Resumo: Este artigo visa analisar o conflito de Cabo Delgado sob o prisma do jihadismo transnacional, uma ideologia e um movimento político que se apoderam de demandas e agravos locais, sobretudo contra o Estado, despoletando a insurgência ou canalizando a resistência já existente. O conflito representa também uma resis- tência contra a ordem mundial dominada pelo Ocidente. A primeira parte do artigo se debruça sobre o conceito e a história do jihadismo transnacional, salientando as transformações na ideologia e na ação dos seus protagonistas, e sua expansão geográfica. A segunda parte analisa o contexto sociopolítico e econômico de Cabo Delgado que contribuiu para o início da insurgência, destacando a resistência contra o Estado moçambicano e contra a hegemonia ocidental na forma do extrativismo conduzido por corporações transnacionais que ali se instalaram a partir de 2010.
Palavras chave: Jihadismo, Islamismo, Extrativismo, Cabo Delgado, Moçambique.
Abstract: This paper analyzes the conflict in Cabo Delgado against transnational jihadism, an ideology and political movement that takes hold of local grievances, especially against the state, triggering insurgency or channeling existing resistance. The conflict also represents a resistance against the Western-dominated global order. In its first part, the article discusses the concept and history of transnational jihadism, highlighting the changes in the ideology and actions of its protagonists, and its geographical expansion worldwide. The second part analyzes the socio- political and economic context of Cabo Delgado that contributed to the onset of insurgency, highlighting the resistance against the Mozambican state and against Western hegemony in the form of extractivism driven by transnational corpora- tions that came to Cabo Delgado beginning in 2010.
Keywords: Jihadism, Islamism, Extractivism, Cabo Delgado, Mozambique.
DOSSIÊ
O JIHADISMO TRANSNACIONAL E A INSURGÊNCIA EM CABO DELGADO, MOÇAMBIQUE *
TRANSNATIONAL JIHADISM AND THE INSURGENCY IN CABO DELGADO, MOZAMBIQUE
Recepção: 1 Novembro 2021
Aprovação: 17 Janeiro 2022
A recente insurgência violenta na província costeira de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, apanhou de surpresa o governo e o público em geral. A revolta começou em outubro de 2017, quando alguns jovens muçulmanos tomaram de assalto várias prisões na cidade de Mocímboa da Praia. A situação sofreu uma reviravolta sinistra, em 2018, com os agressores realizando mais de trezentos ataques a aldeias e o Estado Islâmico no Iraque e na Síria (EIIS, aqui referido como simplesmente EI) reivindicando a autoria dos ataques e postando um vídeo dos insurgentes fazendo um juramento de lealdade à Abu Bakr al-Baghdadi, o líder do EI, em 2019. 1 O primeiro estudo acadêmico que se fez sugeriu que a insurgência fora conduzida por jovens ligados ao Al-Shabaab da Somália, Quênia e Tanzânia, bem como às redes criminosas que controlam o contrabando de pedras preciosas, drogas, madeira e a caça ilegal. 2 Alguns jornalistas e analistas de segurança traçaram a origem da insurgência até a pobreza endêmica e a percepção de marginalização socioeconômica e política do Norte, enquanto outros afirmavam que as políticas neoliberais e a indústria extrativista levaram a juventude a se revoltar. 3 E ainda havia os que tentaram localizar a inspiração ideológica da insurgência nos movimentos jihadistas globais como Al-Qaeda, EI e as Forças Democráticas Aliadas (Allied Democratic Forces, ADF) de Uganda e República Democrática do Congo. 4
Embora pouco compreendido, esse conflito parece ser uma resis- tência contra o Estado moçambicano, concebido por seus opositores como um Estado corrupto que abusa do poder. 5 Portanto, o conflito se revela como uma insurgência irregular, no sentido clássico de atividade político-militar prolongada, voltada para o controle total ou parcial dos recursos de um país ou região, por meio do uso de forças militares irregulares e organizações políticas ilegais. 6 Os atos, incluindo guerrilha, terrorismo, mobilização política, propaganda, recrutamento, organização clandestina e atividade internacional são projetados para enfraquecer o controle e a legitimidade do Estado e para aumentar o controle e a legitimidade dos insurgentes. Por outro lado, a proclamação de uma jihad e a aliança com o EI sugerem tratar-se também de uma expressão do jihadismo transna- cional, embora Eric Morier-Genoud alegue que a insurgência é dirigida por uma “seita religiosa nova”, porque os insurgentes rezam três vezes ao dia, em vez de cinco, e usam calças curtas e sapatos nas mesquitas. 7
Na verdade, esse comportamento é permitido pelo Corão e pela Sunna (os hadith, as tradições do Profeta Muhammad). 8
Morier-Genoud também identifica o nome dos insurgentes como Al-Sunna wa-l-jamaah, que deveria ser lido como Ahl al-Sunna wa al-Jama’ah, um dos princípios centrais do sunismo, que significa “povo de tradição e de unificação ou consenso” – literalmente, portanto, o povo da seita sunita. Às vezes, as palavras de wa al-Jama’ah são abandonadas e as pessoas são chamadas apenas de Ahl al-Sunna. Então, Ahl al-Sunna wa al-Jama’ah significaria pessoas que seguem a sunna (as tradições, ou seja, o Corão e os hadith) e al-jama’ah, a opinião da maioria dos muçulmanos. Isso implica que os insurgentes não se opõem aos hadith, e certamente não são uma seita nova e ainda menos coranistas, como argumenta Morier-Genoud. 9 O nome mais frequentemente atribuído aos insurgentes de Cabo Delgado é al-Shabab (a juventude), no sentido de que a insurgência emergiu como uma revolta de jovens.
Este artigo visa analisar o conflito de Cabo Delgado sob o prisma do jihadismo transnacional, um tipo de ativismo violento que, em termos de sua ideologia, visa mobilizar os muçulmanos em todo o mundo para restaurar uma concepção rigorosa da ordem política e religiosa dos primeiros dias do Islã. 10 Esse jihadismo tem carácter inerentemente “glocal” (global-local) de resistência; isto é, embora os jihadistas se oponham aos Estados locais com base nas suas queixas e agravos, eles simultaneamente se rebelam contra a ordem internacional da hegemonia ocidental. Assim, o jihadismo transnacional é um movimento tanto sobre a identidade nacional e sua comunidade imaginada quanto sobre religião e fé. 11 De acordo com James D. Fearon, enquanto em 1990 cerca de apenas 5% dos conflitos civis no mundo envolviam grupos rebeldes declaradamente jihadistas, em 2015 esse número cresceu para 40%. 12 As fronteiras entre a insurgência local e o jihadismo transnacional ficaram também embara- lhadas, uma vez que os mesmos atores empregam ambas as referências. 13
O jihadismo transnacional tem três facetas: 1) é uma ideologia que se baseia numa interpretação radical e inovadora de fontes funda- mentais do Islã, como o Corão, os hadith e obras de alguns pensadores clássicos; 2) ele apodera-se de queixas e agravos locais, sobretudo contra o Estado, despoletando a insurgência ou canalizando em benefício próprio a resistência já existente; e 3) ele também representa uma resistência contra a ordem global dominada pelo Ocidente. A primeira parte deste artigo debruça-se sobre o conceito e a história do jihadismo transnacional, salientando as transformações na ideologia e na ação de seus protagonistas e a sua expansão geográfica em escala mundial. A segunda parte analisa o contexto sociopolítico e econômico de Cabo Delgado que deu a origem à insurgência, destacando as três principais características de jihadismo transnacional acima referidas. Portanto, o artigo procura responder às seguintes questões: qual é o papel do jihadismo transnacional em Cabo Delgado e de que maneira ele tem contribuído para a insurgência? Que tipo de queixas e agravos locais existiam e foram aproveitados pelos insur- gentes? E, finalmente, será que a insurgência tem uma dimensão globalista contra a ordem mundial prevalecente, ou seja, contra o Ocidente?
A jihad (no sentido de luta armada), associada a uma resistência popular, tem longa tradição histórica desde o tempo da fundação do Islã, mas no período posterior destacam-se as jihads lançadas contra os mongóis, no século XIII, e contra o colonialismo europeu, nos séculos XIX e XX. Os casos mais conhecidos são a jihad de Abd al-Qadir contra a coloni- zação francesa na Argélia, em 1832-1847, e do Imam Shamil contra a expansão russa no Cáucaso, em 1834-1859. Mas mesmo a progressista Frente de Libertação Nacional da Argélia, em 1956, intitulou o seu jornal de El-Moudjahid (O Jihadista). 14 E, claro, a resistência afegã contra a invasão soviética pode ser compreendida como uma luta de libertação nacional na forma de jihad popular.
O jihadismo contemporâneo emergiu a partir de movimentos e ideologias que os acadêmicos chamam de “islamismo”. 15 O islamismo não significa o Islã enquanto religião e fé. O islamismo se refere às tentativas de articular o Islã a uma ordem política em resposta à hegemonia ocidental. Essa hegemonia, no entender dos islamistas, inclui as políticas ocidentais do passado ou do presente, como o colonialismo europeu e seu legado, os governos pós-coloniais nos países muçulmanos e outros, e o sofrimento dos palestinos e outros membros da umma (a comunidade muçulmana no mundo). 16 Os islamistas acham que as riquezas dos seus países são controladas por governos corruptos, ineficazes e cleptocratas, enquanto o Ocidente controla esses governos e os recursos nacionais, sobretudo a indústria de gás e petróleo, mesmo na Arábia Saudita, o local de revelação do Islã e de suas duas cidades santas: Meca e Medina. Isso, de acordo com esses militantes, mantém a maioria da população muçulmana do mundo pobre, desempregada e sem direitos civis e humanos.
Embora o islamismo seja politicamente heterogêneo, no sentido de que os diferentes atores se especializam em atividades políticas quali- tativamente diferentes, no campo ideológico ele tem raízes no salafismo 17 e numa mescla da doutrina wahhabita, 18 do pan-islamismo de Jamal al-Din al-Afghani (1838-1897) e das interpretações de Muhammad Abduh (1849-1905) e seus discípulos Rachid Ridda (1865-1935), Hassan al-Banna (1906-1949) e Sayyid Qutb (1906-1966), entre outros. 19 O salafismo centra-se na ideia de necessidade de um retorno às tradições salaf (ancestrais) das três primeiras gerações de muçulmanos, conhecidas como al-salaf al-ṣāliḥ (os piedosos predecessores), ou seja, as gerações do Profeta Muhammad e seus companheiros (os sahabah), seus sucessores (os tabi’un) e os sucessores dos sucessores (os taba tabi’in), considerados representantes de uma forma pura e inalterada do Islã. 20 Os salafistas exigem que os muçulmanos confiem apenas no Corão, na sunna ( hadith) e no consenso dos salafis, ignorando o restante dos ensinamentos herme- nêuticos islâmicos. Sua agenda é combater as práticas religiosas que eles identificam como “inovações abomináveis” ( bid’a), ignorância ( jahiliyya), hipocrisia ( munafique) e idolatria ( shirk) no seio dos muçulmanos. Eles veem a violência como uma parte necessária disso – um protocolo de purificação –, mas apenas sob condições muito específicas. 21 A sua visão e o seu discurso são globalizantes, revisionistas, modernistas e racionalistas, pois apesar de reivindicarem um Islã tradicional ou funda- mentalista, os salafistas são resultado da vida e da epistemologia coloniais e pós-coloniais. Eles foram influenciados, em parte, pela expansão das tecnologias intelectuais ocidentais no sentido foucaultiano e pelas insti- tuições políticas do Ocidente no mundo islâmico, que ajudaram a criar novas formas de conceber, praticar e transmitir a tradição islâmica. 22
Baseando-se na argumentação do jurista Ibn Taymiyya (1263–1328), Sayyid Qutb declarou que cabe ao crente decidir se o seu governo, mesmo sendo muçulmano, é ilegítimo, e o sendo, se deve resistir ativamente a ele ou não. 23 Qutb incumbiu aos muçulmanos a responsabi- lidade de decidir se aqueles ao seu redor eram infiéis ( kaffirun; sing. kafir) ou verdadeiros muçulmanos. Essa ênfase no takfir (“excomunhão” ou declaração de alguém como kafir) tem uma influência profunda no jihadismo atual, que enfatiza a luta contra o “inimigo próximo”, ou seja, os muçulmanos sufis, laicos ou moderados. 24 Qutb também encarregou os muçulmanos de tomar medidas para instaurar a ordem islâmica justa e pura, no entender dele, igual à dos tempos de salaf, com shariah (xária, o caminho reto do Islã e da lei islâmica) e o estado islâmico ( khilafah,o califado). 25 A década em que Qutb ficou preso e as torturas que sofreu nas mãos do regime de Gamal Abdel Nasser (1918-1970) parecem ter cristalizado sua convicção de que já não era possível buscar a reforma da ordem social prevalecente por meio do diálogo e da persuasão, levando-o a declarar que a resistência direta e a jihad eram os únicos métodos possíveis e até obrigatórios. 26 A importância de Qutb para o islamismo reside nessa teorização e defesa da jihad violenta.
Mesmo com a aproximação entre a presidência de Anwar Sadat (1918-1981) e a Irmandade Muçulmana ( Ikhwan al-Muslimin) de Hassan al-Banna, que renunciou à violência naquela altura, alguns seguidores de Qutb permaneceram hostis ao governo egípcio. Grupos menores, não associados à Irmandade, foram formados e queriam derrubá-lo. Muitos deles se uniram à Jihad Islâmica Egípcia (EIJ), cujo líder, Muhammad Abd al-Salam Faraj (1954-1982), escreveu um panfleto intitulado Um dever negligenciado, no qual proclamou que uma jihad permitiria aos muçulmanos restabelecer o califado e trazer a xária de volta. 27 Faraj insistiu que a negligência em declarar a jihad resultou na humilhação, divisão e fragmentação dos muçulmanos no mundo e, por essa razão, lutar na jihad tornou-se um dever individual de cada muçulmano. Na sua justificativa para o assassinato do presidente Anwar Sadat, Faraj descreveu a luta para recuperar os fundamentos morais do Estado egípcio como um combate contra a jahiliyya (ignorância), argumentando que a jihad contra o regime nacional corrupto deve ter precedência sobre a luta contra os inimigos em outros lugares ou os “inimigos distantes”. 28
A perseguição aos militantes islamistas pelos governos baathistas (de partidos social-democratas laicos) no Egito, Síria e Iraque levou muitos deles ao exílio na Arábia Saudita, onde, na década de 1970, impulsionaram o nascimento do jihadismo como um movimento populista e pan-islâmico. 29 Thomas Hegghammer sustenta que essa nova ideologia representou uma desconexão substantiva com as ideologias islamistas anteriores, tais como a de Qutb e o wahhabismo. 30 Mas Peter Mandaville acha que ela pode ser considerada uma fusão da teologia wahhabita com as ideologias baseadas no pensamento de al-Banna, de Rachid Ridda e sobretudo de Qutb. 31 O novo jihadismo foi formado no exílio pela ação estratégica de elites marginalizadas, empregadas nas organi- zações não-violentas islâmicas internacionais recém-criadas, tais como a Liga Mundial Muçulmana e a Organização para a Conferência Islâmica, elites presentes também nas novas instituições de ensino superior, como a Universidade Islâmica Internacional de Medina e a Universidade Rei Abd al-Aziz, entre outras. 32 O novo jihadismo surgiu de uma compe- tição dentro dessa elite, que devido à falta de supervisão do governo saudita, ao dinheiro do petróleo e às novas tecnologias mediáticas, tornou-se ideologicamente eficaz numa escala global na década de 1980. Abdulla Yussuf Azzam (1941-1989), que se mudou da Palestina e da Jordânia para a Arábia Saudita, onde deu aulas na Universidade Rei Abd al-Aziz, foi um ideólogo influente no apelo à “jihad global”, que definiu como uma obrigação individual de todos os muçulmanos. 33
Enquanto isso, a guerra do Afeganistão (1978-1992) seria travada por mujahidin (guerreiros da jihad), grupos díspares de guerrilheiros afegãos que se inspiraram no Islã como fator de união. Milhares de islamistas de todo o mundo se juntaram à luta; muitos deles já envol- vidos em movimentos islamistas em seus próprios países, como Ayman al-Zawahiri, nascido em 1952 no Egito. 34 Al-Zawahiri fora aluno de Qutb e líder proeminente da Jihad Islâmica Egípcia (EIJ). Ele viajou para Peshawar, no Paquistão, onde trabalhou ao lado de Osama bin Laden (1957-2011) para formar a Al-Qaeda e sintetizar os argumentos de Qutb, Faraj e sobretudo de Azzam, que também se juntaria a eles.
Al-Zawahiri insistia que o “inimigo distante” era igual ao “inimigo próximo” numa jihad global,uma vez que os Estados Unidos (o inimigo distante) governavam o Oriente Médio por meio de fantoches locais (o inimigo próximo), constituindo um sistema que ele chamou de “colonialismo velado”. Al-Zawahiri enfatizou a importância de uma base ( al-qa’ida em árabe) como o Afeganistão,de onde ataques jihadistas poderiam ser lançados em todo o mundo. O Talibã, um movimento que surgiu em 1994, a partir da unificação de três facções islamistas de mujahidin afegãos, se tornou o seu principal aliado. Bin Laden declarou que todos os objetivos e cidadãos dos EUA em todo o mundo eram alvos legítimos de ataques e até encorajou assaltos dentro mesmo dos EUA. 35 A jihad afegã produziu, assim, as redes transnacionais de militantes que acabaram participando nas duas guerras russo-chechenas (1994-1996, 1999-2009), explodiram bombas no World Trade Center em Nova York, em 1993, num complexo habitacional militar dos EUA em Khobar, na Arábia Saudita, nas embaixadas americanas em Nairóbi, no Quênia, e em Dar es Salaam, na Tanzânia, em 1998, e bombardearam o navio de guerra americano Cole no porto de Aden, no Iêmen, em 2000. Finalmente, no dia 11 de setembro de 2001, eles lançaram três aviões sequestrados contra importantes alvos nos EUA, as Torres Gêmeas do World Trade Center, em Nova York, e o Pentágono, no estado da Virgínia. Um quarto avião, que deveria alvejar a Casa Branca foi derrubado antes do ataque por um motim de seus passageiros contra os sequestradores.
Os EUA responderam com a declaração de uma Guerra Global ao Terror ( War on Terror) contra os grupos extremistas islâmicos, sendo a Al-Qaeda o principal deles. Várias regiões onde supostamente havia terro- ristas islâmicos foram atacadas pelos EUA, culminando com a invasão do Afeganistão e a destituição do Talibã do poder, em 2001, o que enfra- queceria o uso de campos de treinamento da Al-Qaeda e a sua posição de liderança. O Iraque, sob o governo de Saddam Hussein (1937-2006), foi em seguida invadido, em 2003, resultando na remoção do poder político e militar das elites sunitas reunidas no partido Baath e na transferência do poder para a maioria xiita, a qual desencadeou séria perseguição à minoria sunita. Isso agudizou os conflitos sectários entre sunitas e xiitas não só no Iraque, mas em todo o mundo. A ocupação do Iraque pelos EUA aumentou o nível de frustração no mundo islâmico em relação à política externa americana e facilitou o recrutamento de militantes por grupos islamistas. 36 Além disso, o Iraque substituiu o Afeganistão como um campo de treina- mento, onde uma nova geração de militantes islamistas adquiriram perícia militar e construíram relações pessoais por meio da experiência comum em combate. Conforme aponta Martha Crenshaw, situações semelhantes criam círculos viciosos perigosos em toda parte:
O terrorismo contra potências externas provoca uma intervenção militar, que não apenas intensifica a guerra civil, mas também desen- cadeia mais terrorismo contra as forças de ocupação, seus aliados locais e seus países de origem. Uma questão importante para o futuro é se Estados poderosos podem ou não resistir a provocações terroristas. 37
Nesse contexto, houve mais uma ruptura significativa no meio dos jihadistas, sobretudo com a poderosa al-Qaeda, já que al-Zawahiri insistia que não se devia alienar a população muçulmana pacata, mesmo a xiita, e voltá-la contra os jihadistas sunitas. Ele tampouco aceitava criar um califado, alegando que as condições ainda não eram propícias. 38 As guerras contra o poder de Assad, na Síria, junto com a situação do Iraque, trouxeram à tona um novo grupo jihadista, o Estado Islâmico (EI), com posições mais duras e violentas do que os seus antecessores, abrangendo com a categoria de kafir (supostos descrentes ou apóstatas do Islã) muitos mais muçulmanos sunitas do que era habitual para os jihadistas, além de todos os xiitas, sem exceção. 39
O EI se orientou segundo as táticas brutais do líder da Al-Qaeda no Iraque, Abu Musab al-Zarqawi (1966-2006), e mais tarde do autoproclamado califa do EI, Abu Bakr al-Baghdadi (1971-2017). No entanto, como aponta Fawaz A. Gerges, a prioridade dada à ação (jihad violenta) sobre a teoria (teologia) é uma característica distinta do EI, 40 que teve ideólogos influentes que justificaram seus atos com base em conceitos salafistas e islamistas. A sua maior diferença em relação a jihadistas anteriores, como os da al-Qaeda, reside na ideia de que a finalidade da jihad é a conquista de território. 41 Hassan Hassan argumenta que, entre outros autores, os livros de al-Shuaibi sobre a inadmissibilidade de os muçulmanos procurarem a ajuda de “infiéis” para ganhar influência na sociedade e o pensamento de Al-Khudayr de que os sistemas, ensinamentos e instituições não-islâmicos são ilegítimos para os muçulmanos tiveram um forte impacto sobre o EI. 42
Todavia, o ideólogo mais influente parece ter sido Abu Bakr Naji, um ex-membro do grupo egípcio Jihad Islâmico (EIJ), cujo nome verdadeiro é Mohammad Hasan Khalil al-Hakim. Ele escreveu um livro intitulado A gestão da selvageria: a fase mais crítica pela qual a umma passará, publicado em 2004 na internet, no qual ele defende que a jihad deve ser combatida com o propósito de estabelecer um Estado. Naji sugere que haverá três estágios para este fim: 1) de aborrecimento, durante o qual os mujahidin devem conduzir simultaneamente e em pequena escala ataques que resultem no enfraquecimento da força do inimigo – idealmente, isso resultaria em uma completa interrupção das atividades de governo e fortaleceria a legitimação de ligações entre a população daquele território específico e as estruturas do EI; 2) a disse- minação da selvageria, que se assemelha à guerra de guerrilha e serve ao propósito de expandir a esfera de influência dos mujahidin; 3) a adminis- tração da selvageria, que consiste em estabelecer as bases para as instituições administrativas, a configuração das infraestruturas físicas e a superestrutura governamental de um Estado islâmico, ao mesmo tempo em que cria a legitimidade para facilitar a captação de recursos físicos e humanos. 43 Em relação à brutalidade e a violência da jihad, Naji declarou que “aqueles que praticam a jihad sabem que a jihad não é nada além da brutalidade, crueldade, terrorismo, dissuasão e sofrimento. […] A luta não pode continuar e a transição de uma fase para outra não ocorrerá, a menos que a primeira fase inclua aflição e dissuasão do inimigo”. 44 Naji justifica a decapitação não apenas como religiosamente permissível, mas recomendada por Deus e pelo Profeta Muhammad.
Os jihadistas africanos também participam dessas discussões globais e nas guerras civis e transnacionais. Em 1991, fracassou um esforço dos partidos políticos islamistas para tomar o poder por meio do processo democrático na Argélia. 45 Os militares argelinos intervieram para cancelar as eleições parlamentares que a Frente de Salvação Islâmica estava prestes a vencer. A Frente foi banida e seus membros foram presos aos milhares. Em consequência, vários grupos armados se formaram, alguns ligados à Frente, outros independentes e mais extremistas, e os combates sangrentos continuaram ao longo da década. Em 1997 e 1998, a Argélia sofreu uma série de terríveis massacres de civis, quando aldeias inteiras foram atacadas indiscriminadamente. A responsabilidade pelos ataques ainda é contestada, mas o Grupo Islâmico Armado (Groupe Islamique Armé, GIA) foi amplamente responsabilizado. Nessa altura, as unidades armadas da Frente Islâmica anunciaram um cessar-fogo e o GIA começou a se fragmentar, com uma facção se transformando no Grupo Salafista para a Prédica e o Combate (Groupe Salafiste pour la Prédication et le Combat, GSPC), que logo expandiu seu alcance da Argélia para o Mali, Níger e Chade. 46 Esse grupo transformou-se na Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (AQIM), em 2001, e jurou lealdade à Al-Qaeda, em 2006, ramificando-se em três outras organizações: Al-Mourabitoun (AQIM próprio); Ansar Dine, principalmente de tuaregues; e Katiba Macina, principalmente de fulanis que formaram o Jama’a Nusrat ul-Islam wa al-Muslimin (JNIM), em 2017. 47 O Harakat al-Shabaab da Somália foi estabelecido em 2006 e declarou lealdade à Al-Qaeda em 2012, 48 mesmo ano em que o grupo jihadista Al-Hijra do Quênia o fez. 49 O Boko Haram surgiu nos anos de 2002-2003, na Nigéria,e declarou fidelidade ao EI em 2015. 50 A organização posteriormente se dividiu em duas, das quais uma parte se tornou o Estado Islâmico da Província da África Ocidental (Islamic State – West Africa Province, ISWAP), em 2016. Ela absorveu outra organização (pelo menos no papel, se não operacionalmente), o Estado Islâmico no Grande Saara, em 2020. A outra facção do Boko Haram foi liderada pelo já falecido Abubakar Shekau. O EI declarou que tinha uma Província Centro-Africana, em 2019, exibindo relatórios, vídeos e fotos da República Democrática do Congo e, posteriormente, de Moçambique. 51 As ADF de Uganda, criadas em 1995, hoje aparentemente estão filiados ao EI, depois de Musa Baluku, o comandante da organização, assim o declarar em 2019. 52
Portanto, o jihadismo transnacional consiste de vários grupos que diferem entre si, às vezes substancialmente, mas todos combinam os imperativos de uma ideologia política que prega a convicção de que as circunstâncias atuais tornam a luta violenta um dever individual de todos os muçulmanos. O quietismo político de salafistas clássicos e a busca pela transformação social por meio da participação política são considerados ilegítimos, primeiro porque os jihadistas veem como um requisito do Corão restaurar o Estado islâmico (califado) e impor a xária, e segundo, porque trabalhar dentro de sistemas políticos definidos e controlados pelos que acusam de “infiéis” equivale, para eles, a reconhecer a legitimidade desses regimes. 53 Além disso, seu compromisso discursivo com a xária e outras tradições islâmicas clássicas está relacionado à autoridade para declarar alguém como kafir, uma autoridade que muitos muçulmanos afirmam só poder ser reivindicada por Deus. Um ponto a salientar também, começando pela biografia de Qutb e indo até al-Baghdadi e Muluku, das ADF: nota-se que, muitas vezes, o endurecimento dos líderes jihadistas ocorreu na prisão, tema que não vou desenvolver aqui.
Em relação a Cabo Delgado, a primeira questão é se a ideologia do jihadismo transnacional contribuiu para a insurgência. Vários estudiosos assinalam que, embora o ativismo global esteja inegavelmente em ascensão nos movimentos jihadistas da África e tenha mudado a natureza e a escala dos protestos locais, os grupos que reivindicam uma orientação global ou um caráter transnacional permanecem profundamente enraizados em cenários sociopolíticos e em lutas locais específicas. 54 Stig Jarle Hansen argumenta que, para o jihadismo transnacional se expandir numa deter- minada região, deve existir um ambiente propício e fértil para explorar pontos de entrada emocionais, mas também deve haver um protagonismo ideológico dos militantes. 55
De acordo com Habibo, Forquilha e Pereira, a insurgência em Cabo Delgado foi iniciada por moçambicanos salafistas radicalizados na Arábia Saudita e influenciada pelos grupos jihadistas nos países vizinhos, particular- mente a Tanzânia, o Quênia e a República Democrática do Congo. 56 Mas as ideologias salafistas-wahhabis têm uma longa história em Moçambique, pelo menos desde as décadas de 1950 e 1960, e essas ideologias nunca haviam provocado uma jihad. 57 Conhecidos como sukuti (quietistas), deobandis e wahhabis, as pessoas que trouxeram essas ideologias foram formadas na Índia, Quênia, Zanzibar, Niassalândia (atual Maláui) e na Universidade de Medina, na Arábia Saudita. Entre eles, Cassim Tayob e Abdul Gafur Muhammad Yusuf Dar ul-Ulam estudaram no seminário Deoband, na Índia, e Muhammad Yussuf, Abubacar “Mangira” e Aminuddin Muhammad, na Universidade de Medina. 58 Os salafistas-wahhabis de Moçambique também têm ligações com a família Mia e seu centro salafista na África do Sul, o Instituto Watervaal Islam, no Transvaal. 59 Os salafistas-wahhabis estão engajados desde o período colonial na “purificação do Islã de Moçambique”, sobretudo na destruição do sufismo, que era a forma prevalecente de prática de Islã desde os finais do seculo XIX. 60 Eles se manifestam contra práticas sufis, tais como a dhikr (celebração de Deus através de cantigas) e a alegada veneração de santos ( ziyara e mawlid), todos classificados como jahiliyya (ignorância), shirk (politeísmo) e bid’a (inovações abomináveis introduzidas na religião). 61
Depois da independência, após um período de luta contra a religião (1977-1982), o governo da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) criou uma organização muçulmana nacional chamada Conselho Islâmico, com apoio e participação de salafistas-wahhabis, para controlar os muçulmanos e suas relações com a umma regional e global. 62 Mas os sufis apresentaram uma contraproposta e o seu próprio projeto de organização nacional islâmica, o Congresso Islâmico. Por meio dessas duas estruturas os muçulmanos conseguiram atrair várias organizações não-governamentais (ONGs) islâmicas inter- nacionais para Moçambique, incluindo a Liga Muçulmana Mundial e a Agência dos Muçulmanos da África, e distribuir bolsas de estudo para instituições conhecidas como centros de wahhabismo e salafismo, tais como as universidades de Medina, na Arábia Saudita, e Al-Merkaz Al-Islami, no Sudão, entre outras. 63
Na década de 1990, os primeiros graduados originários do norte de Moçambique retornaram, após concluírem seus estudos islâmicos no exterior. 64Embora alguns deles tivessem sido recrutados por ONGs islâmicas, a maioria se frustrou rapidamente não só com a situação econômica do país, mas também com a liderança do Conselho Islâmico, que, no seu entender, apenas acumulava riqueza por meio de negócios e do desvio de fundos doados por ONGs internacionais, ao invés de apoiar os muçulmanos, sobretudo no norte do país. 65 O fato de a liderança do Conselho ser composta, em grande parte, por mestiços indo-africanos criou uma impressão de preconceito racial contra os africanos. Outro ponto que agravou o conflito estava relacionado aos vínculos do Conselho com o partido no poder, enquanto os muçulmanos nortenhos tradicionalmente apoiavam a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo) ou partido nenhum, mas muitas vezes se manifestavam contra a Frelimo.
Em 1998, pelas mesmas razões, os novos diplomados fundaram um movimento ao norte de Moçambique denominado Ahl al-Sunna ou Ansar al-Sunna, que em 2007 já era bastante forte e continuava a crescer conside- ravelmente. Tendo construído numerosas mesquitas e madrassas (escolas corânicas) com financiamento comunitário, Ahl al-Sunna permaneceu como um movimento popular e de base, no qual muitos jovens muçulmanos realizavam suas aspirações de apoio, solidariedade e altruísmo religiosos. Esse movimento pode ter dado à luz à ideologia jihadista e à insurgência em Cabo Delgado, porque esses jovens e as gerações seguintes que se formaram no exterior, sobretudo na Universidade de Medina, traziam de lá posições islamistas e expressavam sua insatisfação com o contexto sociopolítico e econômico do norte de Moçambique, além de eles próprios formarem continuamente em suas madrassas outros jovens nos moldes islamistas. Mas os estudos até agora realizados não fornecem dados empíricos claros para sustentar essa hipótese, como também não revelam os conteúdos concretos da ideologia, dos discursos e narrativas dos insur- gentes. As vozes dos próprios insurgentes não foram trazidas ao público e eles não divulgaram nenhuma ideologia oficial ou queixas específicas, por isso é difícil dizer quais são seus sentimentos e objetivos. No entanto, muçulmanos entrevistados acusaram os jovens insurgentes ( al-Shabab) de terem criado campos de treinamento, pelo menos desde 2010 ou 2012; de terem proclamado a jihad contra o Estado moçambicano e os “infiéis” em 2017; de terem a intenção de criar um Estado islâmico e impor a xária; e de encorajar os muçulmanos a se retirarem das instituições controladas pelo Estado, como escolas e hospitais, além de promoverem os sermões do notório militante queniano Aboud Rogo Mohammed (falecido em 2012). 66
O que está claro é que os insurgentes se aliaram ao EI em 2019, dois anos depois do início de insurgência. Eles levantaram a bandeira do EI, adotaram os seus símbolos e até os seus métodos brutais. Isso aponta para uma enorme influência ideológica do EI, pois, de acordo com Tara Candland et al., o EI enfatiza que certos critérios devem ser satisfeitos para que um grupo seja formalmente abrigado na organização. 67 Isso envolve o juramento público de lealdade ( bayat) à pessoa e à liderança do califa do EI, que deve então oficialmente aceitar os candidatos. No caso de Cabo Delgado, os órgãos de propaganda do EI indicam que os insurgentes foram aceitos e Cabo Delgado formalmente incorporado à Província Centro- Africana do EI. 68 O EI também desempenha um papel na aprovação, senão na nomeação direta, do líder do grupo, atribuindo-lhe o abrangente título de wali (governador) da província. Os esforços para consolidar diferentes grupos e facções sob uma bandeira e uma liderança configuram um componente importante desse processo. Além disso, o grupo deve adotar e aplicar a aqeeda (credo) e o manhaj (metodologia) do EI para orientar suas atividades ideológicas, militares, de governança e propa- ganda. 69 A aqeeda do EI se refere ao sistema ideológico e jurisprudencial das crenças do grupo, enquanto o manhaj se refere, nesse caso, ao que seria a metodologia para estabelecer um Estado islâmico. Essa é talvez a mais significativa exportação do EI para suas filiais, fornecendo-lhes um sistema ideológico abrangente por meio da aqeeda e uma estratégia político-militar distribuída em fases por meio de seu manhaj. Uma carac- terística importante da aqeeda do EI é sua posição extrema sobre takfir, que não é controversa apenas entre outros grupos jihadistas sunitas, em particular a Al-Qaeda, mas até dentro de suas próprias fileiras.
É claro que a posição jurisprudencial do EI sobre a takfir tem implicações significativas na prática e é usada como justificativa para a violência extrema contra outros muçulmanos, sem falar dos não muçulmanos. Enquanto isso, o manhaj para estabelecer um Estado islâmico foi descrito, pelo próprio grupo, como um processo multifásico que consiste na hijrah (migração), jama’ah (organização), desestabilização dos taghut (idólatras), tamkin (consolidação) e, finalmente, o estabele- cimento do califado. 70 Ao insistir que os grupos adotem e apliquem sua aqeeda e seu manhaj, o EI não apenas ajuda aos grupos locais a manterem suas mensagens e ações coerentes com uma estratégia de implementação por estágios, mas fornece aos seus propagandistas um conteúdo para utilizar na projeção de sua expansão global. Essa é parte da razão pela qual as comunicações diretas entre o EI e o grupo local também foram identificadas como um critério necessário para garantir que informações e orientações possam ser trocadas. Com a satisfação desse critério e sua aceitação pelo califa, o grupo pode então ser formalmente aceito pelo EI e, em seguida, uma nova província é inaugurada.
Embora o jihadismo transnacional tenha se globalizado desde o início dos anos 2000, alcançando regiões remotas, não está completamente claro se os insurgentes de Cabo Delgado estiveram em contato com os movimentos jihadistas regionais ou globais depois de iniciada a insurgência, em 2017, ou mesmo antes, com o intuito de começar uma revolta armada. Essa é certamente uma possibilidade, visto que a costa norte de Moçambique faz parte das redes comerciais e culturais do suaíles e do Oceano Índico há séculos. 71 A história mostra que essa região de Moçambique nunca foi isolada da umma regional e global, e seus laços com essa umma, em parti- cular com a da costa leste africana (Tanzânia, Quênia, Somália e Comores) devem ser considerados duradouros, contínuos e ininterruptos. Portanto, sempre houve fertilização cruzada e diálogos entre essas regiões e o norte de Moçambique em termos de mudanças de interpretação e práticas religiosas e sociais ao longo de séculos, o que certamente continua até hoje.
Geralmente, enquanto houver muçulmanos, a radicalização estará latente, porque a ideologia político-religiosa, incluindo a ideologia jihadista, está disponível e os moçambicanos sempre estiveram cientes disso. O jihadismo nessas regiões emergiu a partir dos anos 1990. Por exemplo, na Somália, no Quênia, na República Democrática do Congo, em Uganda, em Comores e na Tanzânia, os movimentos jihadistas radicais já estavam presentes na década de 1990 e bombardearam as embaixadas americanas em Dar es Salaam e Nairobi, em 1998. A evolução do Ash-Shabaab na Somália ocorreu ainda mais cedo, em 1995, como o braço militar da Organização dos Tribunais Islâmicos, que emergiu em resposta à desordem e escalada da criminalidade causada pelo fim do governo de Muhamed Siad Barré (1919-1995).
Mas os moçambicanos não manifestaram o jihadismo antes de 2017, de modo que a questão é: por que em 2017 e por que em Cabo Delgado? A província de Nampula tem quase o dobro de muçulmanos do que Cabo Delgado e 62% da população de Niassa é muçulmana, então por que a insurgência não começou nessas regiões e até agora não se espalhou por lá? 72 E aqui entramos na segunda questão, a da existência de um ambiente propício e fértil para que o jihadismo penetre e se expanda. 73 As práticas excludentes de governança política e econômica das insti- tuições locais ou centrais do Estado, tensões étnicas, marginalização, má-administração, corrupção, violência policial, tensões entre centro e periferia etc. fertilizam o solo para o florescimento do jihadismo. 74 Entretanto, como bem diz Luca Raineri:
surpreendentemente, na prática todos os estudos focando a ascensão do jihadismo na África – não importa sua metodologia ou base geográfica – convergem para a mesma explicação e corroboram a conclusão de que os abusos perpetrados pelas autoridades de Estado – incluindo alegações de corrupção, de discriminação sistemática, detenções arbitrárias, execuções extrajudiciais etc. – são os principais impulsionadores do jihadismo. 75
Os jihadistas são exemplos particularmente bons de organizações “glocais” e a aliança entre grupos locais e movimentos transnacionais, como a Al-Qaeda ou o EI, aumenta a resiliência de ambos. Em alguns casos, a ideologia global sofre mutações, incorporando e sendo modificada por interpretações locais, às vezes sendo adotada para explicar conflitos e ideologias locais e também interesses pragmáticos. 76 A presença de jihadistas altera a dinâmica do conflito e aumenta tanto o número de incidentes letais quanto o de vítimas. 77 Em muitos desses conflitos sobressai um elemento de rebelião da juventude, ou seja, a tensão geracional, por exemplo, contra líderes religiosos mais velhos em mesquitas específicas, como foi o caso na fundação das ADF, do Boko Haram e da Al Hijra do Quênia. 78 Com a maioria dos países subsaarianos marcados por altas taxas de natalidade e populações jovens, mas com economias em deterioração no contexto neoliberal, os jovens têm cada vez mais dificuldade em obter acesso à educação, ao emprego, à promoção social e à representação política. A competição por esses serviços, direitos e privilégios marca, em maior ou menor grau, as relações entre as diferentes gerações e, concomitantemente, torna-se um fator nos sistemas políticos pós-coloniais e em várias revoltas violentas que emergiram como resultado do bloqueio da mobilidade social ou da comunicação política entre as gerações. Testemunhas oculares indicaram que o assalto às prisões de Mocímboa da Praia, em 2017, ocorreu na sequência de um impasse particularmente violento entre os radicais mais jovens e os salafistas mais velhos do Conselho Islâmico, que resultou na prisão em massa de jovens de várias regiões de Cabo Delgado após a intervenção policial a pedido dos salafistas mais velhos. 79
Hansen sublinha que a ideologia e as queixas podem ser mais importantes na fase inicial de uma insurgência, quando o grupo existe como uma pequena rede e as esperanças de vitória rápida são mais fortes do que numa fase mais avançada, quando a organização é maior e tem mais oportunidades de gerar renda para os aspirantes a oportunistas. 80 Vários atores que participam no grupo ou na insurgência podem ter motivos diferentes, mas os líderes, bem como os seguidores, têm mais sucesso em recrutar membros e angariar apoio quando enfatizam fatores estruturais locais, como pobreza, desigualdade econômica, falta de acesso ao emprego, ao poder e à segurança. A adesão ao extremismo islâmico em Cabo Delgado pode ter ocorrido gradualmente durante a insurgência, mesmo que tenha sido, no início, encabeçada por jovens radicais. Uma facção de insurgentes pode ter abordado os grupos jihadistas regionais ou globais em resposta às táticas violentas do governo, que incluíram prisões arbitrárias, violência indiscriminada, tortura e a destruição de mesquitas. 81 A violência gover- namental indiscriminada e a falta de reconhecimento das necessidades de segurança dos civis são a chave para a sobrevivência e a expansão da insur- gência jihadista. Mas os jovens em Moçambique, como em outras partes do mundo, 82 usam também redes sociais para acessar informações e estabelecer contatos com aqueles que podem influenciar a sua radicalização.
Fatores além do islamismo radical parecem ter contribuído para o surgimento da insurgência porque ela é muito específica espacial- mente ― tanto por ser a região da futura extração e processamento de gás (Mocímboa da Praia e Afungi, em Palma, Cabo Delgado) quanto por acontecer em 2017, exatamente quando o governo anunciou a construção do complexo de processamento de gás. A insurgência de Cabo Delgado está vinculada à descoberta do gás e à exploração de riquezas naturais, como rubis, grafite, carvão, fosfato, safiras e madeiras nobres. Desde o início dos anos 2000, uma grande transformação vem ocorrendo nessa região, resultante da implantação da indústria extrativo-mineral típica da virada neoliberal, associada à “Nova Partilha da África” ( New Scramble for Africa). 83
As empresas norte-americanas Anadarko, Occidental e Exxon Mobile, a francesa Total e a italiana Eni, juntamente com o governo moçambicano, tornaram-se os principais detentores da indústria de gás offshore, enquanto a Anadarko ficou com terras em Mocímboa da Praia e sete mil hectares na península de Afungi, em Palma, para a construção de um complexo de processamento de gás natural liquefeito (LNG). Assim, parece que a velha “maldição dos recursos naturais” está de volta e no jogo em Cabo Delgado. 84Em muitas sociedades produtoras de gás e petróleo,o extremismo violento é gerado por agravos reais ou percebidos, como a discriminação, a marginalização, a injustiça, a repressão e outros abusos por parte do Estado e do aparato de segurança, que agravaram queixas preexistentes, com uma forte penetração histórica. 85 Isso se nota também na Tanzânia, 86 onde existem altas taxas de desemprego e pobreza nas áreas costeiras muçulmanas, à semelhança de Cabo Delgado, e provavel- mente as comunidades muçulmanas de ambas as regiões, já interligadas histórico-culturalmente, se influenciam mutuamente a respeito de seu posicionamento perante o Estado pós-colonial e o jihadismo transna- cional. Entre os muçulmanos da Tanzânia, sobretudo no litoral, existe a percepção de que eles não se beneficiam quase nada do desenvolvimento econômico resultante de investimentos do setor privado, especialmente em relação à indústria de gás natural, o que tem aumentado as queixas da população costeira. No entender dessas populações, elas já sofriam de marginalização e exclusão pelo Estado pós-colonial, por exemplo, em relação à questão da autonomia do Zanzibar, onde também foram descobertas recentemente grandes jazidas de gás. Os investimentos feitos por empresas paraestatais ou controladas pelo Estado, ao longo da costa sul da Tanzânia, em Pwani, Lindi, Mtwara e Kilwa, foram acompa- nhados por um movimento bastante maciço de trabalhadores urbanos de compra de pequenos lotes de terra costeira como investimento pessoal. 87 Tudo isso incrementou as tensões e ressentimentos da população do litoral, tradicionalmente muçulmana.
Como argumenta Penelope Anthias,
o problema da legitimidade do Estado é agravado pela espacialidade da atividade extrativista, na qual os impactos sociais e ambientais se acumulam em territórios ricos em recursos naturais (muitas vezes marginais ao projeto de desenvolvimento nacional e povoados por minorias étnicas), enquanto a riqueza derivada desses recursos é acumulada e gerida pelas elites nacionais, muitas vezes com base nas reivindicações pelo Estado à propriedade do subsolo. 88
Reivindicações de soberania e cidadania com base na indige- neidade e na territorialidade são centrais para insurgências baseadas em queixas mobilizadas contra o Estado, percebido como apoiador das empresas internacionais de mineração em “enclaves”, cuja atividade se faz às custas da população local (a “verdadeira proprietária” das terras), e sem o seu consentimento ou envolvimento. 89
Na insurgência de Cabo Delgado, a etnia mwani reivindica como terras ancestrais as ilhas e a costa onde deve se instalar a indústria de gás. 90 Tania Murray Li observa que a terra não representa somente um ponto na geografia e um meio de sustento para vida, mas está imbuída de signifi- cados sociais e culturais. 91 Para os mwani, as ilhas e a costa abarcam não apenas áreas de pesca e cultivo, mas também o domínio histórico de seus ancestrais muçulmanos e os espíritos dos antepassados. A ocupação dessas terras pelo complexo extrativista pode ser interpretada como um desenraizamento físico e espiritual dos mwani. Além disso, a implemen- tação dessa indústria tem sido cercada de polêmica por causa do alegado clientelismo, da corrupção, e da crescente desigualdade. 92 A população local teria sido supostamente consultada e compensada pela perda de terras, mas isso foi objeto de contestação e os protestos foram violentamente reprimidos pelo aparato de segurança do Estado. 93 A percepção popular foi agravada, ainda mais, pela crença de que a maioria dos empregos na nova indústria iria para estrangeiros e compatriotas do sul do país, em vez de para os jovens muçulmanos locais, cujas esperanças de emprego e futuro melhor acabaram frustradas. Essa percepção de exclusão social parece ser o contributo mais importante para o surgimento da insurgência. Queixas semelhantes foram articuladas pelos jovens noutras regiões do mundo onde opera a indústria extrativista em larga escala. 94
Vários estudiosos assinalaram que só mergulhando na história, na identidade ou na mentalidade e na forma de pensar das pessoas envol- vidas é que será possível entender os conflitos em torno dos recursos naturais. Em vez de impulsionadores de conflito, esses recursos funcionam como condutores para lutas pós-coloniais envolvendo território, soberania e cidadania, para as quais o subsolo frequentemente emerge como uma arena-chave. Os povos locais tentam reformular seus projetos territo- riais nesse novo campo da cidadania de hidrocarbonetos, baseando seus esforços no projeto de “remapear a nação” dentro de um relacionamento íntimo e instável entre a indústria extrativista e a nação pós-colonial.
Isso é perceptível no caso de Cabo Delgado, cuja história continua imersa em violência e conflitos políticos, interétnicos, religiosos, luta pela terra e recursos, desde o período pré-colonial até agora. Começando pela omissão dos mwanis na grande narrativa nacionalista sobre a guerra de libertação, que glorifica os macondes, 95 passando pela violência contra os muçulmanos encabeçada pelos burocratas macondes cristãos nos primeiros anos da independência, 96 a brutalidade da criação de aldeias comunais e os campos de reeducação, acompanhados pelo reassenta- mento maciço de macondes em terras muçulmanas costeiras, 97 e indo até aos conflitos entre mwanis pró-Renamo e macondes pró-Frelimo em várias eleições recentes, 98 persiste a percepção de vitimização da etnia mwani no período pós-colonial, seja pelo Estado central em Maputo, seja pelos macondes cristãos a ele aliados, e tudo isso pode certamente incentivar a entrada no jihadismo transnacional.
De acordo com Benjamin Augé, quando em Cabo Delgado se abriu a oportunidade para a exploração de rubis e outros minérios, bem como para a indústria de gás, a Frelimo estava interessada em garantir o fluxo de caixa, ou dinheiro o mais rápido possível, sem considerar os conteúdos locais, tais como a legislação específica e necessária, e estudos aprofundados de contextos sociais e ambientais, por exemplo. 99 O filho de um antigo combatente maconde e o presidente do país, dois macondes veteranos da guerra pela independência estiveram à frente de empresas estatais parceiras de corporações internacionais da indústria extrativista. 100 Tudo isso contribuiu para os ressentimentos e as expectativas frustradas dos muçulmanos, sobretudo dos mwanis (mas também dos macuas e makwes), e serviu de esteio emocional e “solo fértil” para uma insurgência direcionada não apenas contra o Estado moçambicano e seus aliados internos ou regionais, mas também contra a hegemonia global do Ocidente, simbolizada nesse caso pelas empresas extrativistas internacionais.
No caso de Cabo Delgado, as queixas e agravos da comunidade, a presença e a proliferação de narrativas políticas viáveis e novas tecnologias, como a internet, ajudam pessoas com ideias semelhantes a se comunicar e levar suas mensagens ao público-alvo. Apreciar o contexto histórico e cultural é particularmente importante para compreender a dinâmica das insur- gências. A história e a cultura de um Estado-nação, a identidade de grupo ou da região são fontes importantes de tensões subjacentes. As memórias coletivas dos atores, mantidas vivas por meio de relatos de histórias que, muitas vezes, remontam a centenas ou milhares de anos, são relevantes porque são elas que orientam ou restringem ações futuras. As causas dos insurgentes não são exatamente materiais que produzem efeitos imediatos, embora existam bases materiais para a revolta. Em vez disso, as causas dos insurgentes fornecem justificativa para o recurso à ação violenta. Uma insurgência responde não apenas a necessidades políticas, mas também econômicas e psicológicas dos envolvidos. Além disso, a insurgência contemporânea muitas vezes tem natureza transnacional.
A insurgência em Cabo Delgado também deve ser abordada como um fenômeno histórico que tem início, mas também processo e evolução, pois a insurgência representa uma multidão de vozes, atores e interesses em fluxo e transformação ao longo do tempo, desde antes de 2017 e até o presente. A insurgência desencadeia uma violência extrema não só contra os supostos inimigos, mas também dentro de suas próprias fileiras e no seio da população inocente vitimizada pela brutalidade. Isso é particular- mente claro se considerarmos a insurgência como parte integrante e esteio local de ideologias e táticas do jihadismo transnacional do EI.
Em suma, a insurgência de Cabo Delgado exibe as condições propícias para a implantação e atuação das três facetas principais do jihadismo transnacional a que aludimos no início deste artigo: 1) compreender de modo radical os textos sagrados do Islã e seus intér- pretes; 2) tirar proveito das demandas e lutas dos habitantes das áreas deflagradas; e 3) incorporar a resistência à ordem global. Contudo, faltam ainda dados empíricos detalhados e uma descrição espessa da situação para substanciar essas hipóteses com evidências fortes e factuais. A ênfase que alguns investigadores põem na imbricação entre negócios ilícitos, jihadismo transnacional e insurgência em Cabo Delgado parece não ter muita base empírica, sobretudo porque esses negócios já têm um longo percurso em Moçambique e muitos estudos os vinculam à elite política do país. O argumento de que existe uma simbiose de redes criminais com o jihadismo, como assinala Hansen, tem sido frequente- mente usado, normativamente, para manchar a reputação dos jihadistas enquanto negligencia o fato de que regimes locais e redes de clãs estão envolvidos em práticas semelhantes. 101 Portanto, o papel dos fluxos ilícitos de dinheiro talvez esteja sendo superestimado.
Mesmo enfraquecido, devido ao desmonte do seu Estado no Iraque e na Síria entre 2017 e 2019, o EI continua trabalhando na clandestinidade com propaganda, recrutamento e expansão geográfica de sua influência, especialmente na África. Contudo, é preciso lembrar que a ideologia islamista, desde o wahhabismo até hoje, continua atrativa para alguns círculos de resistência mundial, que se apoderam dela e a transformam e reinterpretam. Assim, mesmo que o EI desaparecesse, a ideologia jihadista continuaria viva e seria levada adiante por outros islamistas. Pode-se dizer que é como abrir a caixa de Pandora ou soltar o gênio da garrafa. Não se devia deixar acontecer a partida, mas se aconteceu, não tem volta, a não ser por meio de um trabalho minucioso, filigranista, lento e muito longo de retificar as consequências. Isso deve ser feito com muita paciência, envolvendo as comunidades afetadas, providenciando apoio não só às vítimas, mas também aos jovens que se engajaram na jihad, oferecendo saídas para que abandonem a violência, criando programas de desradicalização, vias para a anistia, centros de apoio psicológico e de reeducação para a vida pacífica. A outra solução, menos atraente, seria fazer como a Rússia fez na Chechênia, isso é, manter toda a população sob vigilância e controle pelas forças de segurança do Estado; prender, torturar e fazer desaparecer os suspeitos; e instalar o autoritarismo absoluto. 102
Finalmente, a terceira via é a militar, com vista a derrotar eliminar o jihadismo transnacional. Mas, como Martha Crenshaw e Hansen argumentam, “a resiliência jihadista também está ligada a uma sobrevalorização do que a cinética militar pode alcançar ao se vencerem batalhas”. 103 Hansen destaca que muitas das fases expansivas anteriores dos jihadistas subsaarianos, quando chegaram a controlar vastos terri- tórios, resultaram em intervenções estrangeiras, como a de forças francesas no Chade (desde 1960, mas especificamente contra jihadistas em 2006, 2008, 2012-2014, 2019), e no Mali, em 2013; as interferências de países da região na Nigéria, em 2015, e das ações da Etiópia (2006, 2012) e do Quênia (2011) na Somália. Contudo, mesmo criando uma retração dos jihadistas, essas intervenções nunca os derrotaram completamente. Por isso o combate ao jihadismo transnacional corre o risco de se transformar em “guerras para sempre”. Para Hansen, a chave para entender tal resiliência é reconhecer que essas intervenções não conseguiram garantir a segurança nos territórios reconquistados aos jihadisdas, ou seja, que as intervenções falharam em fornecer proteção às populações locais, sobretudo as rurais e residentes em lugares remotos, permitindo que as pessoas continuassem vulneráveis às ameaças de grupos extremistas. Como resultado, as comunidades locais acabaram por se acomodar aos jihadistas. Hansen sugere que a falta de segurança da população rural se torna elemento essencial para compreender o fracasso das intervenções internacionais. No caso de Cabo Delgado, só o futuro revelará o verda- deiro impacto da intervenção militar em curso.