governador Gamito escreveu uma nota aos habitantes de Benguela alegando ter a convicção de não ter praticado injustiças e de ter traba- lhado sempre para a segurança e o bem-estar de todos os habitantes. Ele advertia que nunca realizara negócios irregulares, sugerindo que pessoas haviam utilizado de seu nome indevidamente. 100
Sobre o juiz Antônio Ribeiro Mendes Negrão, o médico também lançou graves acusações:
É um juiz, e boticário quase leigo, que dá sentenças e despachos favoráveis aos amigos, tenham ou não justiça, e contrários aos seus adversários quando têm justiça; que retém na cadeia presos por longo espaço de tempo sem os julgar; que tem dado várias sentenças arbitrárias e contrárias à lei e ao direito, e despachos que hão revelado uma parcialidade extrema; que tem pronunciado sem ter provas bastantes para o fazer, nem mesmo indícios; que é um juiz falsificador e prevaricador, e que tem cometido abusos de autoridade; que é um juiz que dá remoques às partes, e as trata com incrível grosseria; que é um juiz que ameaça com o dar pancadas; que é um boticário que tem gozado da péssima reputação de ser um envene- nador sutil; que tratou de Manuel José Corrêa, o qual morreu em 14 de fevereiro último, e diz que fora envenenado para satisfação de uma vingança infame; que é um boticário que fornece remédios para o hospital, alterando as prescrições, para ganhar mais do que deve; que é um boticário que leva mais caros preços pelos remédios que o determinado no preçário das boticas da província. 101
Ao defender a própria conduta, o médico reforçava seu repúdio às ações corruptas do juiz e do governador de Benguela, alegando que nunca havia recebido seiscentos mil réis ou mais por cada navio que transportava pretos para além-mar, e que nunca havia sido empregado como armador de algum navio de contrabando de escravizados.
No contexto político, econômico e social, após as sucessivas medidas legislativas promulgadas contra a escravidão e as investidas nos projetos agrícolas em prol do comércio lícito, os traficantes de Angola não tiveram dificuldade em se adaptar. O caráter ambivalente do tráfico ilegal encontrou poucas dificuldades na transição para o comércio lícito, como explica Roquinaldo Ferreira. 102 Os padrões de investimento e as práticas atreladas à implementação do novo tipo de comércio conse- guiram escamotear as investidas reiteradas no tráfico ilegal, como o comércio da urzela (espécie de líquen do qual se extrai um corante azul), que era apanhada por escravos na costa de Benguela e comercializada em Luanda e outras regiões.
Uma representação feita por negociantes de Benguela, em 1855, queixava-se de uma série de abusos e empecilhos ao comércio lícito local, devido às leis de abolição do tráfico. 103 Ora, tais comerciantes, como foi mencionado acima, utilizavam muitas vezes das próprias embarcações onde circulavam os produtos agrícolas para exercer o tráfico ilegal de escravos. Muitos argumentavam que a circulação entre os postos da Catumbela, Lobito e Moçâmedes, assim como a migração de libertos para São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Bissau e Cacheu, era trânsito dentro das possessões portuguesas e não para além-mar. Segundo eles, tudo passou a ser justificado em nome do “pretexto de perseguição ao comercio ilícito” e, com isso, tais procedimentos tinham por fim enriquecer em pouco tempo certos empregados à custa do definhamento dos praticantes do comércio lícito e da agricultura, pois encontravam-se “oprimidos” por diversos tributos indevidos e contribuições ilegais.
As mercadorias lícitas tinham uma função específica dentro do tráfico de escravos: elas poderiam ser transportadas para pagar débitos entre traficantes brasileiros e angolanos, cumprindo o padrão de adiantamento-endividamento. 104 A respeito da dispersão dos agentes do tráfico ilegal pelos navios de guerra ingleses ao longo da costa de Angola e nos sertões, é seguro afirmar que esses cidadãos e muitas autoridades de Benguela apostaram na continuidade do comércio ilícito.
Ao finalizar sua defesa, Africano expôs a Sua Majestade que ainda havia muito o que dizer sobre a postura da administração colonial naquele distrito; no entanto, as provas documentais e testemunhais estariam sob o domínio dos tribunais judiciais, e apenas poderiam ser apresen- tadas mediante instauração de processo criminal em Benguela contra o juiz ordinário Negrão. Ele também revelava a intenção de instaurar um processo por perdas e danos, pois, segundo ele, estava sofrendo incontáveis prejuízos devido a esses atos arbitrários das autoridades. Solicitava também à autoridade máxima permissão para demandar civil e criminalmente o governador Pedroso Gamito, fundamentando seu pedido em face à disposição do código administrativo, embora, segundo ele, muitas sindicâncias impetradas contra essas autoridades tivessem se demonstrado ineficazes por diversos motivos, entre eles o suborno de testemunhas, além de intimidações e ameaças, visando invalidar a legiti- midade da acusação. Nesse aspecto, o médico elogiava as estratégias do governo inglês no trato dessas questões, que para ele dispunha de “uma polícia bem organizada, e muito fiel e regular”. 105
A representação termina com o rogo mais uma vez às autoridades metropolitanas a fim de que providenciassem a apuração das queixas apresentadas, solicitando que ouvissem o conselheiro vice-presidente da Relação do distrito de Benguela, o Dr. Joaquim Guedes de Carvalho e Menezes, e o procurador régio adjunto da mesma Relação, pois, segundo ele, esses dois magistrados apresentariam seus pareceres sobre os fatos enumerados no documento finalizado, em 7 de maio de 1864, nas dependências da solitária na fortaleza de Benguela.
Em 19 de abril de 1867, encontramos uma nota no Boletim Oficial referente aos réus cujas penas haviam sido perdoadas por indulto régio. Consta que o Doutor Africano havia sido condenado a dois anos de degredo em São Tomé e Príncipe, por acordo do Tribunal da Relação de Luanda, e teve perdoado parte do tempo desta sentença. 106 É provável que Africano tenha cumprido um ano de degredo em São Tomé e Príncipe e, ainda que perdoado, decidiu permanecer naquele província, como consta no requerimento realizado em 1868, pedindo o provimento no cargo de cirurgião de primeira classe dentro do quadro de saúde.
A sociedade crioula é entendida como uma sociedade culturalmente mestiça, uma confluência de valores africanos com referências culturais europeias. Conhecidos como “filhos do país”, essa comunidade dominava tanto o comércio de escravos quanto a produção agrícola, além de ocupar postos na administração colonial. Essa confluência de identidades políticas, étnicas e culturais formulou uma dinâmica ao mesmo tempo de interação e confrontação.
A adesão à máquina administrativa com a expansão colonial em finais do século XIX, sob novos moldes, potencializou as tensões raciais, uma vez que a maior presença de colonos portugueses e as estra- tégias frente ao avanço para o interior da província criou uma situação ambígua. Anteriormente esses sujeitos oriundos da elite mestiça eram preferidos nos espaços de atuação da administração metropolitana, vide os subsídios à formação de jovens estudantes na Escola Médico- Cirúrgica de Lisboa. Nesse sentido, é importante entender a forma como esses sujeitos se utilizaram de estratégias como o reconhecimento social, cargos e alianças dentro da sociedade colonial, conciliando a rejeição ao domínio português com a busca por reconhecimento por esse mesmo governo. 107
A trajetória de Leonardo Africano Ferreira pode ser entendida como parte de um movimento precursor de grupos intelectuais e profissionais, como os médicos que começariam algumas décadas mais tarde a demandar mudanças – a exemplo de Ayres de Menezes, que, no final do século XIX (1894-1910), se envolveu em ativismo estudantil e atividades políticas antigovernamentais, fundando inclusive o jornal O negro, em Lisboa. 108
A história de Leonardo Africano Ferreira está longe de ser esgotada nesse artigo. Outras informações sobre Africano ainda são imprecisas, tais como a origem de sua família (supostamente santo- mense fixada em Angola); a presença do irmão Henrique dos Santos e Silva, figura relevante no distrito de Benguela, advogado e professor; além dos rumores sobre o seu desaparecimento, provavelmente vítima de um misterioso envenenamento. 109 As lacunas que ainda precisam ser preenchidas representam fragmentos que vão muito além de sua história pessoal, podendo servir como guia para entender o protagonismo africano em um contexto histórico repleto de transformações.
Agradeço os comentários feitos a uma versão anterior deste texto pelos membros da linha de pesquisa Escravidão e Invenção da Liberdade, do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia. Roquinaldo Ferreira, Gerhard Seibert, Flávia Carvalho (GETA-UFAL), Carlos Silva, João José Reis, Lucilene Reginaldo, Luciana Brito, Daniele Souza, Gabriela Sampaio e Cândido Domingues contribuíram com valiosos comentários além de indicar fontes documentais e bibliográficas.



