Servicios
Descargas
Buscar
Idiomas
P. Completa
ALFORRIAS, RELAÇÕES DE GÊNERO E MATERNIDADE NA CIDADE DA BAHIA EM MEADOS DO SETECENTOS *
Raiza Cristina Canuta da Hora
Raiza Cristina Canuta da Hora
ALFORRIAS, RELAÇÕES DE GÊNERO E MATERNIDADE NA CIDADE DA BAHIA EM MEADOS DO SETECENTOS *
FREEDOM LETTERS, GENDER RELATIONS, AND MATERNITY IN THE CITY OF BAHIA IN THE MID-EIGHTEENTH CENTURY
Afro-Ásia, núm. 66, pp. 77-115, 2022
Universidade Federal da Bahia
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: Neste artigo analisei inicialmente o perfil dos alforriados na Cidade da Bahia, entre os anos de 1751 e 1766, por meio de 1.026 cartas de liberdade registradas nos cartórios da cidade que alforriaram 1.118 pessoas. Interessou-me conhecer as chances para sair da escravidão dos cativos nascidos no Brasil e daqueles nascidos no continente africano, bem como outros aspectos dessa população, em particular, gênero, nação e cor. Busquei, naturalmente, lançar alguma luz sobre aspectos da história social da escravidão urbana na Salvador da época. Tal esforço teve o intuito de preparar caminho para discussões realizadas num segundo momento, quando questionei quais justificativas para as alforrias foram utilizadas em Salvador nesse período e como isso se relaciona com as questões de gênero e maternidade. A presente investigação permitiu constatar a centralidade das mães no esforço para a conquista da liberdade das novas gerações de escravizados nascidos na América portuguesa.

Palavras chave: Alforrias, gênero, maternidade, século XVIII, escravidão.

Abstract: This study initially analyzed the profile of freed people in the City of Bahia between 1751 and 1766 via 1,026 manumission documents registered in city notary offices, by means of which 1.118 people obtained their freedom. I was interested in comparing the opportunities for manumission for Brazilian-born captives versus those from Africa, as well as other demographic aspects, especially gender, “nação”, and color. I also sought to shed light on aspects of the social history of urban slavery in Salvador at the time. This effort aimed to pave the way for discussions held subsequently, when I assessed what justifications for manumission were used in Salvador during this period and how this relates to gender and motherhood issues. This investigation enabled me to evaluate the centrality of mothers’ effort to obtain freedom for new generations of children born into slavery in Portuguese America.

Keywords: Manumissions, gender, maternity, 18th Century, slavery.

Carátula del artículo

ARTIGOS

ALFORRIAS, RELAÇÕES DE GÊNERO E MATERNIDADE NA CIDADE DA BAHIA EM MEADOS DO SETECENTOS *

FREEDOM LETTERS, GENDER RELATIONS, AND MATERNITY IN THE CITY OF BAHIA IN THE MID-EIGHTEENTH CENTURY

Raiza Cristina Canuta da Hora
Universidade Federal da Bahia raizacanuta@outlook.com
Afro-Ásia, núm. 66, pp. 77-115, 2022
Universidade Federal da Bahia

Recepção: 5 Março 2022

Aprovação: 13 Junho 2022

Era o dia 26 de maio de 1752 quando Anna Bernardes da Rocha alforriou Joana, filha de Leonor, sua escrava, pelos “bons serviços que tenho recebido de sua mãe” e pelo “grande amor que sempre tive à dita mulatinha”. A liberdade custou quarenta mil réis, pagos por Francisca Lopes, madrinha de Joana. 1 No dia 21 de julho de 1753, Maria Joana de Santo Antônio, religiosa professa no convento de Santa Clara do Desterro, alforriou Ursula, mestiça, filha da sua escrava Mariana, “já defunta”, e neta de Luzia de Souza, africana já forra. A liberdade foi justificada “pelos bons serviços que fielmente me tem feito e que recebi da dita sua mãe”, e por “ter recebido uma negrinha nova no valor de cinquenta mil réis da avó”. 2 Em 30 de janeiro de 1760, Custodio Rabello Figueiredo, casado com Maria Dias Roza, passou a carta de liberdade de José Rabello, preto de nação costa da mina, oficial de barbeiro, “pelos bons serviços” e “por dele termos recebido duzentos e cinquenta mil réis”. 3 Seis anos depois, em 30 de janeiro de 1766, Maria, preta de nação costa da mina, escrava de João Antunes Guimarães, casado com Joanna da Silva da Encarnação, teve sua alforria registrada. Na carta, o proprietário afirmou que o fazia “pelos bons serviços que dela temos tido e amor que por isso lhe temos”, mas também por haver recebido de Silvestre Pereira de Figueiredo cem mil réis em dinheiro. 4

As cartas de liberdade de Joana, Ursula, José Rabello e Maria indicam alguns perfis das pessoas que conquistaram a liberdade na Cidade da Bahia, além de despertar curiosidade sobre os demais indivíduos envolvidos nesses eventos – tanto as pessoas que compunham a rede de afetividade e solidariedade dos alforriados quanto os proprietários e proprietárias escravistas. Essa pequena amostra sugere ainda pistas para conhecer o perfil da população escravizada de Salvador, uma vez que a “população alforriada representa uma espécie de retrato em negativo [e invertido] da população escrava em geral”. O que significa que, se nesta predominavam os homens em idade produtiva, entre os manumitidos, o predomínio era de mulheres e crianças. 5

No presente texto, analiso inicialmente o perfil dos alforriados em Salvador, entre os anos de 1751 e 1766, por meio de 1.026 cartas de liberdade registradas nos cartórios da cidade, que alforriaram 1.118 pessoas. Interessa-me conhecer as chances para sair da escravidão dos cativos nascidos no Brasil e daqueles nascidos no continente africano, bem como outros aspectos dessa população, em particular, gênero, nação e cor. Busco, naturalmente, lançar alguma luz sobre aspectos da história social da escravidão urbana na Salvador da época. Tal esforço tem o intuito de preparar caminho para discussões realizadas num segundo momento, quando questionarei quais justificativas para as alforrias foram utilizadas em Salvador nesse período e como isso se relaciona com as questões de gênero e maternidade.

A escolha do recorte temporal desta pesquisa relaciona-se com um dado apontado por Kátia Almeida: “não há pesquisas sobre a alforria em Salvador entre as décadas de 1750 e 1770”. 6 Stuart Schwartz analisou as manumissões no período 1684-1745, ao passo que Kátia Mattoso investigou as alforrias no período 1779-1850. 7 A pesquisa que desenvolvo se debruça justamente sobre os anos de 1745 a 1778, objetivando preencher a lacuna deixada pelos referidos historiadores. Para este texto, foram utilizados como fontes 14 livros de notas do tabelião, abarcando um período de 15 anos (1751-1766). A metodologia empregada no levantamento dos dados compreendeu o lançamento de todas as alforrias presentes na referida documentação cartorária (que resistiram ao desgaste do tempo) em um banco de dados. Portanto, trata-se de uma análise do total de manumissões do período, e não de uma análise por amostragem, como realizam Schwartz e Mattoso.

Neste trabalho, aceito o convite-desafio feito por Adriana Dantas Reis a todas as pesquisadoras e pesquisadores da história da escravidão para refletir profundamente sobre gênero como uma categoria de análise fundamental para interpretar a escravidão. 8 Tal categoria, assim como raça e classe, configura as relações sociais da escravidão desde o continente africano, o tráfico transatlântico, o cativeiro, até a alforria. 9

Em um excelente exemplo de aplicação da categoria, Camillia Cowling, investigando aspectos da emancipação gradual no Brasil e em Cuba, afirmou que “dedicar-se à análise específica da atuação das mulheres pode nos ajudar a perceber como, em duas sociedades distintas, a escravidão foi um conceito permeado pelas relações de gênero – tanto na teoria como na prática da vida cotidiana”. 10 De acordo com a autora, essa perspectiva traz à tona uma série de questões cruciais para o entendimento de dinâmicas mais amplas presentes nesses e em outros contextos, entre as quais gostaria de destacar uma: “De que maneira a experiência de escravização das mulheres foi diferente da dos homens e por quê?” 11 Eu quero refletir sobre essa pergunta através da alforria.

Discutindo Cuba, Cowling observa que “a significativa participação das mulheres nos processos de coartación [alforria paga a prazo] faz com que um entendimento mais amplo das dinâmicas das manumissões seja alcançado apenas com a compreensão do papel exercido pela categoria gênero nas estratégias de atuações individuais e nas aspirações desses homens e mulheres escravizados”. 12 São todos argumentos convincentes sobre a relevância das questões de gênero para o entendimento mais profundo das dinâmicas sociais no contexto da escravidão.

Sexo, origem, nação e cor dos libertos

Do conjunto das 1.118 pessoas cujas alforrias foram localizadas para o período em tela, 736 eram do sexo feminino (65,8%) e 382 do sexo masculino (34,2% do total), ou seja, cerca de dois terços eram mulheres e crianças do sexo feminino. Os estudos de Katia Mattoso e Stuart Schwartz também demonstram a proporção de duas mulheres para cada homem liberto nas manumissões da Bahia no século XVIII. Porém, dado o estado das pesquisas sobre o tema, esses autores não conheciam a proporção de mulheres na população escravizada da cidade, o que impossibilitou determinar a importância desse resultado. 13

Mas o que significam esses dados em relação à população cativa de Salvador? As listas de escravos nos inventários post mortem compulsados por Daniele Souza indicam que 56,7% deles eram homens. 14 Tendo em vista a maior representatividade das mulheres nas alforrias comparada à sua presença na população cativa, constata-se que a chance de uma mulher cativa ser alforriada era 20% maior do que a de um homem.

Tabela 1
: Sexo dos escravos (1740-1780) e libertos (1751-1766) em Salvador


Kátia Almeida constatou que, em Rio de Contas, as mulheres sobressaíram-se nas alforrias, tanto as nascidas no Brasil quanto na África, resultado encontrado em todas as pesquisas sobre o tema. Na região por ela estudada, as mulheres superaram os homens em todos os tipos de alforrias, exceto nas condicionais não onerosas, constatação que diverge da encontrada em Salvador, onde elas os superaram em todos os tipos de manumissão, inclusive neste. No que se refere à modalidade da alforria por sexo e origem, Almeida observou que, entre os libertos nascidos na África, a vantagem das mulheres era menor que a vantagem obtida pelas brasileiras em relação aos seus iguais. Para a autora, o resultado era reflexo da maior proporção de mulheres na população escrava de Rio de Contas nascidas no Brasil do que na África, e também dos laços afetivos construídos entre senhores e escravas que nasciam em sua casa ou que, por serem crioulas e inseridas na cultura senhorial, sabiam melhor negociar suas liberdades. 16

Em Salvador, no período aqui analisado, os dados relativos à população escrava da cidade são diferentes no que se refere à origem e sexo. As mulheres africanas eram 63,7% das escravizadas, e os homens, 69,6% dos escravizados, portanto, ampla maioria em relação aos nacionais, graças à regularidade do fornecimento de cativos via tráfico transatlântico. 17 E o percentual de mulheres africanas alforriadas, além de superar o das nacionais, supera a sua representação na população cativa. Isso pode ser explicado pelo emprego das africanas – em especial, mas não exclusivamente, das afro-ocidentais (em sua maioria denominadas minas) – em setores mais lucrativos, como o negócio, permitindo ganhar, acumular pecúlio e alforriar a si mesmas e aos seus parentes. 18

Esse potencial fica evidente na vantagem das mulheres em seu conjunto (africanas e brasileiras) na alforria onerosa – 320 ou 67,5% de todos os alforriados mediante pagamento. Nas alforrias gratuitas, a vantagem delas se mantinha em 62,75% (187). Kátia Almeida localizou cifras muito próximas, 60,2%, bem como Stuart Schwartz, 67,7%. 19 Pesquisando o Rio de Janeiro colonial entre os anos de 1650-1750, Jucá Sampaio observou que em nenhum momento a participação feminina nas manumissões foi menor que 50%. 20 Isso permite afirmar que tanto na capital da colônia e em outras áreas economicamente dinâmicas da América Portuguesa, como o Rio de Janeiro, quanto em áreas mais periféricas, embora com economia pujante, como as minas de Rio de Contas, a vantagem das mulheres foi constatada pela historiografia.

É possível que a hipótese do emprego das africanas em setores lucrativos também tenha validade para os homens africanos, que atuavam em diversos serviços nas ruas de Salvador – desde barbeiros a carregadores, por exemplo. Estes, porém, apesar de conseguirem recursos, poderiam não ter tanto sucesso em acumular uma poupança para conquista da liberdade onerosa, tanto pelo fato de suas alforrias serem cerca de um terço mais caras como pelos senhores estarem menos dispostos a conceder alforrias a adultos do sexo masculino, já que a perspectiva da escravidão africana era enraizar os homens no cativeiro.

Os dados sobre a origem dos alforriados e alforriadas nos informam sobre as possibilidades de obtenção da alforria de acordo com o local de nascimento: Brasil ou África. Os inventários post mortem dizem que 67,1% dos homens e mulheres escravizados em Salvador, entre os anos de 1700 e 1800, haviam nascido no continente africano. No que se refere à origem das pessoas libertas, 44,3% eram africanas e 55,7% nascidas no Brasil.

Tabela 2
: Sexo e origem dos escravos de Salvador – 1740-1780


Tabela 3
: Alforrias, 1751-1766


O perfil dos escravizados e dos alforriados revela que, apesar de os indivíduos de origem africana constituírem maioria da população escravizada, graças ao amplo acesso dos senhores baianos ao tráfico transatlântico, eles não foram beneficiados na mesma proporção nas cartas de liberdade outorgadas entre os anos de 1751 e 1766. Eram 67,1% dos escravizados, mas apenas 44,3% dos alforriados. Os nascidos no Brasil estavam mais próximos das famílias senhoriais, sendo grande número “crias da casa”, o que favorecia o desenvolvimento de laços afetivos que podiam ser traduzidos em alforrias. Mesmo as pagas, pois podiam contar com melhores preços e gente que as financiasse.

Observa-se também que as mulheres africanas têm muito mais vantagem sobre os homens africanos do que ocorre entre os nascidos no Brasil. As mulheres eram 45,9% dos escravizados nascidos no Brasil e 61,2% dos alforriados, diferença de 15,3% em favor delas; entre os nascidos na África, elas eram 39,4% dos escravizados e 71,2% dos alforriados, uma enorme diferença de 31,8%. Ou seja, a desvantagem dos homens africanos dentro de seu grupo de origem era pouco mais do dobro daquela encontrada pelos homens brasileiros dentro do seu, apesar de que, em ambos os grupos, as mulheres vencem os homens na corrida pela liberdade. Em resumo, os homens africanos eram os maiores perdedores nessa corrida.

Os escravos nascidos do outro lado do Atlântico tinham mais dificuldades de obter alforrias, segundo a maioria das pesquisas. A investigação de Stuart Schwartz sobre manumissões em Salvador entre os anos de 1684 e 1745 – período em que pessoas escravizadas nascidas em África representavam 67,5% – também demonstrou que os homens e mulheres crioulos, mulatos e caboclos constituíam a maioria dos libertos, representando 69% do total, apesar de serem aproximadamente 33% da população escrava da cidade. 22 Esse percentual é superior aos 55,7% de libertos nascidos no Brasil, encontrados para o recorte de minha pesquisa. Isso significa que, entre os anos de 1751 e 1766, as chances de os africanos e africanas conseguirem a liberdade se tornaram 13% maiores que nos anos anteriores ou, dito de outro modo, os nascidos no Brasil perderam 13% de vantagem na obtenção da manumissão, levando em conta também o fato de os africanos terem diminuído em 7,5% sua participação no total dos escravos da Cidade da Bahia no intervalo de 1745 para 1751.

Os resultados por mim obtidos são muito próximos aos de Kátia Mattoso, que pesquisou os anos de 1779 a 1850. Essa autora também confirmou a vantagem dos nascidos no Brasil na aquisição da alforria em cifras menores que as encontradas por Schwartz. Eles eram 56,6%, enquanto os africanos representavam 43,4%. 23 Para o período analisado por Mattoso, a explicação para os valores encontrados passa pelo aumento do tráfico transatlântico para a Bahia no final do século XVIII, indicativo de recuperação da economia açucareira em decorrência da crise nas Antilhas devido à revolução de escravos em São Domingos, que levou ao aumento dos nascidos na África na população escravizada da cidade. 24

Os dados relativos aos anos de 1751 a 1766 revelam que o aumento de pessoas de origem africana na cidade e no conjunto dos alforriados começou muitos anos antes. Uma hipótese macroeconômica para este fenômeno considera a nova dinâmica do mercado de escravos em meados do século XVIII, no contexto da decadência do ouro nas Minas Gerais. 25 Nesse contexto, é possível aventar: será que os proprietários escravistas de Salvador passaram a ter menos concorrência na disputa por mão de obra africana, adquiriam escravos novos com menos dificuldade e assim podiam vender mais alforrias? Infelizmente não disponho de dados para responder a essa questão.

Nicolau Parés contabilizou que, diferentemente do ocorrido em Salvador, os escravizados nascidos no Brasil computavam 67,7% da população cativa de Cachoeira e 76,7% dos libertos, ao passo que os africanos representavam 32,3% na cidade e 23,3% dos alforriados, o que também demonstra a vantagem dos nascidos na América colonial portuguesa na conquista da manumissão. 26 Kátia Almeida, por sua vez, verificou que, na região de Rio de Contas, até a década de 1750, as pessoas nascidas na África representavam mais de 50% da população escrava e, após 1760, o processo de crioulização inverteu essa taxa. Apesar disso, ainda que os senhores da região participassem ativamente do tráfico transatlântico para repor suas escravarias, eles não alforriavam os cativos africanos na mesma proporção, privilegiando a segunda geração de escravizados. 27 Desse modo, os dados aqui compulsados, juntamente com os de Schwartz, Mattoso e Almeida, revelam as maiores dificuldades dos escravizados nascidos do lado de lá do “rio chamado Atlântico” na conquista da liberdade através da alforria. Mas, nesse grupo, as chances de alforria eram iguais para pessoas de todas as nações?

Tabela 4
: Origem e sexo dos escravos nos inventários de Salvador (1740-1780)


Tabela 5
: Composição étnico-racial e por sexo dos alforriados, Salvador, 1751-1766

* Entre as mulheres, estão incluídas 10 jejes, 10 guinés, 8 coda/codavi, 6 couranas, 3 nagôs, 2 São Tomé, 1 uidá, 1 calabar, 1 savalu, 1 cabo verde e 1daomé. Entre os homens, 5 jejes, 4 guinés, 2 nagôs, 1 calabar e 1 São Tomé. ** Entre as mulheres, estão incluídas: 4 benguelas e 1 congo. Entre os homens, 2 benguela/ guenguela e 1 congo. *** Entre as mulheres crioulas, incluí duas “negrinhas”, uma teve a filiação indicada no documento.

Dos 1.014 libertos, 479 eram africanos; destes, 306 (70,8%) eram de nação mina. Schwartz localizou para os anos de 1684 a 1725 apenas 30 pessoas de nação mina. Já para os anos de 1726 a 1745, o autor afirma que foram registrados nas cartas de alforria 82 indivíduos dessa nação e lembra que, como a origem africana dos libertos expressa as tendências do tráfico atlântico para Salvador, tal aumento se relaciona com o estabelecimento de um entreposto comercial português, com a licença holandesa, no forte de Ouidah, em 1721. 28 Desde então, o comércio lusitano na Costa da Mina tornou-se a principal fonte de mão de obra escravizada para a Bahia. 29

A análise da origem dos libertos revela que existiam variações na proporção de alforrias outorgadas para as pessoas nascidas na África. Os homens e mulheres classificados como nação mina representavam 38,4% da população escrava de Salvador no século XVIII, porém, 30,2% dos alforriados, o que revela uma desvantagem de 8,2% do grupo no momento da alforria. Já os homens e mulheres de nação angola correspondiam a 18,2% dos escravos e 5,8% dos alforriados, uma desvantagem de 12,4%. Pretas e pretos nascidos (as) no Brasil tiveram uma pequena vantagem no momento da alforria, pois representavam 23% da população escravizada, no entanto foram beneficiados com as cartas de liberdade em 23,5%.

Analisando a origem e sexo da população cativa e comparando com a liberta, é possível chegar a algumas constatações. Os dados possibilitam afirmar que a Cidade da Bahia, entre os anos de 1740-1780 era habitada, sobretudo, pela população de nação mina. 30 As minas chegaram a superar todas as mulheres manumitidas no período em tela, tanto as nascidas do lado de lá quanto as nascidas do lado de cá do Atlântico. No grupo das mulheres libertas, as de nação mina superam todas as outras origens, representando 41,3% das cativas da cidade e 71,6% das libertas, uma vantagem de quase 30% no momento da alforria. As de nação angola eram 13,6% das escravizadas na cidade e receberam alforria em 12,8% das ocorrências, o que revela uma desvantagem de 0,8%.

Esse padrão se repete no cotejamento dos dados dos homens escravizados. No conjunto destes, a nação mina também se destaca entre a população escravizada: eram 36,3%, ao passo que entre os libertos representavam 68,8%. Os angolas eram 21,4% dos escravos e 16% dos libertos, desvantagem de 5,4%.

Entre os libertos, os homens minas dividiram a segunda posição de maior representatividade com os crioulos, que eram 21% da população escravizada e 21,5% dos alforriados. A primeira posição ficou com os mulatos, 3,7% dos cativos e 23,8% dos manumitidos. Assim, os mulatos tinham uma vantagem de 20% no momento da conquista da alforria. Voltarei a esses dados mais adiante. Desse modo, apesar de homens e mulheres da África, especialmente os minas, constituírem a maioria da população escrava de Salvador (66,7%), sua representação no grupo dos libertos não é proporcional à sua presença na demografia da cidade (42,6%).

Quanto à presença expressiva de mulheres minas entre as alforriadas, é preciso sinalizar que a historiografia constatou esse destaque em outras regiões da América colonial portuguesa, como revelam as pesquisas de Sheila de Castro Faria, sobre o Rio de Janeiro e São João Del Rei, e a de Kátia Almeida, sobre a região das minas do Rio de Contas, para a qual contabilizou que 62% das africanas libertas eram mina e 24% angola. 31 Em Salvador, no conjunto das africanas manumitidas, as minas representaram 71,6% e as de nação angola apenas 12,8%.

Vidas

Eram mulheres como Ana do gentio da costa da mina, escrava de Ana Maria de São José. Esta concedeu a liberdade alegando que o fazia “pelos bons serviços no decorrer desses doze anos que a possuo”, mas também cobrou oitenta mil réis, no dia 13 de dezembro de 1765. 32 Outras africanas minas optaram por amealhar o valor equivalente a uma escrava, adquiri-la e oferecê-la ao proprietário(a) em troca da liberdade, prática conhecida como alforria por substituição, também reveladora do fenômeno dos escravos-senhores. 33 Foi essa a estratégia utilizada por Custódia, preta do gentio da costa da mina, escrava de José Machado Andrade, senhor que, em 28 de março de 1759, afirmou que, “pelos bons serviços e por haver me dado uma negra da costa da mina”, a libertava do cativeiro. 34 Como essas mulheres conseguiam levantar essas quantias na Salvador de meados do século XVIII?

Características geográficas, econômicas e sociais de Salvador no referido período, somadas ao número expressivo de alforrias onerosas conseguidas pelas mulheres, indicam a existência de atividades que proporcionavam condições para acúmulo do pecúlio para a aquisição de suas cartas de liberdade. 35 A alforria de Rita, preta do gentio da guiné, escrava de Manoel Francisco Dourado, é um bom exemplo disso. O proprietário passou a carta de Rita afirmando que

pelos bons serviços que me tem feito e está atualmente fazendo pagando-me semanas de que me sustento e juntamente servindo-me em tudo que me beneficia, hei por coartada como com efeito de verdade a corto na quantia de oitenta mil réis de hoje para todo sempre e para ajudar a adquirir o dito corte lhe concedo três anos que começarão a correr do meu falecimento em diante em o qual tempo não será obrigada a servir a pessoa alguma e inteirada que seja e entregue a dita quantia a quem direitamente pertencer, hei por forra a dita escrava, livre […] com a condição porém que a dita escrava será obrigada a me acompanhar enquanto eu vivo for e servir-me da mesma sorte com que agora está fazendo […] tratando-me e servindo-me com toda a fidelidade e amor e sofrendo as minhas impertinências como de velho e quase cego, advirto

também que se eu carecer de algum dinheiro em minha vida e a dita escrava mo puder dar à conta do dito corte […] como também rogo à dita escrava que faça muito por concorrer com o que for necessário e preciso para o meu funeral se lhe levará em conta no mesmo corte. 36

A partir da riqueza de detalhes dessa carta, é possível imaginar o volume de trabalho realizado por Rita, situação que se prolongou, tudo indica, até a morte de Manoel Dourado. Mas o que interessa saber nesse momento é a evidência de que Rita possuía um acordo de trabalho ao ganho com o seu proprietário, manifestado na afirmação de que ela pagava toda semana a parte combinada do que ela ganhava na rua e que garantia ao senhor, quase cego, o sustento. Trabalho tão lucrativo que o fez responsabilizar Rita pelas despesas com o seu funeral, além de lhe pedir adiantamentos em dinheiro, caso necessitasse, o que seria adiante descontado da prestação de sua alforria. Ou seja, a escravizada era responsável por adquirir os recursos necessários para a sua subsistência e a do senhor, além do valor da sua liberdade e do sepultamento de seu dono. Infelizmente, o documento não especifica quais atividades Rita desempenhava, mas não é demais imaginar que fosse a tão comum venda de alimentos pelas ruas da cidade. 37

A alforria de Felizarda, preta do gentio da mina, escrava de João Ferreira da Cruz traz maiores indícios das atividades desempenhadas pelas africanas. Segundo o documento, a alforria custou cem mil réis, cinquenta pagos no ato da carta, quantia que o senhor utilizou para pagar dívidas, e cinquenta mil réis que deixou ficar na mão da escrava “para com eles negociar para dos ganhos me ir sustentando enquanto eu vivo for e por minha morte dará vinte mil réis para meu enterro”. Ou seja, como no caso do senhor de Rita, este senhor concedeu um empréstimo à sua cativa para que ela pudesse investir em seu negócio. Pelos “bons serviços pois está me sustentando e pagando-me a casa por eu já não poder trabalhar pelos achaques”; “do dia da minha morte ficará gozando da liberdade de forra”. 38 Africanas de diferentes origens trabalhavam “de portas afora” em meados do Setecentos como arrimo de senhores e senhoras. A manumissão de Maria preta angola é outro exemplo. Esperança Rodrigues da Conceição, sua proprietária, em dois de junho de 1764, alforriou Maria justificando o ato pelos bons serviços e “por me ajudar a viver com os lucros do seu trabalho”, com a condição de mandar rezar “duas capelas de missas pela minha alma”. 39 Semelhante às cartas de Rita e de Felizarda, fazia parte do pacote de pagamento dessa alforria, além do trabalho para subsistência da senhora, contribuir para as despesas fúnebres de seus donos e donas. Esses casos são particularmente interessantes por apresentar informações pouco frequentes nas cartas sobre a fonte do pagamento pela alforria. Embora seja fácil intuir que quase todas as alforrias pagas fossem financiadas pelo pecúlio acumulado durante anos pelas ativas, aqui temos essa circunstância claramente declaradas.

Documento singular no conjunto das cartas de liberdade é a alforria de Josefa Pereira, preta do gentio da costa da mina, que passo a transcrever na íntegra por revelar aspectos do que temos discutido aqui acerca das condições materiais de existência das mulheres africanas, neste caso, mais uma de nação mina.

Alforria de Josefa Pereira, preta do gentio da Costa da Mina. Digo eu Manoel de Couto Santos que sou senhor e possuidor de uma escrava do gentio da costa da mina a que houve por compra a um camarada por nome Miguel Pereira Santos, já defunto, a qual dou por forra e livre de toda escravidão como se assim nascesse de sua mãe e o faço muito por minha vontade sem constrangimento de pessoa alguma e declaro que quando a dita escrava veio para meu poder trouxe trastes de ouro com que se compunha e alguns de seda que lhe não […] de cuja venda resultou comprar um moleque hoje se achando com mais uma moleca pelo que digo que tem escravos como ouro de seu uso tudo mais que consta lhe pertença se não ponha dúvida alguma nem impedimento nisto como na carta de liberdade de que tenho passado a um mulatinho digo passado ao mulatinho José Pereira em que o faço senhor e possuidor de todos os móveis de casa reservando alguns que eu queria dar ou nomearem alguma carta de liberdade que […] passar alguma das escravas que me servem, hei por bem mandar como mando que a dita escrava Josefa Pereira entregue […] de que me sirva […] na forma a que esteve sempre armado com seu colchão e [cobertor?] dois lençóis, dois travesseiros enfronhados e que não sejam os mais velhos e a […] mesa de quatro gavetas que […] seis cadeiras que ela escolher à das melhores que estão na roça, o assento maior que serve de banco e tem […] que fecha cobre, a caixa grande de guardar roupas e assim mais duas toalhas de mãos, quatro guardanapos e quatro colheres e quatro garfos de latão dos mesmos que estão na [roça] e duas facas a que tudo poderá haver como a verdadeira senhoria no que julgo haverá pouca dúvida se atenderam o que devem da escravidão e peço à Justiça de Sua Majestade que Deus Guarde e faça […] 40

Josefa Pereira, preta de nação mina, é um exemplo das africanas que conquistaram bens materiais – ouro, seda e escravos – e cuja propriedade é reconhecida e garantida pelo seu senhor, que fez questão de não deixar dúvidas ao declarar: “digo que tem escravos como ouro de seu uso tudo mais que consta lhe pertença se não ponha dúvida alguma nem impedimento nisto”. Importante notar que, na Bahia, assim como nas minas gerais e do Rio de Contas, escravizadas também faziam pecúlio com peças de ouro. 41 Será que Josefa estava transitando para a região das minas? Infelizmente a fonte não informações a esse respeito. A carta também não faz qualquer referência ao tipo de alforria concedida por Manoel de Couto Santos, o que leva a crer que se tratou de uma alforria não onerosa. A generosidade manifestada no ato de alforriar o mulatinho José Pereira, provavelmente filho de Josefa e quiçá do próprio senhor, e lhe doar todos os bens listados, corrobora o caráter gratuito da alforria de Josefa Pereira e a provável relação afetivo-sexual entre escrava e senhor. Voltarei a discutir esse documento em uma seção específica sobre arranjos familiares de africanos nas cartas de alforria.

Já os homens de origem africana tinham menos oportunidade de serem alforriados que as mulheres, já vimos isso. Nesse grupo, como já foi dito, os de nação mina também se destacaram na aquisição da liberdade, como José Rabello. Na carta de liberdade registrada em 30 de janeiro de 1760, Custodio Rabello Figueiredo e sua esposa Maria Dias Roza, proprietários de José, declararam que o escravo era oficial de barbeiro e que o alforriavam “pelos bons serviços” e “por dele termos recebido duzentos e cinquenta mil réis”. 42 Valor alto, compatível com o ofício especializado, bastante requisitado na Cidade da Bahia no período. 43 Antonio, gentio da Costa da Mina, escravo de Francisco Gonçalves de Oliveira, morador de Cachoeira, precisou trabalhar até o fim da vida do seu proprietário, que declarou que “o fa[zia] esmolar” e “por [sua] morte ficará isento de toda escravidão”. 44 Antônio era provavelmente idoso ou doente ou deficiente físico, já que seu ganho era pedir esmolas na rua. Por sua vez, Luís Machado, preto mina, foi escravo do senhor […] Machado, falecido, e recebeu alforria condicionalmente. O testamenteiro do senhor, Manoel Fernandes do Crato, escreveu que “o dito defunto deixou cortado em quarenta mil réis e pelos haver recebido”, no dia 9 de novembro de 1759 registrava em cartório a manumissão do escravo, que era oficial de carpinteiro. 45

No caso dos homens escravizados, era mais comum aparecerem referências às ocupações que exerciam, ao contrário do ocorrido com as mulheres. Provavelmente, isso se relaciona com o fato de que o domínio de um ofício especializado agregava, e muito, ao valor do escravizado, seja na hora da aquisição pelo proprietário, seja na hora da compra da liberdade. Não obstante, infelizmente, a maioria das cartas, para ambos os sexos, não traz qualquer indicação sobre isso.

No conjunto dos homens e mulheres brasileiros, 40,9% foram classificados como crioulos, 32,1% mulatos, 21,0% pardos, 3,4% cabras e 2,6% mestiços. A grande vantagem no momento da alforria ficou para os chamados mulatos(as) e pardos(as). Os mulatos eram 3,7% dos cativos e 23,8% dos manumitidos nacionais, o que indica uma vantagem de 20,1%. Já os pardos, 3% dos escravos, representavam 11% dos libertos. A desvantagem dos africanos e crioulos foi convertida em vantagem para os mulatos e pardos. Esse resultado, por outro lado, foi devido ao elevado número de crianças beneficiadas (foram alforriados, ao todo, 91 mulatos, dos quais 82 eram classificados como “mulatinhos”). Esse dado repete para a capital o encontrado por Kátia Almeida para o Rio de Contas. A autora observou que, à medida que aumentava o grau de mestiçagem, aumentavam as chances de alforria para os escravos, e acrescentou que “a representatividade dos mulatos entre os libertos chama a atenção, mas não surpreende, pois muitos eram filhos de senhores com suas escravas”. 46 Em Salvador, era esse o caso do mulatinho Severino, filho de Maria, mulata, beneficiário da carta de liberdade que dizia:

Digo eu Manoel de Almeida Cardozo entre os mais bens […] de que estou de minha pacífica posse bem assim é uma mulata por nome Maria, a qual houve por compra que dela fiz a Tomas da Costa Lima

como testamenteiro do primo, o sargento-mor Antonio Rodrigues Banha, que Deus haja em glória, da qual mulata por nome Maria tive um filho que se batizou com o nome de Severino, o qual mulatinho, por reconhecer que é meu filho , o forro de hoje para todo sempre para que […] viva liberto como se do ventre de sua mãe liberto nascera o que faço não só pelo amor de Deus senão pela obrigação que tenho de o reconhecer por meu filho , pelo que peço e rogo à justiça de sua Majestade que Deus o guarde e faça assim cumprir e guardar como se contem nesta carta de liberdade […]. 47

Infelizmente, o reconhecimento da paternidade de crianças tidas com as mulheres escravizadas não foi tão comum nas cartas de alforria. 48 Entretanto, há outras fontes que possibilitam jogar luz sobre esse aspecto. Adriana Dantas Reis, pesquisando 662 testamentos de homens e mulheres falecidos entre 1811 e 1833, constatou que são numerosos os homens livres que, em testamento, legitimaram ou instituíram como herdeiros os filhos tidos com mulheres escravizadas ou libertas e livres de cor. A autora afirma que, entre os 77 homens, casados e solteiros, 21 deles (27,2%) declararam ter filhos naturais com mulheres de cor. Dantas Reis acrescenta que “os únicos ilegítimos identificados como mulatos eram filhos de escravas com pais portugueses”. 49

Alforrias, relações de gênero e protagonismo materno

As cartas de liberdade informam sobre o tipo de emancipação e as ações das partes envolvidas nela. A historiografia sobre manumissões apontou que a alforria pode ser vista como “o resultado final de um longo processo de negociação, nascido ao mesmo tempo da aceitação pelo cativo das regras da sociedade escravista e da utilização por ele dessas mesmas regras em seu benefício”. 50 Tal interpretação induz ao questionamento sobre as estratégias de negociação acionadas pelos escravizados, sobretudo as escravizadas, rumo à alforria legal. Ou, visto por outra perspectiva, quais justificativas e as condições dos senhores para alforriar seus cativos e como isso se relaciona com as questões de gênero e maternidade?

Diversos foram os motivos apontados pelos senhores. É preciso observar que se trata de um elemento bastante variável na documentação, uma vez que subjetivo, portanto, muito diferente das análises relativas ao perfil por sexo, origem ou o preço dos cativos, por exemplo. Desse modo, a classificação das justificativas atende sobretudo a um esforço para entender motivações, estratégias e sentimentos individuais de senhores e seus escravizados. 51

Localizei menções aos bons serviços dos alforriados em 366 ocorrências (51,5%) identificadas. Schwartz localizou menção aos bons serviços prestados pelos escravos ou por seus pais em 47% das cartas investigadas, o que se aproxima bastante de nossa marca. O autor afirma que se tratava de um “pré-requisito” ou “exigência mínima” para a concessão da liberdade, com o que tendo a concordar. 52 Não obstante, houve uns raros cativos que conseguiram a alforria justamente por agir de modo insubordinado. Foi o caso de Josefa Antonia, preta de São Tomé, escrava do padre Francisco Xavier Filgueira, que recebeu sua liberdade sem qualquer ônus “por ser desbocada e tratar a todos de casa mal e com enredo viver desgostoso”. O vigário estipulou apenas uma condição: “sair fora da minha casa, nunca mais me aparecer diante de mim, nunca me pôr mais pé na casa”. 53

Não é difícil imaginar Josefa servindo de má vontade, de modo ríspido, praguejando e proferindo os piores xingamentos aos ouvidos do talvez pudico “homem de Deus”. Atos de insubordinação e mesmo de resistência cotidiana que, nesse caso singular, a levaram à liberdade gratuitamente. Por que o padre optou por alforriá-la em vez de vendê-la é uma questão difícil de saber. Mas é possível imaginar que o vigário estivesse fugindo do constrangimento de dar explicações sobre o comportamento da cativa para um potencial comprador. Como religioso, ele não deveria mentir. Outra hipótese é que, dada a saturação da relação com a cativa, ele optou pela via mais rápida: redigir uma carta de liberdade e se livrar do problema. Pode ser, ainda, que a cativa fosse mui dependente da proteção de seu senhor, quiçá por não ter habilidades além do serviço doméstico e, portanto, viver sem senhor configuraria uma punição, pois agora a escrava não tinha um teto sob o qual morar. Isso fica muito fortemente sugerido nas palavras do padre: “nunca me pôr mais pé na casa”. Essa a grande vingança…

Apesar de a condição de religioso estar por trás do gesto de Francisco, que devia sofrer com os palavrões proferidos por Josefa, que desagradariam muito a Deus, essa manumissão não foi outorgada “por amor a Deus”. Motivação religiosa desse tipo foi identificada em apenas 31 das 1.026 cartas de liberdade estudadas. O que nos leva a entender que, em Salvador, naquele período, os assuntos religiosos não tinham muita influência sobre as transações econômicas relativas à propriedade escravista. Schwartz observa que os senhores encaravam a concessão da manumissão como um ato de caridade e a ausência de menção às motivações religiosas não significa que os senhores não se sentissem recompensados por Deus pelo ato, mas que havia motivos mais fortes em suas decisões. 54 Quais seriam esses motivos?

O pagamento era um deles. É preciso destacar que um pouco mais da metade dos manumitidos de ambos os sexos nos anos aqui analisados precisou desembolsar recursos para obter sua liberdade (531 ou 50,7% dos alforriados). 55 Todavia, nem todos os proprietários expressaram a motivação monetária, apesar de terem recebido vultosas quantias, muitas vezes. Outros motivos frequentemente registrados nas cartas foram os laços de parentesco consanguíneo ou por afinidade, amor e sentimento maternal ou paternal. A historiografia sobre o tema concorda que as relações familiares tinham papel fundamental no processo de emancipação e isso se confirma na pesquisa em tela. 56 Dada a variedade de análises que esse aspecto das alforrias possibilita e a sua importância para a compreensão do fenômeno, detalharemos.

A situação mais óbvia era o reconhecimento da paternidade biológica pelo proprietário escravista. Foi o caso de Manoel, Maria e Ana, filhos de Úrsula, preta do gentio da mina, escravos de Francisco Machado, que, em testamento, reconheceu ser pai e alforriou a todos no ano de 1756. 57 Outros senhores não esperaram partir para o outro plano para reconhecer publicamente seus rebentos. Um deles foi João Lopes da Costa, que alforriou gratuitamente a Sinhorinha, de três anos de idade, filha da crioula Maria, sua escrava. João escreveu: “por ser minha filha e por desencargo de minha consciência”. 58

Mas há outros casos nesse mesmo registro. Manoel Almeida Cardozo também não quis levar a consciência pesada para o além-túmulo. Em quatro de junho de 1766, ele alforriou gratuitamente o mulatinho Severino, filho da mulata Maria, alegando: “o que faço não só pelo amor de Deus senão pela obrigação que tenho de o reconhecer por meu filho”. 59 Obrigação que foi cumprida e registrada em cartório pelos escravistas em apenas cinco ocasiões, entre os anos de 1751 e 1766. 60 As ocorrências desse tipo foram, portanto, tão raras que não as contabilizei, parecendo que a má consciência não perturbou muito a vida da maioria dos senhores, antes ou depois da morte.

É preciso problematizar o fato de senhores terem filhos com suas escravas. O princípio do “ partus sequitur ventrem assegurava que esses encontros não ameaçariam o direito de propriedade sobre as escravas, uma vez que as crianças nascidas desses relacionamentos herdavam o status da mãe, permanecendo escravas”, conforme destacou Camillia Cowling. Ela acrescenta que, segundo essa lógica, os senhores não viam nenhum impedimento em estuprar suas escravas, já que não perderiam o direito sobre a propriedade das crianças fruto desses estupros. 61 Tanto não perderam que as cartas de alforria com reconhecimento de paternidade estão aí para comprovar que, independentemente de a relação sexual estabelecida entre senhores e escravas ser consensual ou não, a prerrogativa de alforriar os frutos dessas relações permanecia sendo senhorial.

Houve também maridos senhores que alforriaram suas companheiras e filhos, como João da Costa Porto do Espírito Santo, preto forro natural de guiné, escravo que fora de Maria Ribeiro, viúva do capitão Manoel da Costa Porto. João casou-se com Roza Maria da Costa da Conceição, nação angola, quando esta era escrava dos seus antigos senhores e com ela teve dois filhos, Marcos e João. Em 1º de setembro de 1757, João registrou em cartório a alforria da família. Ele havia comprado a todos para livremente viverem. 62 É possível, a partir deste caso, observar o projeto de vida desse casal de africanos, que destoa do que, imagina-se, mais comumente acontecia, que era alforriar primeiramente a parceira com o fim de libertar o ventre. João alforriou-se primeiro para, a partir dos recursos acumulados como liberto – conjugados com o pecúlio de sua esposa, possivelmente –, adquirir a liberdade de toda a família.

Ainda sobre senhores alforriando familiares, trago o caso de Clara. Em setembro de 1766, Felix de Andrade dos Reis alforriou Clara de Jesus, sem cor/origem informada, afirmando ser “minha neta, filha do meu genro Inácio de Souza”. E explicou como a neta teria virado sua cativa: “Comprei por setenta mil réis a Jeronimo Pereira que havia arrematado em leilão dos bens dos Padres da Companhia da fazenda Campinas, hoje Fazenda das Capivaras”. 63 A alforria não fora de graça, custou os mesmos 70 mil réis que o avô pagara pela neta, quantia recebida de Inácio de Souza, pai de Clara. É uma operação misteriosa. Por que o pai não alforriou a menina, pagando ele próprio ao dono Jeronimo Pereira? Por que o avô não fez o mesmo? Da maneira como a transação foi feita, parece que o avô quis garantir que seu genro o ressarcisse do investimento feito na compra da neta, e assim manteve esta sob seu cativeiro. Isso sugere que a menina tivesse virado uma espécie de penhor nas mãos do avô, que só a liberou após ter sido paga a dívida pelo pai, no caso, na forma de compra da alforria. Vê-se por aí que solidariedade familiar também se fazia por linhas tortas.

A rede de relações familiares para a conquista da manumissão foi acionada em várias ocasiões em Salvador.

Os dados da Tabela 6 evidenciam a importância das redes familiares para a conquista da alforria em Salvador, em meados do século XVIII. Cerca de 60% dos alforriados que tiveram suas manumissões custeadas por terceiros contaram com parentes consanguíneos, com destaque para as mães, que foram indicadas como responsáveis pelo pagamento mais que o dobro de vezes dos pais. Para o período anterior, 1684-1745, Schwartz constatou que, em 27 casos, escravas conseguiram comprar a liberdade dos filhos, ao passo que em apenas dois casos o pai conseguiu fazê-lo. O autor destaca que, em 72% das cartas que mencionavam relações de parentesco, estas se referiam a que o liberto era filho de escrava do mesmo senhor, o que o levou a concluir que, independentemente de terem famílias legítimas, “os laços entre mães e filhos eram evidentemente fortes e proporcionavam aos escravos crioulos e mulatos uma relativa vantagem no processo de emancipação”. 64

Tabela 6
: Parentesco entre alforriados e benfeitores 1751-1766

* Não se trata de proprietários de seus filhos, situação antes discutida. ** Implícita a ideia de parentesco simbólico no compadrio. *** Benfeitores sem parentesco identificado, 13 homens e uma mulher.

Os laços de parentesco ritual também foram importantes para a obtenção da liberdade. Vinte madrinhas e padrinhos assumiram os custos das alforrias de 25 pessoas, todas crianças, importante destacar. Esse dado possibilita constatar a vantagem que a descendência dos africanos aqui desembarcados tinha em relação aos seus pais. Pessoas de origem africana não foram beneficiadas pela ajuda de padrinhos na compra da alforria, ou, se foram, tal ajuda não foi registrada. O fato de eles, em geral, não escolherem seus padrinhos se relaciona à sua condição de boçais. Desse modo, ignoravam a língua, os costumes e ritos e desconheciam as pessoas locais, tendo pouca voz ou nenhuma na escolha. 65 Apesar disso, uma vez ladinizados, africanos e africanas entenderam rapidamente a importância do parentesco ritual e as redes construídas e consolidadas por elas com esses indivíduos nas cerimônias de batismo, com implicações práticas na vida dos seus filhos e filhas. 66 “Em Rio de Contas, durante o século XVIII, várias cartas também foram pagas por familiares dos escravos, sobretudo pelos pais e padrinhos das crianças”, conforme o estudo de Katia Almeida. 67

Nos dados de Salvador, chama a atenção o número de pagantes de alforrias cujas relações parentais com os alforriados não foram explicitadas no documento. Foram treze homens e uma mulher. Jucá Sampaio, pesquisando sobre o tema no Rio de Janeiro, também verificou que “em praticamente todos os casos em que os pagadores não tiveram suas ligações com os alforriados explicitadas, aqueles eram do sexo masculino. As únicas exceções são uma pagadora e três casos em que não conseguimos identificar o sexo do pagador”. 68 É possível imaginar que fossem pais das pessoas alforriadas que não quiseram ou puderam se expor, por censura social, quando da feitura da alforria. Esses personagens podiam ser amásios, amigos, credores das mães e pais dos manumitidos.

No Rio de Janeiro, Sampaio constatou que o número de escravos que tiveram suas manumissões pagas por seus padrinhos é igual ao daqueles cujos pagadores foram as mães. Para o autor, o papel materno parece ter sido “sobretudo o de construir a rede de relações sociais que possibilitasse a liberdade dos infantes, fosse através de seus pais ou de outras formas de relação, como compadrio”, pois, para ele, “a libertação das crianças era, para as mães, muito mais uma tarefa de terceiros do que delas”. 69 Para o caso da Bahia, os dados aqui apresentados refutam completamente essa afirmação, uma vez que as mães foram responsáveis não apenas pela maioria das alforrias onerosas custeadas por terceiros, como pelos “bons serviços” registrados em dezenas das cartas analisadas. Com efeito, dos 293 “inhos” e “inhas” alforriados (crianças, portanto), no mínimo 86 (29,3% do total) tiveram registradas em suas manumissões justificativas como “pelos bons serviços que de sua mãe tenho recebido”. A essa conta podem ser somadas mais seis pessoas que não foram classificadas no diminutivo, mas tiveram a mesma justificativa registrada em suas manumissões. Isso em todos os tipos de cartas – onerosas, gratuitas, condicionais e condicionais onerosas. 70 Cartas pagas tanto por elas quanto por madrinhas, padrinhos e pais. Desse modo, o papel das mães de crianças escravizadas ia muito além do pagamento de suas alforrias e as de sua prole e do convencimento dos pais e padrinhos para financiá-las.

O papel das mulheres escravizadas se apresentava, sobretudo, na micropolítica das negociações com o/as proprietários(as) escravistas, e isso incluía um elemento fundamental negligenciado pela historiografia: os serviços prestados pelas mães das crianças alforriadas. Schwartz pontuou que os bons serviços eram pré-requisitos para a alforria, mas não distinguiu, na sua análise, “bons serviços” de “bons serviços prestados pela mãe”. Nenhum dos trabalhos relativos a alforrias consultados até o momento opera com essa distinção, é preciso dizer. O caminho da negociação até a conquista da alforria passava por anos de serviços prestados por essas mães, que deviam acumular as tarefas do cativeiro com a da maternagem, atentando ao oferecimento do melhor serviço aos senhores sob risco de comprometer a negociação da alforria da criança. Foi o caso de Ana Maria, preta da Costa da Mina, escrava de Elena Soares Garcez. Esta, ao alforriar Ana e suas duas filhas, Maria Joaquina, de dois anos e meio, e Inácia, de dois meses, crioulinhas, afirmou fazê-lo porque a mãe “tem servido muito a minha satisfação”. Ana Maria, além de trabalhar satisfatoriamente para sua senhora, precisou pagar 128 mil réis pela liberdade de sua família. 71

Outro caso emblemático do peso dos serviços prestados pelas mães para a liberdade dos filhos é o de Francisco, mulatinho de dois anos de idade. Sua senhora, madre Joana Josefa, religiosa professa no Convento de Santa Clara do Desterro, outorgou a carta de liberdade pelo preço de vinte mil-réis, pagos por Bernarda, sua escrava crioula, afirmando que a mãe de Francisco a “serve com zelo, caridade e prontidão há anos”, desde quando a madre entrara no convento. 72 Bernarda comprou sua alforria e a do bebê quando este ainda se encontrava no seu ventre! Ressaltem-se os termos utilizados pela madre, indicativos das expectativas senhoriais sobre o comportamento dos cativos, nesse caso, ornadas pelos tons da religiosidade católica. Nota-se que, se a madre guardava voto de castidade, sua cativa, que a servia nas dependências do convento, e, portanto, possivelmente residia ali, não. É possível que surja a indagação: de que adiantava a liberdade do filho se ele estaria ao lado da mãe, provavelmente servindo à sua proprietária? Destaco que, como libertas, as crianças adquiriam uma perspectiva de futuro diferente. Alcançando mais idade, poderiam trabalhar nas ruas, ganhar, poupar e alforriar a mãe, inclusive.

Maria, preta angola, precisou servir ao seu proprietário por quase três décadas para ver a si mesma e a sua descendência livres. Alexandre Mendes Navarro, o senhor, justificou o ato: “pelo amor de Deus e pelos bons serviços da dita sua mãe, que há vinte e sete anos me serve”. Na ocasião, Antonio, Pedro, Paulo, Angelo, Victoria e Teotônio, mulatinhos, foram alforriados gratuitamente. Os quatro primeiros haviam sido batizados como forros, segundo o documento que foi registrado em notas no dia 7 de março de 1764. 73 Tantos filhos indicam que Maria poderia ter um companheiro estável, no entanto, em nenhum momento ele é citado. Talvez fossem filhos do próprio senhor, tendo em vista que alguns já tinham sido batizados como libertos. Neste caso, entre os bons serviços se incluíam os de caráter sexual. O fato é que a justificativa acionada para as alforrias foram os longos 27 anos de serviços de Maria. Incluindo os seis rebentos de Maria, localizei no total 12 ocorrências (13%) em que pessoas escravizadas foram alforriadas junto com suas mães graças, exclusivamente ou não, aos bons serviços prestados pela matriarca.

Tabela 7
: Registro de “bons serviços” e tipos de alforrias em Salvador, 1751-1766


Das 1.026 cartas de alforrias coletadas, 711 (69,2%) trouxeram alguma justificativa para o ato. Dessas, 366 (51,5%) referiam-se aos bons serviços prestados pelos próprios alforriados ou por suas mães. Os dados revelam que as cartas de liberdade justificadas pelos bons serviços da mãe representavam um quarto das manumissões que mencionam bons serviços prestados, um índice alto. Isso é revelador da centralidade das mulheres nas estratégias familiares de conquista das alforrias. Tal centralidade se torna ainda mais patente quando se verifica que 42,3% das cartas outorgadas pelos serviços maternos foram concedidas gratuitamente. O trabalho desempenhado por essas mulheres não apenas tornava possível negociar a alforria dos filhos, como conseguia tal feito de modo não oneroso, o que tinha implicações práticas nada desprezíveis para a realidade delas e de suas famílias. Não pagar para alforriar sua descendência poderia significar guardar pecúlio para alforriar a si própria, inclusive, ou adquirir mercadorias para trabalhar ao ganho e acumular rendimentos para o mesmo fim, dentre muitas outras possibilidades. Observar tal aspecto é determinante para se entender a experiência das mulheres escravizadas, especialmente das mães, no contexto da escravidão urbana colonial.

Nesse contexto, é válido destacar o caso de Francisco, Estevão e Maria, mulatinhos, escravos de Dona Apolonia Ximenes de Aragão e sua irmã Leonor Ximenes de Aragão. Eles eram filhos de Francisca, cabra, escrava, e foram alforriados gratuitamente em 31 de março de 1760. As senhoras alegaram o feito pelo “amor com que os criei e bons serviços e boa obediência que sempre tive e tenho da dita sua mãe”. 74 A alegação indica as expectativas senhoriais que pairavam sobre o comportamento das mães escravizadas. É de se imaginar a elevação do estado de vigilância a que eram submetidas essas mulheres, especialmente depois da experiência da maternidade, quando se tornavam responsáveis por atender aos reclames senhoriais não apenas visando abrir caminhos (ou não os obstruir) para a conquista da própria liberdade, mas também, e em primeiro lugar, para a alforria dos filhos.

Analisando mais detalhadamente o conjunto das 93 pessoas cujas manumissões foram justificadas pelos bons serviços das mães, foi possível notar outros aspectos que passo a destacar. Dessas 93, oito possuíam mães alforriadas. Uma delas desperta atenção especial. Trata-se do pardinho Manoel, que teve sua manumissão registrada no dia 14 de julho de 1765, escravo de Joana, cujo sobrenome não foi possível identificar no documento rasurado, filho de Simoa, crioula liberta. A alforria foi paga, mas os danos na fonte impossibilitam saber o valor. O que mais importa aqui é a forma como a senhora justificou a carta: “pelo haver criado como filho, atendendo aos bons serviços que de sua mãe tenho recebido ainda depois de liberta até o presente ”. 75 O documento revela uma das estratégias acionadas por mães de crianças cativas, no caso, alforriar-se mas continuar servindo à senhora para nutrir a micropolítica das negociações e então viabilizar a alforria do seu rebento. Desse modo, a fonte reforça minha argumentação sobre o peso dos serviços das mães na conquista da liberdade das crianças escravizadas.

Tais elementos evidenciam a dimensão produtiva e reprodutiva do trabalho das mulheres escravizadas, que se dava de modo concomitante e incessante. Denuncia também o acúmulo de jornadas a que as mulheres sempre foram submetidas na sociedade patriarcal brasileira, que engloba o trabalho na rua e o doméstico, com o sobrepeso das atividades impostas pela cultura do cuidado, que secularmente impõe às mulheres as tarefas reprodutivas e maternais com os bebês, crianças, doentes e idosos, bem como com o asseio dos ambientes, preparo de alimentos e a gestão dos lares. A invisibilização desse tema (o acúmulo de jornadas) na historiografia revela o caráter patriarcal desta que levantamos, que não destacou a sobrecarga de trabalho feminino na escravidão. Às mães cabia o maior esforço na empreitada da conquista da liberdade dos filhos – tinham que negociar cotidianamente com os proprietários, cuidar dos rebentos, conseguir os valores para pagamento da carta ou consegui-los de pais, padrinhos ou outros benfeitores ou credores, além de prestar bons serviços aos senhores, condição determinante para o sucesso da empreitada.

A documentação não faz referência a bons serviços prestados pelos pais. Nunca. No máximo faz referência a ambos os genitores (em duas ocorrências, quando eram escravos da mesma propriedade). Seriam os pais das crianças libertas “pelos bons serviços da mãe” escravos de outros senhores, libertos ou mesmo pessoas livres? Ou seriam os bons serviços prestados pela mãe uma exigência dos escravistas dirigida exclusivamente para as mães? Os homens, ainda que escravos da mesma propriedade que a mãe de seus filhos, não teriam seus bons serviços acionados quando das negociações ou da outorga das alforrias das crianças? Ou o que importava mesmo eram os serviços da mãe, ainda que o pai fosse do mesmo senhorio?

Estudando o século XIX, Isabel Cristina dos Reis destaca que o pai da criança cativa quase sempre não existe no discurso senhorial porque não é figura significativa na definição do escravo, já que é o estatuto da mãe que garante o do filho. Mesmo assim, acrescenta, não se pode dizer que, por não estar no discurso senhorial, o pai estivesse ausente na vida do escravo. Embora mais rara, a presença do pai também aparece na cadeia de solidariedade com o escravizado em fuga, exemplifica a autora. 76 Ela acrescenta que também nas cartas de alforria é possível observar que as mulheres aparecem mais frequentemente do que os homens como protagonistas da libertação de seus filhos. Esta historiadora reforça a ideia de que as mulheres tiveram mais oportunidade de conviver com seus filhos, não excluindo a possibilidade de elas terem contado com o apoio dos pais das crianças para alforriá-las. Esse apoio, porém, não vem mencionado na documentação sobre liberdade. 77 O tipo de apoio fornecido a autora não indica. Apoio monetário, supõe-se, e, nesse caso, de fato, a documentação não é inteiramente muda: em 14 casos, os pais aparecem como financiadores da alforria e, em mais três, pai e mãe o fazem. Isso representa bons 19% dos casos, que sobe para quase 23% se eliminados os casos de financiadores não identificados (ver Tabela 6 ).

Não é natural que na enorme maioria das vezes as mães fossem responsáveis por prestar os ditos bons serviços aos proprietários e proprietárias escravistas para que se obtivessem os termos mínimos para a negociação da liberdade das crianças, como a documentação revela. Tal fato é fruto da construção ideológica operada pela sociedade patriarcal-escravista do papel social das mulheres como as principais, e muitas vezes únicas, responsáveis pelos filhos. Afinal, nessa sociedade, a paternidade é facultativa, ao passo que a maternidade é compulsória.

Podemos, no entanto, seguir por outro caminho. É muito possível que os pais das crianças alforriadas não estivessem incluídos entre os prestadores de bons serviços porque não seriam escravos dos proprietários outorgantes das cartas de alforria. Ou seja, eles serviam a outros senhores que não aqueles das mães de seus filhos. E mesmo quando pais e mães servissem aos mesmos senhores, estas últimas, apesar de laborarem também no ganho de rua, estariam mais amiúde presentes nos serviços da casa e por isso seus serviços seriam mais visíveis ao olhar senhorial. Temos então mulheres que exerciam uma tripla jornada de muitas mães escravizadas: trabalho ao ganho de rua, doméstico, além da gestação e os cuidados com os filhos (seus e dos senhores, não raro), zelando, neste último caso, por alguém que representava uma propriedade para o senhor. Ou seja, bons serviços em triplo. Assim se evidencia alguns modos como a experiência da escravização das mulheres foi diferente da dos homens.

Todo o exposto tem o objetivo de afirmar a centralidade das mães escravas no esforço de conquista da liberdade legal para as novas gerações de escravizados nascidos na América portuguesa.Outro elemento fundamental na análise das justificativas apresentadas nas cartas de alforria é a maternidade ou paternidade outorgadas. Tais relações foram observadas em expressões como “por ter criado como filha(o)”, “por ser minha cria”, “pelas haver criado e me nascer em meus braços”, “criamos como nosso filho há muitos anos”, “cria que nasceu em casa”, entre outras. Essas expressões foram localizadas em alforrias que beneficiaram 50 pessoas, sendo 27 concedidas por mulheres, 18 por homens e cinco por casais. Um exemplo contundente delas é a manumissão de José de Santana, mulatinho de seis anos de idade, filho de Ana Josefa, preta do gentio da mina, escrava de dona Joana Cerqueira. Na carta, a senhora escreveu: “criei e estou criando com todo amor como se fosse meu próprio filho […] por não ter herdeiro algum legítimo ou ascendente”, e alforriou gratuitamente a José em 8 de fevereiro de 1760. 78

Declarações de amor, sobretudo a crianças escravizadas, também se fizeram presentes em dezenas de cartas de liberdade. Contabilizei 151 menções à palavra “amor” relativas ao sentimento dos senhores escravistas pelos alforriados. “Pelo amor que lhe tenho”, “pelo muito amor que lhe tenho/temos”, “grande amor que lhe tenho de criação”, “pelo amor de criação que lhe tenho dado” são algumas das expressões usadas por esses proprietários. Dessas 151 ocorrências, 98 (65%) foram registradas por mulheres como dona Izabel de Figueiró, que, em abril de 1758, registrou a alforria do crioulo José Vicente, filho de sua escrava Ana. Na ocasião, a senhora o alforriou gratuitamente “pelo grande amor que lhe tenho e bons serviços que recebi de sua mãe”. 79

Stuart Schwartz afirmou que, em sua pesquisa, “a expressão de afeto mais comum envolvia o que se pode chamar de paternidade ou maternidade adotivas, localizadas em 21% das ocorrências (246/1160)”. Porém, no que se refere às cartas que falavam do amor do senhor pelo escravo ou do cativo pelo senhor, o autor computou apenas 48 ocorrências. Teriam os proprietários escravistas de Salvador se tornado mais declaradamente amorosos com os seus escravos em meados do Setecentos? A julgar exclusivamente por essa documentação, sim. É preciso acrescentar que as expressões de amor nas alforrias, com frequência, vinham acompanhadas de termos relativos ao nascimento e à educação das crianças escravizadas (como pode ser observado nos exemplos apresentados).

Conclusão

A análise do perfil dos alforriados em Salvador indica que, se a outorga da liberdade foi um desejo alimentado por muitos escravizados, ele foi concretizado por um reduzido número deles. A comparação do perfil dos escravizados com o dos alforriados de origem africana revela isso. Apesar de constituírem maioria da população escravizada, os africanos e africanas não foram beneficiados(as) na mesma proporção nas manumissões outorgadas entre os anos de 1751 e 1766. Como praticamente todas as pesquisas feitas sobre o tema no Brasil revelam, também em Salvador os nascidos no Brasil levaram clara vantagem no momento da alforria, com destaque para as crianças mulatas do sexo feminino. A análise por sexo e origem demonstrou que as mulheres de origem africana superaram tantos os homens afros como os nacionais. O percentual de alforriadas africanas superou a sua representação na população cativa, inclusive. Elas eram 67,5% dos alforriados com ônus (pagas e condicionais) e 62,7% dos alforriados definitiva e gratuitamente.

A análise das motivações dos senhores para alforriar confirmou,para o recorte nesta pesquisa, a importância dos laços de parentesco, sentimentos de amor, maternidade e paternidade estabelecidos entre senhores e escravos no processo de emancipação, em especial no que diz respeito a crianças libertas, como se verificou em outras áreas e períodos já analisados. 80 A presente investigação permitiu constatar a centralidade das mães no esforço para a conquista da liberdade das novas gerações de escravizados nascidos na América portuguesa e, em relação direta com isso, possibilitou iluminar diferenças nas experiências de escravidão vivenciadas por mulheres e homens habitantes da Cidade da Bahia setecentista. A análise dos tipos de alforria concedidos e o aprofundamento da discussão sobre as motivações senhoriais para a outorga das alforrias possibilitarão entender melhor o processo de manumissão em Salvador no século XVIII e suas articulações com as questões de gênero, maternidade e arranjos familiares. Essas questões já estão sendo desenvolvidas e serão apresentadas em um próximo texto.

Material suplementar
AGRADECIMENTOS

Registro agradecimentos ao meu orientador, professor João José Reis, pela leitura atenta e comentários realizados sobre o presente texto, bem como a Daniele Souza pela gentileza no compartilhamento de fontes documentais aqui utilizadas. Agradeço também aos integrantes do Grupo de Pesquisa Escravidão e Invenção da Liberdade do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia (PPGHUFBA) pelos comentários feitos a este texto. Este artigo trata de um dos assuntos discutidos na minha pesquisa de doutoramento, em desenvolvimento, realizada junto ao PPGH-UFBA, tendo como título provisório “Alforrias, relações de gênero e arranjos familiares, Salvador, meados do século XVIII (c. 1750-c. 1770)”.

Notas
Notas
1 Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), Salvador, Livro de Notas do Tabelião ( LNT ), v. 91, fl. 348.
2 APEB, LNT , v. 92, fl. 247-248.
3 APEB, LNT , v. 103, fl. 259.
4 APEB, LNT , v. 106, fl. 313-315.
5 Antonio Carlos Jucá Sampaio, “A produção da liberdade: padrões gerais das manumissões no Rio de Janeiro colonial, 1650-1750” in Manolo Florentino (org.), Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVII-XVIII (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005), p. 311.
6 Kátia Lorena Novaes Almeida, Escravos e libertos nas minas do Rio de Contas: Bahia, século XVIII , Salvador: Edufba, 2018, p. 164.
7 Kátia de Queirós Mattoso, “A propósito de cartas de alforria, Bahia 1779-1850”, Anais de História , n. 4 (1972), pp. 23-52; Stuart B. Schwartz, Escravos, roceiros e rebeldes, Bauru: EDUSC, 2001.
8 Adriana Dantas Reis, “Gênero: uma categoria útil para a História da escravidão no Brasil”, Interfaces Científicas – Humanas e Sociais , v. 6, n. 2 (2017), pp. 11-28 . https://doi.org/10.17564/2316-3801.2017v6n2p11-28
9 Reis, “Gênero: uma categoria útil para a História da escravidão no Brasil”, p. 22.
10 Camillia Cowling, Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e a abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro , Campinas: EDUNICAMP, 2018, p. 26.
11 Cowling, Concebendo a liberdade , p. 26.
12 Cowling, Concebendo a liberdade , p. 107.
13 Schwartz, Escravos, roceiros e rebeldes , p. 184; Mattoso, “A propósito de cartas de alforria”, pp. 23-52.
14 Registro meus agradecimentos a Daniele Santos Souza pela gentileza no compartilhamento dos dados de sua pesquisa em inventários de Salvador.
15 Essa amostragem dos escravizados em Salvador entre 1740-1780 foi computada a partir dos inventários post mortem e exclui os inventários de João Lopes Fiúza e Francisca de Sandes, grandes proprietários cujos escravizados residiam fora da cidade. Para mais informações sobre Fiúza, ver Cândido Eugênio Domingues de Souza, “‘Perseguidores da espécie humana’: capitães negreiros da Cidade da Bahia na primeira metade do século XVIII”, Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011 . https://repositorio.ufba.br/handle/ri/11115
16 Almeida, Escravos e libertos , pp. 178-179.
17 Souza, “Tráfico, escravidão e liberdade na Bahia”.
18 Sheila de Castro Faria, “Sinhás pretas, damas mercadoras: as pretas minas nas cidades do Rio de Janeiro e de São João Del Rey (1700-1850)”, Tese (Concurso para Professor Titular em História do Brasil), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004 . http://www.historia.uff.br/stricto/td/1646.pdf
19 Almeida, Escravos e libertos, p. 181; Schwartz, “Alforrias na Bahia, 1684-1745” in Escravos, roceiros e rebeldes , p. 201.
20 Sampaio, “A produção da liberdade”, p. 301.
21 Retirei da tabela as 36 pessoas (26 mulheres e 10 homens) para as quais não foi possível identificar a origem porque o documento não contém a informação ou está danificado. Desse modo, o número de libertos nesta análise cai para 1.082 pessoas.
22 Schwartz, “Alforrias na Bahia, 1684-1745”, p. 187.
23 Mattoso, “A propósito de cartas de alforria, Bahia 1779-1850”, p. 38.
24 Almeida, Escravos e libertos , p. 164.
25 Alexandre Vieira Ribeiro, “A cidade de Salvador: estrutura econômica, comércio de escravos e grupo mercantil (c.1750-c.1800)”, Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009, p. 70.
26 Luís Nicolau Parés, “O processo de crioulização no recôncavo baiano (1750-1800)”, Afro-Ásia , n. 33 (2005), pp. 128-130.
27 Almeida, Escravos e libertos nas minas do Rio de Contas ; p. 161.
28 Schwartz, “Alforrias na Bahia, 1684-1745”, pp. 188-189.
29 Daniele Santos de Souza, “‘Preto cativo, nada é seu?’: escravos senhores de escravos na Cidade da Bahia no século XVIII” in Giuseppina Raggi, João Figueirôa e Roberta Stumpf Rego (orgs.), Salvador da Bahia: interações entre América e África (séculos XVI-XIX) , (Salvador: EDUFBA, CHAM, 2017), pp. 51-72. Daniele Santos de Souza. “Nos caminhos do cativeiro, na esquina com a liberdade: alforrias, resistência e trajetórias individuais na Bahia setecentista” in Gabriela dos Reis Sampaio, Lisa Earl Castilho, Wlamyra Albuquerque (orgs.), Barganhas e querelas da escravidão: tráfico, alforria e liberdade (séculos XVIII e XIX) , (Salvador: EDUFBA, 2014), pp. 103-136.
30 Sobre o termo “mina”, Nicolau Parés explica que inicialmente tinha significado restrito e designava os escravos embarcados no castelo de São Jorge da Mina, forte construído e dominado pelos portugueses entre 1482 e 1637, que constituía um centro para o qual os escravos de várias partes da Costa Ocidental africana eram levados. Assim, desde o início, “mina” identificava um porto de embarque e os escravos ali embarcados podiam ter procedências diversas. Em síntese, Parés afirma que a nomenclatura “mina”, “a partir do século XVIII, abrangia a população africana da Costa dos Escravos ou Golfo do Benim, e dentre esta, muito especialmente os povos do Reino de Daomé e de suas imediações, entre os quais aqueles que na Bahia foram conhecidos por jejes”. (Luís Nicolau Parés, A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia, Campinas: Editora da Unicamp, 2006, pp. 26-29).) Maria Inês Côrtes percebeu diversos elementos indicativos de que, ao menos na Bahia, a maioria dos nomes de nação referentes a grupos numérica e culturalmente representativos acabou por se transformar em formas auto-adscritivas introjetadas, individual e socialmente, em torno das quais foram elaboradas alianças grupais, organizaram-se estratégias matrimoniais e a vida religiosa (Maria Inês Cortês de Oliviera, “Viver e morrer no meio dos seus – Nações e Comunidades Africanas no século XIX”, Revista da USP , n. 28 (1996), p. 177).
31 Faria. “Sinhás pretas, damas mercadoras”, pp. 129-132; Almeida, Escravos e libertos nas minas do Rio de Contas , p. 167.
32 APEB, LNT, v. 107, fl. 236-237.
33 Souza, “’Preto cativo, nada é seu?”, pp. 51-72; João José Reis, “Slaves Who Owned Slaves in Nineteenth-Century Bahia, Brazil”, Mecila Working Paper Series , n. 36 (2021), pp. 1-23; Souza, “Tráfico, escravidão e liberdade na Bahia nos ‘anos de ouro’ do comércio negreiro (c.1680-c.1790)”, pp. 269-282
34 APEB, LNT, v. 102, fl. 362-363.
35 Avanete Pereira Souza, A Bahia no século XVIII: poder político local e atividades econômicas, São Paulo: Alameda, 2012.
36 APEB, LNT, v. 107, fl. 181-183.
37 Richard Graham, Alimentar a cidade: das vendedoras de rua à reforma liberal (Salvador, 1780-1860) , São Paulo: Companhia das Letras, 2013, pp. 63-91.
38 APEB, LNT, v. 103. fl. 386-387.
39 APEB, LNT , v. 105, fl. 538-540.
40 APEB, LNT , v. 106, fl. 134-135. Grifo meu.
41 Para discussões sobre acúmulo de metais preciosos por africanas na região de São João Del Rei e Rio de Janeiro, ver Faria, Sinhás pretas, damas mercadoras, 2004. Para a região de Rio de Contas, na Bahia: Almeida, Escravos e libertos nas minas do Rio de Contas , 2018.
42 APEB, LNT v. 103, fl. 259.
43 Luis Nicolau Parés, “Milicianos, barbeiros e traficantes numa irmandade católica de africanos minas e jejes (Bahia, 1770-1830)”, Tempo , v. 20, 2014, pp. 1-32; Souza, Tráfico, escravidão e liberdade , 2018.
44 APEB, LNT , v. 101, fl. 526.
45 APEB, LNT , v. 103, fl. 206.
46 Almeida, Escravos e libertos nas minas do Rio de Contas , p. 171.
47 APEB, LNT , v. 107, fl. 347-348. Grifo meu.
48 Outros casos foram observados no LN 102, fl. 531-532; LNT 106, fl. 205-206 – Alforria de Manoel e Josefa, mestiços filhos de João Telles Ramos com Vitória, preta escrava.
49 Adriana Dantas Reis, “Mulheres ‘afro-ascendentes’ na Bahia: gênero, cor e mobilidade social (1780-1830) in Giovana Xavier, Juliana Barreto Farias e Flávio Gomes (orgs.), Mulheres negras no Brasil escravista e no pós-emancipação, (São Paulo: Selo Negro, 2012), pp. 24-25; Raiza Cristina Canuta da Hora, “Mãe preta, filhos mulatos, netos pardos: mulheres, uniões consensuais e mobilidade social na América Portuguesa escravista (Salvador, segunda metade do século XVIII)” in Sheila de Castro Faria e Adriana Dantas Reis (orgs.), Mulheres negras em perspectiva : identidades e experiências de escravidão e liberdade no espaço atlântico (séculos XVII-XIX) , (Feira de Santana: EDUEFS, 2021), pp. 119-136.
50 Sampaio, “A produção da liberdade”, p. 309.
51 Utilizo em minhas análises a tipologia das alforrias utilizada Kátia Almeida, que define como paga incondicional a alforria em que o liberto pagou ao senhor uma determinada quantia em dinheiro ou mercadoria sem imposição ou condição; a gratuita não envolvia ônus financeiro e dependia de uma negociação feita no cotidiano de senhores e escravos e as cartas condicionais estabeleciam condições com indenização ou não. Almeida, Escravos e libertos , pp. 219-221.
52 Schwartz, Alforrias na Bahia , pp. 196-197.
53 APEB, LNT , v. 107, fl. 296-297.
54 Schwartz, Alforrias na Bahia , p. 197.
55 Estão incluídas as alforrias pagas (474) e as onerosas por condições (57).
56 Almeida, Escravos e libertos , p. 183; Schwartz, Alforrias na Bahia , p. 197; Sampaio, A produção da liberdade , p. 320-322.
57 APEB, LNT , v. 98, fl. 239-240.
58 APEB, LNT , v. 107, fl. 19-20.
59 APEB, LNT , v. 107, fl. 347-348.
60 Importante destacar que os testamentos também trazem reconhecimento de paternidade, assim como as alforrias testamentárias. Jacinto Gomes, português capitão negreiro da praça da Bahia de meados dos setecentos, reconheceu em testamento Manoel e Domingos, mulatinhos, como seus filhos tidos com a africana Antonia Gomes. Ver: Souza, “‘Perseguidores da espécie humana’: capitães negreiros da Cidade da Bahia na primeira metade do século XVIII”, pp. 92-93; Raiza Cristina Canuta da Hora, “Escravidão, cor, gênero e mobilidade social: a trajetória de Antonia Gomes na cidade da Bahia setecentista”, Interfaces Científicas: Humanas e Sociais, v. 6, n. 2 (2017), pp. 175-186. Para alforrias testamentárias, ver, por exemplo, Marcio Soares de Souza, A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goitacazes, c. 1750-c.1830 , Rio de Janeiro: Apicuri, 2009 e Roberto Guedes, Egressos do Cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c.1798-c.1850) , Rio de Janeiro: Mauad X/FAPERJ, 2008.
61 Cowling, Concebendo a liberdade , p. 110-111.
62 APEB, LNT , v. 100, fl. 196-197.
63 APEB, LNT , vol. 107, fl. 496.
64 Schwartz, Alforrias na Bahia , p. 204.
65 Dom Sebastião Monteiro da Vide, Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Estudo Introdutório e edição de Bruno Feitler e Evergton Sales Souza , São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010.
66 Carlos Eugênio Líbano Soares e Raiza Cristina Canuta da Hora, “African Mothers in the City of Bahia, 1734-1799”, Women’s History Review, n. 28 (2017), pp. 1-17.
67 Almeida, Escravos e libertos , p. 183.
68 Sampaio, “A produção da liberdade”, p. 321.
69 Sampaio, “A produção da liberdade”, p. 322.
70 Utilizo aqui a tipologia das alforrias utilizada Kátia Almeida, que define como paga incondicional a alforria em que o liberto pagou ao senhor uma determinada quantia em dinheiro ou mercadoria sem imposição ou condição; a gratuita não envolvia ônus financeiro e dependia de uma negociação feita no cotidiano de senhores e escravos e as cartas condicionais estabeleciam condições com indenização ou não. Almeida, Escravos e libertos , pp. 219-221.
71 APEB, LNT , v. 102, fl. 237-238.
72 APEB, LNT , v. 102, fl. 88-89.
73 APEB, LNT, v. 105, fl. 438-440.
74 APEB, LNT, v. 103, fl. 308-309.
75 APEB, LNT , v. 106, fl. 127-129. Grifo meu.
76 Isabel Cristina Ferreira dos Reis, Histórias de vida familiar e afetiva de escravos na Bahia do século XIX , Salvador: Centro de estudos baianos, 2001, pp. 106-107.
77 Reis, Histórias de vida familiar , p. 121.
78 APEB, LNT , v. 103, fl. 267-268. Para análise sobre alforrias concedidas “por amor”, ver o artigo de Lígia Bellini, “Por amor e por interesse: a relação senhor-escravo em cartas de alforria”, in João José Reis (org.), Escravidão e invenção da liberdade. Estudos sobre o negro no Brasil, (São Paulo: Brasiliense, 1988), pp. 73-86.
79 APEB, LNT , v. 101, fl. 262-263.
80 Por exemplo, Almeida, Escravos e libertos , p. 183; Schwartz, Alforrias na Bahia ,p. 197; Sampaio, “A produção da liberdade”, p. 320-322.
* Registro agradecimentos ao meu orientador, professor João José Reis, pela leitura atenta e comentários realizados sobre o presente texto, bem como a Daniele Souza pela gentileza no compartilhamento de fontes documentais aqui utilizadas. Agradeço também aos integrantes do Grupo de Pesquisa Escravidão e Invenção da Liberdade do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia (PPGHUFBA) pelos comentários feitos a este texto. Este artigo trata de um dos assuntos discutidos na minha pesquisa de doutoramento, em desenvolvimento, realizada junto ao PPGH-UFBA, tendo como título provisório “Alforrias, relações de gênero e arranjos familiares, Salvador, meados do século XVIII (c. 1750-c. 1770)”.
Tabela 1
: Sexo dos escravos (1740-1780) e libertos (1751-1766) em Salvador


Tabela 2
: Sexo e origem dos escravos de Salvador – 1740-1780


Tabela 3
: Alforrias, 1751-1766


Tabela 4
: Origem e sexo dos escravos nos inventários de Salvador (1740-1780)


Tabela 5
: Composição étnico-racial e por sexo dos alforriados, Salvador, 1751-1766

* Entre as mulheres, estão incluídas 10 jejes, 10 guinés, 8 coda/codavi, 6 couranas, 3 nagôs, 2 São Tomé, 1 uidá, 1 calabar, 1 savalu, 1 cabo verde e 1daomé. Entre os homens, 5 jejes, 4 guinés, 2 nagôs, 1 calabar e 1 São Tomé. ** Entre as mulheres, estão incluídas: 4 benguelas e 1 congo. Entre os homens, 2 benguela/ guenguela e 1 congo. *** Entre as mulheres crioulas, incluí duas “negrinhas”, uma teve a filiação indicada no documento.
Tabela 6
: Parentesco entre alforriados e benfeitores 1751-1766

* Não se trata de proprietários de seus filhos, situação antes discutida. ** Implícita a ideia de parentesco simbólico no compadrio. *** Benfeitores sem parentesco identificado, 13 homens e uma mulher.
Tabela 7
: Registro de “bons serviços” e tipos de alforrias em Salvador, 1751-1766


Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por Redalyc