ARTIGOS

O ORIENTE NO OLHAR DE CAMÕES: UMA VERDADE QUE CONVÉM *

THE EAST THROUGH CAMÕES’ EYES: A TRUTH THAT BEFITS

Luís André Nepomuceno
Universidade Federal de Viçosa luisandre.nepomuceno@gmail.com

O ORIENTE NO OLHAR DE CAMÕES: UMA VERDADE QUE CONVÉM *

Afro-Ásia, núm. 66, pp. 45-76, 2022

Universidade Federal da Bahia

Recepção: 20 Maio 2022

Aprovação: 24 Outubro 2022

Resumo: Leitores de Camões têm observado que, para compor a matéria histórica de seu poema Os Lusíadas , o poeta se apega a uma suposta “verdade” que teria lido nas crônicas e ouvido na tradição oral. Os retratos da África e da Ásia que ele concebeu seriam fruto desse anseio pela “verdade” histórica. O presente artigo propõe, contrariamente, que Camões registrou uma verdade conveniente, atestada pelos interesses da nobreza da casa de Avis, compondo um retrato heroico da missão de Vasco da Gama, ao mesmo tempo em que omitiu práticas desumanas de seu projeto colonialista. Conhecendo de perto o jugo e a escravização dos povos africanos, o poeta ajustou a imagem da África e da Ásia à da figura do antagonista, evidenciando seu povo como gente inculta e inimiga da fé. Esse apagamento da história esconde o anseio de dominação sobre essa gente que se viu colonizada e escravizada nos séculos posteriores.

Palavras chave: Orientalismo, poesia épica, colonialismo, renascimento português.

Abstract: Commentators of Camões have observed that, in seeking out historical material of his poem The Lusiads, the poet clung to a supposed “truth” gleaned from chronicles and in oral traditions. The portraits of Africa and Asia that he conceived are the result of his yearning for historical truth. This article proposes a contrary view, namely, that Camões recorded a convenient truth, favorable to the interests of the nobility of the house of Avis, in composing a heroic portrait of Vasco da Gama’s mission, while omitting its inhuman practices. Having been in close contact with the oppression and enslavement of African peoples, the poet adjusted the image of Africa and Asia to that of the antagonist, portraying its peoples as unlearned and as enemies of the faith. This historical erasure of history masks a desire for domination over people who in later centuries were colonized and enslaved.

Keywords: Orientalism, epic poetry, colonialism, portuguese renaissance.

Em abril de 1570, Luís Vaz de Camões, a bordo da nau Santa Clara , voltava a Portugal depois de dezessete anos passados no oriente vivendo a carreira das armas, uma das poucas oportunidades disponíveis para a pequena nobreza que buscava enriquecimento no Estado da Índia. 1 Escudeiro, vivendo das migalhas concedidas pela alta nobreza, e por certo, levando uma vida desregrada, o poeta vinha pobríssimo, completamente sem recursos, teria mesmo pedido esmolas em Moçambique, no caminho de retorno ao reino, cheio de dívidas, quando o cronista Diogo do Couto, entre outros amigos seus, o teria ajudado com as despesas para o restante da viagem. 2 A “grande peste” grassava em Lisboa no ano de 1570, e por isso, Camões, que trazia consigo da Índia dois preciosos manuscritos, o Parnaso , de poesias líricas, e a epopeia Os Lusíadas , teve de ficar em quarentena pelo menos um mês em Cascais, pois o porto de Lisboa vinha fechado por conta da epidemia. Ilustre desconhecido na própria terra, depois de tantos anos no exterior, Camões agora buscava um editor e um patrono. Terá conseguido os dois.

Difícil dizer se aquele imenso volume de poesia na bagagem de Camões fora escrito inteiramente em terras do oriente ou se, pelo menos no caso d’ Os Lusíadas , emendas importantes ainda seriam concluídas em Lisboa. De toda forma, é certo que o poema épico fora quase todo gestado em Goa, capital do Estado da Índia, onde o poeta dividia a vida entre as armas e as letras. Maria Vitalina de Matos nos informa de um ambiente intelectual português razoavelmente culto em Goa, com a biblioteca do Colégio de São Paulo, uma tipografia iniciada em 1557 e, por fim, muitos homens cultos, vice-reis, médicos, cronistas, escritores. 3 Era a atmosfera que Camões respirara.

Os Lusíadas , projeto ambicioso, revelador da espantosa erudição do poeta, narra a história da viagem inaugural de Vasco da Gama que, entre 1497 e 1499, margeou a costa atlântica da África (já conhecida e navegada dos portugueses) e descobriu o caminho marítimo para a Índia. Com seu poema de 8.816 versos, Camões levava a efeito a tão esperada epopeia das viagens marítimas portuguesas que muito humanista terá cobiçado escrever. A viagem de Gama, no entanto, não é apenas uma viagem: a lendária travessia dos dois oceanos serve como eixo em torno do qual gravita toda a história do reino português, desde os seus primórdios no século XII até as profecias de novas conquistas levadas a cabo no século XVI, a sugerir que o fechamento de todos os esforços na luta contra os mouros, na demarcação das terras e na consolidação política da casa de Avis pudesse ser concretizado na aventura da Índia.

Para compor a matéria histórica de seu poema, permeada e enriquecida pela ficção mitológica, Camões tinha em mãos as Décadas da Ásia , de João de Barros; a História do descobrimento e conquista da Índia , de Fernão Lopes de Castanheda; as Lendas da Índia , de Gaspar Correia (todas escritas na década de 1550); talvez a Crônica do felicíssimo rei D. Manuel , de Damião de Góis, embora sua primeira impressão, censurada e recolhida, só tenha ocorrido entre 1566-1567; e por fim, a cópia de um manuscrito que lhe teria chegado às mãos, o único roteiro da viagem de Gama, redigido por um escrivão da frota, provavelmente Álvaro Velho, documento valioso para se conhecer parte dos episódios da viagem. 4 Gago Coutinho sugere que, para além das crônicas, Camões teria se apoiado igualmente na tradição oral e na sua própria experiência de viajante e soldado destacado ao oriente. 5 De todas as fontes, o Roteiro é o mais “autêntico”, o mais original, aquele que provavelmente foi escrito ao calor da hora, sob a apreciação de uma testemunha ocular. 6

São famosos os versos em que o poeta nos afiança que sua narração poética, diferentemente dos poemas cavalheirescos de Ludovico Ariosto, ou de Matteo Maria Boiardo (autores dos ciclos cavaleirescos sobre Rolando), não é matéria ficcional, “vãs façanhas,/ fantásticas, fingidas, mentirosas”, 7 mas história autêntica que exalta os feitos de heróis verdadeiros. 8 Essa convicção parece um tanto obsessiva na consciência de Camões e espalha-se por outros trechos do poema, particularmente antes e depois da imensa narrativa que Vasco da Gama expõe ao rei de Melinde. Ao dar início à história de Portugal e de sua própria viagem até aquele ponto, por exemplo, o capitão da armada portuguesa sugere que “o que a tudo enfim me obriga/ é não poder mentir no que disser,/ porque de feitos tais, por mais que diga,/ mais me há-de ficar inda por dizer”, 9 e no desfecho de seu longo discurso, ele assegura que, diante das “fábulas vãs, tão bem sonhadas” [refere-se às histórias de Homero e de Virgílio], “a verdade que eu conto, nua e pura,/ vence toda grandíloqua escritura!”. 10 Leitores de Camões, a considerar a orientação do poeta, também têm reafirmado o chamado “voto de verdade” no poema, já que, para além da ficção mitológica, os atos dos homens “são reais, não míticos”, daí o fato de a verdade ser essencial. 11 Jorge Borges de Macedo diz que, no século XIX, um leitor d’ Os Lusíadas (Francisco Evaristo Leone) queixava-se de que a epopeia, sendo poesia, apresentava fidelidade excessiva à história. 12 Hélio Alves, por sua vez, embora admita que o poema seja uma espécie de “crônica rimada”, pondera que a fidelidade à história é um paradoxo, porque a invenção poética não distingue o poema de uma crônica como a de João de Barros. 13 Por fim, Luís de Albuquerque, intérprete atento das navegações portuguesas, embora julgue que Camões “se afaste o menos possível da verdade dos factos, ou daquilo que como tal lhe apresentavam os textos”, entende ao mesmo tempo que o poeta, mesmo com todo o escrupuloso respeito pelos acontecimentos registrados, trata a história de Portugal segundo a interpretação “oficialmente” válida no seu tempo. 14 E essa parece ser a chave para o entendimento da suposta verdade narrada por Camões.

O que é a interpretação “oficialmente” válida naquele tempo? É preciso considerar que Camões, tendo ou não consciência disso, não escreve uma suposta verdade histórica (ainda hoje um conceito sempre controverso), ou uma verdade que ele julgou isenta de imperfeições, mas uma “verdade” conveniente, escrita a partir dos relatos que lhe chegaram às mãos e aos ouvidos por meio das crônicas e da tradição oral, eventualmente contaminadas por mitos, erros, impropriedades e especialmente pelo ajustamento dos fatos aos interesses de uma nobreza que buscava aventurar-se nos mares do Índico em busca de honra, fama e enriquecimento. Em outros termos, é uma verdade que convém e que se acomoda à posição portuguesa de gente colonialista. Lembre-se que, desde a tomada de Ceuta, a casa de Avis dera início a uma tradição cronística, procurando legitimar seu poder político, por meio da retórica da aprovação divina, da evangelização, da exploração de novos mundos e, nos tempos de D. Manuel, por meio da divulgação de um imaginário messiânico. A crônica historiográfica portuguesa foi a propaganda política de Avis, à época em que a coroa tinha olhos postos nas bulas papais que lhe concederiam direitos sobre povos escravizados. E os cronistas estiveram conscientes do olhar sempre vigilante sobre o seu trabalho, como Gomes Eanes de Zurara, por exemplo, que precisou legitimar a escravidão negra com a beneficência das conversões. Damião de Góis foi preso pela Inquisição, acusado de protestantismo, mas a suspeita é de que sua Crônica de D. Manuel tenha desagradado setores da nobreza de seu tempo. Fernão Lopes de Castanheda foi censurado, teve seus livros recolhidos e precisou ajustar seu texto à publicidade messiânica, atribuindo desígnios providenciais a Vasco da Gama e apagando os traços da confusão diplomática entre os portugueses e o samorim, autoridade local de Calicute, na Índia. 15

Portanto, a “verdade” que chegou a Camões, a que ele, em tese,se apegaria com rigor de cronista, era uma espécie de verdade consentânea ao projeto colonialista português, já em estágio avançado, para não dizer em decadência, nos seus tempos de soldado no oriente. Para isso, o poeta precisou reelaborar certas particularidades da história que chegaram a ele e adequá-las à visão colonialista: era preciso sobretudo dar uma forma específica à África e à Índia como representações poéticas do antagonista que se opõe ao herói épico e como exemplo inconteste da gente colonizada, sempre inculta, torpe e traiçoeira, de modo a justificar e legitimar o anseio de dominação sobre ela.

Essa face menos lembrada d’ Os Lusíadas tem se revelado sombria e inconveniente à nova configuração do mundo geopolítico pós-colonial. Para alguns, o livro perdeu um tanto de sua imponência depois de 1974, com a queda da ditadura salazarista e depois com a independência das colônias portuguesas na África, mostrando-se menos sedutor e atraente, já que a legitimidade do imperialismo e do nacionalismo tem sido vista com descrédito, mesmo em Portugal, último país a reconhecer a independência de suas colônias. É possível que o próprio Camões já tivesse consciência disso, quando, a exemplo do modelo de Virgílio, elaborou um narrador melancólico, de certo modo consciente do alto custo humano do imperialismo. 16 Mas F. Costa Marques, nos primórdios da década de 1970, dizia que não, que o livro não envelheceu: a despeito de alguns para quem o poema desatualizou porque o heroísmo nada diz às sociedades modernas, ele explica que Os Lusíadas exaltam não um heroísmo meramente militar e individualista, mas um heroísmo cívico, amparado pela ideia de coletividade, e por fim, não um heroísmo exibicionista, mas algo que projeta o cumprimento de uma missão cristã, ocidental, de valores universais. 17 Frágil e impositivo, o argumento beira o nacionalismo rasteiro e datado.

Outras tentativas recentes têm dado conta de uma visão mais profundamente filosófica d’ Os Lusíadas como valor que se sobrepõe à matéria histórica. 18 António José Saraiva, por exemplo, entende que a força do poema não está na ação dos homens, mas na conduta vigorosa e entusiasmada dos deuses, metáfora das forças amorosas latentes da natureza e, portanto, transcendência dos valores históricos. 19 As leituras mais novas de Helder Macedo sugerem a ultrapassagem da história por meio da inclusão estratégica da linguagem mítica e sobrenatural: a história, com sua violência, com seu plano nocivo e condenável, não existe como tal, porque ela é ressignificada pela poesia e por seus instrumentos de mitificação. 20 O estudo inaugural de Jorge de Sena, que pretende ir muito além dos estudos sobre a fauna, a flora, a astronomia, a geologia e as fontes cronísticas d’ Os Lusíadas , traça igualmente um notável painel de significações míticas que transcendem em muito a matéria da história. 21 Sim, tudo isso é perfeitamente válido. Mas não se pode negligenciar que, para além de todo o projeto mítico e transcendente do poema, a epopeia de Camões tem como eixo central a história e seus desdobramentos. É certo que, a considerar o modelo épico de que ele dispõe, especialmente a Eneida , Camões precisa acomodar a história da viagem marítima de Vasco da Gama aos elementos que caracterizam o gênero literário: a composição da figura exemplar do herói; a aventura fundacional, que substitui as terras itálicas fundadas por Eneias pelo reino católico português no oriente; o elogio das virtudes cívicas e militares; e a superação da matéria histórica, transcendentemente sobreposta pela experiência existencial, substituindo a rica aventura de Eneias no reino do Averno pelo seu correspondente em Vasco da Gama, herói igualmente posto diante dos mistérios da natureza e da condição humana, no trânsito entre a vida e a morte. 22 Para isso, Camões precisa redimensionar seus personagens reais e ignorar certos detalhes da história, apagando os traços rudes e brutais dos heróis, ajustando-os a modelos platônicos e cortesãos, ao mesmo tempo em que precisa compor, conforme já se disse, a imagem negativa do outro, do estrangeiro, do oriental. A África e a Índia de Camões, bem como o restante do oriente, até a China (se é que ele esteve na China), não são os espaços sociais que ele próprio conheceu. 23 São espaços modificados pela poesia e representam o apagamento de registros da história, uma história que, por sua vez, já chegou a ele por meio de notícias imprecisas, corrompidas e alteradas pelo crivo da conveniência política do colonizador.

Os Lusíadas , portanto, não são uma “crônica rimada”, não fazem um “voto de verdade”, nem procuram se afastar o menos possível dos fatos, mesmo a julgar pelos acontecimentos que Camões leu nas crônicas. Longe disso, o poema é um recorte de episódios úteis para a exemplificação do heroísmo cívico, com a exclusão dos episódios que não convêm, e ao mesmo tempo, uma seleção de retratos e ações igualmente úteis para a demonização do oriental como síntese da barbárie inculta. Em outros termos, é a tentativa de impor uma imagem da África e da Ásia conforme a necessidade dos temas que acorrem à epopeia. Para isso, é preciso manipular a história, reinventá-la, apagando os vestígios do que foram os homens e as suas ações. Não é o registro da história, é o desenho da verdade que convém. Este artigo busca desvendar as estratégias para isso.

Um novo desenho da história

Para desenhar uma África e uma Ásia afeitas às tonalidades da barbárie, da perfídia e da ignorância, Camões precisou obscurecer os traços dessas mesmas feições nos homens portugueses. Vasco da Gama, não é novidade para nenhum historiador, impôs sua força política na Ásia por meio da violência e da impiedade brutal, sobretudo na sua segunda viagem à Índia em 1502. D. Manuel, mesmo a contragosto de muitos dos conselheiros régios, decidiu por manter o empreendimento da expansão no oriente, e o projeto para isso (que poderia incluir até mesmo Jerusalém!) já implicava a força militar, o que Gama procurou colocar em prática, com a tentativa de bloqueio da entrada do mar Vermelho, por meio de esquadras de corso e vigilância, e com o fechamento do comércio de especiarias muçulmanas vindas do Egito e de Meca. 24 João da Nova e Pedro Álvares Cabral, em expedições anteriores à segunda viagem de Gama, já haviam tentado negociações frustradas com o rajá samorim de Calicute, edificando, contudo, feitorias portuguesas em terras indianas e compreendendo que o sistema comercial luso no oriente, diante da oposição muçulmana, só poderia ser conquistado pela violência.

D. Manuel entendeu isso e viu-se pronto para a guerra a que ele mesmo dava início. A feitoria que Cabral instalara havia sido destruída por muçulmanos como revide por conta de práticas portuguesas de corso no Índico. Vasco da Gama, tomado ainda do espírito de cruzada contra os inimigos da fé, chegou à Índia pela segunda vez com uma exigência impraticável: impôs que o Samorim expulsasse de suas terras todos os muçulmanos que ali faziam comércio, ou seja, nada menos que os maiores mercadores dos primórdios do mundo moderno, gente que alimentava a força econômica da costa do Malabar. 25 Sem ser atendido, Gama deu início a sua retaliação. É Castanheda, menos idealizado que João de Barros e Gaspar Correia, quem nos dá as notícias: o capitão e almirante português, exigindo, mas não obtendo, a restituição da feitoria tomada a Aires Correia (instalada por Cabral), fez pelo menos uns cinquenta reféns, entre pescadores pobres nas praias de Calicute, enforcou todos eles, cortou-lhes mãos e pés, colocou as partes em pequenas embarcações, mandou ao samorim e deixou que a maré levasse os corpos à beira-mar. Depois disso, bombardeou a histórica cidade do Querala. 26 Antes, havia assaltado um navio muçulmano, o Mîri, em ação espantosamente violenta. Embora com a justificativa da retaliação contra a destruição da feitoria, o assalto fora um ato de corsário: Gama obrigou que o imenso patrimônio financeiro fosse saqueado e que toda a tripulação fosse queimada viva, entre homens desarmados, mulheres, crianças, idosos, mesmo tendo todos eles se rendido e oferecido as riquezas que traziam a bordo. Tomé Lopes, escrivão da frota, testemunha ocular, cujo relato foi vertido para o italiano pelo cartógrafo Giovanni Battista Ramusio e incluído na primeira edição de sua célebre e gigantesca coleção Navigazioni e viaggi , em 1550, confirma que a violência de Gama fora tão impiedosa que ele, Lopes, jamais esqueceria aquele 3 de outubro de 1502. 27

Cronistas portugueses, aqueles que Camões certamente leu, bem como historiadores modernos, costumam relativizar as atrocidades de Gama. João de Barros, por exemplo, justifica a súbita ira do capitão, no assalto ao Mîri, com o fato de um de seus homens ter ficado entalado nos costados de uma nau dos mouros. 28 Anthony Disney, historiador das viagens marítimas portuguesas, diz que a violência de Gama foi pontual e seletiva, não uma sequência de atrocidades gratuitas, já que os episódios de 1502 em Calicute ocorreram depois dos impasses nas negociações com o samorim, à época em que o almirante português procurava vingar a honra de D. Manuel (daí o bom tratamento dispensado aos aliados de Cananor e Cochim, com que os portugueses fizeram alianças políticas e comerciais). Havia também a proposta de se executar o plano messiânico do rei de conquistar Jerusalém, o que explica que muçulmanos eram inimigos de guerra em contexto histórico. 29 Mas outros intérpretes veem os fatos de forma distinta. Aqueles foram atos de corso e crimes de guerra: em sua segunda viagem à Índia, por meio de ameaças, ofensivas ao comércio local, enforcamento de inocentes, bombardeios, assaltos, queima de tripulação, Gama já revelou notoriamente a face do corsário violento, do colonizador (já cobra tributos na África) e, sobretudo, do mau diplomata que sempre foi. 30 Em sua importante biografia do capitão, Geneviève Bouchon chama-o “personalidade de corsário”, a serviço da Ordem de Santiago. 31

A amostra pode ser pequena, mas este é o herói que vai para Os Lusíadas . É certo que os episódios mais truculentos não estão na primeira viagem narrada por Camões (afinal, Gama chegou à Índia despreparado e desconhecedor da realidade local, procurando cristãos em templos hindus), mas o poeta conheceu a biografia do almirante e os detalhes de sua história. Precisou, por isso, apagar os rastros de pilhagem, corso e assalto que os portugueses promoveram na Ásia, e expor a imagem baixa e devassa da gente oriental. 32 O corso era prática comum na península Ibérica desde o século XII, quando a ele vieram juntar-se os assaltos, a colonização e a escravidão de nativos africanos no século XV. Nos tempos de Fernão Mendes Pinto na Ásia, ao lado do pirata António de Faria, o corso significava o enriquecimento do patrimônio, a honra na luta contra infiéis, e quando D. João III deu menos prioridade à conquista do oriente, o corso e a expansão marítima portuguesa deram espaço à pirataria indiscriminada e à corrupção dos agentes públicos. Em outros termos, o corso significou o enriquecimento de uma nobreza que vinha se arrastando sem recursos antes da expansão marítima. 33

O evidente apagamento dos vestígios de pilhagem e de assalto dos portugueses na África e na Ásia espalham-se pela epopeia de Camões. É conhecida dos cronistas uma passagem em que Gama assalta dois navios na saída de Mombaça à procura de pilotos que o levem a Calicute, atacando um mouro velho e respeitável com sua jovem esposa. O Roteiro apenas informa que “arribámos contra eles [os barcos], para os havermos de tomar, porque desejávamos de haver pilotos que nos levassem onde nós desejávamos”. 34 Gaspar Correia, historiador pouco digno de confiança, mas que parece ter dado a Camões a tonalidade do heroísmo, garante que, diante da riqueza do mouro, “um homem de dias, que aí levava sua mulher muito formosa, com ricas joias em hum caixão, e dinheiro, e quatro mulheres de seu serviço”, Gama exigiu de seus homens que “nada bulissem”, pois, conforme as próprias vítimas do assalto relatam ao rei de Melinde, “[os portugueses] parecem gentes que não querem o alheio”. 35 Castanheda, menos generoso com a armada portuguesa, diz que Gama, depois do assalto, repartiu os bens entre seus homens. 36 Para quem vinha praticando o corso desde os tempos do infante D. Henrique, por meio das ordens religiosas e militares, inclusive capturando negros para o comércio de escravizados na Europa, a partilha dos bens do velho mouro respeitável não parece prática incomum. 37

Camões não se exime da história do assalto às embarcações na saída de Mombaça, mas desenha o episódio a seu modo. No canto II, atesta que os portugueses, ao avistar os barcos, apenas “pera eles arribando, viram suas velas”. 38 O assalto em si não fica claro, ou pelo menos a ação não fica evidente como assalto. Na estrofe seguinte, o desdobramento dá-se da seguinte forma:

Não é o outro que fica tão manhoso,

Mas nas mãos vai cair do Lusitano,

Sem o rigor de Marte furioso

E sem a fúria horrenda de Vulcano;

Que, como fosse débil e medroso

Da pouca gente o fraco peito humano,

Não teve resistência; e, se a tivera,

Mais dano, resistindo, recebera. 39

O que fica flagrantemente em evidência na cena não é o corso português, mas a fraqueza de espírito muçulmana que, sem resistência contra o domínio do mais forte, cai em suas mãos com “fraco peito humano”. Camões propõe uma sutil inversão de valores: a pusilanimidade dos mouros apaga os traços da espoliação portuguesa contra gente civil e desarmada. Tendo ainda a memória do episódio do assalto em Mombaça, é revelador que Gama, poucas estrofes depois, ao se encontrar com o dócil rei de Melinde, dirija-se a ele, justificando seu ato e deixando claro, logo no começo de sua fala, que

Não somos roubadores que, passando

Pelas fracas cidades descuidadas,

A ferro e a fogo as gentes vão matando,

Por roubar-lhe as fazendas cobiçadas;

Mas, da soberba Europa navegando,

Imos buscando as terras apartadas

Da Índia, grande e rica, por mandado

De um Rei que temos, alto e sublimado. 40

A desculpa retórica de Vasco da Gama percorre todo o discurso de Camões, seja como narrador da epopeia, seja como atribuidor de discursos alheios. Mas esta vinha sendo uma prática comum das crônicas: apagar a ideia de que os portugueses ansiavam por subjugar e escravizar os povos africanos e asiáticos por meio da violência colonizadora, alardeando, por outro lado, a evangelização católica e a procura de paz e comércio em alianças políticas. Camões, a exemplo dos cronistas que leu, põe em cena, diante do samorim de Calicute, um Vasco da Gama pleno de afetação declamatória, alegando viajar a mando de um soberano que “tudo tem no seu Reino em grande cópia”, ao mesmo tempo em que anuncia:

E se queres, com pactos e lianças

De paz e de amizade, sacra e nua,

Comércio consentir das abondanças

Das fazendas da terra sua e tua,

Por que creçam as rendas e abastanças

(Por quem a gente mais trabalha e sua)

De vossos Reinos, será certamente

De ti proveito, e dele glória ingente. 41

O argumento de que Vasco da Gama fora em busca de paz e amizade no comércio com os orientais, a que Camões também se apegou, paira entre os cronistas de forma obstinada e inflexível, ao lado do projeto cruzadista de combate aos inimigos da fé. O Roteiro registra que, diante do rajá samorim, Gama faz um discurso presunçoso e enfático, sem tom de ameaça, dizendo inclusive que seu rei D. Manuel queria ser “seu irmão e amigo”. 42 Na mesma cena histórica, os cronistas emendam uma “fiada de meias verdades e falsidades”: 43 Castanheda, por exemplo, põe Vasco da Gama dizendo ao samorim que seu rei era “mais rico que nenhum outro daquelas partes” e que agora “mandava descobrir por seus capitães aquela cidade pera terem amizade com os reis dela, & os terem por irmãos”. 44 O Vasco da Gama que João de Barros põe diante do samorim afirma que seu rei anseia por “entre eles haver amor, prestança e comunicação de comércio, com que o reino dele, samorim fosse mais rico por causa do muito ouro, prata, sedas e outras muita sorte de preciosas mercadorias de que o seu reino de Portugal era tão abastado”. 45 Por fim, Gaspar Correia anota sua versão: “O grande rei de Portugal […] houve grande vontade de te conhecer, e contigo fazer amizade como próprio irmão, e com toda boa paz e amor mandar suas naus com muitas mercadorias a tratar e comprar tuas mercadorias”. 46

A insistência dos cronistas e mesmo de Camões no frágil argumento de paz e irmandade portuguesa no comércio é um recurso retórico. D. Manuel provavelmente nunca supôs esse pensamento. Afinal, não é sem propósito que, quando descobriu o caminho marítimo para as Índias, já em 1499, depois do retorno de Gama, declarou-se “Rei de Portugal e dos Algarves, d’Aquém e d’Além-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”. Não é o título de um rei disposto ao livre comércio, mas a pompa ilustre de um rei messiânico inclinado à conquista e à subjugação do oriente. É um “senhor da conquista”. D. Manuel “toma virtualmente posse de Calicute, graças às bulas outrora concedidas a D. Henrique”. 47 Nunca é demais lembrar que, desde o século XV, Portugal tinha em mãos pelo menos três bulas papais decisivas para seu projeto de expansão e conquista dos povos africanos: a Dum diversas , de 1452, a Romanus Pontifex , de 1455, e a Inter caetera , de 1456. Já na primeira, os portugueses estavam autorizados pela Igreja a conquistar territórios não cristianizados e impor escravidão perpétua a sarracenos, pagãos e outros inimigos da fé de Cristo, bem como a capturar seus bens e territórios, o que parece ter aberto as portas para o comércio de escravizados na África Ocidental, ajudando inclusive a financiar novas viagens exploratórias portuguesas pelo Atlântico. Nada sugere que D. Manuel estivesse disposto a mudar a continuidade dessa conquista, oferecendo-se como “amigo” ou “irmão” dos povos do oriente.

A questão, contudo, é que, ao penetrar os mares do Índico e a costa do Malabar, determinados a manter sua influência de dominação e escravização, os portugueses compreenderam que a realidade política e econômica daquela região, dominada por um fluxo comercial de árabes, indianos, judeus e orientais, era bem mais complexa e inóspita do que imaginavam. Embora tenham tido razoável domínio sobre o comércio das especiarias, nunca chegaram à sujeição a que julgaram ter direito com as bulas do século anterior. Difícil supor, aliás, em que medida os portugueses imaginavam poder subjugar os povos e o comércio do Índico.

Boa parte do comércio da Ásia passava pela Índia, e Calicute era um centro importante do mercado internacional. Como seria a realidade política e comercial da região antes da chegada dos portugueses, ávidos pelo monopólio e pela subjugação? Os mares do Índico, muito antes do mercantilismo europeu, foram um extraordinário espaço de relações comerciais intensas. Kavalam M. Panikkar, estudioso da dominação europeia na Ásia, compõe um retrato do Índico anterior à chegada de Vasco da Gama como um espaço de intenso comércio entre indianos, árabes e povos orientais, sem imposição e monopólio, sem batalhas marítimas, uma vez que as atividades mercantis de árabes e mesmo dos chineses da China Ming no século XV não vinham impregnadas de caráter político ou ideológico, como o espírito cruzadista português. 48 Com efeito, no mesmo século de Gama, as navegações chinesas pelo Índico, comandadas por um muçulmano chamado Zheng He, mostraram-se uma empresa épica sem precedentes na história: seus navios imensos, como afirma um historiador, “não eram originalmente empreendimentos militares nem econômicos”, mas “demonstrações não violentas de projeção da magnificência da China para os Estados costeiros da Índia e da África Oriental”. 49

A região do Malabar, à época em que Gama a visitou pela primeira vez, parece ter sido um espaço de comércio internacional jamais imaginado pela Europa, um espaço de cooperação semipacífica, estratificado por complexas relações étnicas, sem guerras navais, ou pelo menos sem conflitos de grande monta, e por fim, sem o monopólio árabe, diferentemente do que muitos acreditam. 50 A chegada súbita dos portugueses, arrogando a si os direitos de jugo, com farta experiência em escravização, com suas frotas de guerra e seus canhões poderosos, significou, ao mesmo tempo, a chegada de um “jogador fora das regras”. 51 Mais que isso: os portugueses, não compreendendo a complexidade do espaço político a que tiveram acesso, vinham tomados de certa tradição medieval que compunha uma Índia inteiramente imaginária, que se estendeu aos tempos de Camões. 52 Vasco da Gama, com mentalidade de cavaleiro de ordens militares, mais do que de mercador moderno (que aliás ele nunca foi), tomado ainda do espírito de luta contra os infiéis, levado pelo ideário algo messiânico de “senhor da conquista” de seu rei D. Manuel, não poderia senão provocar a hostilidade dos demais povos que ali compunham a rede comercial quase milenar da Índia. Claro que esse cenário político anterior a Gama pode parecer idealizado. Afinal, é provável que o Índico já convivesse com o corso e a violência pontual, mas os portugueses acabaram por inaugurar uma era de grande escalada de belicismo e colonialismo, e posteriormente, a grande era do imperialismo europeu. 53

Conhecedor dessa realidade, Camões pode ter entendido que havia certa dissimulação no discurso declamatório de Vasco da Gama diante do samorim, ao afirmar que vinha trazer “paz e amizade”, mas preferiu legitimar sua “verdade” conveniente, a exemplo do que lera nas crônicas. Vivendo a era do colonialismo português na Ásia, ciente dos trabalhos da Inquisição de Goa, inaugurada em 1560 para perseguir e torturar os praticantes de heresias, gentilidades, islamismo e superstições, o poeta sabia que o argumento de paz e irmandade no comércio escondia um notório anseio de subjugação já nos tempos de D. Manuel, como Portugal vinha fazendo com os povos africanos, por meio da violência, do colonialismo e da autoridade religiosa. Camões vinha também imbuído da tradição providencialista das crônicas, a sugerir desdobramentos míticos e exaltações patrióticas, e ainda que tenha denunciado as fragilidades do império, como soldado que foi, o que fica de seu poema épico é a feição celebrativa e a própria conquista colonizadora, ideal profícuo de dominação política e exaltação da guerra. 54 Afinal, é uma epopeia.

Mas Camões parece hesitar entre dois imaginários: de um lado, precisa desenhar a imagem do herói sábio, tolerante e prudente de Vasco da Gama, a partir de modelos clássicos e mesmo bíblicos, a imagem do capitão inclinado à paz e à amizade com os povos do oriente, como sensato patriarca, a exemplo de Eneias ou do próprio Gama de Gaspar Correia (não é sem propósito que o rei de Angediva, mesmo o capitão português torturando o judeu Gaspar “apenas de coração”, sem nenhuma denúncia, chama os portugueses de “perfeitos”); de outro lado, o poeta não pode esconder o papel militar, brutal e subjugador dos portugueses no oriente, que é a matéria e o argumento de seu poema. 55 Não é a função política de quem veio trazer a paz e a tolerância, mas a guerra, a conquista, a sujeição, a imposição pelo mando e pela autoridade legitimada pela Igreja em décadas de colonialismo e escravização.

Essa contradição é flagrante n’ Os Lusíadas . Se por um lado, o eloquente Vasco da Gama figurado por Camões, na frente da autoridade do samorim, dá a entender que, se o rajá quiser fazer “pactos e lianças/ de paz e de amizade, sacra e nua”, 56 ele terá benefícios, por outro, o próprio poeta desmancha esse discurso por meio de uma verdade distinta que se impõe por todo o poema. Ao longo de seus milhares de versos, Os Lusíadas sugerem uma realidade outra, que uma meia dúzia de exemplos pode ajudar a decifrar: “esperamos jugo e vitupério/ Do torpe Ismaelita cavaleiro,/ Do Turco Oriental e do Gentio/ Que inda bebe o licor do santo Rio”, 57 diz o narrador logo na abertura de seu poema. “Os Reis da Índia, livres e seguros,/ Vereis ao Rei potente sojugados,/ E por eles, de tudo enfim senhores,/ Serão dadas na terra leis milhores”, 58 diz Júpiter a Vênus, quando esta lhe pede que interceda pelos lusos na batalha dos mares. “Nós outros, cuja fama tanto voa,/ Cuja cerviz bem nunca foi domada,/ Te avisamos que é tempo que já mandes/ A receber de nós tributos grandes”, 59 dizem os obedientes rios Indo e Ganges a D. Manuel em sonho profético, oferecendo-se voluntariamente para pagar tributos ao rei. “Ouve os danos de mi que apercebidos/ Estão a teu sobejo atrevimento,/ Por todo o largo mar e pola terra/ Que inda hás-de sojugar com dura guerra”, 60 diz o monstro Adamastor para a frota de Gama, admitindo a dominação portuguesa, a despeito de todas as dores e perdas futuras. “Armas e naus e gentes mandaria/ Manuel, que exercita a suma alteza,/ Com que a seu jugo e Lei someteria/ Das terras e do mar a redondeza”, 61 diz o narrador do poema, atribuindo pensamentos a Gama, quando este se vê em apuros diante do catual de Calicute, uma espécie de governador local. “Esta luz é do fogo e das luzentes/ Armas com que Albuquerque irá amansando/ De Ormuz os Párseos, por seu mal valentes,/ Que refusam o jugo honroso e brando”, 62 diz, por fim, a ninfa Tétis a Vasco da Gama, descortinando-lhe a gigantesca máquina do mundo.

Os exemplos multiplicam-se pelo poema. Em contradição com o discurso pacífico e tolerante do Gama diplomata na frente do samorim (quando o capitão português abandona Calicute, ele parte porque entende “que em vão co Rei gentio trabalhava/ Em querer dele paz, a qual pretende/ Por firmar o comércio que tratava”), 63 as sentenças que se espalham pelo poema, atribuídas a diferentes vozes, fazem evidenciar que a paz prometida por Gama esvaiu-se como fumaça, deixando entrever seu anseio de jugo e dominação. A prática de atribuir sentenças e discursos a vozes alheias vinha das crônicas: era uma forma de legitimar, por meio de opiniões estrangeiras, a grandeza, a força moral e as virtudes lusitanas. Era uma estratégia de atribuir ao outro o pensamento que é essencialmente português. João de Barros, por exemplo, põe o rei de Melinde julgando os portugueses como “homens de grande animo no feito da guerra, e na conversação brandos e caridosos”. 64 Gaspar Correia imagina o mesmo rei de Melinde considerando que “o nome dos Portugueses nunca sairia de seu coração, onde o tinha, se não quando morresse”; e posteriormente, atribui ao rei de Angediva (conforme já aqui se disse) o pensamento de que “vós outros [os portugueses] sois tão perfeitos homens, que mui ditoso fora eu se tais homens tivera em meu Reino para que fizessem as cousas de minha honra”. 65 Nessa mesma orientação, Camões atribui a Monçaide, um mouro de Tunes que falava castelhano e morava em Calicute, a ideia de que os portugueses eram “gente verdadeira,/ A quem mais falsidade enoja e ofende”. 66

Conforme se vê em Lusíadas IX 13, Camões quer nos fazer crer que o prudente e tolerante Vasco da Gama, a despeito de todas as tratativas e esforços nas negociações com o samorim, deixou Calicute porque entendeu que não era possível comerciar e tratar a paz com um gentio frágil, inábil e facilmente manipulado pelas intrigas dos mouros locais. Mas a história sugere que a política de Vasco da Gama, bem como a da nobreza militar portuguesa no oriente pelas décadas posteriores, será sempre a da coerção e da intimidação física pela violência. Desde o Roteiro da primeira viagem , no entanto, o argumento que esconde um suposto fracasso diplomático de Gama tem sido justamente o das intrigas dos chamados “mercadores de Meca”: “sabíamos certo que os mouros que aqui estavam, que eram mercadores de Meca, e de outras muitas partes, que nos conheciam, lhes pesava muito conosco. E estes diziam a el-rei como nós éramos ladrões”, garante o escrivão da frota de Vasco da Gama. 67

No entanto, o caso das maquinações secretas dos “mercadores de Meca” é complicado e controverso demais para ser julgado pela história.

Para ler Os Lusíadas , só dispomos da versão portuguesa da narrativa, entusiasta dos feitos heroicos de sua gente. 68 Diplomaticamente a viagem de Gama foi um fracasso, e a de Cabral seria pior. Ninguém se entendeu com o Samorim, e as alianças foram buscadas em Cochim e Cananor, cidades costeiras do Malabar, rivais de Calicute. Na sua segunda viagem, Gama parece ter correspondido aos anseios armamentistas da coroa portuguesa, entendendo que um espaço no comércio do Índico só poderia ser conquistado por meio da força militar. Não parece razoável garantir se a presença portuguesa em Calicute, pelo menos naquele primeiro contato entre Gama e as autoridades locais, foi ameaçada e intimidada pelos mouros (tese que as crônicas atestam, legitimando a resposta violenta dos portugueses), ou se representou uma ameaça, ou as duas coisas misturadamente. Na verdade, todos os atropelos diplomáticos de Gama ao longo da viagem, incluindo episódios em Moçambique, Mombaça e especialmente Calicute, são justificados pelo caráter odioso e traiçoeiro dos mouros. Isso está nas crônicas de forma inequívoca.

O certo é que a viagem inteira foi uma sequência de desentendimentos, marcados por suspeitas e desconfianças de todos os lados. Episódios ocorridos na África Oriental sugerem isso. Mesmo com o receptivo rei de Melinde (soberano tão idealizadamente representado n’ Os Lusíadas e na crônica de Gaspar Correia), Gama, desconfiadíssimo, não pôs os pés na cidade, com receio de cilada ou retaliação súbita, e encontrou-se com a autoridade local em barcos próximos da praia. A história inteira do reino português que Gama conta ao rei de Melinde, entre os cantos III e V do poema, terá sido narrada dentro de uma embarcação pequena, com os homens tentando se acomodar no casco.

Em Moçambique, lugar que Camões escolheu para ser o ponto de partida de sua narrativa in medias res , a discórdia entre portugueses e autóctones surgiu de maneira inevitável, quando o sultão local pediu que Gama mostrasse suas armas e seus livros sagrados, tomando-o por muçulmano. Sobre o episódio, Subrahmanyam, considerando que não há registro da parte moçambicana, sugere que se faça um simples jogo de imaginação: a chegada de três navios de estilo inusual, com homens de pele clara, fortemente armados, fazendo perguntas sobre rotas de comércio e produtos locais, ancorando numa ilha à distância para evitar o porto usualmente utilizado por todos, escondendo sua identidade e sua religião (foram inclusive confundidos com turcos), e por fim, pedindo pilotos e os tomando como reféns, só pode ter despertado a mais absoluta desconfiança na população local. 69 Nesse curioso exercício de imaginação, parece aceitável supor o nível de ameaça efetiva ou imaginária que os portugueses representaram aos povos africanos naquele contexto.

Sobre o episódio de Moçambique, o Roteiro oferece uma intepretação que haveria de ser consolidada pelas crônicas: a de que os mouros locais quiseram matar os estrangeiros porque estes eram cristãos e como tal não se identificaram: “E, depois que souberam que nós éramos cristãos, ordenaram de nos tomarem e matarem à traição”. 70 Castanheda, por sua vez, sugere que o sultão de Moçambique sentiu-se traído ao descobrir que negociava com cristãos escondedores de sua origem. 71 Gaspar Correia hesita, arriscando dizer que os mouros de Moçambique armaram cilada contra os portugueses seja porque descobriram que se tratava de gente cristã, seja porque cobiçaram as naus estrangeiras. De toda forma, são apenas interpretações.

Camões decide por dar ornamento mitológico ao episódio: é a primeira ação humana de seu poema, narrada logo depois do concílio dos deuses. Na cena, põe o deus Baco, inimigo declarado dos portugueses, a disfarçar-se de mouro e a incitar os locais a fazer guerra contra os estrangeiros. 72 Não será a primeira vez que o deus inebriado se utiliza de máscaras: já em Calicute, 73 ele se disfarça de Maomé para entrar nos sonhos de um sacerdote indiano que, tomado de receio e horror, é levado a crer que os portugueses são piratas sem lei. A identificação de Baco, a divindade do êxtase e da embriaguez, com os mouros, sempre a compor situações de mascaramento e devaneio, revela a clara demonização do oriental e é sugestiva de como Camões deseja representar a perfídia e o fingimento dos muçulmanos, o que contrasta, por exemplo, com a conversão de Monçaide, o mouro de Tunes que, ao compreender o senso de justiça e o caráter heroico dos portugueses, decide pela verdade do cristianismo.

A demonização do africano e do asiático, sugestiva de uma condenação das gentilidades e das superstições de idólatras e muçulmanos, é uma estratégia que Camões também conheceu de perto nas crônicas. Gaspar Correia e João de Barros, por exemplo, aproveitando-se de uma história provavelmente oriunda da tradição oral, garantem que as profecias de um feiticeiro local de que a Índia seria tomada por povos distantes teriam levado o rei de Cananor a fazer acordo de paz com os portugueses. Barros diz que se trata de um astrólogo e que “o demônio lhe quis representar aquele seu futuro”. 74

No episódio de Moçambique, Camões precisou alterar sutilmente a naturezas das conversações entre Gama e o sultão local. Em ato de bravura, tomado de um sentimento de verdade, o herói português não esconde que é cristão. As crônicas, no entanto, conforme já se disse, a considerar a sugestão inicial e a suposta “verdade” do Roteiro , revelam um súbito estranhamento entre portugueses e mouros decorrente da identidade cristã não revelada dos primeiros. Embora seja hoje possível supor a suspeição que os portugueses provocaram na gente local, Camões opta por considerar que o anseio de vingança dos mouros nasce tão somente do ódio religioso. E a história encerra-se por aí. O poeta entendeu que não seria legítimo pôr seu herói a esconder a identidade cristã, distintivo de sua honra e parte substancial da razão de ser de sua viagem pelo oriente: “Vimos buscar do Indo a grão corrente,/ Por onde a Lei divina se acrecente”, 75 diz o capitão português a Monçaide, quando este lhe interroga sobre o motivo da viagem. 76 O Gama de Camões não apenas se assume como cristão (embora não mostre a Bíblia, porque diz que a traz na alma e não no papel), como também se dirige à autoridade moçambicana, na exibição de suas armas, em tom levemente desafiador: “Se as armas queres ver, como tens dito,/ Cumprido esse desejo te seria;/ Como amigo as verás, porque eu me obrigo/ Que nunca as queiras ver como inimigo”. 77 De toda forma, o ludíbrio de Gama escondendo sua religião ficou omitido n’ Os Lusíadas .

Camões omite outras ocorrências que julga inconvenientes ou inadequadas à grandeza de seu herói. No primeiro passeio pelas ruas de Calicute, por exemplo, esconde que os portugueses confundiram um templo indiano com uma igreja, bem como os ídolos do hinduísmo com santos católicos, numa cena em que Gama faz oração a uma deusa num templo Vaishnava, julgando que era Nossa Senhora, conforme se narra no Roteiro.78 A confusão poderia soar galhofeira e igualar o herói português às superstições dos idólatras. Camões prefere apenas dizer que “Os cristãos olhos, a ver Deus usados/ Em forma humana, estão maravilhados”, 79 o que sugere o deslumbramento diante do exótico. O poeta omite também que, não conhecendo as regras do comércio local, Gama levou ao samorim uma meia dúzia de presentes medíocres, quando os mercadores estrangeiros levavam benesses valiosíssimas como paga pela generosidade do rajá indiano. Os portugueses fizeram papel ridículo na frente das autoridades locais: “vieram e começaram-se de rir daquele serviço, dizendo que não era aquilo nada para mandar a el-rei, que o mais pobre mercador que vinha de Meca, ou dos índios, lhe dava mais que aquilo”. 80 A inserção dessa cena na epopeia poderia conferir aos heróis uma tonalidade ridícula e sugerir uma possível comparação com aventureiros e piratas que saem pelos mares sem credenciais régias ou dádivas com que brindar às autoridades que veem pelo caminho.

Os acontecimentos em Calicute, a exemplo do que acontecera por toda a viagem, são igualmente uma sequência de desentendimentos, em que cada lado da controvérsia suspeita do outro. Parece que toda a desavença entre Gama e o catual, o governador de Calicute, reside num jogo de suspeitas mútuas, a julgar pelo que nos informa o Roteiro : Gama recusou-se a trazer seus navios ao porto, com seu eterno receio de cilada, e o catual não conseguiu entender suas motivações, julgando que ele queria comerciar os produtos e sair sem pagar as tarifas portuárias. 81 Os dois caem numa discussão inflamada por conta disso, Gama vendo na atitude do governador uma emboscada, uma manobra traiçoeira para atacá-los, digna dos perros idólatras que eram, quando o outro apenas cumpria as práticas rotineiras de seu comércio. Um administrador português, bem como um escrivão e seus assistentes foram presos num armazém por conta disso, e Gama acaba ele mesmo por fazer reféns entre a gente local. 82 O capitão, por certo, suspeitava da influência muçulmana nessa corte “cristã”. 83

Os incidentes que estão nos cantos VII e VIII d’ Os Lusíadas , somados às supostas intrigas perpetradas pelos mouros de Meca, resumem-se a isso. O fato é que as atitudes de Gama na Índia pareciam soar a pirataria naquela complexa rede de comércio internacional, e a animosidade do capitão, junto de sua inaptidão diplomática, colocou os portugueses em estado de guerra contra Calicute. 84 A primeira viagem de Gama era um empreendimento exploratório, e tendo solicitado e conseguido autorização para comerciar, ele pode ter entendido que não tinha obrigações com as taxas portuárias. 85 O Roteiro e as crônicas indicam que sua partida foi um mau começo: “não podíamos acabar de nos despedir da terra com paz e amigos da gente”, lamenta o escrivão da frota. 86 “E que, se vivesse, que ele tornaria mui cedo a Calicute, e então saberiam se eram os frangues ladrões como os mouros fizeram crer a el-rei de Calicute”, emenda Castanheda. 87 Não era um bom começo: Gama deixou a Índia fazendo ameaças, lançando impropérios e prometendo voltar. E quando voltou, mostrou o terror de que era capaz: enforcou gentes, cortou mãos e pés, bombardeou cidades, assaltou barcos, queimou tripulações vivas e fez mais o que lá não se contou. Os muçulmanos não fariam diferente: em 1543, o filho mais jovem de Vasco, Cristóvão da Gama, foi torturado até a morte e teve sua cabeça cortada, quando comandava uma expedição portuguesa numa guerra entre cristãos e mouros no centro da Etiópia.

Camões põe Vasco da Gama saindo de Calicute como o notável incompreendido que tentou levar a civilização e o evangelho a terras incultas, oferecendo parcerias e amizade. Na abertura do canto IX, mouros haviam tentado impedir a venda das mercadorias portuguesas (fatalmente um amontoado de quinquilharias ordinárias naquele mercado internacional, transportadas em um ano de viagem precária), e Gama toma mercadores importantes como reféns, chegando a simular a partida, para que as esposas se desesperem com um suposto sequestro. No desfecho do canto VIII, o poeta fizera um retórico sermão contra o poder corrompido do dinheiro, insinuando a cobiça desonesta dos mercadores de Meca e das autoridades indianas: “Este [o dinheiro] corrompe virginais purezas,/ Sem temer de honra ou fama alguns perigos;/ Este deprava às vezes as ciências,/ Os juízos cegando e as consciências”. 88 Mas no desfecho do canto seguinte, a ninfa Tétis, também falando de riqueza e dinheiro, anuncia seu vaticínio a Vasco da Gama: “Possuireis riquezas merecidas,/ Com as honras que ilustram tanto as vidas”, 89 como a insinuar que, a despeito das mortandades, do jugo e da escravidão dos povos, a despeito da brutalidade colonial e das benesses furtadas à terra alheia, as “riquezas merecidas” são merecidas porque se fazem acompanhar da bravura cavaleiresca e da evangelização cristã.

Por uma conclusão: a África e a Ásia desenhadas por Camões

Panikkar, no seu já mencionado estudo sobre a dominação ocidental na Ásia, a considerar o cinismo e a selvageria de Portugal nos domínios do oriente, diz que “os europeus sempre se comportaram em relação aos asiáticos como se os princípios do direito internacional não se pudessem aplicar fora da Europa, como se a dignidade moral dos povos da Ásia não pudesse colocar-se no mesmo pé com a deles”. 90 É uma observação no mínimo embaraçosa e perturbadora sobre a crônica recente das relações internacionais. As viagens marítimas portuguesas, e depois, seus desdobramentos na história, com as futuras potências coloniais da Europa, foram um episódio de horrores e um genocídio, e Vasco da Gama deu o tom inicial do que seria o imperialismo moderno. Mas a ênfase na violência da invasão portuguesa na Índia acaba por amplificar em Vasco da Gama um papel que será legitimado pela Igreja e futuramente por outras nações da Europa (Inglaterra, França, Holanda), as quais, igualmente elaborando “uma verdade que convém”, farão o discurso da demonização da cultura ibérica para impor como “moderno” o seu próprio modelo de imperialismo.

Não se trata aqui de atribuir a Camões, ou Gaspar Correia, João de Barros, Diogo do Couto, ou a qualquer panegirista da expansão ultramarina, a percepção anacrônica dos direitos humanos, conceito que entrará na história séculos depois de Camões. Todos eles foram entusiastas do modelo cavaleiresco e cruzadista, de tonalidade medieval e ultrapassada, bem como da imposição do exercício de proselitismo que os jesuítas tão bem representaram desde o século da conquista do oriente. As práticas amistosas de livre comércio nunca existiram, mas foram veiculadas na retórica de Camões e dos cronistas portugueses seus contemporâneos e, diferentemente das práticas adotadas pela Holanda décadas depois, não passaram de um pretexto na expansão marítima portuguesa, que produziu frutos, sem dúvida, mas não apagou as motivações atávicas que as originaram: a vingança contra o Islã, o proselitismo, o colonialismo, a rapinagem em terra alheia, a dominação e a escravização dos povos aprendidas nos anos de exploração da costa atlântica da África. Como afirma um historiador, Gama foi cavaleiro na mentalidade e nas práticas e mercador de fachada. 91

Trata-se, então, de construir uma visão mais aguda e moderna da história. Reprimido pelas forças da Contrarreforma, o humanismo não alcançou grande fôlego em Portugal. Contemporâneo de Camões, Michel de Montaigne, livre pensador, humanista, fez considerações intrigantes, de forma eventualmente sarcástica, sobre a relativização dos conceitos de barbárie e de civilização. É fato que sua voz foi uma exceção, assim como foi exceção a voz de Sá de Miranda nos meados do século da expansão portuguesa:

Pensamentos nunca cheos,

não tem fundo aqueles sacos,

inde mal, com tantos meos

pera viver dos mais fracos

e dos suores alheios,

diz Miranda numa carta ao rei D. João III, denunciando severamente a exploração dos mais fracos e vulneráveis, bem como a escravização dos estrangeiros na África e na Ásia. 92 Em Portugal, no entanto, as lendas da conquista e o mito de Vasco da Gama mostraram-se elementos profundos e significativos na mentalidade portuguesa, apagando as possibilidades de entendimento do outro. Um antropólogo norte-americano, comentando as comemorações dos 500 anos da viagem de Gama ao oriente, na Expo’ 98 em Portugal, e observando a polarização e as reações políticas inflamadas contra uma nação que já não exaltava mais o navegador português como herói, entendeu que estava ali um país que saíra recentemente do colonialismo e conquistava sua democracia depois da longa ditadura salazarista. O mito camoniano de Vasco da Gama ainda era vivo. 93

Camões olha para o oriente, a África dos nativos de Santa Helena, dos mouros brancos que levam especiarias a Moçambique, a Ásia do comércio internacional, a Índia milenar que Gama jurou que fosse cristã, e contempla um bloco amorfo de seres incultos, traiçoeiros, inimigos da fé. Um antagonista a ser subjugado. Mas o gênio de Camões tem um ideal político, de cariz humanista, que ele defende nos versos finais de seu poema: o bem social comum do reino, que nasce do autocontrole dos indivíduos, das suas virtudes cívicas, católicas e fidalgas, no enaltecimento dos melhores. Os versos finais d’ Os Lusíadas , uma predicação admoestatória ao rei D. Sebastião, resume-se nisto: no reconhecimento e favorecimento dos grandes, na edificação da ordem cívica e moral de um corpo social e político do império tão a custo conquistado: “Os Cavaleiros tende em muita estima,/ Pois com seu sangue intrépido e fervente/ Estendem não somente a Lei de cima,/ Mas inda vosso Império premente”, 94 ele ensina ao rei. Como soldado e poeta que foi, oferece seu serviço, a insinuar, inclusive, certo desagrado com as recompensas recebidas: “Pera servir-vos, braço às armas feito,/ Pera cantar-vos, mente às Musas dada;/ Só me falece ser a vós aceito,/ De quem virtude deve ser prezada”. 95

Para registrar em poesia o seu ideal político, o poeta precisou apagar a brutalidade da história, ajustá-la ao modelo humanista e cortesão de que dispunha, desprezar aquilo que é essencialmente a matéria das ações humanas para reescrevê-la na matéria intangível e platônica da poesia, procurando agasalhar-se no manto da filosofia e da transcendência, que fecha as narrativas épicas, com a Ilha dos Amores. 96 Para isso, a despeito dos lamentos que fez por meio de incursões subjetivas, lançou mão de estratégias já conhecidas da crônica de Avis: o providencialismo, a missão divina, a edificação do herói individual e coletivo. Por outro lado, precisou também desenhar o seu antagonista, fazer a elaboração negativa do outro, o outro africano, o outro asiático, fazer o leitor entender que tem diante de si dois modelos de conduta e de civilização. Não era um bom retrato do oriental. Era preciso tornar evidente que, diante da sordidez do outro, diante de seu senso de traição, de sua figura estrangeira e de sua incorrigível natureza odiosa e inimiga da fé, Portugal, probo e verdadeiro (mesmo na opinião dos estrangeiros), terá sempre direito a suas “riquezas merecidas”.

AGRADECIMENTOS

Este artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre o renascimento português, com ensaios publicados em revistas do Brasil e do exterior. Quero agradecer ao prof. Lívio Soares de Medeiros (IFTM) pela leitura dos originais, bem como aos avaliadores anônimos da revista Afro-Ásia , por suas sugestões e contribuições.

Notas

1 A biografia de Camões é incerta. Para informações sobre sua vida, ver: Maria Vitalina Leal de Matos, “Biografia de Camões” in Vítor Aguiar e Silva (org.), Dicionário de Luís de Camões (São Paulo: Leya, 2011), pp. 82-93.
2 António José Saraiva, Luís de Camões , Lisboa: Gradiva, 1997, p. 10.
3 Matos, “Biografia de Camões”, p. 89.
4 Luís de Albuquerque, “A viagem de Vasco da Gama entre Moçambique e Melinde, segundo Os Lusíadas e segundo as crónicas”, Garcia de Orta: Revista da Junta de Investigações do Ultramar , n. especial (1972), pp. 16-17.
5 Gago Coutinho, O Roteiro da viagem de Vasco da Gama e a sua versão nos Lusíadas , Lisboa: Portugalia, 1930, p. 15.
6 O Roteiro da primeira viagem de Vasco da Gama à Índia , como assim ficou conhecido, é um manuscrito da Biblioteca do Porto, não autógrafo, cópia do começo do século XVI, publicado por Diogo Köpke em 1838, com edição inglesa de Ernest Ravenstein em 1898, contendo estudos de Franz Hümmerich sobre Vasco da Gama. Frederico Diniz d’Ayalla questionou a autenticidade do documento, mas foi voto vencido: Luciano Pereira da Silva, O “Roteiro” da primeira viagem do Gama e a suposta conjuração , Coimbra: Imprensa da Universidade, 1925, pp. 5-8. O roteiro traça o percurso da viagem partindo do porto de Lisboa e interrompe-se abruptamente, com a notícia da chegada da armada às margens do rio Grande, na África ocidental, no dia 25 de abril de 1499. Embora a hipótese de que a autoria de Álvaro Velho tenha vindo por exclusão, ela acaba por explicar a interrupção do texto, já que o escrivão teria ficado em terras africanas, por razões desconhecidas, enquanto a armada seguiu viagem: José Marques, “Estudo introdutório” in Álvaro Velho, Roteiro da primeira viagem de Vasco da Gama à Índia (Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1999), p. 18.
7 Os Lusíadas , I 11.
8 A edição utilizada para o presente trabalho é Luís Vaz de Camões, Obras completas de… , Ed. de Maria Vitalina Leal de Matos, Silveira: E-Primatur, 2017 (3 vols.).
9 Os Lusíadas , III 5.
10 Os Lusíadas , V 89.
11 Jorge Borges de Macedo, “Os Lusíadas” e a história , Lisboa: Editorial Verbo, 1979, p. 83.
12 Jorge Borges de Macedo, “História e doutrina do poder n’ Os Lusíadas ”, Garcia de Orta: Revista da Junta de Investigações do Ultramar , n. especial (1972), p. 355.
13 Hélio J. S. Alves, Camões, Corte-Real e o sistema da epopeia quinhentista , Coimbra: Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2001, p. 217.
14 Luís de Albuquerque, “A viagem de Vasco da Gama”, p. 29; Luís de Albuquerque, As navegações e a sua projecção na ciência e na cultura , Lisboa: Gradiva, 1987, p. 113.
15 Luís de Sousa Rebelo, “Língua e literatura no Império Português” in Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto (orgs.), A expansão marítima portuguesa, 1400-1800 (Lisboa: Edições 70, 2010), pp. 381-382.
16 Thomas Hart, “Vasco da Gama as narrator in ‘Os Lusíadas’”, Portuguese Studies , v. 18 (2002), pp. 16-23 . https://www.jstor.org/stable/41105177
17 F. Costa Marques, “Apontamentos sobre Camões e o seu conceito de heroísmo”, Garcia de Orta: Revista da Junta de Investigações do Ultramar , n. especial (1972), p. 376.
18 José Madeira, em livro contestável, entende que Os Lusíadas são, na sua essência, um poema antiépico que condena o empreendimento marítimo com sua violência levada a cabo por ladrões e homicidas. No entanto, o fato de mostrar a violência portuguesa em terras orientais não significa que Camões a esteja condenando. Afinal, trata-se de uma epopeia, de uma exaltação da guerra e da conquista, a despeito de suas inconveniências circunstanciais: José Madeira, Camões contra a expansão e o império: Os Lusíadas como antiepopeia , Lisboa: Fenda Edições, 2000.
19 Saraiva, Luís de Camões , p. 167.
20 Helder Macedo, Camões e a viagem iniciática , Rio de Janeiro: Móbile, 2013. Em outro estudo profícuo, Macedo sugere que Camões teve consciência do lado sombrio de seus heróis e de seu projeto colonialista, e isso constitui a integridade artística do poema, que apresenta diferentes vozes ideológicas, embora nenhuma delas (como a do velho do Restelo, por exemplo) consiga apagar o significado épico do poema. Para o poeta, no final das contas, a guerra santa justifica e legitima a paz universal: Helder Macedo, “The Lusiads : epic celebration and pastoral regret”, Portuguese Studies , v. 6 (1990), pp. 32-37 . A esse respeito, é interessante lembrar que a epopeia de Camões é um livro de contradições, que se encontram justamente no jogo de discursos oponentes, sempre a revelar as incoerências entre a euforia e o louvor do empreendimento, de um lado, e o desespero e o desânimo da conquista, de outro. Ver, por exemplo: Terezinha Maria Scher Pereira, “História e linguagem em Os Lusíadas ”, Via Atlântica , n. 4 (2000), pp. 190-211 https://doi.org/10.11606/va.v0i4.49613 ; e Daniel Vecchio Alves, “Camões, o poeta do imaginário ultramarino”, Abril , v. 11, n. 23 (2019), pp. 83-94 . https://doi.org/10.22409/abriluff.v11i23.30287
21 Jorge de Sena, A estrutura de “Os Lusíadas” e outros estudos camonianos e de poesia peninsular do século XVI , Lisboa: Edições 70, 1980.
22 António Cirurgião, Leituras alegóricas de Camões e outros estudos de literatura portuguesa , Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1999.
23 Rui Manuel Loureiro, “Camões em Macau: um mito historiográfico”, Review of Culture , v. 7 (2003), pp. 108-125. O autor considera que a presença de Camões em Macau, na China, juntamente com o seu suposto naufrágio no rio Mecom, não passa de um mito com referências pessoais n’ Os Lusíadas . Não há nenhum registro da presença do poeta em terra chinesas, e é certo que ele não exerceu o cargo de provedor de defuntos, conforme diz a tradição.
24 Luís Adão da Fonseca, Vasco da Gama : o homem, a viagem, a época , Lisboa: Comissariado da Exposição Mundial de Lisboa de 1998/Comissão de Coordenação da Região do Alentejo, 1998, p. 64.
25 Luís Adão da Fonseca, De Vasco a Cabral : oriente e ocidente nas navegações oceânicas , Bauru: EDUSC, 2001, p. 31.
26 Fernão Lopes de Castanheda, História do descobrimento e conquista da Índia pelos portugueses , Porto: Lello & irmão, 1979, v. I, pp. 100-101.
27 Giovanni Battista Ramusio, Navigazioni e viaggi , Turim: Giulio Einaudi, 1978, v. 1, p. 703.
28 João de Barros, Décadas , Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1945, v. I, p. 218.
29 Anthony Disney, “Vasco da Gama’s reputation for violence. The alleged atrocities at Calicut in 1502”, Indica , v. 32, n. 1 (1995), pp. 11-28.
30 Sanjay Subrahmanyam, A carreira e a lenda de Vasco da Gama , Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998, pp. 239-242, 254.
31 Geneviève Bouchon, Vasco da Gama : biografia , Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 35.
32 Álvaro Velho, ou quem tenha escrito o Roteiro da primeira viagem, chama-os “perros” e “bestas”: Roteiro da primeira viagem de Vasco da Gama , Lisboa: Europa-América, 1998, pp. 63, 96.
33 Alexandra Pelúcia, Corsários e piratas portugueses : aventureiros nos mares da Ásia , Lisboa: A Esfera dos Livros, 2010, pp. 63, 89, 96-99.
34 Roteiro da primeira viagem , p. 64.
35 Gaspar Correia, Lendas da Índia , Porto: Lello & irmão, 1975, v. I, pp. 46, 50 [versão atualizada do português minha].
36 Castanheda, História do descobrimento e conquista da Índia , v. I, p. 30.
37 Nigel Cliff, Guerra santa : como as viagens de Vasco da Gama transformaram o mundo , São Paulo: Globo, 2012, pp. 84, 103-104; Ronald Watkins, Por mares nunca dantes navegados : como Vasco da Gama abriu caminho para o Oriente , Rio de Janeiro: José Olympio, 2011, p. 267.
38 Os Lusíadas , II 68.
39 Os Lusíadas , II 69.
40 Os Lusíadas , II 80.
41 Os Lusíadas , VII 62.
42 Roteiro da primeira viagem , p. 85.
43 Subrahmanyam, A carreira e a lenda de Vasco da Gama , p. 167.
44 Castanheda, História do descobrimento e conquista da Índia , v. I, p. 49.
45 João de Barros, Décadas , v. I, p. 64 [versão atualizada do português minha].
46 Gaspar Correia, Lendas da Índia , v. I, p. 99 [versão atualizada do português minha].
47 Bouchon, Vasco da Gama , p. 175.
48 Kavalam Madhava Panikkar, A dominação ocidental na Ásia : do século XVI aos nossos dias , Rio de Janeiro: Saga, 1965, v. I, pp. 42-43.
49 Roger Crowley, Conquistadores: como Portugal forjou o primeiro império global, São Paulo: Planeta, 2016, p. 16.
50 Subrahmanyam, Vasco da Gama , p. 123; Cliff, Guerra santa , p. 127; Fonseca, Vasco da Gama, p. 190; Watkins, Por mares nunca dantes navegados , pp. 215-216.
51 Roger Crowley, Conquistadores , p. 79.
52 Fonseca, Vasco da Gama , p. 148.
53 Pelúcia, Corsários e piratas portugueses , pp. 39-40. A autora defende que mesmo os chineses teriam usado de certa violência na prática da mercancia.
54 Daniel Vecchio e Gerson Luiz Roani, “A viagem continua: as memórias reescritas de Vasco da Gama”, Letras , v. 24, n. 49 (2014), pp. 182-183 . https://doi.org/10.5902/2176148516599
55 Correia, Lendas da Índia , v. I, p. 130. Cleber Vinicius do Amaral Felipe, “A máquina do mundo e o heroísmo de Vasco da Gama”, Revista Épicas , n. 7 (2020), p. 1-18 http://dx.doi.org/10.47044/2527-080X.2020v7.5472 . O autor sugere que, para além do discurso greco-latino, Camões, ao compor o retrato de seu Vasco da Gama, retoma até mesmo o ethos bíblico na figura de Abraão, sugerindo a sabedoria, a prudência e a presença de Deus em suas atitudes.
56 Os Lusíadas , VII 62.
57 Os Lusíadas , I 8.
58 Os Lusíadas , II 46.
59 Os Lusíadas , IV 73.
60 Os Lusíadas , V 42.
61 Os Lusíadas , VIII 57.
62 Os Lusíadas , X 40.
63 Os Lusíadas , IX 13.
64 Barros, Décadas , v. I, p. 43.
65 Correia, Lendas da Índia , v. I, pp. 67, 130 [versão atualizada do português minha].
66 Os Lusíadas , VIII 72.
67 Roteiro da primeira viagem , p. 101.
68 Um manuscrito árabe do século XVI, apresentado pelo prof. J. Kratchkovsky, no Instituto de Estudos Orientais da Academia de Ciências de Leningrado, revelou um roteiro anônimo de Sofala, na África, publicado posteriormente em 1958 por T. A. Chumovsky, contendo o ponto de vista dos indianos e dos mercadores muçulmanos quando da chegada dos portugueses. Mas o documento mostrou-se posteriormente adulterado e sem crédito. Ver: Costa Brochado, O piloto árabe de Vasco da Gama , Lisboa: Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1959.
69 Subrahmanyam, Vasco da Gama , p. 145.
70 Roteiro da primeira viagem , p. 50.
71 Castanheda, História do descobrimento e conquista da Índia , v. I, p. 21.
72 Os Lusíadas , I 104.
73 Os Lusíadas , VIII 47.
74 Barros, Décadas , v. I, p. 67.
75 Os Lusíadas , VII 25.
76 Curioso que Camões não tenha mencionado, pelo menos nesse trecho revelador das motivações da coroa portuguesa, a outra razão da viagem, que é a busca de especiarias. Preferiu iluminar a missão evangélica. No Roteiro da primeira viagem (p. 75),com referência à mesma passagem, é célebre a resposta de um mensageiro português enviado à terra (portanto, a resposta não é dada por Gama, que ainda se encontrava no navio), quando diz: “Vimos buscar cristãos e especiarias”.
77 Os Lusíadas , I 66.
78 Roteiro da primeira viagem , p. 80. Subrahmanyam, Vasco da Gama , pp. 163-164: o autor ensina que se trata de um templo Vaishnava, diferentemente do que julga a tradição.
79 Os Lusíadas , VII 47.
80 Roteiro da primeira viagem , p. 87.
81 Há quem acredite que o pagamento das taxas seja questão menor diante do perigo político que se representava com a saída dos navios para Portugal contendo mapas e pilotos plenos do conhecimento da passagem para a Índia. Ver Watkins, Por mares nunca dantes navegados , p. 304. Mas o argumento parece eurocêntrico. Afinal, as autoridades indianas não tinham o menor conhecimento das tentativas portuguesas ao longo do século XV para descobrir o caminho marítimo da Índia e alterar a rota das especiarias.
82 Roteiro da primeira viagem , p. 103. Castanheda, História e conquista da Índia , v. I,pp. 61-62. Cliff, Guerra santa , pp. 265-267.
83 Subrahmanyam, Vasco da Gama , pp. 172-173.
84 Bouchon, Vasco da Gama , pp. 226-227.
85 Panikkar, A dominação ocidental na Ásia , v. I, p. 48.
86 Roteiro da primeira viagem , p. 107.
87 Castanheda, História do descobrimento e conquista da Índia , v. I, p. 64 [versão atualizada do português minha].
88 Os Lusíadas , VIII 98.
89 Os Lusíadas , IX 94.
90 Panikkar, A dominação ocidental na Ásia , v. I, p. 50.
91 Fonseca, Vasco da Gama , p. 292.
92 Francisco de Sá de Miranda, Poesia , Lisboa: Imprensa Nacional, 2022, p. 743.
93 R. Timothy Sieber, “Remembering Vasco da Gama: contested histories and the cultural politics of contemporary nation-building in Lisbon, Portugal”, Identities , v. 8,n. 4 (2001), p. 575 https://doi.org/10.1080/1070289X.2001.9962708 . Para um breve histórico da mitificação de Gama, ver Paulo J. de Sousa Pinto e Ana Fernandes Pinto, “Vasco da Gama na história e na literatura: ensaio bibliográfico”, Mare Liberum , n. 16 (1998), pp. 135-174; e Francisco Contente Domingues, “Vasco da Gama’s voyage: myths and realities in maritime history”, Portuguese Studies , v. 19 (2003), pp. 1-8 .
94 Os Lusíadas , X 151.
95 Os Lusíadas , X 154.
96 João Adolfo Hansen, “A máquina do mundo” in Adauto Novaes (org.). Poetas que pensaram o mundo (São Paulo: Companhia das Letras, 2005), p. 176.
* Este artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre o renascimento português, com ensaios publicados em revistas do Brasil e do exterior. Quero agradecer ao prof. Lívio Soares de Medeiros (IFTM) pela leitura dos originais, bem como aos avaliadores anônimos da revista Afro-Ásia , por suas sugestões e contribuições.
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