Resumo: Este artigo discute como teses interpretativas muito compartilhadas sobre o racismo e o folclore negro podem se transformar a partir do trabalho de pesquisa etnográfica, aqui entendido como uma prática de mediação cultural. Alexina de Magalhães Pinto e Lavinia Costa Raymond foram duas intelectuais brancas, professoras e autoras, que apesar de hoje esquecidas, projetaram-se no mundo letrado e acadêmico de seu tempo. Atuaram em dois momentos decisivos, mesmo que distintos, para os debates sobre a questão racial no Brasil: as décadas de 1900 a 1920 e de 1935 a 1955. Enfrentaram, cada uma a sua maneira, ainda que de forma inicial e ambígua, as teses sobre o desaparecimento das expressões culturais afro-brasileiras, encontrando caminhos para a valorização do patrimônio cultural construído pelos descendentes de escravizados.
Palavras chave: Mulheres intelectuais, folclore negro, mediação cultural, questão racial.
Abstract: This study discusses how widely-disseminated interpretations of racism and black folklore can be transformed via ethnographic research, which we understand as cultural mediation. Alexina de Magalhães Pinto and Lavinia Costa Raymond were two white intellectuals, professors, and authors who, although forgotten nowadays, projected themselves in the intellectual and academic worlds of their time. They were active during two decisive moments in debates on racial issues in Brazil: from 1900 to 1920 and from 1935 to 1955. In their own (although initial and ambiguous) ways, they each confronted ideas about the disappearance of Afro-Brazilian cultural expressions, instead focusing on evidence of the ways in which the descendants of the enslaved maintained their cultural heritage.
Keywords: Intellectual women, black folklore, cultural mediation, racial relations.
ARTIGOS
ALEXINA DE MAGALHÃES E LAVINIA RAYMOND: MEDIAÇÕES SOBRE CULTURA POPULAR E FOLCLORE NEGRO EM DOIS TEMPOS *
ALEXINA DE MAGALHÃES AND LAVINIA RAYMOND: MEDIATIONS IN POPULAR CULTURE AND BLACK FOLKLORE DURING TWO PERIODS
Recepção: 30 Dezembro 2021
Aprovação: 27 Junho 2022
Nas últimas décadas, tem sido crescente o interesse acadêmico pela figura do intelectual mediador, ou seja, aquele que se especializou nas atividades de mediação cultural, articulando-as a projetos políticos mais amplos. 1 De um lado, há o reconhecimento da multiplicidade e importância das práticas culturais de mediação, muitas vezes atividades de produção cultural e divulgação que o trabalho intelectual envolve. Por outro, e complementarmente, ressalta-se a dinâmica e o caráter dialógico dessas práticas, assinalados pelo conceito de mediador como passeur (aquele que auxilia ou conduz na passagem) 2 ou “homem duplo” (o que pertence ou transita entre referentes culturais). 3 Tal perspectiva remete às possibilidades desses sujeitos atuarem como pontes, intercambiando, transferindo ou miscigenando linguagens e matrizes culturais, o que evidencia a fluidez de suas fronteiras e as tensões presentes nessas misturas e trocas. Ao destacarmos o trabalho intelectual de intermediar, queremos defender que paradigmas culturais, mesmo quando dominantes, não são fechados ou coesos. Muito ao contrário, convivem com propostas concorrentes que os relativizam ou enfrentam em maior ou menor grau.
Por isso, neste artigo, escolhemos acompanhar a ação e reflexão de intelectuais que, ao se dedicarem a certas práticas de mediação, tiveram que enfrentar matrizes culturais socialmente muito compartilhadas em determinado momento. Nossa hipótese é que, se as práticas culturais de mediação podem reforçar paradigmas vigentes (e geralmente o fazem), podem igualmente produzir experiências que levem à sua relativização, ao menos em alguns aspectos. Tais experiências evidenciam as tensões, ambiguidades e até contradições resultantes da convivência e das disputas entre matrizes de interpretação social. Práticas de mediação cultural são sempre de apropriação seletiva e, em alguns casos, são vivenciadas a partir de trocas pessoais e interações humanas face a face, o que afeta os sujeitos históricos nelas envolvidos e os produtos culturais ou conclusões delas resultantes.
Os(as) intelectuais mediadores, em seus projetos educacionais, acadêmicos e políticos, precisam estar abertos aos desafios e demandas próprios às atividades de mediação. Uma condição inerente às trocas culturais, que têm impactos não previsíveis e até não perceptíveis, quando da elaboração e execução de um trabalho. Dessa forma, não estamos atribuindo a estes profissionais, como sujeitos históricos individuais, o poder de promover mudanças em matrizes culturais. Tais mudanças têm dimensões processuais, ocorrendo de forma lenta e complexa e com a interferência de muitos atores. Consideramos, entretanto, que uma diminuição da escala de observação, como faremos com as intelectuais que elegemos, pode ser útil para percebermos como em determinadas circunstâncias paradigmas culturais – criados, consolidados e compartilhados ao longo do tempo – são vivenciados e aplicados de forma ambígua e tensa, o que pode ser percebido pelos estudiosos a posteriori , mas raramente é explicitado pelos próprios intelectuais durante sua prática de pesquisa.
Com esse pano de fundo, pretendemos fazer um exercício que acompanhe a experiência de duas mulheres intelectuais. Elas, além de terem se engajado em projetos de intervenção mais amplos, exerceram um tipo de prática cultural de mediação paradigmática: a pesquisa etnográfica. Eram mulheres brancas e desenvolveram seus trabalhos sobre o que se chamava de folclore ou estudos da cultura popular, especialmente na questão em torno da presença negra e do racismo, em dois momentos marcados por intensas discussões sobre a identidade nacional e a questão racial: as décadas de 1900 a 1920 e de 1935 a 1955. Os estudos etnográficos e folclóricos, portanto, são entendidos como práticas culturais de mediação por excelência.
Alexina de Magalhães Pinto (1869/1870-1921) 4 era mineira de São João Del Rei e se formou como professora pela Escola Normal do Distrito Federal. Seu interesse pelo folclore está relacionado às suas preocupações com a educação das crianças, tanto que seu objetivo era organizar e divulgar um folclore infantil, que ia inventando e definindo, à medida que classificava seu material de pesquisa. Ela atuou nas duas primeiras décadas do século XX, quando os estudos folclóricos lutavam por se afirmar como um novo tipo de conhecimento científico. Sendo a expressão das tradições mais autênticas de uma nação, o folclore, no Brasil, era constituído pelas contribuições das três raças que formavam nosso povo. Quer dizer, trabalhar com a cultura popular, nas décadas imediatamente posteriores à abolição da escravatura e Proclamação da República, exigia dialogar com as teorias dos determinismos racial e climático (Comte, Spencer, Buckle etc.) que explicavam as causas do “atraso” do país pela inferioridade das populações negras e mestiças, ao que se aliava à vida nos trópicos.
Contudo, se esse modelo biológico era uma orientação dominante entre os intelectuais do período, ele também começava a ser questionado como possibilidade de compreensão da vida social. Esse era um grande desafio, que permaneceria em pauta por décadas, em especial por meio da “teoria do branqueamento”. Nosso interesse ao trabalhar com o exemplo de Alexina é assinalar, ainda que de forma indiciária, como essa professora foi capaz de utilizar suas experiências de trabalho de campo para refletir e questionar as afirmações do racismo científico de sua época.
Lavinia da Costa Villela, pelo casamento Lavinia Costa Raymond, deve ter nascido entre 1910 e 1920, no interior do estado de São Paulo. Também formada professora pela Escola Normal da capital paulista, tornou-se uma estudiosa do folclore e da cultura popular paulista, com destaque para as comunidades que praticavam danças afro-brasileiras. Em 1945, defendeu uma tese sob a orientação do professor Roger Bastide, na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), dando a esse tema de pesquisa uma abordagem sociológica. Além de uma inovação no meio acadêmico, seu trabalho pode ser visto como uma ponte ou elo entre os intelectuais ligados ao folclore e ao movimento folclorista, bem como uma nova intelectualidade instalada nas universidades. Publicada como livro em 1954, Algumas danças populares no estado de São Paulo, embora quase uma década depois de elaborada, manteve muito de sua força no enfrentamento e revisão das interpretações dominantes sobre a cultura popular. 5 Lavinia, portanto, produz no mundo do pós Segunda Guerra Mundial e do pós Estado Novo, distante das teorias racistas que se queriam científicas no início do século XX. Os males do Brasil, sintetizados no “subdesenvolvimento” do país, tinham outra explicação que vinha embasada nos chamados “estudos de comunidade” e na teoria marxista, compartilhados nas ciências sociais, sobretudo em São Paulo. Eram as desigualdades de classe que mantinham o Brasil em situação de “dependência”, sendo responsáveis por todas as outras desigualdades, com destaque às raciais. Assim, é com outro paradigma científico que Lavinia tem que dialogar em sua prática etnográfica, ficando, ao mesmo tempo, longe e perto de Alexina, como queremos demonstrar.
Sabe-se muito pouco sobre Alexina de Magalhães Pinto, tanto em termos de sua vida pessoal como profissional. Praticamente inexiste documentação sobre ela, sendo, também, poucas as notícias na imprensa, que se concentram quando de sua morte. Mais recentemente surgiram trabalhos acadêmicos voltados para sua produção intelectual, que tem despertado mais atenção na área de letras (literatura infantil), do que na de educação e história. 6 Essa dificuldade nos faz seguir pistas e explorar o contexto político-cultural das duas primeiras décadas do século XX, no qual ela surge como professora, folclorista e autora de livros escolares. Nessa posição, participa de iniciativas ligadas à modernização da educação e da valorização dos estudos de folclore ou cultura popular, que internacionalmente procuravam se afirmar de modo científico e ganhar espaço político. No Brasil, talvez Alexina seja a primeira intelectual a defender a associação entre ensino e estudos folclóricos, com singularidades que a tornam especial, pois era também musicóloga, apresentando, em seus livros, registros na linguagem das palavras e dos sons, com orientações para se tocar, cantar e dançar.
Filha do engenheiro Eduardo de Almeida Magalhães e Virgínia Vidal Carneiro de Magalhães, nasceu na Fazenda Ouro Fino, tendo ficado órfã de mãe não se sabe bem quando. Do início de sua vida não há registros, mas um acontecimento se sobressai. No ano de 1890, tudo indica que sozinha, fez uma viagem de estudos à Europa, conhecendo países como França, Itália, Espanha e Portugal. Que tipo de estudos não é possível saber, mas provavelmente foi nessa ocasião que teve contato com uma inovadora literatura sobre educação e folclore, inclusive aquele dirigido a leitores infantis. Foi após seu retorno, em 1896, que cursou a Escola Normal do Distrito Federal, a mais importante do país, tendo se formado em 1900. Durante a realização do curso, vivendo no Rio de Janeiro, casou-se com um primo, mas enviuvou cedo e sem filhos. Alexina não foi uma aluna padrão, não só por ser mais velha que a maioria das normalistas, como igualmente por possuir um acúmulo de experiências e leituras incomum. Certamente por isso e por seu bom desempenho, em 1902 foi designada professora substituta de História Geral e da América na Escola Normal onde estudou. 7
Reunindo alguns fragmentos de sua trajetória, pode-se dizer que permaneceu no Rio até 1906, quando retornou a seu estado natal para acompanhar um parente doente. Foi convidada pelo Secretário do Interior, Carvalho de Brito, a contribuir com a importante reforma da Instrução Pública, encaminhada durante o governo de João Pinheiro (1906-1908). Dessa participação, provavelmente, resultou a adoção de um de seus primeiros trabalhos na rede escolar mineira. Tratava-se da organização de uma biblioteca pedagógica para o professorado, aprovada pelo Conselho Superior de Instrução Pública do estado de Minas Gerais, em 1907. 8
É possível imaginar que foi durante a década de 1900 que começou a realizar suas pesquisas sobre folclore infantil, voltando-se para a produção de uma literatura escolar centrada nas “origens” culturais do povo brasileiro, fundamento para a formação dos novos cidadãos republicanos. Talvez, em meados de 1900, ela residisse em São João Del Rei, pois era para lá que solicitava o envio de colaborações para compor seus livros. Ela faz essa demanda às crianças, aos folcloristas e a músicos, o que evidencia a prática da correspondência como um lugar de sociabilidade intelectual importante, como era comum. Morar no interior de Minas não a impediu de viajar com certa frequência para fazer pesquisas, basicamente em localidades de seu estado natal, de São Paulo e do estado do Rio de Janeiro.
Outro evento conhecido e comentado de sua vida ocorreu em 1915. Alexina perdeu a audição, passando a usar um aparelho que apenas contornava essa grave situação. A surdez deve tê-la abalado muito, já que a escuta era uma condição essencial para sua vida profissional como docente e folclorista. Mesmo assim, tudo indica que não abandonou seu projeto de uma biblioteca infantil de folclore brasileiro. Continuou indo a campo, ouvindo histórias e músicas que seus narradores(as), como ela os nomeia, ainda que com maiores dificuldades, especialmente no segundo caso. Na verdade, foi essa surdez que acabou provocando sua morte, em fevereiro de 1921. Ela estava em Correias, distrito de Petrópolis (RJ), andando junto à linha férrea para se dirigir a uma localidade na qual fazia pesquisas, quando foi colhida por um trem da Leopoldina. 9 Esse evento violento e chocante repercutiu nos circuitos intelectuais dos quais ela participava, ilustrando o reconhecimento de sua atuação como professora e autora.
Alexina publicou quatro livros entre 1907 e 1917. O primeiro,conhecido como As nossas histórias, tem o título Contribuição do Folclore Brasileiro à Biblioteca Infantil e foi impresso pela Eyméoud em Paris, em 1907, sob os cuidados da Livraria Francisco Alves. Os livros seguintes são:
Os nossos brinquedos, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1909; Cantigas das crianças e do povo e danças populares , Rio de Janeiro, Francisco Alves, Lisboa; Aillaud e Bertrand, 1916; e Provérbios populares, máximas e observações usuais , Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1917. Este último foi feito em coautoria com Astholfo Pinto, de “saudosa memória”, e é anunciado em folha de rosto como pertencente à Biblioteca Escolar. 10 A autora – que nos dois primeiros livros se apresenta apenas com o pseudônimo Icks – teve sua produção publicada pela Livraria Francisco Alves, então a mais prestigiosa editora de livros escolares, conhecida tanto por remunerar bem seus autores como por possuir uma boa rede de distribuição no país.
Analisando esses livros, fica claro que foram planejados como uma ambiciosa coleção (com a ordem dos volumes anunciada por letras) cujo projeto sofreu alterações ao longo do tempo, sendo interrompido por sua morte. 11 Já em As nossas histórias (série C), de 1907, a autora apresenta a Coleção Icks como composta por uma biblioteca infantil, com cada livro se concentrando em um tipo de manifestação folclórica voltada às crianças: contos, cantos, brincadeiras, danças, provérbios, hinos etc. Indícios que nos conduzem a pensar que ela ia desenvolvendo seu projeto de construção e invenção de um folclore infantil à medida que ia “coligindo e selecionando” materiais, que eram distribuídos em vários livros, ao mesmo tempo. Alexina fazia sua pesquisa orientada por objetivos pedagógicos, indo à cultura popular pela e para a educação, considerada por ela a estratégia mais fecunda de modernização do país. Por conseguinte, compreende-se por que suas principais redes de sociabilidade estavam ligadas ou ao folclore ou à educação. O projeto político-cultural de uma identidade brasileira que devia abarcar língua, literatura, geografia, história e folclore, caracterizando a produção intelectual do período da virada do século XIX para o XX, seria, inclusive, apropriado e consagrado por diversas correntes modernistas a partir da década de 1920.
Como se sabe, a produção de um(a) intelectual ganha inteligibilidade quando articulada às suas redes de sociabilidade, responsáveis pela ambiência organizacional e afetiva das trocas intelectuais, que vão conformando suas ideias, valores e sensibilidade. Certamente, Alexina se inseriu em várias, tanto no Rio como em Minas Gerais, o que indica o reconhecimento que alcançara. Entretanto, foi certamente enquanto morava no Rio de Janeiro que começou a se integrar no mundo intelectual, o que não era fácil para uma mulher. Foi na condição de ex-aluna e professora da Escola Normal do Distrito Federal, o mais prestigioso lugar de formação de professoras – pois a feminização do magistério primário já era uma realidade – que Alexina foi aceita em outros círculos letrados da cidade. Uma evidência é sua condição de autora da Francisco Alves em 1907, no mesmo momento em que passa a escrever para o Almanaque Brasileiro Garnier, um dos mais importantes periódicos do país entre 1903 e 1914. 12 Como o que nos interessa é assinalar os contatos da autora com os debates intelectuais que se travavam sobre a questão racial, articulados à educação e ao folclore, o recorte de suas sociabilidades vai privilegiar a Escola Normal e o Almanaque. Isso porque aí atuaram dois intelectuais referenciais em tais debates, sendo possível entender que a autora não pode ter ficado alheia às suas teses, tão inovadoras como polêmicas. Manoel Bomfim (1868-1932) na Escola Normal e João Ribeiro (1860-1934) no Almanaque eram homens da mesma geração. Como Alexina, foram contemporâneos dos movimentos abolicionista e republicano, integrando uma “ilustração brasileira” para a qual a educação tinha imenso valor de transformação, até porque era condição da cidadania política. A República, associada ao progresso, não se faria sem o combate ao analfabetismo e à expansão do ensino público primário. Esses intelectuais geralmente eram polígrafos, controlando diferentes áreas de saber e atuando como jornalistas, críticos literários, escritores e professores. Bomfim, que ensinava na Escola Normal, é considerado um intelectual da educação, pois foi diretor do Pedagogium (uma espécie de centro de pesquisas pedagógicas) e diretor da Instrução Pública do Rio de Janeiro. João Ribeiro era professor do Colégio Pedro II, sendo reconhecido como historiador e filólogo. Ambos tiveram uma obra variada e numerosa, mas seus livros mais importantes foram dedicados ao público escolar. Bomfim escreveu livros de leitura, sozinho ou em parceria com Olavo Bilac, seu coautor em Através do Brasil (1910), um grande sucesso por décadas. Ribeiro foi autor de um manual, História do Brasil (1900), considerado a mais importante matriz escolar de uma história do país no início da República. 13
Esses dois intelectuais são estratégicos para sabermos que Alexina participou de redes de sociabilidade nas quais os problemas sociais do Brasil não eram mais explicados através da biologia, apesar do grande trânsito dos cientificismos. Não se sabe se Bomfim foi seu professor, mas com certeza eles se conheceram ou conviveram no ambiente da Escola Normal, o que não quer dizer que ela abraçasse, de forma simplista, suas ideias (os intelectuais não fazem isso), mas sim que estava a par delas e das discussões que produziram. Esse autor não só foi crítico do racismo científico, como o responsável por uma interpretação inovadora, apresentada no livro América Latina: males de origem, de 1905. Nesse ensaio, embora adotando uma linguagem organicista, Bomfim afirmava que o “atraso” dos países latino-americanos colonizados não se devia a questões de raça ou clima, mas sim à exploração que sofreram por parte das nações colonizadoras. O “parasitismo social”, uma categoria cunhada por ele, aplicava-se às relações internacionais entre metrópoles e colônias, e também entre nações. O “parasitismo” sofrido pelo Brasil no período colonial permanecera de forma distinta sob o Império dos Bragança e mesmo com a República. 14 Os fundamentos histórico-sociológicos da análise de Bomfim, centrados no processo colonizador, despertaram atenção e foram desenvolvidos por outros ensaístas nas décadas de 1920, 1930 e 1940. As notícias na imprensa sobre a recepção desse livro indicam que houve muita discussão. Interessa-nos destacar a reação de Silvio Romero, 15 literato e referência nos estudos de folclore, além de defensor da tese do branqueamento, que atacou Bomfim numa série de artigos, posteriormente reunidos em livro. Portanto, é o que desejamos apontar, seria impossível para alguém, como Alexina, não estar ciente desse tipo de polêmica em torno da questão racial.
João Ribeiro, colega e amigo de Silvio Romero no Pedro II, é outro intelectual fundamental nas redes de sociabilidade da autora, especialmente quando se torna editor do Almanaque, entre 1907 e 1914, criando em suas páginas uma seção de Folclore. Ribeiro segue caminho distinto de Bomfim, mas também passa pela história do Brasil e seu processo de colonização. No manual História do Brasil, contribui pela abordagem e síntese realizadas ao escrever uma “história interna” voltada para os movimentos de ocupação do território e não uma “história externa” da metrópole, centrada em acontecimentos políticos. Como filólogo, era defensor de uma “língua nacional”, 16 o chão de todas as manifestações culturais que davam identidade à nação. Um trunfo fantástico para unir o povo brasileiro, sendo inacreditável que, mesmo após a independência, o país ainda conservasse essa “algema” sustentada por gramáticos puristas. O português do Brasil era distinto, incorporando expressões e emoções das línguas indígenas e africanas, já que o falar marcava as formas de viver e sentir de uma população. Ribeiro, portanto, chega ao folclore através dessas formulações, tornando-se amigo e correspondente de Alexina. Tal aproximação, difícil de datar, é atestada por artigo publicado quando da morte da autora, em 1921. 17 Nele, Ribeiro rememora as circunstâncias em que se conheceram: “Vendo-me como um curioso e amador das histórias, desde logo a professora e escritora se tornou minha amiga, dando-me a honrosa distinção de sua correspondência”. Ou seja, no início dessa troca intelectual, ela era a “professora”, que discutia com quem era um “amador”. 18
Uma situação que se alteraria radicalmente, já que Ribeiro se tornaria um crítico severo do diletantismo dos folcloristas, cujo trabalho pouco analítico e sem rigor se tornava um empecilho ao reconhecimento do estatuto científico do folclore. Para tanto, ele transforma a seção Folclore do Almanaque em espaço para defender o status científico da pesquisa folclórica e divulgar os estudos que se faziam. Um objetivo que seria sistematizado e socializado, em 1913, em curso oferecido na Biblioteca Nacional, publicado em seus Anais e, em 1919, transformado em livro: O Folclore: estudos de literatura popular . 19 Mesmo autores que contribuíram muitíssimo para tais estudos, como Silvio Romero, receberam objeções por não trabalharem de forma científica, sendo apenas “colecionadores”. Inspirado na “doutrina psicológica alemã da alma coletiva do povo”, defendia que só o rigor metodológico nos momentos da pesquisa e análise do material permitiria uma aproximação do que constituía o “substrato inconsciente e instintivo” da cultura popular de uma nação. Nesses termos, o folclore era uma espécie de “psicologia dos povos”, que demonstrava a tese da transmissão cultural pela oralidade. Todos os povos tinham esses saberes, que traduziam uma espécie de “enciclopedismo inculto”, de “literatura não escrita”, como o título do livro ressaltava. Era o respeito à cultura popular que justificava os procedimentos de registro fiel (“fotográfico”) e os demais cuidados necessários à análise que garantiam “autenticidade”, mesmo passando pela mediação do(da) folclorista, a começar por sua transposição da linguagem oral para a escrita, condição para sua preservação e integração à cultura nacional.
São claras, por conseguinte, as ambiguidades presentes nesse projeto de construção da unidade nacional pela valorização das tradições populares. Entre outras razões, porque nos contatos interpessoais dos folcloristas, o povo deixava de ser um construto coletivo e abstrato para se encarnar em um conjunto de narradores possuidores de um valioso saber ancestral, transmitido pela oralidade. Se esses narradores eram majoritariamente pobres, iletrados e incultos, eram igualmente os detentores de uma memória capaz de dar acesso às manifestações mais originais e autênticas da cultura brasileira.
Alexina de Magalhães Pinto é, ao lado de outras poucas mulheres, uma das criadoras de uma literatura infantil brasileira. É ainda muito desconhecida, uma vez que o cânone minimiza tudo o que foi feito antes de Monteiro Lobato. 20 Seus livros são difíceis de encontrar e, não por acaso, três deles foram consultados na biblioteca pessoal de Mário de Andrade, e o quarto, pertencente a Renato de Almeida, no Museu do Folclore 21 – dois importantes folcloristas e musicólogos, que atestam que o trabalho da autora circulou entre os/as intelectuais, sendo sua pesquisa de folclorista e musicóloga consultada e utilizada. Cecília Meirelles, poetisa, autora de literatura infantil e interessada em folclore, por exemplo, vai citá-la várias vezes em sua coluna, “Professores e Estudantes”, do jornal A Manhã no início da década de 1940. 22
A autora, portanto, foi uma referência pela qualidade de seu trabalho, podendo-se dizer que seus livros tinham algumas características diferenciais. A mais importante é o fato de apresentarem um grande número de paratextos. 23 Lidos em conjunto, nos permitem perceber que possuíam dois objetivos principais: o diálogo com os públicos leitores, o que é próprio dos paratextos; e, de forma singular, um tipo de escrita que remete à dos cadernos de campo. Nesse caso, há uma série de notações relativas: aos contatos com os narradores; a quem eram eles; como se apresentavam; além de informações sobre as intervenções que realizava nos materiais coligidos. 24 Dessa forma, os paratextos nos permitem refletir sobre o momento de interação entre essa intelectual e seus narradores, algo incomum na época, embora, evidentemente, apenas sob sua ótica.
Ora o(a) folclorista é um mediador por excelência, até porque não registra um dado preexistente, produz as condições para que algo passe a existir a partir de seu próprio interesse e interação com os narradores. Por conseguinte, os procedimentos do trabalho de campo são complexos, sendo fruto de relações que têm implicações, quer para a forma como a manifestação cultural será encenada, quer para os sentidos que vai ganhar para o pesquisador e narradores, impactando todos os envolvidos e deixando explícitas as ambiguidades presentes nessas interações, que vão aparecer, também, nas publicações posteriores.
Os livros da autora mostram que, mesmo voltados às crianças, muita atenção era dedicada ao público adulto. São diversas as ocasiões em que Alexina orienta as mães e professoras no sentido de melhor utilizarem o material selecionado e organizado. Um exemplo é o paratexto “Alguns conselhos”, do livro de 1916, Cantigas das crianças e do povo e danças populares, em que instrui os pais e os educadores a respeito da melhor maneira de aproveitarem o livro. Deviam ler expressivamente as cantigas, permitir que as gravuras fossem coloridas e cantar a meia voz, atentando para o repouso vocal e levando em conta o momento do dia. Seu diálogo com essas leitoras é muito revelador de sua formação, pois ela faz indicações bibliográficas em francês, em inglês e principalmente em português, informando os locais onde os livros podiam ser encontrados. 25 Desde As nossas histórias (1907), contudo, verificamos que ela também se volta para outro público adulto muito especial: os folcloristas. Assim, no alto da página do Índice está essa orientação: “Os adultos suportariam talvez este livro se o iniciassem pelo último romance e o findassem pela primeira lenda”. E abaixo: “No fim do volume vão algumas notas destinadas aos estudiosos que se interessarem por essas histórias”.
Mas são as “Notas” dos livros de Alexina, na verdade, o coração de seu diálogo com os pares e, portanto, o lugar privilegiado para os comentários da autora sobre sua pesquisa. Portanto, apesar de serem dispersas e fragmentadas, possibilitam o acesso a seu trabalho de campo; à identificação de projetos mais específicos; e à percepção das tensões e desafios que ela enfrenta e, algumas vezes, explicita o que é raro entre seus contemporâneos. Nesse último caso, que se confunde com os demais, um om exemplo é o apresentado na “Nota Preliminar” de As nossas histórias, que pode ser entendido como uma negociação tanto com as orientações científicas do folclore como com as da moderna pedagogia. Sua formulação parte de duas afirmações. Primeira: a do respeito às exigências de fidelidade às manifestações populares nos procedimentos de pesquisa, pois era isso que garantia sua autenticidade. Por isso, afirma seguir de perto seus narradores, emendando ou suprimindo o mínimo possível e indicando o que fazia, escrupulosamente, em notas (de rodapé ou no final). Segunda: a da combinatória entre o rigor dos estudos folclóricos e as diretrizes da pedagogia, vale dizer, com respeito à capacidade e moralidade de seu público infantil, o que justificava adaptações e até omissões. Dessa operação intelectual resultava uma espécie de princípio: o da “máxima fidelidade relativa”. 26 Uma preocupação, como se vê, que guardava uma constante tensão. É essa concepção sobre seu trabalho, que volta a aparecer no livro Cantigas das crianças e do povo e danças populares, de 1916. Em sua “Nota justificativa: aos estudiosos e educadores ” – um texto de seis páginas onde descreve seu trabalho de campo – ela volta à questão da “máxima fidelidade relativa”, articulando à sua experiência de pesquisadora, que durante anos e anos “andou, ouviu e registrou de lábios de meninas, senhoras e matronas”, os materiais fornecidos “pelas raças que constituíram o fundo da nacionalidade pátria”. 27
Ouvia de lápis na mão e papel em punho; escrevia rápido; em segunda audição verificava o que escrevera; para o piano, transportava os trechos musicais; escrevia-os, conferia-os, após escritos. […] Cada uma das canções do trabalho negro, mais férteis do que as festivas […] cada uma das canções infantis nesse opúsculo consignadas, representa, pois, uma grande dose de paciência expedida. 28
Esse paratexto é praticamente um caderno de campo, que alia um registro autobiográfico a uma justificativa que respondia às críticas realizadas a suas escolhas. Nessa nota, ela retoma o mesmo desafio de anos atrás. Sabia que a ciência do folclore exigia a mais “rigorosa fidelidade aos textos originais e até às deturpações”: queria a “verdade nua e crua”. No entanto, os interesses das crianças demandavam algo diverso. Era preciso certa correção de linguagem e cuidados com a moral infantil: sobre a nudez, o véu diáfano da fantasia. Como conciliar orientações tão diversas? Segundo ela, “espíritos mais avisados” lhe disseram que era impossível e que estragaria a pedagogia ou o folclore. Mas ela insistiu, fazendo comentários sobre como era distinta de seus pares: “As tendências mais cálidas e irreverentes de nosso folclore [estão], à farta, documentadas em trabalhos de penas masculinas que do assunto se têm ocupado”. 29 Em outros termos, folcloristas homens já faziam o registro da “verdade nua e crua”, não vendo a possibilidade de um folclore infantil. Por ser uma mulher e educadora via o desafio, mas o enfrentava. Esse é o único momento em que encontramos menção à sua condição feminina orientando as seleções e adaptações necessárias ao público infantil, segundo ela mesma, em nada prejudiciais ao folclore, uma vez que toda interferência era informada aos estudiosos. Quando materiais considerados inadequados eram omitidos, poderiam ser encaminhados a “algum centro que se organizasse para o estudo de nossos males”, 30 o que demonstra que seriam bons para pensar o Brasil. Por fim, pergunta se seu esforço “ingente, honesto e sincero” estava conseguindo atender a seus públicos: estudiosos do folclore, educadores, crianças, “primitivos”, músicos, artistas etc. Ela responde que não sabia, mas conclui: “lutei, o bom lutar”. 31
Os livros de Alexina, portanto, são muito ricos, sobretudo, considerando que ela foi a campo no momento imediatamente posterior à abolição e em áreas onde muitos escravizados haviam se concentrado, como os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Uma pequena observação, na Nota A do livro Cantigas das crianças e do povo e danças populares , 32 permite-nos perceber como estava particularmente interessada no estudo dos “negros do sul”, embora reconheça que seus esforços talvez só tivessem sucesso no futuro. Este livro, aliás, tem uma trajetória que confirma tal desejo. Isso porque, em As nossas histórias , de 1907, Série C da Coleção Icks, no verso da folha de rosto, Cantigas das crianças e dos pretos é anunciado como o primeiro livro (Série A), da coleção. 33 Em Os nossos brinquedos , de 1909, também no verso da folha de rosto, Cantigas das crianças e dos pretos volta a ser prometido. Mas isso não ocorre e é bem possível que as dificuldades para “coligir e organizar” um material mais numeroso sobre o folclore negro tenha levado à transformação do título: em vez dos pretos, o povo. Esse é o livro que apresenta uma parte dedicada apenas às cantigas dos negros: Pai José; Charuta; Pai Francisco; Sinhazinha; Chiquinha; Tumba e Carola. 34 Um número muito pequeno, considerando-se o que é apresentado como cantigas das crianças, quase a totalidade do volume.
Porém, se não são tantas as manifestações culturais classificadas como integrantes de um folclore negro, são numerosos(as) os(as) narradores(as) negros(as) que contribuem, contando histórias e cantando cantigas que ela considera vindas do folclore negro, português ou mesmo brasileiro. Essa é outra riqueza das Notas da autora. Nelas costuma identificar os(as) narradores(as), algumas vezes fornecendo as iniciais do nome, mas muitas vezes informando sua idade e cor, além do local de moradia, geralmente associado a uma estação ferroviária ou ao nome de uma fazenda. Quanto à idade, é interessante notar que ela entrevista muitas crianças e idosos; quanto à cor, nomeia brancos(as), pretos(as), pretinhos(as), pretos(as) retintos(as), quase brancos(as). 35 Uma paleta e um vocabulário que demonstram como a autora está imersa nos cientificismos de seu tempo. Além disso, esse vocabulário é dominado pela dicotomia, muito corrente, entre civilizados e primitivos, indicadora do evolucionismo que, então, marcava o pensamento social. Civilizados são principalmente os letrados (majoritariamente brancos), enquanto a ideia do primitivo é frequentemente intercambiada pela de iletrado e inculto (majoritariamente negros e indígenas), o que traz um rebaixamento, uma exclusão desta população. Mas primitivo(a), algumas vezes, também ganha o sentido de manifestações originárias, como as primitivas lendas portuguesas ou os primitivos ritmos africanos.
Algumas observações da autora, contudo, indicam as tensões já mencionadas ante os postulados da inferioridade racial de negros e mestiços. O mais interessante, no caso, é como ela vincula seus questionamentos à sua experiência de trabalho de campo. É o que ocorre na “Nota preliminar” de As nossas histórias, quando afirma “constatar nos meus iletrados narradores populares do interior do Brasil […] desenvolvimento intelectual e compreensão moral, superiores aos dos possuidores dos cursos escolares dos centros mais civilizados…”. 36 Nesse breve comentário, ela não só relativiza hierarquias raciais, pois boa parte de seus narradores(as) eram negros(as), como coloca em debate a associação absolutamente generalizada entre letramento e inteligência. Uma reflexão, retomada em outros paratextos, quando descreve seus contatos com os narradores(as) e faz observações sobre quem eram e como se comportavam durante suas performances. Estes são registros que atestam as ambiguidades de suas reflexões e o impacto que o trabalho de campo produziu nos resultados de sua pesquisa folclórica.
Nesse caso, alguns dos exemplos mais interessantes da interação de Alexina com narradores negros(as) estão nas “Notas” que seguem o “Apêndice às cantigas” do livro Cantigas das crianças e do povo e danças populares. O primeiro é o de um preto velho cearense, ex-escravizado com quem conversou em território mineiro. Ele dormia ao relento, à míngua de serviços. Viera do Ceará em 1842 com doze anos, e de lá trouxera, de cor, várias cantigas e lendas. Tendo passado pelo Rio de Janeiro, aprendera outras tantas. Estas, narrou “com admirável cor local e conhecimento topográfico; aquelas, com lágrimas nos olhos: aprendera-as de sua mãe”. Era “inteligentíssimo; fazia contas admiravelmente, se bem que analfabeto”. Foi o único informante acessível e sincero a lhe falar das “feitiçarias em voga entre os pretos do Sul”. 37 Algumas que ela efetivamente conhecia e podia confrontar com seu relato. O segundo exemplo é o de uma narradora: “uma cozinheira preta maltrapilha e também analfabeta”, mas de uma memória melódica e de palavras “extraordinária”, completada por uma “voz agradável, harmoniosa, afinação impecável”. 38 Quando se apresentava, seu rosto se iluminava por “um olhar meigo e comunicativo”, “por um constante sorrir”, que fazia esquecer “os andrajos com que, tão jovem ainda, mal disfarçava a nudez”. Sapo Jururu, Anjo do Céu, A Carola e outras cantigas vieram dessa pobre negra que, como o velho cearense, transfigurava-se ao se apresentar para ela, evidenciando qualidades musicais e de memória que demonstravam inteligência e sensibilidade, a despeito da indigente pobreza, do analfabetismo e do abandono em que se encontravam.
Um último exemplo permite certo contraste com os anteriores. É o de uma mulata do Bonfim (Bahia), que viera para Minas com doze anos. Nesse caso, o que mais impressionou Alexina foi a atitude demonstrada pela narradora ao cantar uns versinhos, “dos poucos que se referem a assuntos históricos” (a guerra do Paraguai). Vale a citação: “Olhar firme, desembaraçada, confiante, era-lhe um gozo a atenção que atraía. Falava aos visitantes brancos como a iguais. […] Via-se que do seu desembaraço, fazia a si mesmo uma superioridade”. 39 A autora percebe que a mulher fazia de sua apresentação um momento de afirmação de si mesma (e de sua cor), utilizando-o para inverter a situação em que se encontrava. Os paratextos dos livros de Alexina, especialmente suas Notas, abrem possibilidades de acesso à ação dessa intelectual mediadora durante a pesquisa de campo, na transposição da linguagem oral para a escrita culta, e na adaptação, respeitando “a máxima fidelidade relativa” dos materiais folclóricos ao público infantil. As tensões e ambiguidades são evidentes, a começar pelo vocabulário, o que não nos impede de verificar como ao intermediar, ao misturar, ela coloca em xeque certezas e verdades compartilhadas.
Por fim, um comentário da autora merece atenção. Em As nossas histórias, ela informa que contos como Mula Jiló, Mula Ruanda e Água Latumba, muito populares, demonstram “a existência de manifestações vitais em circunstâncias em que nós, os civilizados, já não as acreditamos possíveis. Essa remanescência da vida […] é para eles [primitivos] o prêmio à virtude; a sua extinção, a morte”. 40 Assim, saltam aos olhos tanto o reconhecimento da força da cultura popular, quanto a possibilidade de sua permanência como elemento vital para os(as) narradores(as), contrariando os estudiosos do folclore que apostavam em seu desparecimento. Ainda que de forma indiciária, as observações de Alexina atestam que, mesmo antes das incursões modernistas da década de 1920, uma tradição de pesquisa que aliava o nacional ao popular estava em curso no Brasil.
Lavinia Raymond é, também, uma intelectual desafiadora, já que, como Alexina, são poucas as informações a seu respeito. A maior parte delas se refere à sua vida profissional, sendo fornecidas, pela própria autora, nas duas publicações que localizamos. 41 A origem de Algumas Danças Populares no estado de São Paulo , como já mencionamos, foi a pesquisa para sua tese de doutorado, orientada por Roger Bastide e defendida, em 1945, diante da “Seção de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo”. 42
Nos agradecimentos feitos na tese, as referências a Mário de Andrade, a quem a autora registra sua homenagem de saudade (Mário havia falecido em fevereiro de 1945), ocupam local central. Não fazia muito tempo, ele lhe havia prometido uma longa conversa sobre seu trabalho, o que evidencia como o convívio com Mário de Andrade marcara profundamente sua formação: “foi conversando com ele, consultando sua biblioteca, lendo suas notas”, que havia colhido muito do material utilizado na tese. Lavinia reconhecia em Mário, para além de fonte de conhecimento, a capacidade de animar jovens, criar vocações, estimular curiosidades artísticas e científicas. Sua biblioteca, localizada em sua própria casa, teria sido central na formação, no esclarecimento de dúvidas e no acolhimento da pesquisadora. 43
O início do interesse de Lavinia pelos estudos de folclore deu-se, provavelmente, quando cursava a Escola Normal e mais sistematicamente quando foi estudante da recém fundada Faculdade de Ciências e Letras da USP. Ali deve ter ouvido falar do curso de Etnografia que seria ministrado por Dina Dreyfus, etnóloga casada com Claude Lévi-Strauss, ao longo de 1936, a partir de iniciativa de Mário de Andrade, então Diretor do Departamento de Cultura de São Paulo. 44 Com objetivo de preparar jovens pesquisadores para o “urgente trabalho prático de campo”, Mário, como havia feito João Ribeiro tempos atrás, buscava incentivar a coleta científica de “nossos costumes, nossas tradições populares, nossos caracteres raciais”. 45 Dina havia sido assistente no Musée de L’Homme, em Paris, e realizava trabalhos de campo no Brasil, ao lado de seu marido, entre os índios de Mato Grosso. Lavinia, ao que tudo indica, destacou-se entre os alunos, pois foi convidada a participar da Sociedade de Etnografia e Folclore (SEF, 1937-1939), associação criada por Mário e Dina exatamente como proposta final desse curso. 46
Pela documentação da Sociedade, descobrimos que Lavinia, no período de sua atuação, era solteira e assinava seus trabalhos como Lavinia Costa Villela, fazendo parte da equipe que redigiu os estatutos e da primeira diretoria, como segunda secretária (a primeira era Dina Lévi-Strauss). Nessas atividades, teve intensa correspondência com colaboradores da Sociedade, agradecendo contribuições enviadas e participando da organização da pesquisa sobre o inquérito folclórico no estado de São Paulo. Com evidente perfil de defesa da cultura popular, o objetivo da pesquisa, sob a supervisão direta de Mário de Andrade, era inventariar expressões folclóricas, como os tabus alimentares, a medicina popular (cura de terçol com anel) e as danças populares (assunto que Lavinia levaria para sua tese). 47
Outros agradecimentos, publicados na edição do livro de 1954, nos permitem conhecer um pouco mais da vasta rede de sociabilidade em que Lavinia circulava na moderna São Paulo de 1930 e 1940. Se, por um lado, mostrava ter trânsito com uma antiga geração de intelectuais, entre eles Mário de Andrade, já estabelecida em instituições de ensino e pesquisa; 48 por outro, convivia e fazia parte da nova geração universitária, que incluía mulheres que iniciavam carreira acadêmica. Exatamente pela ajuda recebida na coleta de material, agradeceu a Gioconda Mossolini (1913-1969), a Lenita Camargo e a Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017), todos, então, jovens professores da USP. 49 Temos indicações de que Lavinia deve ter sido também professora dessa universidade, pois foi assistente de ensino de Roger Bastide, na Cadeira de Sociologia I, ao menos em 1941, quando ministrou aulas para o jovem Florestan Fernandes, no curso de Graduação em Ciências Sociais. 50 A ida para os Estados Unidos com uma bolsa de estudos, logo após o doutoramento, e o casamento, em 1948, com o sociólogo norte-americano Ray Raymond certamente contribuíram para seu afastamento da USP e do Brasil. 51
Os últimos agradecimentos que Lavinia faz na tese são para Roger Bastide (1898-1974), por sua orientação “segura e dedicada”. Além de ter feito muitas indicações bibliográficas, teria emprestado livros, discutido a elaboração da tese, estimulado e ajudado, de maneira amiga, a vencer “inúmeras dificuldades que um trabalho desta natureza sempre oferece”. 52 Como fica claro, Lavinia foi formada em torno de um paradigma que valorizava o folclore – e a cultura do “povo” – como a “alma da nação”, tão ao gosto de seu primeiro mestre Mário de Andrade. 53 Mas desenvolveu-se na etnografia com Dina Lévi-Strauss, e foi impulsionada pelos desafios da vida acadêmica para romper com as teorias racistas e deterministas, então já desacreditadas. Lavinia parece ter tido como projeto acadêmico, no campo da sociologia, mostrar que o folclore não poderia ser “estudado apenas em si mesmo”. 54 E é exatamente assim que Bastide define seu trabalho na apresentação da publicação: “a primeira interpretação sociológica do folclore negro no Brasil”. Para o orientador, o trabalho de Lavinia era a realização da concepção sociológica do folclore, concepção que defendia havia muito tempo, e que percebia em crescimento com os trabalhos de Florestan Fernandes, Octavio da Costa Eduardo, Alceu Maynard Araujo, Dante de Laytano, entre outros. Para Bastide, Lavinia havia ultrapassado o “estágio do pitoresco” e da “pura descrição”. Atingiu, “no folclore, a realidade viva, bordado precioso sim, tecido fio a fio na própria trama da sociedade brasileira, da qual não é possível destacá-lo”. 55
Sem dúvida, o trabalho de Lavinia ultrapassava a perspectiva dominante nos estudos de folclore, até então marcados pela carência metodológica na pesquisa de campo, pela simples descrição e classificação dos folguedos, pela presença de certa “áurea de poesia e romance”, pela ênfase na busca das origens 56 e de um pretérito caráter nacional, popular, sincrético e harmônico racialmente. Mas, se trabalhou com referências teóricas de antropólogos e sociólogos, como Herbert Baldus e Radcilffe-Brown, intelectuais com quem deve, também, ter convivido na USP e na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Lavinia não abriu mão totalmente de certas posições esposadas pelo campo do folclore. Assim, logo de início, vai valorizar reconhecidos folcloristas, como Rossini Tavares de Lima e Edison Carneiro, em suas primeiras justificativas para a publicação. Depois, vai denominar seu objeto de “fato folclórico”, definido por ela como aquele “marcado pela persistência, pela tradição oral e direta”, em geral entendido como base para a interpretação sociológica. 57 Lavinia ainda compartilhava a visão de que os “fatos folclóricos” precisavam ser “colhidos”, pois corriam riscos com o avanço da urbanização. 58
Não nos importa, aqui, avaliar a perspectiva mais presente no trabalho de Lavinia, se de folclorista ou de socióloga, mas perceber como os paradigmas dessas áreas conviveram e se transformaram em seu trabalho de campo e, posteriormente, na escrita da tese, ainda que em tensão. Seu contato com as comunidades batuqueiras, jongueiras, moçambiqueiras e congadeiras de São Paulo – e a mediação das relações entre esses grupos –, as autoridades municipais e os intelectuais interessados possibilitaram novas perguntas e inovadoras respostas para as ciências sociais como um todo, mesmo que, por vezes, ambíguas e nem sempre completas e seguras. Lavinia abriu caminhos para a valorização da força das heranças culturais africanas e dos laços comunitários entre os descendentes de escravizados. Foi na interação com os sujeitos das danças afro-brasileiras, como também ocorrera com Alexina, que ela pôde questionar a tese sobre a ausência de preconceito racial no Brasil e perceber a afirmação de uma política cultural negra, valorizando “a elevada ideia da capacidade artística dos negros”. 59 Para nós, pesquisadores de hoje, que também fazemos da ida ao campo e do convívio com comunidades negras uma pauta de pesquisa, reflexão teórica e política, Lavinia, como Alexina no início do século XX, permite-nos observar outro momento especial de uma já longa história de mediação entre intelectuais e expressões afro-brasileiras, que chega até hoje. 60 Entre batuques, jongos, moçambiques e congadas de Tietê, São Luis do Paraitinga e Vila Santa Maria (cidade de São Paulo), presentes em Algumas danças populares do estado de São Paulo , daremos maior atenção aos estudos de Lavinia sobre os jongos e batuques. Isso porque, como assumiu a pesquisadora, a partir da definição de Paulo, um improvisador de versos e desafios: “Batuque é dança de negro, veio da África, só que na África ele chamava jongo”. 61
Tendo partido da premissa folclorista de que as “danças populares” começavam a rarear, e ficavam cada vez menos ricas e visíveis (“no aparato, no número de dançarinos, na inspiração musical ou poética”), o que mobilizava a urgência da pesquisa, Lavinia inovou ao perceber outras dimensões. 62 E mesmo que tenha usado algumas vezes a qualificação de “primitivo” para os costumes que acompanhou, 63 o trabalho de campo, o conhecimento direto, a mediação com os integrantes dos grupos e, claro, a formação em sociologia lhe permitiram identificar sinais que mostravam evidências da vitalidade dessas expressões. Por um lado, ela percebeu que uma das dificuldades para a continuidade estava no fato de as “danças folclóricas” estarem sendo “escorraçadas em alguns lugares, por proibições de várias ordens” (os perigos da modernidade não ocupavam o centro das explicações). Lavinia acompanha pessoalmente e denuncia as proibições da Igreja e das autoridades municipais, o que era um argumento forte e inovador para as explicações e referenciais no campo do folclore. Por outro lado, a participação direta nos eventos lhe permitiu questionar os motivos dessa persistência: “Que fazem no meio da ‘civilização’ branca, em ‘situações urbanas’, esses traços trazidos por culturas negras e, outrora, característicos de ‘situações rurais’? Por que persistiam, quando tantos outros seus contemporâneos, pertencentes ao mesmo conjunto social, tinham desaparecido? E o que resultava dessa persistência para os grupos que as praticavam? 64
Em busca de respostas, Lavinia observou e verificou a tenacidade dos jongueiros e batuqueiros. A tenacidade dos dançadores levantava problemas sociológicos e abria questões de ordem política, 65 impulsionando a continuidade dos estudos da aluna de Mário de Andrade para muito além do esforço de colher registros. Na cidade de São Paulo, por exemplo, embora Lavinia não tenha deixado de se impressionar com a pobreza material dos integrantes das manifestações de batuque, congada e samba, na década de 1940, também valorizou o que assistiu. A existência dessas expressões surpreendeu a pesquisadora, que imaginava encontrá-las apenas em locais distantes e escondidos, como previa toda a imaginação do folclore. 66 Em palavras que evidenciam o reconhecimento pela ação dos dançarinos do grupo de Vila Santa Maria, um bairro na moderna cidade de São Paulo, ela escreve: “se reúne, ensaia, confecciona roupas, desloca-se de um bairro para o outro, enfrenta a objetiva do DEIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) para comemorar uma data, ou melhor, para ter a oportunidade de congar”. 67
Na percepção de Lavinia, mesmo onde o significado de tudo aquilo parecia não mais existir, a tradição persistia. Embora não tenha chegado a formular explicitamente a ideia central da sociologia moderna, de que as tradições convivem e se renovam com a modernidade, 68 avaliou que a persistência era uma força maior do que se imaginava, uma força política e moral, coletiva e identitária. As tradições – e o orgulho por elas – poderiam movimentar-se ou renascer, mesmo em ambientes urbanos e no meio da “civilização branca”. Não diziam apenas respeito ao passado; ligavam-se ao presente, aos movimentos dos dançarinos. 69
Outras máximas defendidas pelos folcloristas que estudaram os jongos e batuques, como Luciano Gallet e o próprio Mário de Andrade, afirmavam que os versos, os cantos e os desafios eram pobres, monótonos e sem valor. As danças, por sua vez, teriam apelo sensual. Em outra direção, não foi isso que Lavinia percebeu e anotou, a partir dos contatos com os versejadores. 70 Em Tietê, por exemplo, a pesquisadora ficou muito bem impressionada com os cantadores dos batuques que, com versos de improviso, mostravam toda a sua inteligência e sensibilidade nos diálogos que criavam com os visitantes ilustres da capital: os professores da USP, o próprio delegado e o prefeito. Inteligência e sensibilidade, que Alexina também ressaltara, apesar da pobreza e do analfabetismo de seus narradores. Nas cantigas e versos, Lavinia reconhece que o improviso era a arte principal e que o “fundamento” vinha do “gosto africano pelas adivinhas”. Até mesmo a presença da África ou da continuidade do legado dos africanos entrou em seu horizonte de reflexões. 71 Em sensível observação, percebeu que o batuque em Tietê representava um caminho de comunicação – conflito e solidariedade – entre os diversos grupos componentes da comunidade. Servia para se folgar e para dizer o que se pensa. Os batuqueiros lhe informaram que, se os batuques eram dança de antigamente, de escravo e de gente velha, os mais moços estavam aprendendo e dando continuidade. 72 A presença dos mais moços, de pais e filhos, de maridos e mulheres, de compadres e comadres também lhe permitiu perceber sentidos políticos nas comunidades de batuques, muito além do referido apelo sensual das danças. A importância dos laços familiares, da proteção aos mais velhos e, até mesmo, da manutenção das comemorações em 13 de maio, como marco da conquista da liberdade, eram expressões comunitárias em Tietê e em Vila Santa Maria. Jovens e crianças podiam participar, dormiam próximo ao fogo. Tudo tinha a supervisão dos mais velhos. Lavinia conseguiu entender a força da comunidade negra e da transmissão de seus patrimônios, num momento em que circulavam diagnósticos sobre a patologia e o despreparo dessa população (medido pela pretensa carência de laços familiares) para a vida moderna após o fim da escravidão. 73
A percepção da força do grupo, de suas redes familiares e das formas próprias de comemoração permitiu que Lavinia enfrentasse, talvez, o maior paradigma das ciências sociais de seu tempo, seja no campo do folclore, da sociologia, da antropologia ou da história: a afirmação da ausência de preconceito racial no Brasil, expressa na ideia da “democracia racial”. A partir do diagnóstico de Donald Pierson sobre a inexistência do preconceito racial no Brasil, 74 Lavinia chegou a reproduzir algumas de suas conclusões, como a da existência de “mais preconceito de classe que de raça” e de o país ser uma terra onde a ausência desse preconceito se apregoa. 75 Entretanto, ao descobrir a força da comunidade negra, especialmente em Tietê, afirmou, mesmo timidamente, que “o negro começa a ter consciência de raça, da cor”; começa “a desejar obter, por qualquer realização de ordem artística, compensação para seu ‘status’ de inferioridade”, quer dizer, os(as) negros(as) queriam afirmar seu valor contra o racismo que sofriam. 76 Por isso, foi mais longe na identificação da questão racial: “Se é verdade que de maneira geral a ‘situação racial’ brasileira é antes de ‘preconceito de classe que de raça’, a tendência, em certos lugares, é para acentuar o elemento de cor”. 77
Com todo esse percurso, a folclorista iniciante com Mário de Andrade, aluna de etnologia, doutora em sociologia pela USP, pesquisadora de campo com muita sensibilidade e preparo foi uma intelectual que não abriu mão de interagir com os entrevistados. Ao aproximar-se das comunidades jongueiras e batuqueiras, chegou a prometer arranjar licença para um grupo se apresentar em Jardim América, na capital paulista. Pelo seu relato, Antonio Rufino, natural de Tietê, residente em São Paulo desde 1938, pintor de paredes, teria procurado Lavinia para auxiliá-lo a conseguir licença do DEIP para outro batuque em Vila Santa Maria. Rufino, com 32 anos, era principiante no batuque, mas conhecia, ainda, cinco “tambús” na capital de São Paulo. Provavelmente, indicou e acompanhou a pesquisadora na visita a esses outros grupos de jongo. 78
Alexina e Lavinia são duas intelectuais que dão pano para manga. Muito mais poderia ser desenvolvido a respeito do percurso de ambas. Elas nos mostram, por exemplo, como souberam explorar as oportunidades abertas pelo acesso à educação, frequentando duas escolas de ponta para entrar numa carreira intelectual: a melhor escola de formação de professoras primárias no início do século XX, e a única universidade do país que possuía cursos de pós-graduação, em meados do mesmo século. Ambas atuaram em momentos estratégicos na reconstrução do campo de saber a que se dedicaram – o folclore – que, nos dois momentos, buscava alcançar o status de conhecimento científico, definindo seu objeto e metodologia com rigor. Para tanto, João Ribeiro e Mário de Andrade conceberam a mesma estratégia, que consistia em atacar os intelectuais que os precederam, fazendo críticas às características de sua produção; e investir na formação de novos quadros, atentos aos então modernos procedimentos de coleta e interpretação do material coligido.
Tal operação envolvia, com destaque, o enfretamento dos paradigmas que enquadravam interpretações da questão racial no Brasil, mas que tinham alcance internacional. Na medida em que a cultura popular é, em grande parte, uma produção de afro-brasileiros, era incontornável dialogar com tais interpretações, e fazer o trabalho de campo informado por elas. É, então, que vemos a força das práticas de mediação, no caso a prática etnográfica, que permite às duas intelectuais, mesmo que com ambiguidades, questionar e até negar o que se afirmava sobre a inferioridade dos(as) negros(as), refletindo sobre o preconceito racial e problematizando suas causas. Sobretudo, como foram capazes – cada uma à sua maneira de perceber que a afirmação tão compartilhada pelos estudiosos do folclore sobre o inevitável enfraquecimento ou desaparecimento das expressões culturais afro-brasileiras precisava, ao menos, ser repensada.
Dessa forma, ante suas experiências de trabalho de campo, espantaram-se e surpreenderam-se com a inteligência e tenacidade dos seus narradores e entrevistados. Mais ainda, destacaram que, para os detentores das tradições populares e negras, elas tinham um sentido vital, sendo seu esquecimento e desaparecimento pouco prováveis porque comparáveis à morte de suas identidades. Vale marcar que as duas intelectuais brancas não se insurgiram contra os paradigmas interpretativos de sua época de forma ampla, geral e irrestrita, mas nos deixaram fortes rastros e indícios sobre a transformação que estava em curso.
Nós também nos surpreendemos com a atuação de Alexina e Lavinia, que evidenciam como a condição feminina, se não é determinante, tem peso no trabalho de pesquisa: na aproximação com os detentores, no registro de suas manifestações e na sensibilidade mobilizada para relativizar verdades científicas. O que Alexina e Lavinia nos mostram é que as mulheres encontram caminhos para se tornarem intelectuais que fazem ciência, o que é muito bom para as mulheres, mas, principalmente, é muito bom para a ciência, seja ela qual for e em qualquer tempo.
A pesquisa para este artigo foi feita com auxílio de bolsas de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). As reflexões conjuntas foram fruto de um animado curso que ministramos no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) em 2019. Agradecemos a todos os professores da Escola de História da UNIRIO que nos acolheram durante o período em que fomos professoras visitantes. Também, somos gratas pelas sugestões dos pareceristas desta revista.