ARTIGO
“COMBINARAM DE NOS MATAR, COMBINAMOS DE FICAR VIVOS”: RACISMO E RESISTÊNCIA NEGRA NO RAP BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO*
THEY AGREED TO KILL US, WE AGREED TO STAY ALIVE”: RACISM AND BLACK RESISTANCE IN CONTEMPORARY BRAZILIAN RAP
“COMBINARAM DE NOS MATAR, COMBINAMOS DE FICAR VIVOS”: RACISMO E RESISTÊNCIA NEGRA NO RAP BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO*
Afro-Ásia, núm. 65, pp. 607-647, 2022
Universidade Federal da Bahia
Recepção: 23 Junho 2021
Aprovação: 18 Outubro 2021
Resumo: Desde seu surgimento e ao longo de sua penetração no contexto racializado brasileiro, o rap mantém-se como uma estratégia de resistência cultural negra. O objetivo deste trabalho é analisar como o rap articula dimensões culturais, históricas e sociais do debate racial brasileiro em suas composições. Para tanto, propomos um debate teórico sobre a constituição do rap como instrumento de crítica e as especificidades da questão racial brasileira. Em seguida, apresentamos uma análise temática reflexiva de 49 músicas de rap. A partir desta análise, discute-se a utilização da religiosidade afro-brasileira como um dispositivo da resistência cultural; a releitura da história do Brasil a partir do ponto de vista da população negra; e a crítica da realidade racial contemporânea, na qual são apontadas estratégias de resistência. Concluímos que o rap se constitui como uma importante ferramenta contra-hegemônica, centrando-se na valorização da cultura negra e na promoção da autoestima e da consciência racial.
Palavras chave: Raça, Política, Rap, Resistência negra, Cultura afro-brasileira.
Abstract: Since its emergence and throughout the expansion of its popularity in the Brazilian racialized context, rap has been a strategy of black cultural resistance. This article analyzes how rap articulates cultural, historical, and social dimen- sions of the Brazilian racial debate in its compositions. Therefore, we propose a theoretical debate on the constitution of rap as an instrument of criticism and the specificities of the Brazilian racial issue. We then present a reflexive thematic analysis of 49 rap songs. From this analysis, we discuss the use of Afro-Brazilian religion as a mechanism for cultural resistance; a re-reading of the history of Brazil from a black perspective; and a critique of contemporary racial reality and the possible strategies for resistance. We conclude that rap is an important counter-hegemonic tool that encourages the appreciation of black culture and promotes self-esteem and racial awareness.
Keywords: Race, Politics, Rap, Black resistance, Afro-Brazilian culture.
O Hip Hop é uma expressão cultural multifacetada, que tradicio- nalmente pode ser decomposta em quatro elementos: o grafite, enquanto vertente ligada às artes visuais; a dança de rua, representada principalmente pelo break e por personagens como os b-boys e b-girls; o Disc-Jockey (DJ), que comanda as pick-ups (toca-discos); e o Mestre de Cerimônia (MC), que compõe rimas e poesias. Estes dois últimos são os principais responsáveis pelo que é chamado de rap ( rhythm and poetry – ritmo e poesia). Diversos hip hoppers, sobretudo o influente DJ Afrika Bambaataa, propuseram a existência do chamado “quinto elemento”, que envolveria o reconhecimento da realidade histórica, cultural e social dos grupos oprimidos. 1 Desde sua origem, o rap funciona como uma ferramenta para a expressão daquilo que os sujeitos periféricos veem, sentem e sabem, refletindo sobre a realidade ao seu redor. 2 Ao inserir-se na realidade brasileira, o rap incorpora em seu discurso elementos singulares dos processos raciais locais, marcados por um longo período escravocrata seguido de uma integração precária dos negros à sociedade. 3 Considerando a capacidade organizadora do rap em seus aspectos culturais e sociais, e que o rap é um importante instrumento social que incorpora as denúncias dos problemas raciais de nossa sociedade, o objetivo deste trabalho será analisar como os múltiplos elementos culturais, históricos e sociais relacionados à questão racial brasileira são articulados no discurso do rap brasileiro contemporâneo. Sustentamos que este gênero musical pode ser pensado como uma forma de resistência cultural, a serviço de um projeto difuso de ressignificação do lugar do negro na sociedade brasileira e de resgate da autoestima e da consciência racial negra. Partiremos do pressuposto de que a realidade sócio-histórica na qual se desdobram as relações raciais no Brasil é atravessada pelo racismo estrutural, tal como conceitualizado por Almeida. Segundo o autor, o racismo é um processo histórico, estrutural e racional de legitimação de poder político, econômico, social e cultural, além de se apresentar como um processo subjetivo. Portanto, ele se traduz de forma constitutiva na organização do poder e no surgimento do moderno Estado-nação, tocando tanto as macroestruturas quanto as microrrelações. 4
Preliminarmente, apresentaremos um panorama sobre a consolidação do rap enquanto um dispositivo de denúncia racial, assim como algumas considerações históricas e conceituais sobre a situação do negro na sociedade brasileira. Em seguida, faremos uma análise temática de compo- sições de rap brasileiro contemporâneo, visando sublinhar as articulações entre o discurso presente nessas músicas e o debate racial brasileiro.
Hip Hop: da periferia americana à periferia brasileira
O Hip Hop, assim como a totalidade das manifestações culturais afro-diaspóricas, contempla em sua matriz as realidades sociais, políticas, econômicas e culturais a que estes grupos étnicos estão condi- cionados. Surgida nos anos 1970 no Bronx, periferia de Nova Iorque, a cena Hip Hop é constituída principalmente por negros americanos e imigrantes jamaicanos e hispânicos. A paisagem social que propul- siona o surgimento desta manifestação cultural é marcada por diversas contradições sociais, como a guerra do Vietnã, a crise econômica dos anos 1970 e a segregação racial. 5 Têm papel fundamental nesse contexto os inúmeros projetos de reurbanização e limpeza social do bairro, que forçaram as populações negra e hispânica a viverem em uma paisagem em destroços. 6 Os grupos não brancos, que vivenciavam cotidianamente aquela atmosfera de preconceito, discriminação e segre- gação socioespacial, encontravam no Hip Hop uma forma de lazer e, principalmente, de manifestação da sua realidade racializada:
Nesse contexto, o sentimento de pertencer a uma identidade étnica, encontra-se associado no hip hop, politicamente, a uma abordagem crítico-emancipatória de diálogo com o espaço público, de se compreender parte de uma história e de se territorializar no espaço de forma representativa. A questão da negritude ressurge como tema central no hip hop para se pensar, criticar e enfrentar a exclusão social, o que tem levado, por consequência, à racialização da discussão. 7
Os bailes de Hip Hop espalharam-se por quase todos os centros urbanos dos Estados Unidos. Em 1980, o rap alcança sucesso nacional através da sua comercialização pela indústria fonográfica e consequente massificação do gênero, que acaba perdendo algumas características iniciais e passa a dar espaço para mensagens de consumismo, violência e sexo. Data deste período a globalização do rap e sua absorção por outras culturas: assim como a realidade social, política e econômica do Bronx influenciou a primeira fase do rap, as realidades locais nas quais ele se desenvolvia fora dos Estados Unidos foram incorporadas por essa expressão cultural. 8
No final dos anos 1980, surgem em São Paulo os primeiros grupos de rap, mas o gênero musical só ganha projeção nacional a partir dos anos 1990, com os álbuns Sobrevivendo ao Inferno (1997), do grupo Racionais MC’s, e Preste Atenção (1995), de Thaide. Os grupos da primeira fase do rap nacional apresentavam um nítido tom de protesto e contestação social em seu discurso, refletindo sobre a desigualdade e o preconceito racial, a violência policial, a exclusão social e o cotidiano da periferia.
Assim como acontecera nos Estados Unidos, o rap brasileiro também incorpora em seu discurso mensagens ligadas ao consumismo, à ostentação e à objetificação feminina. 9 Mesmo assim, o rap voltado para os temas raciais nunca perdeu espaço, mantendo-se como a vertente mais prolífica tanto nas cenas locais quanto entre grupos que alcançam sucesso nacional. Neste trabalho, nos interessa sobretudo o rap ligado à expressão dos elementos basilares que possibilitaram o surgimento deste gênero musical, como a denúncia da injustiça social e a ênfase no debate racial. Portanto, ao nos referirmos ao rap, privilegiaremos este subgênero, também conhecido como rap social, 10 rap consciência 11 ou rap de mensagem. 12
O rap e o protesto negro
No Brasil, o rap apresenta características particulares, refletindo as especifi- cidades do cenário político e racial do país. Dessa forma, a vertente brasileira do rap pode ser entendida como um elemento de continuidade do movimento musical popular negro, que teve raízes de norte a sul do país e valorizava a “busca da autoestima da população negra, diante do preconceito racial”. 13 Esse processo “compreende a valorização da ascendência étnica negra, o conhe- cimento histórico da luta dos negros e de sua herança cultural e o combate ao preconceito racial”. 14 Em síntese, pode-se afirmar que o discurso do Hip Hop articula as dimensões históricas, culturais, políticas e sociais da questão racial.
Nesse contexto, o hip-hop, concebido através de ações artísticas, culturais e políticas, constituiu-se como exemplo de cultura contem- porânea de resistência negra, possibilitando a expressão da voz do marginalizado, do excluído, além de uma reflexão acerca daquilo que reprime as classes menos favorecidas. Observa-se especificamente a construção do estilo rap como relato da exclusão, da violência, e também da riqueza cultural e da resistência. 15
Inúmeras manifestações culturais dos grupos subordinados pela opressão racializada adquirem um caráter de resistência e contestação em relação aos elementos políticos, econômicos e ideológicos que alicerçam as sociedades de origem escravocrata. Hall chama este fenômeno de estratégia cultural, entendido como um espaço possível de disputa e proliferação de ideias de contestação. 16 Esta é uma característica ainda muito viva no rap brasileiro contemporâneo: observa-se que MC’s e grupos de rap garantem seu sucesso e sua produção sonora ligados aos elementos de contestação negra, por meio do reforço dos valores culturais negros, da busca pela identidade racial, do protesto contra o racismo e do resgate da ancestra- lidade e da história negra. Dessa maneira, compreendemos que o rap se posiciona como uma das vertentes artístico-culturais do protesto negro.
Enquanto elemento da cultura popular negra, o rap caracteriza-se também como um “local de contestação estratégica”, na medida em que “tem sempre em sua base experiências, prazeres, memórias e tradições do povo” e que se liga às “esperanças e aspirações locais, tragédias e cenários locais que são práticas e experiências cotidianas de pessoas comuns”. 17 Assim, o rap é um ponto de acesso privilegiado às vivências da população negra, em um contexto em que suas necessidades mais elementares de subsistência e dignidade muitas vezes não estão dadas e precisam ser conquistadas através da luta. A mensagem veiculada pelo rap não só faz emergir os problemas raciais das periferias, mas constitui-se como um importante espaço de reafirmação da identidade étnica nacional. Essa identidade fora escamoteada pelo Estado brasileiro desde o surgimento da ideologia da democracia racial, que se estabeleceu como característica central do ethos nacional e garantiu o encobrimento das desigualdades raciais gestadas na história social do Brasil. 18
Por terem se desenvolvido enquanto uma tarefa cultural e política, o rap e a cultura Hip Hop se fortalecem como um exemplo contemporâneo do que Castells chamará de cultura de resistência. 19 No caso do rap, a cultura de resistência possibilita a manifestação da voz de uma população marginalizada e excluída da estrutura social e a construção de sujeitos preparados para enfrentar as discriminações e as desigualdades que definem “o lugar do negro” em nossa sociedade. A arte torna-se um dispo- sitivo cultural e político na busca de mudar a situação não só dos atores mais diretamente associados à cultura Hip Hop, mas de todo o grupo social a que pertencem. 20 Nesse contexto, destacam-se as comunidades periféricas, que são frequentemente retratadas nas letras de rap e fazem parte do universo de pertencimento destes atores sociais.
O rap brasileiro contemporâneo apresenta algumas características particulares que o diferenciam parcialmente do rap produzido no final do século XX. Como aponta Teperman, o rap contemporâneo, ou “nova escola de rap”, perde força enquanto dispositivo de crítica social ao se aproximar da indústria cultural. 21 Rocha, por sua vez, compreende que o discurso político do rap complexifica-se na contemporaneidade, pois articula o debate de questões raciais, de classe e de gênero. A partir desse ponto de vista, compreende-se que a “nova escola” não abandona a vocação do rap para a crítica social, mas a adapta ao contexto atual, de forma que não se observa uma ruptura radical entre a “velha escola” e o rap contemporâneo. 22
Contexto político e racial brasileiro
Para compreender o contexto racializado que o rap brasileiro insistente- mente denuncia, é necessário retomarmos os quadros históricos e sociais que fundamentam o chamado racismo estrutural enquanto modelo morfológico que garante a subalternização de negros e negras na sociedade brasileira. 23 Com o fim da escravidão em 1988, o pensamento social nacional é forte- mente influenciado pelas teses do racismo científico, que se reproduziam de forma hegemônica em todos os centros intelectuais do mundo. 24 Ao passo que as elites e o Estado adotavam tais teses enquanto modelo organizador, reproduzia-se no pensamento social e nas estratégias de Estado um projeto que visava acabar com o “elemento negro” do cenário sociocultural brasileiro. Assim, as produções intelectuais e ideológicas desse período, bem como as estratégias de embranquecimento nacional, impediram a incorporação dos negros no sistema ocupacional e os submeteram à marginalização social, excluindo-os da riqueza, da cultura e do poder. 25
A partir dos anos 1930, com a instauração do Estado Novo, houve uma mudança significativa dos projetos nacionais em torno da questão racial. Essa mudança é caracterizada principalmente pela adoção da democracia racial enquanto discurso público oficial, situação que perdurou até a constituição da Nova República. O mito da democracia racial e a construção do ideário nacional de um país miscigenado serviram como mote para uma série de ataques à cultura afro-brasileira, que incluíram a desafri- canização dos elementos culturais negros e o consequente enfraquecimento da identidade negra. 26 No campo social, o racismo velado e a miscigenação como proposta administrativa buscaram estabelecer o Brasil como um país que aboliu o preconceito racial, colocando as expressões do racismo e da desigualdade racial como um tabu difícil de ser acessado pela população. 27 Mesmo que, na atualidade, a democracia racial não seja considerada um discurso público oficial, as estratégias ideológicas adotadas até o final dos anos 1980 ainda estão presentes no pensamento social brasileiro.
Em síntese, os projetos racializados a que a população negra foi submetida ao longo da história do Brasil produziram efeitos profundos e duradouros, manifestando-se na marginalização dos negros no pós-abo- lição, 28 na construção do mito da democracia racial, 29 na perseguição dos movimentos negros 30 e na integração subordinada desse grupo ao sistema capital-trabalho. 31 Os marcadores sociais e a bibliografia especializada são unânimes ao constatarem as inúmeras desvantagens sociais enfren- tadas pela população negra no Brasil contemporâneo, como as altas taxas de evasão escolar, trabalho infantil e encarceramento, dificuldades em acessar o sistema de saúde, menor remuneração e a condição de cerca- mento socioespacial, que isola essa população nas periferias. 32 Além disso, dentre os mortos em intervenções policiais violentas, quase 80% são jovens negros periféricos. 33 O caráter violento e sistemático do assassinato de negros e negras no Brasil pode ser entendido como expressão de uma política de extermínio e genocídio. 34
Mas a população negra nunca esteve passiva diante da barbárie organizada da história social brasileira, dado que estratégias de resistência política e cultural são registradas desde o período colonial e se estendem até o contemporâneo. 35 As estratégias de luta difusas que ocorreram durante o período colonial assumem, durante as primeiras décadas da República Velha, a forma de um movimento negro organizado e articulado a partir de inúmeras ações de resistência, como a imprensa negra, os partidos políticos e os grupos artísticos e religiosos. No contemporâneo, o rap assume uma posição de destaque enquanto elemento artístico-cultural do movimento negro. Domingues afirma, inclusive, que a utilização política do rap o posiciona como o elemento central de uma hipotética quarta etapa do movimento negro brasileiro:
Trata-se de um movimento cultural inovador, o qual vem adquirindo uma crescente dimensão nacional; é um movimento popular, que fala a linguagem da periferia, rompendo com o discurso vanguardista das entidades negras tradicionais. Além disso, o hip-hop expressa a rebeldia da juventude afrodescendente, tendendo a modificar o perfil dos ativistas do movimento negro; seus adeptos procuram resgatar a autoestima do negro, com campanhas do tipo: Negro Sim!, Negro 100%, bem como difundem o estilo sonoro rap, música cujas letras de protesto combinam denúncia racial e social, costurando, assim, a aliança do protagonismo negro com outros setores marginalizados da sociedade. 36
O autor afirma, entretanto, que o Hip Hop “ainda é um movimento desprovido de um programa político e ideológico mais geral de combate ao racismo” e que, por isso, “não define explicitamente qual é o eixo central da luta”. 37 Nós compreendemos que o rap, enquanto manifestação não só política, mas também artística, não está na posição de sustentar um discurso inteiramente coerente, mas sim de funcionar como um caleidos- cópio de sons e imagens que permitem deslocamentos e condensações de sentidos. Em consonância com essa perspectiva, Santos entende que a luta afro-brasileira contra o racismo se realiza no rap de forma difusa, sem a necessidade de se organizar formalmente por meio de instituições. 38 De acordo com o autor, essa característica não deslegitima o rap enquanto uma nova forma de movimento social negro. Assim, embora o rap brasi- leiro contemporâneo não seja um movimento político tradicional, com um eixo central organizado, consideramos que é possível identificar as linhas gerais de reivindicações e lutas adotadas pelos rappers, a serem inferidas a partir das imagens e argumentos evocados por eles.
A investigação acadêmica a respeito do rap tem demonstrado sua potência política enquanto local de debate sobre a questão racial brasileira, através do resgate da religiosidade afro-brasileira, 39 da produção de saberes emancipatórios, 40 da narrativa política das populações marginalizadas 41 e do incremento da consciência racial e da autoestima da população negra. 42 Portanto, considera-se que o rap funciona como uma importante arena de debate sobre a questão racial brasileira, apresentando contribuições cruciais para a organização do movimento negro.
O discurso racial no rap brasileiro contemporâneo
Com o objetivo de compreender como o debate racial é abordado no rap brasileiro contemporâneo, realizamos uma análise temática. A partir de um conhecimento prévio sobre o panorama do rap brasileiro, selecionamos canções de rap compostas por rappers negros e negras, privilegiando aqueles que sistematicamente abordam a questão racial em suas produções. Essa seleção não pretendeu ser exaustiva: procuramos selecionar artistas e composições que fossem representativos do rap brasileiro e que tivessem reconhecimento a nível nacional. Isso significa que os artistas analisados/as se inserem de alguma forma no contexto de uma estratégia de resistência cultural, como proposto por Hall e Castells. 43 O recorte temporal adotado abrangeu canções divulgadas entre 2014 e 2021. Para esta análise, consideramos apenas as letras das composições, desconsiderando os elementos musicais intrínsecos, como timbre, melodia, harmonia e ritmo. A seleção final contou com 49 composições, relacionadas no Quadro 1.

As músicas selecionadas foram escutadas a partir de serviços de streaming – o principal meio de divulgação do rap contemporâneo – e trans- critas na íntegra, resultando em 156 páginas de dados brutos. Na transcrição, procuramos respeitar o estilo oral da recitação. As transcrições foram anali- sadas a partir da análise temática reflexiva proposta por Virginia Braun e Victoria Clarke. 45 Essa estratégia analítica pressupõe um trabalho criativo e reflexivo dos pesquisadores, através do qual constrói-se sentidos ao longo do material. Inicialmente, efetuamos leituras sucessivas dos dados brutos, seguidas de uma codificação rigorosa, em que foram selecionados extratos significativos relacionados aos aspectos raciais abordados nas canções. Adotamos uma concepção ampla sobre a “questão racial”, entendida como um arranjo complexo de fatores históricos, culturais, sociais, econômicos e políticos que organizam as relações entre sujeitos racializados. Os extratos selecionados foram organizados em grupos de acordo com seu sentido. Os agrupamentos de extratos foram, então, trabalhados a fim de produ- zirem temas bem delimitados, internamente coerentes e distintos entre si. No contexto deste referencial metodológico, “temas” são entendidos como “padrões de sentido compartilhado fundamentados por um conceito organizador central”. 46 Após a definição e nomeação dos temas, iniciou-se o processo de redação, que consistiu na seleção de extratos vívidos e representativos do material, que foram analisados em maior detalhe e relacionados à bibliografia pertinente. Uma característica fundamental deste processo de trabalho é seu caráter recursivo e flexível, de forma que não houve uma sucessão rigorosa entre as diferentes etapas. 47
Devido à natureza do corpus de dados e às particularidades de nosso objetivo, optamos por centrar a análise no nível semântico ou explícito do discurso, embora sempre atentos às suas implicações e pressupostos subjacentes. 48 Produzimos, assim, três temas, que serão apresentados a seguir. No primeiro, analisaremos o recurso à religião afro-brasileira como estratégia de resistência cultural; em seguida, serão abordados os elementos históricos mencionados nas composições; por fim, nossa inves- tigação se centrará no posicionamento do rap em relação aos aspectos contemporâneos do racismo, da violência e da resistência negra.
“Nunca foi sorte, sempre foi Exu”: religião e resistência cultural negra
Neste tema, nosso objeto de análise será a utilização política de elementos culturais negros através do rap. No discurso do rap, esse processo compreende a revalorização do patrimônio cultural afro-diaspórico e o posicionamento dos negros enquanto agentes de produção de cultura. A revalorização do patrimônio cultural afro-brasileiro centra-se, nas músicas analisadas, no resgate da religiosidade africana e afro-brasileira, que funciona como dispositivo para a promoção de autoestima e de consciência racial aos sujeitos negros.
De acordo com Bastide, os negros escravizados puderam trazer ao Brasil apenas seus valores e crenças, em outras palavras, sua cultura. 49 Por isso, a religiosidade e as divindades são elementos particularmente importantes no estudo das culturas afro-brasileiras. O contato desses elementos com o cristianismo dos colonizadores produziu, no pensa- mento social brasileiro, uma imagem depreciativa das religiões africanas, que foram interpretadas como representações pagãs, demoníacas, inferiores e animalizadas. Tal processo legitimou a perseguição política e cultural que culminou na criminalização dessas práticas religiosas no código penal brasileiro de 1890. 50
Esse arranjo legal só foi revertido em 1940, após a criação de um novo código penal no contexto das reformas constitucionais getulistas. 51 Nascimento relata a repressão policial e o franco vandalismo a que eram submetidos os templos de religiões afro-brasileiras: “seus terreiros (templos) localizados no interior das matas ou disfarçados nas encostas de morros distantes, das frequentes invasões da polícia, tinham confiscados esculturas rituais, objetos do culto, vestimentas litúrgicas, assim como eram encarcerados sacerdotes, sacerdotisas e praticantes do culto”. 52 No contemporâneo, a espiritualidade afro-brasileira ainda sofre perse- guições fundadas no racismo e na intolerância religiosa. Nas músicas analisadas, podemos observar o discurso de contestação a essa realidade: “[Podem] atacar nossas religiões, acusar de feitiços / Menosprezar a nossa contribuição na cultura brasileira / Mas não podem arrancar o orgulho de nossa pele negra”. 53 A música do rapper BK aponta no sentido de uma positivação desse estereótipo: “E hoje nós que somos bruxos, feiticeiras”. 54
As estratégias estatais de coerção e desvalorização dos traços étnico-culturais negros culminaram na fragmentação da identidade negra e na depreciação dessa ascendência racial, deixando marcas que são percebidas no contemporâneo das relações raciais. 55 O rapper Emicida insere esse movimento de deslegitimação como um dos elementos do aviltamento da população negra: “Primeiro sequestra eles / Rouba eles / Mente sobre eles / Nega o Deus deles / Ofende, separa eles / Se algum sonho ousar correr, cê pára ele”. 56
Ainda assim, a cultura africana resistiu ao tráfico negreiro e à escravidão, de forma a representar ela mesma a resistência. A partir dessa perspectiva, é possível compreender que seus símbolos sejam incorporados ao protesto enunciado no rap contemporâneo. Nas músicas analisadas, as referências à religiosidade afro-brasileira são abundantes, sobretudo através da menção aos orixás. É importante observar que não se trata de uma mera menção à história da religião da população negra, como quem aponta para uma peça de museu: a religião afro-brasileira é uma religião viva e, como tal, adapta-se continuamente às necessidades e às demandas de seus seguidores. 57 Neste trecho, Thiago Elniño aborda a relação entre religiosidade e autoestima da população negra: “Conversando com Exu sobre eternidade / Um dia ele disse que todo menino preto é um deus, então entenda / Que autoestima é tipo fé, uma prova é tipo uma oferenda”. 58
Na contramão dos projetos racializados, o rap propõe a revalori- zação da cultura negra e rompe com as barragens impostas pelo racismo estrutural brasileiro: “Ontem eu servi um padê pra Exu / Pedi pro Orixá abrir os meus caminhos / Que Omulu me dê saúde pra não ser / Um Dom Quixote negro a enfrentar moinhos”; 59 “Nossa fé é imensurável e trans- forma dor em motivação”. 60 Nos versos de Thiago Elniño, observa-se o elemento religioso negro como organizador da força necessária para se vencer os obstáculos impostos pelo racismo. Dessa maneira, o rap não só serve como dispositivo de positivação dos traços culturais afro-brasileiros, mas também relaciona a devoção aos orixás à motivação para superar as contradições impostas pelo racismo estrutural.
É importante observar que os usos sociopolíticos das religiões afro-brasileiras não são inerentemente revolucionários e nem sempre correspondem a um movimento de resistência cultural. Como apontaram Amaral e Silva, o projeto de unificação nacional através da constituição de uma “cultura brasileira”, por volta dos anos 1930, incluiu a elevação de alguns elementos culturais afro-brasileiros ao status de valores nacionais. 61 A política identitária do rap, que ganhou forma nos anos 1990 com os Racionais e que de certa forma permanece viva no rap contempo- râneo, segue em uma direção contrária, expressando o descontentamento dos grupos marginalizados face ao “sistema”. 62 No rap contemporâneo, a religiosidade afro-brasileira surge reafricanizada e dessincretizada, o que, neste contexto, tem um sentido não só cultural e religioso, mas também político e ideológico, uma vez que reafirma o lugar do negro na sociedade brasileira. 63 No excerto a seguir, são mencionados vários orixás, evocados na qualidade de auxiliares nas múltiplas tarefas ligadas ao projeto de emancipação negra:
Que Iansã nos faça gira da prosperidade / Pra cada moleque preto nos canto dessa cidade / [….] / Certeiro como a flecha de Oxóssi, eu vim pela posse / Do povo preto, de tudo aquilo que é seu / Sentiu que o céu estremeceu / Trovão, machado de Xangô (a justiça chegou) / E pra vocês, a lâmina de Ogum, e aos pretos, um por um / Conforto ao colo de Oxum e respeito comum / E que busquemos a paz de Oxalá pela rota de Iemanjá / Retorno ao que nos foi tomado / E que Nanã nos receba de volta no solo sagrado. 64
No trecho apresentado acima, logo após a menção a Xangô, o orixá da justiça, há uma referência a Ogum, orixá associado à guerra. Bastide informa que, na época da escravidão, os negros escravizados fizeram de Ogum o patrono de sua vingança: “contra o sincretismo católico que o identificava a São Jorge, a esse São Jorge louro como o sol, cujo cavalo branco pisava um demônio preto, preservaram o Ogum de seus antepas- sados, armado apenas com a faca dos assassinos”. 65 O rapper parece atualizar esse atributo do orixá quando invoca, contra seus algozes, a lâmina de Ogum. Essa noção é expressa de forma particularmente nítida no trecho seguinte, no qual são mencionados, novamente, Ogum e Xangô, sugerindo que a justiça social só será conquistada através de uma postura combativa:
Meu pai Ogum mandou chamar / Eu vim, eu vim de lá / Ele me ensinou coisas sobre amor / E que na paz só se chega com a guerra / E que toda bonança do trono do rei Xangô / Só vai conhecer quem for justo na Terra. 66
Como aponta Bastide, as divindades africanas, ao serem trazidas para o Brasil colonial, são imersas, assim como seus fiéis, em um contexto radicalmente diferente daquele vivenciado em sua terra de origem. Assim, de acordo com o autor, serão selecionadas as divindades mais aptas a interceder em prol da causa dos negros. Nesse sentido, foram valorizados particularmente Exu, Xangô, Iansã e Ogum, que sofreram adaptações em seus atributos e passaram a se ocupar sobretudo da regência da ordem social e do conflito racial que se instaura. 67
A dessincretização e a valorização de elementos tradicionais africanos e afro-brasileiros são características distintivas do rap brasileiro contemporâneo. 68 A título de comparação, os Racionais MC’s lançaram, no álbum Sobrevivendo ao inferno (1997), uma versão da música “Jorge da Capadócia”, que consiste em uma espécie de oração que pede proteção contra os assédios dos inimigos. Um de seus versos diz “pois eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge”. O rapper Coruja Bc1 faz uma referência a essa música, porém, substituindo o santo católico pelo orixá correspondente: “Tô protegido com as roupas e as armas de Ogum”. 69 No trecho seguinte, temos outro interessante exemplo de releitura de uma referência religiosa. É feita uma menção ao samba interpretado por Leandro Sapucahy, intitulado “Nunca foi sorte, sempre foi Deus”. Na música de Emicida, no entanto, Deus é substituído por Exu: “Só quem driblou a morte pela morte saca / Que nunca foi sorte, sempre foi Exu”. 70
De acordo com Prandi, Exu é o responsável pela comunicação entre os humanos e os outros orixás, estando, portanto, sempre presente nos cultos. Ainda segundo o autor, “na época dos primeiros contatos de missionários cristãos com os iorubás na África, Exu foi grosseiramente identificado pelos europeus com o diabo e ele carrega esse fardo até os dias de hoje”. 71 É significativo que um orixá errônea e pejorativamente associado ao mal pelos cristãos seja posto em paralelo a Deus.
Em síntese, compreende-se que aspectos da religiosidade afro-brasileira têm sido consistentemente utilizados como ferramentas simbólicas de resistência frente a ideologias racistas, de luta contra a injustiça social e de fortalecimento da identidade racial negra. Assim, o rap alinha-se à proposta de Fernandes, que entende que a construção de uma sociedade efetivamente multirracial e democrática depende de que os negros reformulem seus valores e atitudes em relação ao mundo cultural em que vivemos, particularmente no que diz respeito às culturas ancestrais afro-brasileiras e africanas. 72 O resgate da religião afro-brasileira tem um papel central na promoção do senso de autoestima e de identidade negra, servindo inclusive como um dispositivo de transformação social.
“Busca sua raiz”: a (re)escrita de uma história negra
Neste tema, foram agrupados os extratos que tematizam a história e as raízes da população negra. O processo histórico é entendido, neste contexto, como um sistema aberto a reinterpretações e cujos efeitos podem ser sentidos na sociedade contemporânea. A revisitação de temas histó- ricos é, também, uma estratégia que objetiva a promoção da autoestima e da consciência racial da população negra, de forma que as violências da diáspora, da escravidão e do racismo são apresentadas a partir da perspectiva de interpretes negros. O rap contemporâneo propõe, assim, a recolocação do negro na posição de sujeito da historicidade, capaz de narrar sua própria história.
Na perspectiva apresentada pelas músicas analisadas, a história dos negros não se inicia na escravidão, e sim na África. O tema da saudade e da nostalgia não figura aqui senão na forma de um saudosismo de África, ou seja, de uma época mítica anterior à escravidão, sugerindo que a história dos negros no Brasil não é um objeto para a saudade. A música de Thiago Elniño aponta nesse sentido ao afirmar que a África, e não o Brasil, é o verdadeiro lar da população negra:
O mais próximo de casa que eu estive foi o mar / Boto os meus pés na água e me lanço a pensar / Como é a vida aqui, como é a vida lá / Sinto que eu não sou daqui, pra casa eu quero voltar / […] / Eu me sinto a um oceano de casa / É como se faltasse um pedaço meu. 73
A história da escravidão é retratada a partir do ponto de vista dos negros escravizados. No trecho a seguir, o sofrimento do escravo é repre- sentado pelo banzo: “É sobre o toque não mais machucar / E a dor do banzo virar cicatriz”. 74 Segundo Bastide, o banzo foi uma espécie de adoeci- mento espiritual que acometeu os negros que não puderam se adaptar à organização ecológica da colônia. Esses sujeitos, então, definhavam e acabavam por morrer. 75 No contexto do escravismo, o banzo adquire uma significação colateral de resistência: se o escravo era considerado uma posse do senhor, sua morte representava um prejuízo. Algumas estratégias tinham uma conotação de resistência mais explícita, embora muitas vezes representassem perdas enormes para os escravos. Foi o caso dos abortos praticados por mulheres escravizadas, como representado no excerto a seguir: “A colônia produziu muito mais que cativos / Fez heroínas que pra não gerar escravos matavam os filhos”. 76 A vida reprodutiva dos escravos era um dos campos de incidência do poder senhorial:
O branco estimulava a procriação de seus escravos: a mulher que tinha posto no mundo 10 crianças era libertada, posteriormente o número foi diminuído para 7. Mas sabemos que, não obstante essas vantagens, a natalidade foi bastante baixa; era em parte devida às práticas anticon- cepcionais e mesmo aos abortos voluntários, como forma de resistência. 77
Na canção, o aborto é entendido como uma forma de heroísmo. Além do aborto, os negros e negras escravizados adotaram uma série de atos de resistência à barbárie a que eram submetidos, desde a ação individual, como o suicídio e as fugas, até as mobilizações coletivas, como as revoltas e o quilombismo. 78
Segundo Fernandes, “a camada senhorial encarava o escravo como uma coisa, um ‘fôlego vivo’, ou seja, um animal e uma mercado- ria”. 79 O trecho a seguir introduz a questão da vergonha e da humilhação a que a situação de escravidão submetia os negros: “Pra superação, tanta humilhação / Atravessar o oceano para trampar na sua plantação / Café, algodão, cana, escravidão”. 80 Veremos adiante que essa humilhação produziu marcas profundas na subjetividade negra, que podem ser sentidas ainda no contemporâneo. Ainda assim, as músicas analisadas afirmam uma atitude de superação dessas marcas, sublinhando os aspectos positivos da identidade negra: “Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes / Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes / É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nós sumir”. 81 Ou seja, o crime fundamental contra os negros seria relegá-los à posição subjetiva de vítimas.
O rapper Eduardo Taddeo sugere que o apagamento seletivo de certos aspectos da história do negro no Brasil está diretamente relacionado à situação contemporânea, ao afirmar que “Quando levantes e abolicio- nistas não são estudados / Só sobra o ABC da Mauser 82 pra ser decorado”. 83 O apagamento dos negros enquanto atores sociais na história do Brasil é denunciado também por Emicida: “Mas mano, sem identidade somos objeto da História / Que endeusa ‘herói’ e forja, esconde os pretos na história / Apropriação a eras, desses tá na repleto na história”. 84
Apesar das atrocidades cometidas contra a população negra durante os mais de trezentos anos de regime escravocrata, as músicas analisadas preocupam-se em enfatizar a resiliência e a resistência dos negros face às tentativas de aviltamento:
ores e espinhos sem flores, desde os ancestrais / Horrores de senhores que atrasaram nossa história / O legado é mais / Jamais mancharam nossa memória / Navios negreiros e apelidos dados pelo escravizador / Falharam na missão de me dar complexo de inferior / Não sou a subal- terna que o senhorio crê que construiu / Meu lugar não é nos calvários do Brasil / Fique de pé pelos que no mar foram jogados / Pelos corpos que nos pelourinhos foram descarnados. 85
Os acontecimentos do pós-abolição também são objeto de crítica nas músicas analisadas. O fim do regime escravocrata não significou imediatamente uma modificação da situação subjetiva dos negros, muito menos do aspecto racista do pensamento social brasi- leiro. Os ex-escravos foram privados das condições econômicas, sociais, culturais e morais para reivindicar o estatuto de cidadãos. 86 Nas palavras de Thiago Elniño, “Alforriaram o nosso corpo, mas deixaram as mentes na prisão”. 87 Assim, entende-se que o rap propõe uma articulação entre a emancipação política e cultural e a libertação da subjetividade negra, o que seria o primeiro passo para a transformação social.
Debruçando-se sobre o processo de transição do regime escra- vista para a sociedade de classes, Fernandes pondera que a Lei Áurea foi meramente um ato de romantismo político, pois não garantiu aos ex-escravos condições mínimas de subsistência e de dignidade humana, de forma que o trabalho livre foi entendido por eles como um simples prolongamento das humilhações impostas pelo trabalho forçado. 88 As músicas analisadas procuram contestar a importância dessa lei, desmascarando o mito da benevolência da classe senhorial: “Se um dia eu tiver que me alistar no tráfico do morro / É porque a Lei Áurea não passa de um texto morto”. 89 Através desse excerto, compreende-se que a história reverbera e produz efeitos reais no cotidiano da população negra, abrindo certas possibilidades e proibindo outras. Outro comen- tário relacionado à negligência e à falta de políticas de indenização e assistência aos negros libertos é feito por Eduardo Taddeo: “Escraviza o boy por quatrocentos anos, depois liberta / Sem reparação financeira, cultural, pedaço de terra / Pra ver se ele não acaba num raio / Dando quarenta estocadas no agente penitenciário”. 90
Há um explícito convite, nos raps analisados, para que os negros se reapropriem de sua identidade racial, abandonando conceitos depreciativos a respeito da população negra. No trecho a seguir, esse chamado é feito pela via da busca das raízes: “Busca sua raiz (ou morra pela raiz) / Irmão, me diz qual é o receio / De saber de onde tu veio / De saber quem você é / Irmão, fizeram tu achar feio / Você vir de onde tu veio”. 91
Reinterpretar a história do negro no pós-abolição implica inevi- tavelmente posicionar-se em relação ao mito da democracia racial. De acordo com Nascimento,
Devemos compreender “democracia racial” como significando a metáfora perfeita para designar o racismo estilo brasileiro: não tão óbvio como o racismo dos Estados Unidos e nem legalizado como o apartheid da África do Sul, mas eficazmente institucionalizado nos níveis oficiais de governo assim como difuso no tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade do país. 92
A democracia racial significou para o Brasil o desenvolvimento de uma ideologia racializada própria, que teve como efeitos o encobrimento do racismo e o enfraquecimento da identidade racial negra. O projeto político-demográfico da miscigenação, que tinha como mote a instauração da igualdade democrática, na prática serviu para diferenciar, hierarquizar e inferiorizar os sujeitos não brancos. Para fugir dessa realidade polarizada, os sujeitos negros tentam encobrir sua condição racial, utilizando-se de ideologias escamoteadoras e abrindo brechas para o não reconhecimento racial. 93 O verso de Coruja Bc1 evidencia esse processo de perda da identidade: “E eu nunca me senti porra nenhuma normal / Ferida fruto de um relacionamento birracial”. 94
Nascimento aponta que o projeto de miscigenação apoia-se diretamente na exploração sexual das mulheres negras, implicando a ocultação dos crimes sexuais que ocorreram durante a história colonial brasileira e o incremento da sexualização dos corpos negros no meio social. 95 Inúmeros indícios desse processo podem ser observados no contemporâneo, do turismo sexual à hipersexualização dos corpos negros em propagandas e em manifestações culturais. No carnaval, por exemplo, a mulher negra é apresentada como “mulata” e valorizada como um “produto de exportação”. 96 O rap brasileiro contemporâneo posiciona-se em relação a esses processos desenvolvidos e normalizados da racialização brasileira em seus versos: “Não deixe que te façam pensar que o nosso papel na pátria / É atrair gringo turista interpretando mulata”. 97 Os versos analisados também denunciam o lugar degradante reservado aos corpos negros, frequentes vítimas de violências sexuais:
Bunda africana, esses peitos / Eu acabei com o preconceito / Fui pra cama com um preto / Ele tem cara de mau / Ela tem sorriso branco / Ela é da cor do pecado / Que me perdoem os santos / Mas olhe o tamanho da roupa / Ela tava me tentando. 98
Os versos acima retratam a forma sexualizada pela qual os corpos negros são representados no meio social. Essa representação foi construída meticulosamente ao longo da história do Brasil e estende seus efeitos no contemporâneo das relações capitalistas. O rapper expõe com crueza o discurso perverso da democracia racial: ao justapor sexo e raça, o mito afirma que as relações sexuais interraciais resultam naturalmente no fim do preconceito racial.
Os raps analisados parecem almejar uma modificação profunda no pensamento social brasileiro. Em consonância com o movimento de revisão histórica e de questionamento do papel de certos “heróis” da colonização, BK convoca à reconsideração sobre as figuras históricas que são homenageadas nos espaços públicos: “Vamo derrubar o nome dessas ruas, dessas estátuas / Botar herói de verdade nessas praças”. 99 Aqui, o discurso do rap parece novamente alinhado à agenda de reivindi- cações dos movimentos sociais negros. Por exemplo, há um movimento chamado “Galeria de Racistas”, com o objetivo de expor os monumentos públicos brasileiros que homenageiam figuras históricas que apoiaram a escravidão e outras práticas racistas. 100 Há, também, o Projeto de Lei nº 5.923/2019, que propõe a “proibição de homenagens a proprietários de escravos, traficantes de escravos, pensadores que defenderam e legitimaram a escravidão em monumentos públicos, estátuas, totens, praças e bustos ou qualquer outro tipo de monumento”. 101
Neste tema, foi possível compreender o compromisso do rap contemporâneo com a dimensão histórica da situação racial brasileira. A história é tomada não como um dado cristalizado do passado, mas como um elemento vivo que produz efeitos no contemporâneo, sujeito a releituras e reinterpretações. Observou-se, também, uma preocupação com o desmascaramento do mito da democracia racial, que é uma pauta permanente dos movimentos sociais negros. 102 Como aponta Nascimento, a democracia racial é uma característica transversal da realidade sócio-político-cultural do Brasil. 103 A análise das dimensões históricas presentes no discurso do rap enfatiza a presença consistente de estratégias de oposição a esse discurso. Se a história oficial propõe uma versão pacífica do dilema racial, o discurso presente nas músicas analisadas oferece uma versão conflitiva e pontuada pela resistência dos negros ao aviltamento a que foram e são submetidos.
“Eu quero ser maior que essas muralhas que eles construíram ao meu redor”: segregação, violência e resistência negra na sociedade contemporânea
60% dos jovens de periferia
Sem antecedentes criminais já sofreram violência policial
A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras
Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros
A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo
Racionais MC’s – “Capítulo 4 versículo 3”
A realidade social da população negra no Brasil, retratada pelos Racionais MC’s ao longo dos anos 1990, pouco se alterou até o contemporâneo: as expressões do racismo relacionadas à discriminação, à coerção e à violência são ainda sentidas por boa parte da população preta periférica. Neste terceiro e último tema, analisaremos o discurso racial do rap a partir de sua inserção na realidade social concreta, dando ênfase aos aspectos socioespaciais e institucionais relacionados à questão racial brasileira. Pode-se dizer que o rap tem uma vocação natural para a denúncia de fenômenos sociais, uma vez que há um consenso, entre os rappers e seus ouvintes, de que o rap trata da “realidade”, entendida como um arranjo complexo de fatores raciais, socioespaciais, de gênero, entre outros. 104 Os rappers, enquanto narradores de sua condição social e subjetiva, estão na posição de tomar as vivências e experiências da população negra como matéria prima para a composição das músicas: “Bebê eu não canto rap, eu canto vida”. 105
Enquanto elemento constituinte das relações sociais, o racismo garante a reprodução das desigualdades e da discriminação racial, expressando-se não só nas relações institucionais, mas também nas microrrelações sociais. 106 Situações cotidianas de racismo são exaustiva- mente narradas por diversos rappers investigados neste artigo, como no excerto a seguir: “Ouvindo desde novo / ‘Cê já é preto!’ / Não sai desse jeito / Se não eles te olha torto”. 107 Episódios de discriminação e precon- ceito não só demonstram a reprodução do racismo no contemporâneo, mas também sua complexificação na sociedade brasileira. Hasenbalg, ao estudar a integração precária dos negros e negras na estrutura social, observa o imobilismo social desse grupo étnico ao longo da história, assim como constata a existência de um código racial que subordina negros e negras aos seus “lugares apropriados” na estrutura capitalista. O autor ressalta que os projetos que ampliaram as desigualdades entre brancos e não brancos são peças fundamentais do racismo contemporâneo, garantindo a reprodução do “lugar do negro” na sociedade. 108 Este arranjo é observado também pelos rappers: “Chegar aqui de onde eu vim / É desafiar a lei da gravidade / Pobre morre ou é preso nessa idade”. 109
Pode-se considerar que um dos aspectos mais significativos da violência contra os negros no Brasil é a alocação dessa população nas periferias das grandes cidades, o que caracteriza um evidente processo de segregação socioespacial. Soma-se a isso a proliferação de favelas, cortiços e barracos, processo que se iniciou com a expansão da urbanização e da indústria de produção após os anos 1930. As favelas constituem-se como um dos principais cercamentos sociais de nosso país, caracterizadas pelo acesso limitado à infraestrutura urbana e aos serviços públicos básicos. 110 Elas são o cenário preferencial das narra- tivas do rap, sendo tematizadas frequentemente nas músicas analisadas. O rapper Doug Now, no excerto a seguir, reafirma sua posição enquanto narrador das “histórias do morro”, ou seja, da periferia e, por extensão, da população negra marginalizada: “Mas parece que eu não morro / Parece que pouparam minha vida pra contar história de morro / De rua e de gorro à noite / Madruga e seus açoites”. 111
A coerção estrutural sobre a população negra é legitimada pela ausência de medidas reparatórias no pós-abolição e se soma à implemen- tação de projetos de violência e criminalização da pobreza, às políticas de genocídio e ao encobrimento das desigualdades raciais. 112 Nina Rodrigues, ao escrever diversas obras sobre o “problema do negro” no Brasil no final do século XIX, ajuda a reforçar no pensamento social diversos essencia- lismos sobre degeneração racial, raça e criminalidade, conduzindo para o campo da biologia e da psicologia um problema eminentemente social: “Estas pessoas estão constantemente envolvidas com assaltos à mão armada onde se revela todos os sentimentos e instintos bárbaros ainda mal contidos de seus ancestrais”. 113
Na realidade brasileira contemporânea, o movimento de crimi- nalização dos negros e a violência institucional praticada nas periferias das cidades revelam que o pensamento social e as práticas de coerção relacionadas a esse grupo seguem essencialmente as mesmas. Nas músicas analisadas, os rappers descrevem minuciosamente o cotidiano violento e injusto da favela, como no excerto a seguir: “Favela ainda vive, mediante ao crime / Onde se nasce menor sem pai / Se for morto aonde cai? Se crescer pra onde vai?”. 114 Nesses versos, é narrada a dificuldade de se construir alternativas diante da violenta repressão da pobreza e ao julgamento de que toda favela é criminosa, que legitima as práticas de violência institucional. As questões postas pelo rapper apontam para uma quase impossível alternativa de saída desta situação:
Vai além da visão, sair de casa e bater de frente com o caveirão / Com um .762 apontado na minha cabeça / O cana me revistando e cheirando minha mão, não / Papo de realidade, vários não chegaram na minha idade / Não dá pra acreditar que vai mudar / Se trocar o nome de favela pra comunidade. 115
A condição de violentas revistas, a desumanização das operações policiais nas periferias e as chacinas que ocorrem nas favelas mostram o lado obscuro da intervenção policial nos espaços reservados a negros e negras. Emicida apresenta de maneira muito precisa a natureza das intervenções policiais violentas, estabelecendo um paralelo entre a favela e as senzalas: “E os camburão, 116 o que são? / Negreiros a retraficar / Favela ainda é senzala, Jão / Bomba relógio prestes a estourar”. 117 Assim, o rapper sugere que a situação do negro no Brasil permaneceu estruturalmente a mesma ao longo dos séculos. Além do comentário socioespacial sobre a condição de vida dos negros no contemporâneo, esse excerto introduz, com a menção ao camburão, a questão da institucionalização da população negra através de seu encarceramento sistemático e desproporcional. Em um sentido mais amplo, apresenta-se o tema do racismo e da violência, praticada sobretudo pelo Estado e por seus representantes. A violência e o medo por ela suscitado são retratados no extrato a seguir:
80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo / Quem disparou usava farda (mais uma vez) / Quem te acusou nem lá num tava (bando de espírito de porco) / Por que um corpo preto morto / É tipo os hits das parada / Todo mundo vê mas essa porra não diz nada / […] / Um primeiro salário / Duas fardas policiais / Três no banco traseiro da cor dos quatro Racionais / Cinco vida interrompida / Moleques de ouro e bronze / Tiros, e tiros, e tiros / O menino levou cento e onze. 118
Aqui, o rapper também alude ao episódio que ficou conhecido como “Chacina de Costa Barros”, no qual cinco jovens negros foram assas- sinados por policiais militares na Zona Norte do Rio de Janeiro em 2015. As composições analisadas denunciam a existência de uma guerra que tem como objetivo a aniquilação da população negra: “Mas num enredo genocida / A guerra vem como herança / […] / A guerra tem como alvo pardos e retintos / Pro meu povo ser extinto”. 119 A temática da guerra é elaborada em diversas músicas analisadas, explicitando a dura realidade vivida pelas comunidades não brancas:
Deus, nunca vi finalidade dessa guerra burra que rola no morro / A nossa revolta você só vai entender / Quando uma bala perdida simplesmente achar você / Me perguntaram um dia o quê que eu acho da UPP 120 / A maior covardia que o governo foi fazer/ Só me diz pra quê? Melhorou o quê? / Mudou o quê? Quero saber/ Tem alguém aê pra me responder? Será que ninguém vê? / Pelo amor de Deus, mais quantos vão morrer?. 121
No verso acima, o rapper endereça inúmeras perguntas ao inter- locutor, ao relatar o clima de violência contra a população periférica. Trata-se, segundo ele, de um cenário de guerra, caracterizado por balas perdidas, Unidades de Polícia Pacificadora e um número crescente de mortos. Mbembe sinaliza a existência de zonas de territorialização marcadas pela violência, pela classificação e hierarquização de pessoas e pelo uso deliberado de armas letais. Podemos chamar esses territórios de zonas de guerra, onde a intervenção do Estado organiza quem vive e quem morre, reproduzindo a biopolítica do poder. 122 Magalhães, ao analisar a distribuição da violência em periferias urbanas do Rio de Janeiro, afirma que “a guerra se transformou no modo mesmo de governar certas populações”. 123 O controle da violência, da letalidade e do clima de terror é observado em diversas letras do rap contemporâneo.
Nos empurram todo dia goela a abaixo / Ódio, medo, desespero e incentivo à violência / Dizem que somos bandidos / Mas quem mata usa farda e exala despreparo e truculência / Cada beco da cidade guarda um pouco da guerra / Com projéteis que acerta, com projéteis que erra / Quem é o inimigo? Quem é você? / Nessa guerra sem motivos e sem vencedor / Quem é o inimigo? Quem é você? / A bala perdida acha o outro sofredor / […] / Nós já nascemos preparados pra morrer […] PM aplica pena de morte com aval do Estado / Quem tá certo? Quem tá errado? / Só sei que o alvejado é sempre o favelado / Quantos irmãos tombaram cedo demais. 124
No excerto acima, o agente que organiza os processos de violência e garante a manutenção do estado de guerra é representado pela imagem da polícia. De acordo com o Anuário Brasileiro da Segurança Pública, foram registradas 6.375 mortes por intervenções policiais em 2019, das quais 79% foram de pessoas pretas. 125 Os números revelam a permanente guerra contra estratos específicos da população nacional. As operações realizadas a mando do Estado revelam a estratégia adotada da criminalização da pobreza e do genocídio do negro brasileiro, explicitando claramente quem morre e quem mata. 126
Essa política de violência e morte está alicerçada nas construções racializadas do racismo estrutural de nossa sociedade. 127 A política do medo organiza quem pode morrer; voltando aos versos do rapper Funkeiro, “somos o monstro que vocês criaram, seu pesadelo”, evidencia-se a mobilização das construções ideológicas que interpelam os corpos negros periféricos desde o colonialismo. Trata-se da criação de um não-corpo destinado aos códigos bestiais, à desumanização e à reprodução da política do medo com a crimi- nalização inerente dessas pessoas. Os códigos amplamente difundidos no pensamento social criam a base dessa estrutura racializada e o substrato da violência institucional, o que Mbembe chama de industrialização da morte e de necropolítica promovida pelo capital, que garante o uso indiscriminado da força, do terror, do medo, da violência e da morte como formas legitima- doras dos ordenamentos Estatais nas zonas de guerra. 128
Não apenas pessoas anônimas são vítimas dessa política de extermínio, já que lideranças do movimento de resistência negro também figuram entre os mortos: “Malcolm X, eu não tô bem com isso / Mataram Marielle e ninguém sabe o motivo / Na real, todos sabemos o motivo / É o mesmo de nenhum dos meus heróis continuar vivo”. 129 Nesse extrato, BK denuncia a sistemática perseguição e execução de líderes negros que se levantaram contra a opressão racial, aludindo em particular a Marielle Franco, socióloga e política brasi- leira assassinada em 2018 em circunstâncias que até o momento não foram elucidadas. O rapper também faz referência a Malcolm X, liderança negra dos Estados Unidos, assassinado enquanto proferia um discurso em 1965. A menção a Malcolm X sugere que a luta antirracista é global e que o protesto negro brasileiro se insere em um contexto de luta internacional.
Ao mesmo tempo em que capturam elementos do concreto, referindo-se ao estado de guerra e à constante ameaça do direito à vida, os versos desenvolvidos pelos rappers evocam possibilidades de superação desse cenário. Nos extratos a seguir, a resistência negra é compreendida como uma atitude coletiva e organizada: “Combinaram de nos matar / Combinamos de ficar vivos”; 130 “Mano preto, entenda que estamos em guerra / E essa porra, mano, um dia se encerra quando nosso povo se organizar”. 131
Dentre as estratégias de resistência apontadas nas canções, figura ostensivamente a utilização do próprio rap, que é tomado refle- xivamente como objeto de análise nas letras. Através do rap, opera-se a revalorização e ressignificação da identidade racial, promovendo o incremento da autoestima e do senso de pertencimento entre a população negra. 132 Parece haver um acordo implícito de que o rap não é meramente um estilo musical, mas um projeto político. Thiago Elniño compreende esse projeto como uma “missão”, que tem um objetivo mais ou menos explícito: “Por isso eu faço mais que som / Trato como missão o que chamam de dom / Espalhando a ideia de que todo preto / Deve ter um lugar para chamar de seu”. 133 Ou seja, o que está em jogo é a afirmação de que os negros devem ter um lugar próprio no sistema social e cultural do Brasil, ao contrário do que afirmam as políticas de embranquecimento e de silen- ciamento da população negra. No sentido de considerar os rappers como agentes da transformação social e subjetiva, Emicida faz uma convocação: “Vê na rua o que as rima fizeram”. 134 Em algumas passagens, a escrita e a música ocupam simbolicamente a função de armas, como em Djonga: “Os irmão me ofereceram arma / Ofereci um fone”; 135 e Coruja Bc1: “Minha bic vale um tiro”. 136 Scotton e Lages, ao analisarem composições dos rappers Emicida e Criolo, concluíram que, em suas músicas, a voz e a música figuram como as armas à disposição dos negros para a transformação social. 137 O rap surge, mais explicitamente, enquanto uma possibilidade de salvação: “A riqueza dava medo / Aí veio o Hip Hop e salvou o negro”. 138
Os versos de Djonga também discutem a questão do sentindo de ser negro, dentro da valorização de sua ascendência e do orgulho racial, forjando um novo sujeito que supera os códigos racializados de nossa sociedade: “Deixa eu devolver o orgulho do gueto / E dar outro sentido pra frase ‘tinha que ser preto”. 139 Da crítica social à emancipação, o rap contemporâneo participa da formação de sujeitos que foram interpelados pelo racismo e pelas desigualdades, revelando o árduo trabalho de superar os cercamentos e limites impostos pela história social do Brasil: “Eu quero ser maior que essas muralhas / Que eles construíram ao meu redor”. 140
O rap e a cultura Hip Hop no contemporâneo da realidade social brasileira não se inserem apenas como simples relatos das contradições desenvolvidas pelo racismo, mas ajudam no processo de reconhecimento de uma identidade perdida e atacada, na reprodução do conhecimento social, no processo que incentiva mudanças internas na sociedade. Portanto, inscrevem-se como ações contra-hegemônicas, tal como entendidas por Gramsci. De acordo com o autor, trata-se de ações culturais inseridas na base social, capazes de potencializar práticas diretamente relacionadas aos interesses políticos contrários à hegemonia social. É uma nova forma política que se manifesta a partir da reprodução de meios culturais que tenham como base de seu repertório a denúncia das mazelas e o anseio por reverter as condições de marginalização, exclusão e violência impostas pelas normativas sociais. 141
Neste tema, foi possível compreender a interação entre o rap e a realidade concreta na qual ele se insere, enfatizando o papel da favela como espaço de vida da população negra. Nas músicas analisadas, o Estado é retratado como um importante agente de opressão e violência racial, operacionalizadas através da ação, como no caso das intervenções policiais violentas; e também através da omissão, que pode ser observada na ausência de políticas de reparação que garantam condições dignas de vida à população periférica. Na medida em que o racismo se constitui enquanto um dado estrutural de nossa sociedade, suas manifestações extrapolam o campo institucional, podendo ser observadas também no cotidiano da população negra. Diante dessa realidade, o rap adota uma postura combativa, que tem como ferramentas de luta o fortalecimento da identidade racial negra e a promoção do senso de pertencimento a um grupo étnico que tem demandas mais ou menos unificadas, além de expressar a potencialidade do rap enquanto ferramenta de resistência da população negra e periférica.
Conclusão
O objetivo deste trabalho foi investigar como a questão racial é abordada no rap brasileiro contemporâneo. A partir da análise de músicas repre- sentativas desse gênero, foi possível compreender que o debate racial é abordado de maneira complexa, a partir de suas dimensões culturais, históricas e sociais. No campo cultural, as músicas analisadas parecem privilegiar a utilização da religiosidade enquanto elemento de resistência negra e promoção de consciência racial. Esse objetivo é operacionalizado através da resistência contra a depreciação da cultura negra e de um processo ativo de dessincretização dos elementos religiosos afro-brasileiros, o que os posiciona enquanto componentes legítimos da cultura brasileira. No campo histórico, percebe-se uma tentativa de subverter a importância do período escravocrata na história dos negros no Brasil. No discurso do rap, a denúncia do sofrimento e das violências perpetradas contra os escravos dividem espaço com os atos heroicos e os movimentos de resistência protagonizados por eles. Pontua-se a necessidade de uma revisão crítica da importância da Lei Áurea e do mito da democracia racial, bem como uma crítica à miscigenação e à hipersexualização dos corpos negros e uma revisão do papel dos “heróis da colonização”. Finalmente, os elementos discursivos que aludem à situação do negro no contemporâneo apresentam denúncias e críticas contundentes ao racismo, à segregação socioespacial e à violência institucional. A polícia e o Estado surgem como principais agentes dessa violência. Aqui, novamente, a denúncia da injustiça social é entrecortada pelas possibilidades de superação que se abrem aos negros, dando destaque à função do próprio rap como estratégia de resistência.
A partir da análise empreendida, fica evidente a articulação entre o discurso dos rappers e os discursos formulados por outras frentes de luta, como os intelectuais negros e os movimentos sociais negros. Tal articulação sugere que o debate racial, apesar de ser multifacetado e heterogêneo, tem algumas pautas e estratégias transversais. Outro ponto a ser observado é que o rap não apresenta meramente uma agenda de reivindicações e luta: ele efetivamente põe em ato tal luta. Em outras palavras o rap apresenta-se como um modelo e uma demonstração dos caminhos possível para o movimento social negro. Assim, o rap se consolida como uma estratégia de resistência cultural e de contra-hegemonia, alicerçado pela compreensão dos determinantes históricos, culturais, sociais e políticos que interpelam o negro no seio da estrutura capitalista. O rap funciona, ainda, como catalisador das demandas e dos anseios da população negra brasileira. Sua potencialidade deriva de sua situação enquanto um gênero musical de massas, mas que mantém uma postura combativa e propositiva a respeito da situação de aviltamento em que a população negra se encontra no Brasil.
Foi possível compreender que o discurso racial articulado pelo rap e por seus narradores não se resume à denúncia do preconceito racial, da depreciação do patrimônio cultural negro, da discriminação racial e dos limites impostos pela desigualdade. É possível reconhecer que, em paralelo a essa denúncia, organiza-se um nítido movimento de resis- tência à condição de subalternização social. Essa resistência se materializa principalmente através do reconhecimento racial, da promoção da autoestima negra e do reencontro com a cultura e com a história negra. O discurso do rap parece estar comprometido com a promoção de uma imagem positiva e combativa da população negra: para além da simples denúncia do racismo, os rappers propõem que os negros se reconheçam como agentes da luta antirracista.
Notas