Resumo: O artigo apresenta informações sobre o Sítio Dagomé, um candomblé rural que funcionou na cidade de Salvador (Bahia) entre as décadas de 1830 e 1870. A partir de uma planta topográfica do terreiro produzida no fim do século XIX, o artigo explora as possibilidades historiográficas da cartografia para revelar aspectos da espacialidade, a sociabilidade e a práxis ritual do grupo religioso. Num segundo momento, trata do candomblé rural e dos conflitos fundiários entre rendeiros e proprietários, mostrando a imbricação entre a luta pela posse da terra, a economia agrícola e a institucionalização do candomblé. Na parte final, o texto examina a rede social da liderança do terreiro, indagando até que ponto a comunicação atlântica mediada por mercadores e viajantes africanos, na primeira metade do século, teve alguma incidência na formação do sítio Dagomé.
Palavras chave: Candomblé, cartografia, conflitos fundiários, daomé, libertos africanos.
Abstract: The article presents information about the Sítio Dagomé, a rural Afro-Brazilian temple that operated in the city of Salvador (Bahia) between the 1830s and 1870s. Based on a topographical plan of the temple produced at the end of the 19th century, the article explores the historiographical possibilities of cartography to reveal aspects of spatiality, sociability, and the ritual praxis of the religious group. In a second moment, it deals with rural Afro-Brazilian temples and conflicts between tenants and landowners, showing the overlap between the struggle for land tenure, the agricultural economy, and the institutionalization of Afro-Brazilian religion. In the final part, the text examines the social network of the temple’s leadership, inquiring to what extent the Atlantic communication mediated by African merchants and travelers, in the first half of the century, had some impact on the formation of the Sítio Dagomé.
Keywords: Afro-Brazilian religion, cartography, land conflicts, dahomey, african freedmen.
ARTIGOS
O SÍTIO DAGOMÉ: UM CANDOMBLÉ RURAL NO SÉCULO XIX (SALVADOR, BAHIA) *
THE SÍTIO DAGOMÉ: A RURAL AFRO-BRAZILIAN TEMPLE IN THE 19TH CENTURY (SALVADOR, BAHIA)
Recepção: 21 Julho 2022
Aprovação: 4 Outubro 2022
Dona Feliciana Pereira de Jesus, proprietária da grande fazenda Batefolha, sita no 2º distrito da freguesia de Santo Antônio Além do Carmo, na cidade de Salvador, faleceu em março de 1893.
Na ausência de testamento e de herdeiros, dois meses depois do óbito, o curador geral de ausentes, responsável pelo espólio, mandou avaliar e leiloar sete lotes de terras da dita fazenda, entre eles um terreno na estrada de São Caetano, “tendo cerca de 25 a 30 tarefas”, existindo nele “sete casas de rendeiros”. 1 O leilão aconteceu em 21 de junho, e Victor Soares Ribeiro lançou 1$000 réis acima do preço de saída de 300$000 réis. Porém, no mesmo dia, Crispiano Ferreira da Silva Lopes, representando a sua mulher Carlota Rosa da Purificação, contestava o leilão arguindo que 24 daquelas 30 tarefas pertenciam a sua esposa, havidas por compra à intestada, em 1877. De fato, esse era o segundo lote que Carlota comprara a Feliciana, tendo adquirido um outro, adjacente, de 15 tarefas, em 1873. As outras seis tarefas indevidamente leiloadas, vizinhas ao terreno de Carlota, pertenciam a Jeronima Roberta, uma parente distante de Feliciana, adquiridas a esta em 1891. 2 Como prova, os afetados apresentaram as correspondentes escrituras públicas de compra e venda. 3
Apesar da evidência, o curador geral de ausentes solicitou plantas topográficas dos dois terrenos leiloados para tomar uma decisão. Os interessados as encomendaram a Emilio da Silva Gomes, um agrimensor amador que atuava na freguesia de Santo Antônio e conhecia bem a região. Os documentos topográficos foram apresentados e anexados ao processo, em dezembro de 1893, e o leilão foi efetivamente suspenso. Foi assim que as duas plantas foram parar entre as cento e oitenta folhas do inventário-arrecadação de Feliciana Pereira de Jesus, onde Urano de Cerqueira Andrade, infatigável pesquisador do Arquivo Público da Bahia, as descobriu.
A planta correspondente às 24 tarefas, intitulada “Planta de uma parte da fazenda Batefolhas, situada na extremidade Oeste da mesma fazenda” ( Figura 1 ), contém, no seu centro, a representação de uma série de casinhas em volta de uma maior chamada “Casa Capital”, sendo o conjunto arquitetônico identificado sob a epígrafe “Dagomé”, evocando o antigo reino do Daomé, na costa da África ocidental ( Figura 2 ). Sabedor do meu interesse pelos povos jejes da região do Daomé, Urano Andrade, muito gentilmente, compartilhou comigo esse precioso documento, pelo que deixo aqui o meu agradecimento. Observando a distribuição arquitetônica e a toponímia da planta, naquele primeiro momento pensei na possibilidade de tratar-se de um terreiro de candomblé, intuição que consegui confirmar apenas anos depois. Essa planta foi a semente da pesquisa que resultou neste texto.
Além da “casa de Felicidade”, ao lado da “Casa Capital”, na parte superior esquerda da planta, consta um terreno referido como “Felicidade Gomes que herdou de seu marido Frederico Paulo” (ver Figura 1 ). A partir desse indício nominal, com nome e sobrenome, achei um processo libelo, iniciado em 1874, em que a rendeira do sítio Dagomé, Felicidade Gomes, africana liberta, protestava judicialmente contra a nova proprietária Carlota Rosa da Purificação por ter-lhe roubado as benfeitorias das árvores frutíferas do sítio Dagomé, que lhe pertenciam por direito contratual adquirido pelo seu defunto marido, quando este arrendou um sítio contíguo ao do Dagomé, em 1838. Esse libelo cível, que se prolongou por quatro anos, constitui a principal fonte documental da pesquisa. 4 Entre as várias declarações nele constantes, Felicidade Gomes explicava que, no início:
não havia no sítio denominado Dagomé mas que uma grande casa de telha sobre pilares fechada por meias paredes e edificada pelo concurso de africanos que, nas festividades do ano, ali costumavam fazer seus divertimentos, ao uso de sua terra que é Dagomé donde veio este nome ao referido sítio que assim ficou sendo conhecido, debaixo da direção sucessiva de um dos mesmos africanos a quem então chamavam os proprietários da Fazenda administrador do sítio, e o vulgo pai do terreiro. 5
Essa preciosa declaração informa sobre a edificação de uma grande casa, com certeza a “Casa Capital” da planta, levantada como resultado da iniciativa e cooperação de vários africanos originários do reino Daomé. A celebração de “divertimentos ao uso de sua terra”, também referidos em outros momentos como “brinquedo”, “pagodes” e “reuniões de candomblé”, acompanhando o calendário das festividades, presumivelmente católicas, não deixa dúvida de tratar-se de festas para os voduns, nome pelo qual são conhecidas as divindades no Daomé. O trecho também sinaliza a dupla identidade da liderança da comunidade, ao mesmo tempo “administrador” do sítio e pai de terreiro, superpondo a função de rendeiro e de chefe espiritual. 6
Felicidade Gomes informa ainda que os donos da fazenda recebiam “ desde longa data , a título de renda, a quantia de 10$000 réis anuais” e dá o nome dos dois primeiros administradores da casa: Mathias da Silva Guimarães e João Luis Ferreira, este atuando após o falecimento daquele, entre 1834 e 1836. Ambos eram africanos libertos, de nação jeje, donos de bens imóveis e senhores de escravos – Ferreira, inclusive, com várias viagens atlânticas em navios negreiros. 7 Eles pertenciam a uma minoria de libertos relativamente próspera que existia na cidade de Salvador na primeira metade do século XIX.
Outros documentos do processo jurídico informam sobre os “pais de terreiro” seguintes. Na sequência, Frederico Paulo, o marido de Felicidade Gomes, esteve à frente da casa por mais de duas décadas. Após a morte dele, em 1861, assumiu Demiciana Lopes, a única mulher na liderança do terreiro, sucedida, por sua vez, por Narciso Espinheira, que esteve na regência até pelo menos 1877, quando se concluiu o processo (ver Quadro 1 ). Por meio do cruzamento de várias fontes documentais, consegui mapear parte da rede social dessas personagens, sugerindo relações clientelistas com os donos da fazenda Batefolha e conexões com vários outros terreiros da região.
Da planta topográfica do fim do século XIX, elaborada no espólio de Dona Feliciana, passando pelo conflito fundiário da década de 1870, até a biografia dos fundadores, a arqueologia genealógica do candomblé nos leva até pelo menos a década de 1830. Como já disse, há informações no libelo que permitem afirmar a continuidade da comunidade religiosa até pelo menos 1877, quando Carlota Rosa da Purificação comprou o segundo lote de terras do sítio Dagomé e, presumivelmente, comprometeu a autonomia dos rendeiros e suas atividades religiosas.
Documentação histórica que ateste a permanência de um terreiro de candomblé ao longo do século XIX não é frequente; que remonte à década de 1830 é ainda mais incomum; que seja possível identificar a nação africana é uma raridade; e que exista uma planta topográfica que permita sua localização geográfica é ainda mais excepcional. Essa série de circunstâncias confere ao sítio Dagomé um valor sem precedente para a compreensão da história das religiões de matriz africana na Bahia oitocentista. 8
Examinemos primeiro a geografia e a história fundiária da fazenda Batefolha, a “grande” propriedade de onde o sítio Dagomé foi desmembrado. Cabe alertar, de saída, que o candomblé Dagomé nada tem a ver com o atual candomblé Batefolha, de nação congo-angola, fundado pelo tata Bernardino da Paixão em 1916 e tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 2003. Este terreiro foi batizado com esse nome por estar situado em terras da fazenda Batefolha, na região conhecida como Mata Escura, mas, até onde eu sei, não há qualquer conexão com o terreiro Dagomé de nação jeje, que funcionou num outro lugar (ver Figura 5 ).
O primeiro registro conhecido do topônimo “Batefolha” (variantes Bate-folha, Bate-folhas, Batefolhas) aparece em um mapa da Baía de Todos os Santos, datado em 1810, referindo-se a um sítio ou fazenda. Esse mapa foi reproduzido com ligeiras variantes em 1816 e publicado em um atlas manuscrito em 1817 ( Figura 3 ). 9
Duas décadas depois, em 1832, o comandante da Guarda Nacional da freguesia de Pirajá dizia que ouvia de sua casa “continuamente toques de tabaques no sítio denominado Batefolha, distrito pertencente à [vizinha] freguesia de Santo Antônio além do Carmo”. 10 Já em 1838, no contexto da guerra da Sabinada, o topônimo “Bate-Folha” reaparece em relatórios do exército imperial para designar uma elevação, à esquerda da Estrada das Boiadas, próxima de um lugar identificado como “Candomblé”, onde os rebeldes tinham situado “uma boca de fogo de grosso calibre”. Foi com a rápida vitória sobre esse “ponto em frente do candomblé” que a brigada de Pernambuco conseguiu abrir o caminho para a entrada das tropas imperiais na cidade de Salvador na madrugada do 12 para o 13 de março. Os mesmos topônimos “BateFolha” e “Candomblé” figuram num mapa do exército imperial relativo a essa campanha militar (ver Figura 4 ). 11 Esses “toques de tabaque” no sítio Batefolha e o “candomblé” em frente da elevação do Batefolha, na década de 1830, poderiam ser referências ao sítio Dagomé, embora não caiba descartar a existência de outros candomblés na região. 12
Descrições mais detalhadas da extensão da fazenda Batefolha só aparecem na década de 1870, quando dona Feliciana Pereira de Jesus começa a vender distintos lotes de terras. A escritura de venda de um deles diz:
uma grande fazenda nos extremos das freguesias de Santo Antônio e São Bartolomeu de Pirajá, com a frente na estrada de São Caetano para Campina, e fundos atravessando a estrada das Barreiras, até a Cacunda de Iaiá, encontrando as terras do Mosteiro de São Bento onde termina, dividindo-se pelo lado direito com a fazenda de Dona Emília Carolina Rocha Brandão e pela esquerda com a fazenda de Quintino Ferreira de Brito, como bem vê-se das pedras na estrada de São Caetano e ladeira para a Campina. 13
Essas informações e outras complementares me permitiram georreferenciar o perímetro aproximado da propriedade sobre uma planta contemporânea do relevo da cidade de Salvador, conforme mostra a Figura 5 .
A frente dessa grande fazenda orientava-se para o noroeste, ao longo da estrada de São Caetano para Campina, também conhecida como Estrada Real das Boiadas, a principal via de acesso à cidade de Salvador. 14 Recuando da frente para os fundos, a propriedade atravessava o rio Camorogipe, a principal bacia fluvial da região, e depois a estrada das Barreiras, até encontrar as terras do Mosteiro de São Bento. 15 Os limites dos fundos situavam-se entre a pedra da Cacunda de Iaiá ao sul e a fazenda Barreiras ao norte. 16 Esta, porém, situada na região da atual penitenciária Lemos Brito, próxima da bacia do rio Pituaçu, ficava fora do domínio do Batefolha. 17
Pelo norte, já na freguesia de Pirajá, a fazenda fazia divisa, “correndo o rumo por uma cerca nativa”, com outra grande propriedade, pertencente a João José da Rocha Assis, e depois à sua viúva, dona Emília Carolina Rocha Brandão – terras onde funcionou, desde a década de 1840, outro importante candomblé chamado Campina. 18 A fronteira meridional do Batefolha acompanhava o curso do riacho Agomé (hoje um esgoto conhecido como Bom Juá), limitando com a Fazenda do Retiro e, mais a leste, com a fazenda São Gonçalo, no atual bairro de São Gonçalo do Retiro. 19
A morfologia topográfica da região apresenta relevo acidentado, com elevações de topos relativamente planos, com cotas de até noventa metros, por onde normalmente corriam as estradas e se localizavam os assentamentos residenciais. Esses morros, entalhados por encostas e vales profundos, constituíam um sistema de drenagem natural. 20 Além do mencionado riacho Agomé, o rio Camorogipe recebia pela sua margem esquerda outros dois afluentes principais: um, transcorrendo ao norte da região da Mata Escura, referido como rio Azaká, em um mapa do século XX; o outro, chamado rio da Prata ou Negrão, ao sul da Mata Escura. 21
A extensão da fazenda Batefolha seria de aproximadamente 400 hectares. 22 Contudo, nas escrituras públicas de compra e venda e no processo de inventário de Feliciana Pereira de Jesus, só consegui identificar 195 hectares ou 446 tarefas. Em 1881, Feliciana informava que até aquele ano tinha desmembrado e vendido 21 lotes de terras, dos quais, nos livros de notas, só achei oito; do que se pode inferir que a propriedade fundiária era amiúde transmitida por escrituras particulares e nem sempre ficava registrada. 23 Dos documentos conhecidos é possível inferir que 227 tarefas foram vendidas em vida de Feliciana, entre 1874 e 1892, enquanto 219 tarefas foram leiloadas após sua morte. 24 Assim, a propriedade foi aos poucos sendo desmembrada pelo seu perímetro, ficando a região da Mata Escura como epicentro. 25 Alguns dos compradores eram antigos rendeiros das terras adquiridas, como o africano Elias Rodrigues Seixas ou Manoel Muniz de Santana e seus irmãos, que, diante dos tabeliães, declaravam viver da lavoura. 26 As escrituras de venda trazem múltiplas referências a rendeiros ocupando pequenas roças, mas a maioria deles é identificada apenas pelo primeiro nome, dificultando a obtenção de maiores informações.
No censo de 1872, a freguesia de Santo Antônio Além do Carmo aparece como uma das mais povoadas da cidade (com 16.613 moradores em 2.487 fogos), mas o seu 2º distrito, onde estava localizada a fazenda Batefolha, era de povoamento esparso e com construções isoladas que raramente se aglomeravam. 27 Em 1855, esse distrito estava subdividido em 13 quarteirões, com 636 casas, 379 cobertas de telha e 257 cobertas de palha. Calculando uma média de quatro moradores por casa, teríamos em torno de 2.544 residentes, mas com distribuição desigual. Enquanto três quarteirões da região da Cruz do Cosme, mais próxima do centro urbano, reuniam 217 casas, os dois quarteirões da Mata Escura, interseccionando com parte da fazenda Batefolha, somavam apenas 42 casas, 29 delas cobertas de palha. 28 A comissão do censo de 1855 identificou no quarteirão número 11, “na Mata Escura, parte da estrada para o Campo Seco”, incluindo, provavelmente, um pedaço da fazenda Batefolha, 18 casas, com 51 pessoas: 18 pardos, 3 cabras, 17 africanos (11 nagôs e 6 jejes) e 13 crioulos; ou seja, uma maioria negra e nenhum branco. Deles, 31 eram livres, 17 libertos e 3 escravizados (dois africanos nagôs e um cabra). A grande maioria se dedicava à lavoura, constando apenas dois pardos como “proprietários”, um deles com ofício de carapina, e uma mulher nagô dedicada a “negócio”. 29 Embora limitada, essa amostra sugere o escasso povoamento do 2º distrito, a precariedade da moradia e a predominância de camponeses negros, livres e libertos, em geral dedicados à agricultura de alimentos: mandioca, feijão, milho, hortaliças e árvores frutíferas.
A origem da propriedade da fazenda Batefolha por parte da família Pereira permanece incerta. Um documento que oferece alguma pista é o arrendamento concedido ao africano Frederico Paulo, de “um sítio no Batefolha”,que dividia pelo “lado direito com Dagomé em que [ele] tem suas benfeitorias”. O contrato e o recibo da primeira anuidade foram redigidos e assinados por Bernardino de Feltro Rodrigues Pereira, em 18 de junho de 1839, o que permite inferir que o aluguel iniciou em junho de 1838. 30 Décadas depois, Felicidade Gomes, já viúva, declararia que seu marido obteve permissão para plantar nesse sítio do “então legítimo senhor e possuidor da fazenda”. 31 Caso Bernardino Rodrigues Pereira fosse o proprietário original do Batefolha, ou da parte em que estava localizado o sítio Dagomé, ele a teria traspassado a Ignacia Pereira de Jesus antes de 1840, pois, a partir desse ano, ela passou a receber os aluguéis como legítima senhora das terras. Contudo, por não saber ler nem escrever, quem assinava por ela os recibos era seu irmão, João Pereira de Araújo França. 32 Como veremos, essa propriedade era um assunto de família.
Bernardino de Feltro Rodrigues Pereira é uma figura elusiva sobre o qual pouco consegui achar. Identifiquei um Bernardino Rodrigues Pereira, natural de Madeira, com ofício de inquiridor, contador, partidor e distribuidor do juízo dos órfãos daquela ilha. 33 A partir de 1828, ele some da documentação portuguesa, reaparecendo em 1841 como escrivão, no distrito de Funchal, na mesma ilha. 34 Esses dados são compatíveis com sua hipotética presença na Bahia na década de 1830, mas não cabe excluir tratar-se de um homônimo. 35
Por outro lado, os irmãos João e Ignacia eram filhos do português Antonio Pereira da Silva e da “parda e forra” Domingas Francisca de Almeida. 36 Ou seja, apesar de terratenentes, eles tinham um pé na senzala pelo lado materno. Não obstante, Ignacia é descrita como “branca”, provando o processo de embranquecimento exercido pela ascensão social. 37 Já o pai, Antonio Pereira da Silva, intitulado capitão, recebeu patente de sargento mor, foi negociante e provável dono de navio negreiro. No seu testamento, porém, não há menção a posses ou bens de raiz, e ainda menos às terras do Batefolha, o que questiona a possibilidade de Ignacia ter recebido essa propriedade por herança paterna. 38
O filho, João Pereira de Araújo França, ele sim referido na documentação como “pardo”, seguiu os passos do pai. 39 Na sua juventude foi um notório traficante de escravizados e proprietário de vários tumbeiros, com viagens entre 1805 e 1828, todas ao golfo do Benim. 40 Nesse período, comprou e vendeu diversas embarcações, imóveis e até uma fazenda em São Caetano, mas sem qualquer rastro do Batefolha. 41 Em 1830, figura como negociante matriculado da província da Bahia, cavaleiro da Ordem de Cristo e capitão da 2ª Companhia do Batalhão da 2ª linha. 42 Na década de 1840, no zênite de sua carreira, foi eleito vereador da Câmara de Salvador e administrador do celeiro público da cidade. Nesse último cargo, França aparece como personagem autoritária e xenófoba, mas tinha trânsito entre os populares. 43 O pé na senzala, no caso dele, é mais evidente. Por exemplo, ele foi nomeado testamenteiro do africano mina Geraldo Rodrigues Pereira e tutor da filha deste, sinalizando uma relação de confiança mútua, provável resultado da parceria comercial no tráfico, atividade em que ambos prosperaram, sobretudo na década de 1820. 44 Como veremos, França também mantinha relações clientelistas e paternalistas com a liderança do sítio Dagomé. Uma hipótese é que a aquisição da fazenda Batefolha resultasse de operações associadas ao tráfico promovidas por João Pereira de Araújo França, ficando a propriedade, por algum motivo, registrada em nome da irmã.
Outra possibilidade é que aquele patrimônio chegasse a Ignacia por meio do seu marido Veríssimo Rodrigues da Conceição, um “branco” com quem se casara por volta de 1804. 45 Em 1835, ele aparece como dono das terras de uma roça arrendada a uma africana, “no lugar das Barreiras”, perto das terras dos beneditinos, provavelmente na região oriental da fazenda Batefolha (ver Figura 5 ). 46 Contudo, não achei qualquer outra evidência de ele ter trazido a propriedade ao casal, nem de eles a terem adquirido após seu matrimônio. Como quer que seja, quem assinava por Ignacia os recibos do sítio Dagomé era o seu irmão João, e não o marido Veríssimo. 47 Essa prática se repete em várias escrituras, João assinava pela irmã, enquanto Veríssimo o fazia pela mulher de João, dona Francisca Maria das Chagas. 48 Ou seja, eram os homens que assinavam pelas mulheres não letradas – evidenciando a cultura patriarcal imperante – mas evitando o marido rubricar pela esposa. Essa reciprocidade entre cunhados nas firmas indica uma aliança estreita entre os dois casais e sugere que a propriedade e a administração do Batefolha era uma empresa compartilhada, tanto é assim que alguns documentos se referem às terras da fazenda como sendo ora de João ora de Veríssimo. 49
Dona Ignacia Pereira de Jesus faleceu de estupor, com 89 anos, em 1854, momento em que as terras do Batefolha foram traspassadas à sua filha, Feliciana Pereira de Jesus. 50 Alguns documentos afirmam que dona Feliciana herdara a fazenda dos seus pais, mas, como Veríssimo tinha falecido antes de Ignacia, em outros se diz que aquela herdou de sua mãe. Dona Feliciana permaneceu solteira até o fim de sua vida. Iayá, como era chamada pelos seus rendeiros, ficou recluída nos seus sobrados no largo da Soledade e na Rua dos Capitães, “acanhada”, com problemas de reumatismo crônico, sem poder andar e evitando qualquer exposição pública. 51 Embora assinasse de seu punho e letra recibos de aluguel, declarações judiciais e as escrituras de venda de suas terras, ela era sempre representada por procuradores.
Em definitivo, a aquisição da fazenda Batefolha pela família Pereira permanece um mistério e serão precisas futuras pesquisas para desvendar o enredo. Contudo, dos dados disponíveis, emerge uma elite mestiçada, com vínculos ao tráfico de escravizados, investindo na posse de terras na periferia da cidade. Todavia, a família Pereira, incluindo o casal Ignacia e Veríssimo, o irmão João e, mais tarde, a filha Feliciana, possuía vários sobrados no largo da Soledade, perto de Água dos Meninos, no 1º distrito da freguesia de Santo Antônio, e esse era o seu epicentro residencial na região urbana. 52
Voltemos ao sítio Dagomé para considerar, num primeiro momento, sua configuração geográfica e ecológica, não isenta de relevância. Como já disse, a planta topográfica de 1893 permitiu georreferenciar com precisão o candomblé no atual bairro de São Caetano, onde hoje existe um reservatório de água da Empresa Baiana de Águas e Saneamento (Embasa). 53 O logradouro adjacente ao reservatório, a Rua Direita da Goméia, perpetua a memória do antigo sítio Dagomé e foi dele que o famoso pai de santo Joãozinho da Goméia tirou seu apelido. Seu primeiro terreiro em Salvador, na década de 1930, funcionou no mesmo lugar, embora, até onde eu sei, sem qualquer conexão direta com a comunidade jeje originária. Contudo, quase com certeza, Joãozinho teria ouvido falar de sua existência no passado. 54
Edison Carneiro já notava que “os candomblés situam-se, a bem dizer, no meio do mato, nos arrabaldes e subúrbios mais afastados da cidade. Em geral, estão localizados em sítios de difícil acesso”. 55 O terreiro jeje seguia esse padrão e foi instalado em um lugar estratégico a uns nove quilômetros do centro urbano de Salvador. Ocupava uma planície no topo de um morro, circundado por cursos d’água em três dos seus flancos e se estendendo, pela frente, até a Estrada de São Caetano ou das Boiadas, a principal conexão com a cidade. De lá, era possível vigiar a chegada de visitantes pelas baixas de brejo, inclusive a ponte da dita estrada sobre o rio Camorogipe. Não por acaso, os rebeldes da Sabinada posicionaram o seu canhão nessa “elevação do Bate-folhas”, “em frente do candomblé”. Além da lógica defensiva e de ocultação, o terreiro ficava relativamente afastado da estrada, permitindo bater o tambor a contento, sem temor a ser incomodado.
No século XIX, era comum balizar os limites dos terrenos com marcos de pedra e elementos naturais, como árvores, rios e fontes, e o fato de a planta topográfica indicar esses pontos respondia a esse costume secular da agrimensura. Mas, quando sabemos que esse território correspondia a um candomblé, cabe supor que esses limites e balizas adquirissem algum tipo de relevância religiosa. Na cultura do vodum, a transformação de cursos d’água, referidos como to ( tɔ́ ) na língua fon, e de árvores, chamados atín ou atínsá , em “assentos” ou lugares consagrados que concentram a atividade ritual, constitui uma forma de intervenção ambiental fundamental para a demarcação territorial e para o consequente reforço da identidade coletiva. São essas formas de inscrição simbólica e reiteração ritual que transformam o “espaço” físico num “lugar” vivido e singular.
A proeminência dos cursos d’água e de árvores na planta topográfica é reveladora da lógica religiosa subjacente à escolha do lugar. Além do rio Camorogipe, o sítio Dagomé estava protegido pelos seus flancos por dois dos seus afluentes, um dos quais não nomeado, com duas fontes, uma delas de pedra: a “Fonte Grande”, onde iniciava o caminho que ascendia até o candomblé. O outro era o “riacho Agomé” (na parte superior da Figura 7 ), com uma “vertente” por onde derivavam as águas pluviais e uma segunda “fonte de pedra”.
O topônimo Agomé requer algum comentário. O termo poderia ser apenas uma variante fonética ou ortográfica do reino africano Dagomé (Daomé na grafia portuguesa atualizada). Há ocorrências dessa equivalência. Em 1811, por exemplo, o rei do Daomé assinava como “rei de Agomé”. 56 Em 1835, há referências, em Salvador, a um tal “Dom Jozé nação gêge, embaixador de Agoumés ”. 57 Contudo, a distinção ortográfica dos termos na planta topográfica e a marcação de dois caminhos com rumos separados, identificados como a “vereda que conduz a Dagomé” e a “estrada que conduz a Agomé”, sugerem tratar-se de duas denominações distintas, designando lugares diferentes. Nessa hipótese, o nome do riacho talvez fosse uma evolução fonética de Agbomɛ̀ (Abomé na grafia portuguesa atualizada), como era conhecida a capital do Daomé. Na língua fon, Agbomɛ̀ significa “dentro do fosso que rodeia um lugar fortificado”. 58 Será que os africanos jejes batizaram aquele córrego como Agomé porque estancava águas pluviais e, como um fosso natural, protegia o acesso ao morro?
Seja como for, o culto aos espíritos dos rios era um elemento central na cultura religiosa do vodum, tanto no Daomé, como no país Mahi, território situado ao norte daquele reino. Era da região mahi que originava o culto aos tohosu ( tɔ̀ x ɔ́ sú ), literalmente “os príncipes das águas”, entidades espirituais associadas às crianças nascidas com alguma disformidade, e assentadas nos cursos d’água. A complexa ritualística dessas divindades foi incorporada aos cultos dos ancestrais da família real daomeana, promovendo sua posterior difusão. Nesse sentido, é revelador constatar que, próximo ao sítio Dagomé, como se observa na Figura 5 , corria o rio Azaká, precisamente o nome de um dos tohosu mais importantes do país Mahi. 59 A presença dos termos Agomé e Azaká na toponímia fluvial da fazenda Batefolha é indicativa não apenas da duradoura circulação de africanos jejes naquela região, mas também de um avançado processo de territorialização cultural.
Por outro lado, os jejes são conhecidos pela fitolatria ou a sacralização de árvores específicas ( atínsá ) e de florestas ( zùn ), estas concebidas como lugares perigosos, mas, ao mesmo tempo, habitat de forças espirituais ( azizà ) que conferem conhecimento esotérico e poder de cura. 60 Não há como saber se as árvores sinalizadas na planta de 1893 existiam nos primórdios do candomblé, mas algumas delas deviam ser antigas. Na Figura 7 , destacadas em vermelho, constam três jaqueiras, duas cajazeiras, um juazeiro, a “mangueira da vovó”, um dendezeiro, uma palmeira, uma cerca de bambus, uma cerca de pitangueira, uma “fronde [soeira?]”. Todavia, no processo cível de 1874, há menção a “pés de fruta-pão, mangueiras, cajueiros, oitizeiros, jaqueiras, um pé de nogueira” e inclusive “uma árvore da costa da África”. 61 Nunca saberemos quais eram os voduns associados às árvores do sítio Dagomé, mas com certeza várias delas eram atínsá . Uma testemunha do dito processo mencionava “que os africanos faziam o posso do seu tabaque defronte de uma grande cajazeira”. 62 Conforme informam os velhos sacerdotes da Bahia, a cajazeira é uma “árvore de grande relevância no jeje, ela é de Azonsu”, o vodum vinculado à terra e às epidemias. 63
A partir de uma descoberta de Donald Pierson, Edison Carneiro escrevia: “em São Caetano, havia uma árvore em que se adorara a serpente. Essa árvore ainda existia há alguns anos, nos fundos da roça de Joãozinho da Goméa, […], e era crença geral que certa Pascoalina ali se transformara em Dã”. 64 O vodum serpente Dan, associado também aos rios e ao arco-íris, é outra das divindades centrais do panteão jeje, e não é impensável que esse atínsá cultuado na roça de Joãozinho fosse uma herança do antigo sítio Dagomé.
A planta também indica a distribuição do conjunto arquitetônico, com uma “cerca de pitangueira” entre a “Casa Capital” e as unidades residenciais dos rendeiros, a “casa de Felicidade”, a “casa de Calo”, a “casa Narciso” e a de “Anacleto”, sinalizando uma possível separação entre o espaço religioso e o habitacional. Vale lembrar que as folhas de pitangueira são muito apreciadas no candomblé pelo seu poder purificador. 65
A Casa Capital, também chamada “casa grande” no processo cível, foi construída para durar, sustentada sobre pilares em alicerce de pedra e cal, coberta de telhas, com uma porta e duas janelas na frente e “uma varanda, também sobre pilares e fechada por meias paredes”, que “deita para um terreiro grande e limpo e coberto de árvores, mangueiras, cajazeiras, cajueiros”. A edificação albergava “o salão onde faziam o brinquedo ” e “distintos quartos”, mas não há informação sobre a divisão interna, além da menção a uma porta lateral. 66 Com certeza, era lá que estava o peji ou quarto dos assentos e o runcó , ou camarinha, onde ficavam recolhidas as noviças durante sua iniciação.
Um aspecto que sobressai na planta é o uso de patronímicos para se referir a distintas subseções do terreno, como “sítio Mathias” (na parte superior direita da Figura 7 ), “Felicidade Gomes que herdou de seu marido Frederico Paulo” (na parte superior esquerda), “terreno de Narciso” (na parte central), assim como a “casa de Felicidade” e “casa de Narciso” entre as construções. Esses nomes remetem às lideranças do terreiro, várias delas defuntas havia décadas quando o agrimensor Silva Gomes desenhou a planta. Ele conhecia o lugar, pois já tinha demarcado terras contíguas em anos anteriores, mas a memória nominal das distintas áreas e residências do sítio revela que contou com ajuda de bons informantes, que sabiam da história local.
Embora a planta tenha sido produzida em 1893, ela tem um valor historiográfico pois contém indícios de personagens de distintos períodos, remontando à década de 1830 (sítio de Mathias). Nesse sentido, a topografia não fala apenas do espaço físico, mas conota aspectos de sua sociabilidade e da memória das pessoas que o habitaram e o transformaram em lugar vivo e vivido. No documento convergem dimensões espaço-temporais cheias de ambiguidade e anacronismo, colapsando distintos tempos pretéritos em um presente topográfico, sem deixar claro o que o agrimensor observou e o que ele evocou do passado. Qual a intenção de Silva Gomes ao detalhar com tal precisão a memória do terreiro em 1893, quando este provavelmente já tinha cessado suas atividades? Seja qual for a resposta, a cartografia enquanto centro gravitacional da análise serve para articular a espacialidade à historicidade da comunidade.
Os fundadores do sítio Dagomé, os africanos Mathias da Silva Guimarães e João Luiz Ferreira, libertos remediados, como já disse, membros de irmandades católicas e senhores de escravos, moravam no centro urbano da cidade e deviam deslocar-se para a roça “nas festividades do ano”. Uma das testemunhas do processo cível de 1874 mencionava o “antigo costume” que tinha “de ir a aquele lugar demorando-se nele alguns dias , por passatempo, bem como fazem outras pessoas”. 67 Durante esses períodos de festas, deviam ali confluir numerosos visitantes, hospedados em cabanas e palhoças levantadas em volta da Casa Capital.
Esse tipo de mobilidade de curta duração, com peregrinação à roça em período de obrigação, era comum em outros terreiros da cidade. Na década de 1860, por exemplo, o barbeiro Jose Moraes liderava o terreiro Bogum, sito no Engenho Velho da Federação, na freguesia da Vitória, naquele período uma zona de mato fechado. Porém, ele trabalhava como sangrador, na Rua do Cabeça, na freguesia de São Pedro, no centro da cidade onde residia. 68 Todavia, corroborando essa dinâmica de deslocamentos anuais, em 1862, João de Azevedo Piapitinga, subdelegado suplente do 2º distrito de Santo Antonio informava que “sempre foi costume há muitos anos, em tempos de festa virem famílias e muitos rapazes de diversas classes para as roças se divertirem, e trazem seus instrumentos próprios,e assim passam os dias santos”. 69 No final do século XIX, Nina Rodrigues observava que os terreiros dos arrabaldes eram, geralmente, “um sítio, chácara ou roça, alugada ou arrendada para a grande festa que se faz uma vez por ano. No Gantois, por exemplo, no intervalo das festas, o terreiro é apenas guardado por alguém que lá se deixa morando”. 70 A mesma coisa parece ter acontecido no sítio Dagomé, pelo menos nos seus primórdios, quando só existia a Casa Capital no meio do mato.
Esse modelo de funcionamento, porém, parece ter mudado após o falecimento, em 1837, de João Luiz Ferreira, o segundo pai do terreiro, quando assumiu Frederico Paulo. Uma das testemunhas do libelo, a crioula Roberta Ferreira do Rosário, que frequentava o Dagomé desde menina, explicou que Frederico, “que também era do candomblé”, foi escolhido para dirigir as atividades religiosas e administrar o sítio e, pela “confiança que o povo do candomblé depositava [nele] consentiu que fizesse uma casa no terreno Dagomé”. Essa seria a casa de taipa e cobertura de telha, referida como “casa de Felicidade” na planta topográfica, situada ao lado da Casa Capital. Só depois, em 1838, Frederico foi “tomar por arrendamento um sítio junto ao mesmo Dagomé”. 71 No contrato de aluguel desse segundo terreno, proibia-se “fazer casa de pedra e cal” (como a Casa Capital) e “entrar na mata para cortar paus de qualidade […] chamados de lei”, porém permitia-se “plantar o que quiser” e roçar “alguma capoeira que existir dentro do sítio”. 72
É provável que a decisão de Frederico e Felicidade de trasladar sua residência ao sítio estivesse ligada a essa permissão para plantar concedida pelos proprietários da fazenda. Frederico Paulo é lembrado por ter arborizado o sítio Dagomé, primeiro a área que ficava em frente à Casa Capital, com “pés de fruta-pão, mangueiras, cajueiros, oitizeiros, jaqueiras, um pé de nogueira, uma árvore da costa da África” e, depois “ por fora do terreiro , setenta a oitenta pés de coqueiros, cajueiros etc.”. 73 Esses coqueiros e árvores frutíferas ocupavam a planície em frente à Estrada das Boiadas e o sítio arrendado em 1838. A interdependência entre o sítio Dagomé, onde Frederico construiu sua casa e onde funcionava o candomblé, e o terreno contíguo no qual ele também plantava vai estar no cerne do litígio pela posse das benfeitorias, iniciado em 1873. Como arguía Felicidade Gomes, o contrato de 1838 foi escriturado para garantir ao rendeiro o usufruto das benfeitorias que se repartiam no sítio Dagomé e no terreno adjacente. 74
Essa economia agrícola propiciou a progressiva agregação de vizinhos, uns em volta da Casa Capital, outros em frente da Estrada das Boiadas. Com o tempo, levantaram casinhas e casebres, constituindo um pequeno aglomerado residencial. Vários dos moradores e vizinhos do Dagomé viviam de vender as frutas do sítio na estrada ou nas feiras da cidade. A já mencionada Roberta Ferreira do Rosário declarou que tirava proveito das frutas do Dagomé, “assim como todos tiravam”. Ela tinha relação de amizade com Frederico Paulo e Felicidade e lhes comprava frutas “para tornar a vender”. 75
A convergência e superposição da unidade religiosa (terreiro), com a unidade residencial (aldeia ou arraial) e a unidade de exploração agrícola (roça) constituem uma caraterística do sítio Dagomé e de outros terreiros da região que foge ao modelo do terreiro dos arrabaldes ativado apenas durante as festas anuais. Lisa Castillo identificou, em meados do século XIX, no bairro do Candeal, na freguesia de Brotas, um culto a Ogum fundado por um casal de lavradores africanos, possuidores de três roças, com mais de quatrocentas árvores frutíferas, legumes e mandioca, engajando uma dúzia de escravizados de sua propriedade. Contudo, pelo que deixa entrever a documentação, era um culto associado a uma única divindade, praticado pelos membros de uma única família, com um caráter doméstico que se diferenciava da dinâmica multifamiliar do “povo do candomblé” do Dagomé. Castillo cita outros terreiros oitocentistas cujas terras abrigavam diversas espécies de árvores frutíferas como o Alaketu e a Casa Branca. 76 Esses exemplos sugerem que o potencial econômico da produção agrícola não era alheio aos interesses das comunidades religiosas instaladas na zona rural. No caso do Dagomé, essa atividade iniciou-se cedo, em 1838, incentivada por Frederico Paulo, se constituindo, como vimos, em um vetor agregador da comunidade residencial.
Uma década depois, a política de estímulo à lavoura dos africanos foi adotada pelas autoridades governamentais, sob o disfarce de uma suposta “missão civilizatória”, quando o verdadeiro motivo era expulsar os libertos do centro urbano. Conforme nota João José Reis:
quando governou a Bahia em 1848-52, Martins [Francisco Gonçalves Martins, o visconde de São Lourenço] procurou fechar os postos de trabalho urbano para os africanos, pois os queria todos empregados na lavoura, de preferência como dóceis agregados dos engenhos do Recôncavo. Os serviços urbanos deviam ser reservados para os trabalhadores nacionais, pensava. 77
O historiador comenta também o desencontro, em 1862, entre o chefe de polícia João Antonio de Araújo Freitas Henriques e o já referido João de Azevedo Piapitinga, subdelegado suplente do 2º distrito de Santo Antônio. O primeiro acusava o segundo de ser leniente demais com os candomblés, enquanto este se defendia alegando que, desde que assumira o cargo, por volta de 1855, tinha empregado os africanos do seu distrito “na lavoura, o que dantes não o faziam” e, desta forma, “a plantação foi crescendo”. Notava apenas que “em certas ocasiões, que tinham esses africanos de arrancarem suas plantações, vinham pedir licença para dançarem”, mas essas danças, segundo ele, nada tinham de reprovável, ocorrendo no exterior das casas e finalizando antes do anoitecer. 78
Alguns desses divertimentos eram as “festas do inhame novo”, que celebravam a colheita de um dos alimentos mais cultivados pelos lavradores negros. O jornal O Alabama , em relação a um desses festejos no terreiro do Moinho, explicava: “uma usança africana, introduzida e adotada pelas massas ignorantes entre nós. Consiste na consagração dos primeiros frutos da colheita de cada ano às divindades africanas. Antes da celebração dessa cerimônia é vedado aos prosélitos das seitas africanas comer dele”. 79
O chefe de polícia Henriques estava empenhado em reprimir esses costumes, exigindo a seus subalternos “toda a vigilância sobre tais reuniões de que resultam grandes desordens e são o germe de graves crimes”. 80 O subdelegado insistia que tinha acabado “com todos os candomblés, que era um modo de vida dos africanos, que se não queriam empregar na lavoura”, sugerindo serem as atividades religiosas e agrícolas “modos de vida” mutuamente excludentes – o que, como prova o caso do Dagomé, não era sempre o caso. 81 De todo modo, fica evidente, naquele início da década de 1860, a política das autoridades para incentivar o trabalho dos africanos na lavoura e a persistência, apesar dos esforços repressivos da polícia, de reuniões multitudinárias em volta dos candomblés rurais.
Por outro lado, a arborização do sítio Dagomé prova que o investimento dos africanos na agricultura de alimentos respondia a iniciativa própria, ao mesmo tempo que satisfazia as necessidades espaciais de suas práticas religiosas. O historiador Walter Fraga Filho, estudando o período pós-abolição no Recôncavo baiano, indica como a mobilidade dos libertos, geralmente se afastando dos engenhos onde trabalharam como cativos, era uma das grandes expressões da liberdade. 82 Essa dinâmica emancipatória teria começado já na primeira metade do século XIX, quando alguns libertos africanos e crioulos optaram por fixar moradia na área rural, procurando um pedaço de terra que garantisse uma subsistência autônoma e digna, sem sujeição a pessoa alguma.
Obviamente, o acesso à terra não era viável para todos. A complexa estrutura fundiária da Bahia, herdeira do sistema de sesmarias colonial e do apossamento desregulado, em que a terra pertencia a quem tinha o poder de ocupá-la, favorecia a classe senhorial. A historiografia tradicional defendeu que a ineficaz Lei de Terras de 1850, que pretendia regularizar aquele caos fundiário, teria legitimado a propriedade privada dos grandes senhores de engenho e fazendeiros, exacerbando a concentração latifundiária e a monocultura. Katia Mattoso, porém, sustenta que o regime de sucessão de partilha, em que todos os filhos, e não apenas o primogênito, têm igual direito à herança, contribuiu para uma crescente fragmentação da propriedade fundiária. 83 Por outro lado, já desde o século XVII, o sistema escravista propiciou a prática de cessão de pequenos pedaços de terra aos cativos para, no seu tempo livre, nos domingos, e às vezes nos sábados, desenvolver uma agricultura de subsistência, concomitante ao trabalho nas plantations . 84 Essa instituição, que Ciro Cardoso batizou de “brecha camponesa”, estaria por trás da formação do que Sidney Mintz, no contexto caribenho, chamou de “protocampesinato escravo”. 85
Como desdobramento e em paralelo à brecha camponesa escrava, os libertos e os livres afrodescendentes aos poucos avançaram também no acesso e controle das terras que cultivavam. Havia diversas modalidades de ocupação, desde os quilombos que agiam de forma clandestina e temporária se apossando de terras devolutas e outras, até os libertos e livres que recorriam a formas contratuais, verbais e escritas, atuando como posseiros, usufrutuários, foreiros, rendeiros e, em menor medida, como proprietários. 86 A análise fundiária da fazenda Batefolha mostra a progressiva multiplicação de rendeiros afrodescendentes naquela grande propriedade, sobretudo na segunda metade do século. Se Flávio Gomes, no contexto do Rio de Janeiro, destaca a centralidade dos quilombolas na formação do que ele chama de “campo negro”, no contexto desta pesquisa sobressai o papel fundamental dos roceiros livres e libertos na formação desse campesinato negro. 87 Além da subsistência, o excedente comercializável da produção agrícola estimulava a atividade mercantil, contribuindo para o subsídio alimentar da cidade. Em resumo, o empreendedorismo agrícola de africanos e crioulos, junto com seus festejos, danças e obrigações religiosas, expressavam a sua necessidade de maior autonomia, e a ela atendiam. Assim, o desenvolvimento de uma economia camponesa e a formação de candomblés na periferia do núcleo urbano podem ser pensadas como um processo de territorialização estratégica, ao mesmo tempo material e simbólica, que dilatava as fronteiras da liberdade da população egressa da escravidão. No entanto, à medida que a sedentarização dessas comunidades rurais se afiançava, a fricção e os conflitos com os donos da terra também aumentavam.
Desde a década de 1830, os membros do terreiro pagavam de forma coletiva uma renta anual de 10$000 réis pelo sítio Dagomé, enquanto Frederico Paulo pagava outros 10$000 réis pelo sítio contíguo. Eram somas modestas, mas significativas para uma população carente. Após o falecimento do pai do terreiro em 1862, a viúva Felicidade suplicou a Feliciana, a dona da fazenda, que reduzisse o aluguel do sítio adjacente a 8$000 réis, o que foi concedido, sinalizando uma boa relação entre rendeira e arrendadora. 88 Quem assumiu a direção do terreiro após a morte de Frederico foi Demiciana Lopes, mas quem continuou a pagar a renda e a coletar as benfeitorias das árvores frutíferas foi Felicidade e o filho Hermogenes, que, aos poucos, virou o feitor ou o poder informal do sítio, ficando de posse do “livro de arrendamento”. 89
Uma das testemunhas do libelo cível declarou que, em data não especificada, provavelmente posterior ao falecimento de Demiciana em 1871, Hermogenes “ia acompanhado de outras pessoas armadas de espingarda e facão de arrasto [e] colhia do sítio Dagomé, sem que o preto Narciso nada pudesse opor, por não ter força”. Este último era Narciso Espinheira, o pai do terreiro que sucedeu a Demiciana. Ele tentou negociar seus direitos sobre as benfeitorias pois, conforme a planta topográfica, as “terras de Narciso”, na planície de frente à estrada das Boiadas, incluíam numerosos coqueiros e outras árvores frutíferas. Contudo, o procurador da dona do Batefolha lhe informou que as benfeitorias pertenciam a Felicidade Gomes e que ele era apenas um rendeiro dela. 90 Frente às armas de Hermogenes, a força do preto velho era pouca e por aí vislumbra-se como o convívio comunitário da roça não era isento de tensões internas.
Em novembro de 1873, as coisas pioraram. Dona Feliciana de Jesus estava precisando de recursos e pretendia vender parte da fazenda. Ela ofereceu aos rendeiros do Dagomé a primeira opção de compra, mas não houve interesse ou possibilidades por parte destes e ela vendeu um primeiro lote de 15 tarefas a Carlota Rosa da Purificação. Esse terreno lindava com a estrada das Boiadas, onde havia várias casas de rendeiros, e a planície onde estavam as terras de Narciso, mas não incluía os fundos, ocupados pela Casa Capital, o núcleo residencial da comunidade religiosa e o sítio contíguo de Frederico Paulo (ver Figura 1 ). 91
Carlota Rosa da Purificação era branca, moradora na freguesia do Pilar e vivia com Chrispiniano Ferreira da Silva Lopes, também branco, juiz de paz, oficial da Guarda Nacional e, mais tarde, subdelegado de polícia. 92 A nova proprietária, na primeira ocasião logo após a compra, talvez mancomunada com Narciso, não duvidou em se apossar das benfeitorias do sítio, que por contrato pertenciam a Frederico Paulo e, por herança, à sua viúva. Carlota (ou seus subalternos) foi
colhendo os frutos do arvoredo e molestando por tal maneira à suplicante [Felicidade Gomes] que esta, para evitar questões, em uma idade já bastante avançada, viu-se constrangida a abandonar a casa de sua propriedade ali feita por seu marido em que tinha seu antigo domicílio. 93
Felicidade foi morar no largo da Soledade, vizinha de dona Feliciana, e interpôs o libelo cível contra Carlota Rosa, processo que se alongou até 20 de junho de 1877, quando, após diversas táticas dissuasórias de Carlota, que questionavam, por exemplo, a autenticidade dos recibos de arrendamento, as partes chegaram a um acordo que envolvia o pagamento à viúva de 700$000 réis, embora a demanda original fosse de 1:160$000 réis. De forma fatídica, Felicidade faleceu um dia depois de assinar o termo de conciliação; quem receberia o dinheiro, nos anos a seguir, em diversas prestações, seria seu filho Hermogenes. 94 Podemos supor que a súbita morte da africana após a renúncia ao sítio suscitou entre seus correligionários explicações várias em que a intervenção dos voduns seria certamente invocada. O acordo judicial pode ter sido favorecido pelo fato de Carlota ter comprado, em março daquele ano, o segundo lote de 24 tarefas, incluindo a área da Casa Capital e o terreno adjacente de Frederico Paulo, e almejar ter a posse plena da nova propriedade. 95 A expulsão de parte dos rendeiros e a chegada dos novos donos da terra possivelmente levou à interrupção das atividades religiosas, embora não caiba descartar que o velho Narciso permanecesse tomando conta dos assentos. Seja como for, em 1902, quando Carlota vendeu o terreno, menciona-se na escritura “diversos arvoredos e as ruínas de uma casa”, provavelmente a Casa Capital. 96 Embora não seja possível saber até quando se prolongaram as atividades religiosas, é claro que ficaram comprometidas com a venda das terras e a perda da proteção dos antigos proprietários.
No mesmo período, em 1870, O Alabama reportava outro caso de conflito entre terratenente e rendeiro em Campina, na freguesia de Pirajá, nas terras contíguas à fazenda Batefolha, pertencentes a dona Emília Carolina da Rocha Brandão (ver Figura 5 ). 97 Essa grande propriedade margeava, pela Estrada das Boiadas (ou Estrada Real dos Gados), os pastos do Conselho ou pastos da fazenda Campina de Pirajá, onde as reses vindas de Feira de Santana aguardavam antes de ser encaminhadas ao matadouro público, nas imediações do Forte do Barbalho. 98 Entre os rendeiros dessa fazenda estavam o africano nagô Thomaz Caetano Coelho, apelidado Pai Thomaz, e sua mulher, a africana jeje Benedicta Maria da Conceição, conhecida sob a alcunha de Aguntesa, lideranças de um candomblé que lá funcionava desde meados da década de 1840. 99 Provavelmente tratava-se do terreiro de nação jeje que a tradição oral lembra como Campina ou Campina de Boskeji. 100
Desde o primeiro arrendamento em 1847, Pai Tomaz tinha pagado 10$000 réis anuais por um “mare-magnum de terras”, mas, “ultimamente”, a proprietária, dona Emília Carolina, “elevou a 15$000 […] porque o preto regula-se por um arrendamento diuturno”. Em fevereiro de 1870, quando foi redigida a notícia de O Alabama , o segundo marido de dona Emília, Leopoldino Benicio das Cotias Brandão, exigia 20$000 réis por tarefa o que, a depender da extensão ocupada pelo terreiro, podia somar uma quantia proibitiva. Cotia Brandão não se incomodava que os africanos batessem candomblé “até feder, contanto que paguem a renda”, e ele justificava o aumento porque “é seu dono e põe o preço”. Além do prejuízo com o aluguel, Pai Thomaz corria o risco de perder três casas que construíra no terreiro. Ele, porém, tinha assessoramento grátis de um advogado “apologista acérrimo do candomblé”, que teria ameaçado de morte o proprietário, quem sabe invocando os poderes espirituais do africano, caso aquele não recuasse da investida. 101 Ignoro o desfecho do desafio e se as alianças do terreiro com a “gente da gema” surtiram algum efeito, mas em novembro daquele ano o chefe de polícia solicitou mandar à sua presença, “acompanhado de uma praça, o africano Thomaz, preto velho que se diz pai de terreiro, e faz candomblé”, o que indica a existência de novos problemas. 102
Esses dois casos mostram como o controle da terra era já naquela época um tema conflituoso para os candomblés. No entanto, entendo serem os vínculos e os direitos sobre as roças um ponto crucial para a consolidação institucional do candomblé. Retomando o tema da brecha camponesa apontado acima, pode-se dizer, com as devidas ressalvas, que a relação de dominação senhorial sobre o trabalho agrícola do escravizado se transformou e perpetuou na paralela relação de poder que o proprietário exercia sobre o liberto rendeiro, meeiro, aforado ou inquilino. Mesmo quando regulado por contratos e pelo pagamento de rendas, o usufruto dos direitos sobre a terra e, portanto, a liberdade dos ocupantes, estavam sujeitos a ameaças, à precariedade e ao capricho do terratenente. Nesse sentido, conflitos pelo direito à posse da terra tornaram-se a linha de frente de uma luta que continua até hoje.
Cabe, por fim, um breve esboço sociológico da liderança do sítio Dagomé, necessariamente esquemático pela limitada disponibilidade de fontes, que proponho realizar indo do período mais recente ao mais recuado. Como já disse, o último pai do terreiro, na década de 1870, foi o africano Narciso Espinheira, aquele que reivindicava sua parte das benfeitorias frutais, desafiando os interesses do crioulo Hermogenes. Narciso se casou em 1862, já com idade avançada, com a também idosa Henriqueta da Silva Pimentel, de nação jeje, que vivia “de seu negócio”, talvez mercadejando gêneros alimentícios. Quem exerceu de padrinho na cerimônia nupcial foi o barbeiro Jose Joaquim de Moraes e sua mulher Henriqueta Maria de Moraes. 103 Jose de Moraes, africano jeje, era o pai do terreiro Bogum, localizado no Engenho Velho da Federação, dedicado, como o Dagomé, ao culto aos voduns. 104 A conexão entre os líderes religiosos por meio do ritual católico permite supor colaboração e alianças também no âmbito dos rituais africanos e seria um primeiro indício da existência de uma rede conectando vários terreiros na periferia da cidade.
A antecessora de Narciso, Demiciana Lopes, era do “gentio da Guiné”, nascida por volta de 1790. Ela teve dois filhos, Manoel e Thomazia, ainda no cativeiro, antes de ser alforriada em 1824 pelos seus senhores José Borges Adão e sua mulher Maria Lopes da Conceição. Desta, tirou o sobrenome. 105 Ela nunca foi casada. As testemunhas do libelo cível informam que foi eleita “mãe de terreiro” em 1862, após o passamento de Frederico, “tornando-se, assim, administradora do sítio Dagomé, recebendo do povo as quotas mensais para pagamento da renda anual”, embora quem entregava o aluguel à proprietária fosse Hermogenes. 106 “Demiciana morava dentro da casa grande” e não numa das casinhas adjacentes, sinalizando seu compromisso religioso, pois era lá que estava o peji com boa parte dos assentamentos. Ela veio a falecer em primeiro de julho de 1871, “de erisipela na perna”, e o registro de óbito a identifica como “africana, solteira, liberta, com idade de oitenta anos, ganhadeira, moradora ao Bate Folhas”. 107 Quem lhe fez o enterro foi Hermogenes. 108 Não seria impensável que, como ganhadeira, tirasse o sustento das frutas do sítio. Reitero, ela foi a única mulher que assumiu a liderança máxima do sítio Dagomé.
Sobre Frederico Paulo de Araújo, seu antecessor, sabemos que foi bom amigo de Mathias da Silva Guimarães, o fundador da casa. Ele era africano, de nação jeje, e, como vimos, foi instrumental para redimensionar o candomblé de roça em um empreendimento agrícola, com a plantação de diversos arvoredos. 109 Embora ele tivesse ido morar com Felicidade Gomes, em 1838, na casa que construíra no sítio Dagomé, eles só se casaram no rito católico em 1843. Nesse caso, quem exerceu o papel de padrinho foi João Pereira de Araújo França, o irmão de Ignacia, a proprietária da fazenda Batefolha, e que por ela assinava os recibos de arrendamento do sítio. 110 Esse elo nupcial sugere relações de cooperação e de clientelismo entre a liderança do candomblé e os donos da fazenda, talvez uma das razões que explicam a longa continuidade do terreiro.
O passado de Frederico Paulo é elusivo. Sabemos um pouco mais de Felicidade Gomes, sua parceira. Também jeje, ainda escravizada, ela teve em 1823 o seu filho Hermogenes. Dois anos depois, ambos ficaram alforriados por verba testamenteira, quando faleceu seu senhor, Lino Ricardo Gomes, da Costa da Mina. Este era um daqueles libertos africanos remediados, barbeiro embarcado em navios negreiros no início do século, casado, com casa própria e seis escravizados, membro de irmandades como a de São Benedito e a de Nosso Senhor da Redenção, no Corpo Santo, onde se reuniam os jejes. 111 A proximidade de Felicidade com essa rede de africanos relativamente prósperos também se constata na eleição do padrinho de Hermogenes: o jeje Antonio Caetano Coelho, envolvido no comércio atlântico, em particular no tráfico de gente. 112
Voltando a Frederico Paulo, em 13 de junho de 1846, ele aparece, na matriz da freguesia de Pirajá, como padrinho de um crioulinho alforriado na pia batismal e, por não saber ler nem escrever, quem assinou por ele foi Manoel Jose da Silva, outro liberto jeje, irmão da Redenção e envolvido no comércio atlântico. Manoel era compadre do traficante mina Geraldo Rodrigues Pereira que, por sua vez, teve por testamenteiro João Pereira de Araújo França. 113 Vemos como a malha social dos donos da fazenda Batefolha e dos libertos do sítio Dagomé vai se enredando. Esses laços, aliás, alcançavam aos fundadores do sítio Dagomé, Mathias da Silva Guimarães e João Luiz Ferreira.
Recuamos assim para as primeiras décadas do Oitocentos. Mathias da Silva Guimarães era de nação jeje e, por volta de 1830, quando liderou o terreiro Dagomé, já era um homem de avançada idade, pois nascera na década de 1750. 114 No seu testamento, declara ter sido batizado na ilha de São Tomé e nomeia seu senhor, o capitão negreiro Silvestre da Silva Guimarães. Contudo, em 1791 já aparece como forro. Nessa década, morava na freguesia da Conceição da Praia, Rua dos Aljubes, na zona portuária, e se casou com Joaquina da Silva de Vasconcelos, natural da Costa da Mina. Em 1799, mudou-se para a freguesia da Sé, na Rua dos Ossos, onde permaneceu até falecer em primeiro de janeiro de 1834. 115 Reitero que, nos primeiros anos do terreiro, o sítio Dagomé era utilizado exclusivamente para obrigações religiosas e a liderança e boa parte dos adeptos moravam no centro urbano.
Mathias foi membro da irmandade de Nossa Senhora do Rosário da Baixa dos Sapateiros, onde chegou a ocupar o cargo de consultor na primeira década do Oitocentos. Também sua cativa e herdeira, a jeje Antonia, chegou a ocupar o posto de juíza, ainda na condição de escravizada, o que sugere certa distinção e uma relação privilegiada com seu senhor, talvez com participação nas atividades do terreiro. 116 Em 1807, Mathias é descrito como vivendo “de ser cobrador de açougues, morador à Rua dos Ossos, 50 anos”. 117
Em 1832, quando redigiu suas últimas vontades, nomeou como testamenteiros os africanos jejes Joaquim de Santana Lima, João Luiz Ferreira, seu futuro sucessor à frente do terreiro, e a mulher do primeiro, Bernardina Joaquina das Neves, com o encargo de tomar conta do seu funeral – que, com certeza, envolveu obrigações no Dagomé. 118 Aliás, cinco anos depois, João Luiz Ferreira também nomeou Joaquim de Santana Lima como seu testamenteiro, confirmando a solidez daquela amizade triangular. 119 No dia de Reis de 1825, por exemplo, Mathias atuou como padrinho de um escravizado de Joaquim e, na ocasião, João Luiz Ferreira batizou um cativo seu. 120
Os membros desse pequeno grupo confiavam uns aos outros a condução dos seus respectivos rituais funerários e, sendo dois deles iniciados nos fundamentos dos voduns, podemos supor que também Joaquim de Santana Lima participara do núcleo religioso que fundou o Dagomé. Ele e sua mulher Bernardina Joaquina das Neves eram um casal muito achegado, moravam na Saúde, na Rua do Alvo, e em 1840 possuíam seis escravizados, todos africanos, sendo ela membro de cinco irmandades. Ou seja, faziam parte daquele grupo privilegiado de libertos que vivia dos seus bens. Joaquim faleceu em 1841 e no testamento da viúva, redigido dez anos mais tarde, ele é identificado como “Joaquim Bathá”, apelido que poderia remeter ao termo iorubá bàtá , um tipo de tambor associado aos orixás Xangô e Oiá e ao culto dos egungun , mais um indício do seu envolvimento em práticas rituais africanas. 121
Outro detalhe: em 1830, Joaquim Bathá foi nomeado testamenteiro (mais uma vez) da jeje Rita Roza de São José, sua vizinha na Rua do Alvo. Ela pedia para lhe fazer o favor de “conduzir com meu corpo a caveira que possuo do defunto meu marido”, João Gomes Touquinho, outro jeje bastante influente na irmandade da Redenção, onde ela era também irmã. 122 A preservação e o culto doméstico às caveiras eram uma prática comum entre alguns povos da Cota da Mina e, embora Joaquim acabasse desistindo da testamentária, o pedido explicita seu saber esotérico naquela ritualística funerária. 123
O terceiro vértice do grupo, João Luiz Ferreira, devia ocupar desde cedo cargos de responsabilidade no sítio Dagomé, como prova o fato de ele vir a assumir a chefia da casa em 1834, após o falecimento de Mathias. João Luiz, como já disse, andou embarcado como cozinheiro em navios negreiros no final da década de 1820, quando, ante a iminência do fechamento do tráfico atlântico, essa economia estava esquentando. 124 Em 1830, por exemplo, ele retornava de Onim com um cativo de sua propriedade e, três semanas depois, emprestava dinheiro a um membro da irmandade da Redenção. Mais duas semanas e ele batizava quatro cativas africanas, três adultas e uma criança, certamente vindas em carregação recente. 125 Ou seja, naquele período inicial do Dagomé, um dos seus membros mais significativos estava lucrando e circulando pela Costa da Mina.
Os três anos de sua regência à frente do candomblé, porém, foram tumultuados. 126 Em outubro de 1835, meses depois da Revolta dos Malês, sob o clima de intensa repressão antiafricana que imperava em Salvador, João Luiz Ferreira solicitou passaporte para viajar a Benguela, junto com outros libertos que operavam no tráfico ilegal, inclusive Antonio Caetano Coelho, o padrinho de Hermogenes. Impossibilitado de viajar a Benguela, João Luiz solicitou um novo passaporte para a Costa de África em setembro de 1836, “a fim de tratar de sua saúde”, levando em sua companhia dois cativos, Joaquim e Josefa. 127 Essa era uma circunstância incomum, pois os serviçais, em geral, eram alforriados antes de empreender a viagem atlântica com seus senhores.
Não deixa de ser expressivo que o pai do Dagomé, habituado a tratar da saúde dos outros, fosse se curar em terra africana, talvez na expectativa de remédios mais eficientes, ou resultado de uma escolha deliberada de morrer na terra mãe. Ele ditou o testamento dias depois de solicitar o passaporte, listando entre seus bens seis cativos, um oratório com imagens aparelhadas de prata, assim como alguns cordões, botões e mais galantarias de ouro. Menos de um ano depois, em agosto de 1837, sua viúva abria o testamento, mas não há menção do lugar em que ele faleceu. 128 Sem vestígio do registro de óbito nos livros de Salvador, suponho que ele viajou.
Não há como provar que a circulação pelo terreiro de libertos jejes envolvidos no comércio atlântico contribuísse para a economia ou organização da vida religiosa do sítio Dagomé. Contudo, a proximidade social entre viajantes atlânticos e sacerdotes dos voduns desvendada pela pesquisa sugere um caminho interpretativo para entender por que os libertos jejes batizaram seu terreiro como Dagomé, o reino responsável pela escravização de boa parte deles e de seus parentes de nação. É verdade, como mostrou Mariza de Carvalho Soares, que a identidade Dagomé já atuava nas folias das irmandades católicas dos minas no Rio de Janeiro, em meados do século XVIII. Dagomé, enquanto súdito do reino Daomé, constituía um etnônimo que aparece de forma ocasional em registros eclesiásticos e inventários. 129
Entre os jejes da Bahia, mais conhecidos que os dagomés eram os maquis (mahis) e, em menor medida, os sabarus (savalus), couranas (hulas, huedas), fons, e codavis. 130 Os maquis foram vítimas recorrentes das razias escravagistas dos dagomés e, por isso, esses dois povos mantinham uma rivalidade histórica, que se perpetuava inclusive na diáspora. Contudo, a amizade de Joaquim Bathá e Bernardina Joaquina das Neves, ambos de nação maqui, com Mathias, deixa entrever a possível mobilização da identidade maqui entre os frequentadores do Dagomé. No seu testamento, Bernardina declarava ser “natural de Maqui Iacomé, filha legítima de Maqui e sua mulher Iiê”. 131 A menção precisa à terra de origem e à filiação é muito rara nos testamentos dos libertos e o seu registro em 1850, quando, devido à interrupção do tráfico atlântico, a classificação étnica dos africanos estava desaparecendo da documentação, fazem supor a intenção deliberada de Bernardina de marcar essa identidade nacional.
O uso do termo Dagomé para nomear o terreiro pode ter resultado da origem étnica do seu fundador Mathias, mas pode também ter refletido um imaginário próprio daquela conjuntura atlântica. Será que aquele nacionalismo cultural daomeano, expresso no culto aos voduns e no nome do terreiro, estava sendo potencializado e alimentado pelas relações comerciais e diplomáticas que a Bahia mantinha com o reino Daomé nas primeiras décadas do século XIX?
O Daomé estava sob o governo do rei Guezo desde 1818. Na década de 1810 e 1820, embaixadores do Daomé e outros reinos, como Lagos e Porto Novo, continuavam a transitar pela Bahia. A embaixada de Guezo, em 1821, financiada pelo traficante baiano Francisco Felix de Souza, sediado em Ajudá, e composta pelo seu irmão, Ignacio, e Amussú, o “legítimo tio” do rei, foi uma delas. Embora se desconheça o desfecho dessa missão, alguns acreditam que tinha por objetivo encontrar a mãe de Guezo, Na Agotimé, escravizada e vendida nas Américas, embora a missiva que sobreviveu não faça qualquer referência ao assunto. 132
No mesmo ano de 1821, em Salvador, o liberto Casimiro da Costa Ferreira, Axê Cû conforme grafava seu nome africano, escrevia ao seu irmão, o “Rei dapã” (de Appa?), pedindo que lhe enviasse um embaixador, pois “de tantos embaixadores que nesta [cidade da Bahia] têm vindo, nenhum de Vossa Mercê me dá notícias”. Axê Cû agregava: “eu cá estou [e] aos Santos também estou servindo, Caivioço [Hevioso], Siribo [Siligbo], Louco [Loko], Yiza [Ayizan] etc., e os não sirvo bem porque sou pobre, porém vou vivendo”. 133 Além de ser o primeiro registro escrito conhecido desses voduns, esse é um exemplo das conexões políticas e religiosas que cruzavam o Atlântico naquele período.
Anos depois, em 1835, há referência, entre os envolvidos na revolta dos Malês, ao jeje João Duarte da Silva, cozinheiro de embarcações, preso em sua casa, “em que mora também dom Jozé Nação Gege, embaixador de Agoumés”. 134 Em julho do mesmo ano, solicitava passaporte para os Portos de África Jose de Guezou, liberto africano de 34 ou 35 anos. Esses são indícios da presença continuada de representantes da corte daomeana transitando entre os libertos da Bahia. 135
No sentido inverso, vários dos africanos que labutavam nos navios negreiros – marinheiros, barbeiros, cozinheiros, e pequenos mercadores – podiam tratar na Costa da Mina com comerciantes daomeanos e até ser convidados à corte em Abomé, geralmente para assistir às grandes festas dos Costumes. 136 Outros, como o já citado Jose Joaquim de Moraes, barbeiro-sangrador que andava embarcado na carreira da Costa da Mina na década de 1820, e que viria a ser o líder do terreiro Bogum, podiam trazer notícias e mercadorias do Daomé a Salvador. 137 Nesse trânsito comercial, propiciado pelo negócio negreiro, o Daomé e a identidade jeje na Bahia podem ter adquirido certo renome nos círculos sociais dos africanos, encorajando os jejes que construíram a “Casa Capital”, na fazenda Batefolha, a batizá-la como sítio Dagomé.
Teríamos aqui um “diálogo atlântico”, conforme expressão de Lorand Matory, em que a circulação transnacional de libertos engajados no comércio marítimo, alguns deles sacerdotes dos voduns, certamente desempenhou algum papel na formação do candomblé. Mas isso aconteceu nas primeiras décadas do século XIX, envolvendo boa parte do período do tráfico ilegal, bem antes da emergência do nacionalismo cultural iorubá e a “renascença” de Lagos no fim do século, fenômenos que Matory quer ver como o fator crítico na configuração identitária das nações africanas nas casas de candomblé baianas. 138 Ao que tudo indica, o “diálogo atlântico” orientou o processo de institucionalização ritual e identitária do candomblé ainda no período do tráfico de escravizados, na primeira metade do século.
O caso do sítio Dagomé permitiu abordar, de forma ainda exploratória, três temas principais que estruturam o artigo. O primeiro destaca a cartografia como fonte histórica que, apesar dos inescapáveis desafios interpretativos, possibilita reflexões sobre a espacialidade, a sociabilidade e a religiosidade do grupo em questão. O segundo trata do candomblé rural e dos conflitos fundiários entre rendeiros e proprietários, mostrando a imbricação do espiritual e do econômico e sinalizando a linha de frente da luta do povo negro pela sua liberdade e subsistência. O terceiro explora até que ponto a comunicação atlântica mediada pelos viajantes e traficantes jejes, na primeira metade do século, teve alguma incidência na formação do sítio Dagomé.
Por trás desse processo de congregação e agregação étnicoreligiosa vislumbra-se uma rede de libertos, com forte predominância da nação jeje, residente no centro urbano, com participação no comércio marítimo, incluindo senhores de escravizados, e membros de diversas irmandades, com destaque para a da Redenção. A relativa afluência dessa rede e suas conexões senhoriais permitiram aceder a um sítio rural para, de forma cooperativa, construir uma casa e realizar as obrigações aos voduns, ocasião privilegiada para celebrar a reconstituição de uma comunidade diaspórica. A denominação Dagomé poderia expressar a especificidade da tradição ritual praticada naquela casa ou ser resultado de um processo identitário e político, próximo ao nacionalismo cultural daomeano que imperava naquela conjuntura atlântica. Nessa hipótese, devemos concluir que a formação do candomblé esteve intrinsecamente imbricada na história do tráfico e da escravidão.
Em uma segunda fase, o sítio Dagomé parece ter evoluído para uma comunidade camponesa, mais empobrecida, engajada na economia de subsistência e na comercialização de frutas e outros gêneros alimentícios. O retraimento para o espaço da roça, sem supor uma desconexão com a cidade, parece ter diminuído a presença de escravizados e a afiliação a irmandades no círculo social da liderança do terreiro.
Ao longo do texto, mencionei os terreiros Bogum e Campina, este na vizinhança do sítio Dagomé. A pesquisa identificou pelo menos outros dois candomblés (Querebetan e Agomé) que, na segunda metade do século, funcionaram nas terras da fazenda Batefolha. Esses terreiros, todos eles de nação jeje, mantinham variadas relações de complementaridade e cooperação entre si. Esse tema será tratado em trabalho futuro, mas é possível adiantar que essa rede de casas, operando na periferia rural de Salvador, sinaliza a importância crítica do “candomblé de roça” na institucionalização das práticas religiosas de matriz africana e na dinâmica de ocupação territorial.
O caso do sítio Dagomé prova a capacidade de mobilização do grupo religioso e sua constituição enquanto comunidade política, agregando africanos e crioulos, libertos, livres e escravizados. Para além dos cânones das irmandades católicas que funcionavam no centro urbano, esses espaços alternativos permitiam experimentações com valores e cosmogonias que desafiavam as convenções da sociedade dominante. No século XIX, a ocupação territorial em volta de práticas religiosas de matriz africana constituiu um novo desdobramento das possibilidades da liberdade.