ARTIGOS
OS SAGRADOS FEMININOS DA POMBAGIRA NAS ENCRUZILHADAS MORFOLÓGICAS DE MARIA PADILHA *
SACRED POMBAGIRA FEMININE DISPLAYS IN THE MORPHOLOGICAL CROSSROADS OF MARIA PADILHA
OS SAGRADOS FEMININOS DA POMBAGIRA NAS ENCRUZILHADAS MORFOLÓGICAS DE MARIA PADILHA *
Afro-Ásia, núm. 66, pp. 391-450, 2022
Universidade Federal da Bahia
Recepção: 11 Dezembro 2021
Aprovação: 23 Março 2022
Resumo: Este artigo aborda alguns percursos culturais na formação da religiosidade mediúnica ibero-afro-indígena do Brasil a partir do estudo focal da metamorfose da histórica Maria de Padilla em Maria Padilha, configuração mais antiga de pombagira da qual se tem notícia na formação das umbandas cariocas desde o início do século XX. Embora o ponto de observação parta da configuração de Maria Padilha como pombagira, em comparação ao repertório e aos meios sociais dos calundus e feitiçarias coloniais, buscou-se assentar um plano comparativo de contextualização transcultural, explorando a hipótese de que a pombagira atualiza, nos meios culturais urbanos de religiosidade mediúnica carioca, os caracteres, formas e funções que remetem às morfologias de sagrado feminino catalogadas nos estudos feministas de arqueologia comparativa (paleolítica, neolítica e Antiga) de Marija Giumbutas e Miriam Dexter.
Palavras chave: Pombagira, sagrado Feminino, macumbas cariocas.
Abstract: This study addresses some cultural paths in the formation of the Ibero-Afro-Indigenous mediunic religiosity in Brazil, based on the focal study of the metamorphosis of the historical Maria de Padilla into Maria Padilha, the oldest pombagira configuration in the repertory of the umbandas of Rio de Janeiro, known since the beginning of the 20th century. Although our point of observation departs itself from configuring Maria Padilha as pombagira — in comparison with the cultural repertory and social origins of colonial calundus and witchcraft — we sought to establish a transcultural comparative contextualization plan in our studies, exploring the hypothesis that pombagira updates, in urban cultural contexts of manifestations of mediunic religiosity, some characters, forms, and functions that refer to the morphologies of sacred feminine displays catalogued in Marija Giumbutas and Miriam Dexter’s feminist comparative archeological studies on the Indo-European Paleolithic, Neolithic, and Ancient Ages.
Keywords: Pombagira, feminine sacred display, macumbas cariocas.
Talvez a primeira coisa a dizer quando abordamos temas relacionados à entidade sagrada mediúnica pombagira1 no Brasil é entender que há vários atravessamentos históricos e cosmológicos em sua manifestação e configuração de enredos e númen . É muito raro que pessoas imersas em seus campos de culto não tendam a normatizar aceitabilidade ou negação, conforme época e lugar, ao explicarem o que entendem que sejam as pombagiras, disputando normativas sobre a sua condição ou função cosmológica. O nosso olhar sobre a matéria não é de “dentro” nem de “fora” da umbanda, mas da “beira”. Partimos de expressões atuais de pombagiras de umbanda no Rio de Janeiro 2 para, então, desenvolver algumas hipóteses encruzilhadas de entendimentos sobre a multidimensionalidade histórica de seus acervos de enredos cosmológicos.
Durante nosso estudo, fizemos um jogo pendular comparativo com as experiências setecentistas dos calundus centro-africanos; percorremos a feitiçaria ibérica das mulheres portuguesas degredadas pelo Santo Ofício que conjuravam “Maria Padilha”; buscamos pistas sobre a transmutação da personagem histórica Maria de Padilla em “espírito auxiliador” Maria Padilha ; comparamos a configuração da pombagira Maria Padilha com modelos de divindades geradoras-protetoras-curativas-guerreiras da Antiguidade (à luz da revisão crítica feminista na arqueologia anglo-saxônica sobre o tema do sagrado feminino); por fim, perseguimos os rastros do surgimento da pombagira no Rio de Janeiro como entidade mediúnica claramente distinta da divindade centro-africana Bombojira,mas agregadora também de seus enredos cosmológicos.
A formação da umbanda no Rio de Janeiro do século XIX – com a centralidade cosmológica do culto ao inquice Santo Antônio , modelo congo-angola de santidade com atributos de combatividade e resistência antiescravista 3 – foi interferida pelas interfaces étnicas do tráfico de escravizados centro-africanos e pelas formas de contatos com as etnias indígenas e suas heranças culturais. O mesmo ocorrera com as cabulas, encantarias, candomblés de caboclos, jarês, catimbós, pajelanças maranhenses de africanos e crioulos (com rituais semelhantes ao catimbó setecentista, chamados de pajés em finais do século XIX pela imprensa maranhense), a mescla original jeje-angola do tambor de minas e as juremas sagradas do Norte-Nordeste. Todas essas expressões de sagrado mediúnico ibero-afro-indígena têm uma latente marca cosmológica inquice de apropriação do catolicismo. 4
A partir de 1850, o fim do tráfico e o recuo do contato urbano com povos originários (isto é, pouco afetados pelo missionarismo católico) provocaram a crioulização (ou desestrangeirização) demográfica das religiões mediúnicas ibero-afro-indígenas no Rio de Janeiro, apagando os sentidos de culto a antepassados dos calundus setecentistas centro-africanos em contextos urbanos catolicizados de umbandas: o seu lugar foi cosmologicamente ocupado por entidades mediúnicas conselheiras e propiciadoras impessoais , cujas configurações cosmológicas foram sofrendo agregações de novos caracteres ao ritmo dos acervos de enredos religiosos do Norte-Nordeste que migraram para a cidade.
Contudo, nos calundus setecentistas centro-africanos, havia também a manifestação de antepassados insatisfeitos com as condutas de seus descendentes vivos, seja porque deixaram de honrá-los adequadamente, seja porque mantiveram uma vida reprovável que feria a reputação da sua linhagem. Nesse caso, os antepassados insatisfeitos atacavam os númens de saúde, prosperidade e fertilidade de seus descendentes. Durante ritos de possessão, as rainhas entoadas dos calundus comunicavam, por meio de seus antepassados, os recados dos antepassados dos consulentes ou identificavam e neutralizavam a ação de espíritos malévolos (isto é, que não tiveram ritos fúnebres adequados porque morreram longe dos clãs ou terra natal, ou porque foram desprezados já em vida e esquecidos por seus descendentes por viverem de forma reprovável). Tais espíritos anômicos , por conta de sua desvinculação da mpemba dos ancestrais, tornavam-se anômalos e vagantes , ou seja, manipuláveis por feiticeiros.
Tanto o antepassado insatisfeito (que age por vontade própria, apoiado pelo conjunto dos ancestrais) quanto o espírito malévolo foram subsumidos numa só categoria cosmológica quando chegamos na umbanda da virada do século XIX para o XX: Egun , o qual tem sentido cosmológico distinto daquele empregado nos candomblés baianos ditos de “nação”. Os candomblés nagôs, por exemplo, que não perderam a memória do fundamento, fazem culto a Egungun, que é a personificação coletiva de todos os antepassados masculinos de uma casa, com ritos iniciáticos próprios apenas para homens e claramente distintos da iniciação a orixás.
Nos candomblés nagôs, Egungun está numa zona cosmológica que não mistura com orixás, o que se traduz fisicamente na apartação de casas para Orixás e para Egunguns. Nos seus acervos de enredos cosmológicos, a única divindade que atravessa as esferas dos mortos e dos orixás é o espiralar Exu. Tais atravessamentos de enredos cosmológicos e terminologias, por vezes, criam confusões e conflitos de legitimidade entre praticantes das umbandas e dos candomblés de “nação” até hoje, particularmente quando o campo do conflito é regulado pela normativa da autenticidade africana como desqualificadora do sincretismo , que se arrasta desde a década de 1920 nas imprensas baianas e cariocas, ou seja, antes dos congressos internacionais de cultura africana, ocorridos na Bahia em 1934 e 1937. 5
O mesmo tipo de enredo cosmológico mercurial de Exu vai ser desempenhado pelas entidades de umbanda organizadas em linhas e falanges cosmológicas, não sendo um atributo específico das entidades exus e pombagiras. Comparativamente, tais entidades agregaram mais funções cosmológicas do que aquelas das rainhas entoadas com antepassados dos calundus centro-africanos coloniais. Daí, temos outra confusão recorrente a ser esclarecida: nas umbandas de começos do século XX, egun se tornou par antitético à entidade , que atua junto do inquice-orixá , trabalhando para e com a divindade contra a ação dos eguns (isto é, os espíritos anômicos, anômalos e vagantes de mortos, parentes ou não, que atacam a força vital e psíquica dos vivos).
No entanto, por conta dos múltiplos atravessamentos e disputas de mercado religioso das tradições africanas centrais e ocidentais no Rio de Janeiro, as entidades de umbanda foram recorrentemente abordadas como eguns pelos candomblés de “nação” e, portanto, oficialmente, não concebem que possa haver misturas de ritos com eguns na mesma casa em que há ritos para orixás. Na prática, atualmente, com o peso do enraizamento de númen centro-africano na formação religiosa da população do Rio de Janeiro, não há como contornar as entidades de umbandas nas coroas dos filhos e filhas de candomblés de “nação”, como foi o caso de Hérica Rosa, ex-evangélica que, sem ter passagem por casa de umbanda, foi iniciada, já adulta, em candomblé ketu (nagô) por um “pai” iniciado na infância em “angola”. Como resultado da sobreposição de númens , Hérica desenvolveu espontaneamente a manifestação da pombagira Rosa Caveira quando fez assentamento de três qualidades de “Omolus”. 6
Com os processos de migrações internas Norte-Nordeste para o Rio de Janeiro no contexto pós-tráfico e, particularmente, no contexto pós-abolição, é possível perceber sua interferência no repertório da umbanda carioca já no começo do século XX: além de os agentes cosmológicos dos ritos de possessão terem se ampliado – perdendo a conotação de linhagens de antepassados em favor da noção impessoal de linhas e falanges de entidades mediúnicas –, as divindades ou santos “inquicizados” centro-africanos tenderam a assumir nomes de divindades nagôs, 7 as quais se tornaram regentes ou chefias de linhas cosmológicas, a que se submetiam as falanges de entidades mediúnicas. 8 Os nomes nagôs não apagaram o sentido cosmológico dos inquices , nem sua cosmologia centro-africana catolicizada, para a qual é indiferente a separação ritual entre númen de divindade e númen de egun , a qual, oficialmente, é axioma dos candomblés baianos ditos de “nação”.
Em alguns sítios cariocas de umbanda, mesmos que os inquices tenham desaparecido do vocabulário de culto em favor de nomes de santos, anjos e orixás, resta uma forma centro-africana na sua concepção e organização cosmológica, com a singularidade de que, nos casos das umbandas do começo do século XX, raramente há rituais em que ocorra a possessão mediúnica das divindades, mas sim de entidades , que passam a ser mediadoras especializadas de sua força-axé , ou númen – ou seja, as entidades de umbanda podem ser lidas como processos-inquices . 9 Em contextos de giras até hoje, a presentificação ritualística deste númen inquice por meio das entidades mediúnicas tem as mesmas funções (mágica, curativa, protetora, propiciatória, conselheira e oracular) que anteriormente eram dadas aos antepassados evocados nos calundus setecentistas centro-africanos do Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais, havendo a centralidade apotropaica do inquice Santo Antônio/ Ogum(-Nkosi) nas entradas das casas ou em seus altares. Esse inquice tem enredo cosmológico especial com a pombagira Maria Mulambo , que geralmente o articula com os númens de Mavambo, Aluvaiá e Kavungo. 10
Portanto, o ponto de partida deste estudo não poderia supor que é possível gerar segurança categórica com uma resposta normativa-explicativa global sobre o que é a pombagira ou o que ela não é , como, por vezes, é a tônica de polêmicas mercadológicas de lideranças religiosas. O que também se aplica aos debates entre lideranças religiosas sobre o sentido de “orixá” nas umbandas, os quais são atravessados pela desvalorização histórica e antropológica dos sincretismos de enredos religiosos ibero-afro-indígenas, pois a busca por autenticidade africana é topos regulador de legitimidade entre as casas de candomblés de “nação”. Indo em direção oposta – menos afrocentrada e mais agregativa de númens históricos e cosmológicos ao modo das religiosidades centro-africanas no Brasil –, veremos por quais encruzilhadas sincréticas seguiremos os enredos da metamorfose da histórica Maria de Padilla em pombagira “Maria Padilha”, a sua forma mais antiga de manifestação da qual temos notícia no Rio de Janeiro; e demonstraremos como isso é atravessado pelo tema do sagrado feminino, o qual nos possibilita perceber caminhos urbanos da transição do nome Bombojira (inquice) para a singularidade da entidade pombagira das umbandas cariocas.
Uma primeira aproximação transitória e trans-histórica à pombagira Maria Padilha
Segundo os dados mais antigos que encontramos, formados a partir de relatos enviesados na imprensa carioca da Primeira República, as configurações expressivas e usos sociais da pombagira no Rio de Janeiro foram delineados no primeiro terço do século XX. Uma de suas expressões comunicantes mediúnicas mais recorrentes e antigas se apresenta como Maria Padilha – que, veremos, tem vínculo numinoso com divindades femininas das águas. É sobre Maria Padilha os pontos cantados mais antigos no Rio de Janeiro, seguida pelas referências à pombagira Maria Mulambo.
Nos antigos pontos cantados sobre Maria Padilha, aparecem referências tópicas à “Mulher de Lúcifer”, tal como nas fórmulas ibéricas coloniais de conjuro do espírito auxiliador “Maria Padilha”, identificadas no vocabulário demonológico das confissões, denúncias, devassas e visitações do Santo Ofício que abarcaram Bahia, Minas Gerais e Pernambuco entre os séculos XVI e XVIII – mas não parece haver ocorrências dessa natureza na documentação da visitação do Santo Ofício ao Grão-Pará e Maranhão em finais do século XVIII. 11
“Maria Padilha” é nome que veio do repertório tardo-medieval ibérico, que chegou ao Brasil colonial por meio de mulheres reinóis degredadas, geralmente pobres, viúvas ou “sozinhas”, algumas delas ciganas, entre 30 e 50 anos, já processadas em Portugal por práticas de bruxaria que, no vocabulário demonológico do Santo Ofício, eram indissociáveis da imputação de prostituição . Mulheres “sozinhas”, pobres e livres (brancas ou não) que tentavam sobreviver com sua força de trabalho no Brasil Colonial eram abordadas como “mulheres públicas” no vocabulário do Santo Ofício. 12
Por vezes, a deliberada criação local de fama pública de feiticeira era um recurso imaterial para essas mulheres “sozinhas” e “públicas” conseguirem ganhos com práticas de cura (física e espiritual), oraculares e propiciatórias (fertilidade, conquista sexual, casamento, riqueza etc.), as quais o Santo Ofício – por vezes divergindo do entendimento dos párocos locais sobre os costumes da terra – considerava ilícitas, agravando-se quando o órgão eclesiástico (de foro independente ao civil até meados do século XVIII) agregava às acusações a presunção do pacto diabólico . A fama pública de feiticeira era, portanto, um recurso imaterial perigoso e ambíguo por conta da sombra do Santo Ofício, mas os perigos da vida local na colônia para uma mulher “sozinha” e “pública” degredada do reino tornavam o Santo Ofício um risco ocasional, menor e distante.
Como os hábitos ibéricos de evocação de “espíritos auxiliadores” eram condenados como bruxaria e heresia pelo repertório demonológico douto do Santo Ofício, temos acesso social às feiticeiras ibéricas no Brasil Colonial a contrapelo do seu vocabulário estigmatizante – aliás, a reincidência e a rede de pessoas envolvidas nas denúncias provam a grande permissividade pragmática dos costumes locais àquilo que era demonizado pelo Santo Ofício. É perceptível que a fama local de feiticeira era também uma forma de essas mulheres “sozinhas” e “públicas” se defenderem do risco recorrente de abusos materiais, jurídicos, físicos, morais e sexuais de padres, rufiões e homens casados da colônia.
Muitos desses desafios de sobrevivência, estigmas e funções protetivas, curativas, oraculares e propiciatórias das feiticeiras ibéricas coloniais emergem nos repertórios de funções (ou expectativa de papeis), enredos, epítetos, pontos cantados e personae imputados à pombagira Maria Padilha nos subúrbios do Rio de Janeiro até hoje, assim como naqueles de outras pombagiras que se valem do mesmo modelo-base de imputações: “Mulher de Lúcifer”, “Mulher de sete Maridos”, “Ela é um perigo”, “Ela é rainha, ela é mulher”, “Mulher das horas difíceis”, “Rainha da Encruzilhada”, “Feiticeira”, “Mandingueira”, “Diaba”, “Mulher Desgraçada” etc.
A tradição ibérica de evocar “espíritos auxiliadores” vai se miscigenar com formas centro-africanas e indígenas de evocação de antepassados para práticas oraculares, curativas e exorcismos. Daí, não é surpreendente o grau de envolvimento de reinóis e seus descendentes naquilo que genericamente foi colocado sob o vocábulo centro-africano calundu , no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, desde o século XVII. Quando comparamos os casos estudados por Elisângela Oliveira Ferreira para o sul da Bahia no século XVIII, 13 a contrapelo da linguagem de poder do Santo Ofício, é perceptível uma tácita anuência de poderes, padres e populações locais à feitiçaria ibérica e aos calundus, particularmente na segunda metade do século XVIII, o que talvez explique muitas das sobrevivências de formas, funções, imputações, enredos e caracteres sociais de gênero das pombagiras no Rio de Janeiro do começo do século XX.
Como veremos, essa hipótese cria apenas uma aproximação histórica à camada mais superficial de atravessamentos que configuram a pombagira Maria Padilha. Os seus enredos em cada terreiro – que são enigmas iniciáticos multidimensionais por meio de acervos locais atravessados pela relação circular entre oralidade e cultura da escrita – falam para além de um jogo categórico simples entre realidade social e representação simbólica. A pombagira não é apenas uma representação simbólica sintomática de uma realidade, mas um princípio numinoso de ação interferente na realidade social, cultural e simbólica que guarda uma coerência de princípios e critérios que são os seus segredos iniciáticos enquanto atuantes de númens inquices.
Há médiuns que podem passar a vida inteira sem conhecê-los ou percebê-los devido ao enquadramento funcional e aos enredos que seu terreiro instituiu para o númen pombagira, mas, mesmo que não os percebam, as pistas estão em subtextos dos próprios enredos, materialidades de culto, performance ritualística e demais ancoragens de númens operados pela entidade no médium e no seu terreiro. A pombagira responde a situações pragmáticas reais, mas, até onde observamos, os seus fundamentos numinosos se ancoram numa agência mais antiga do que os protocolos civilizatórios determinados por cada terreiro no Rio de Janeiro atualmente. O acervo “Maria Padilha” como enredo local para pombagira, por exemplo, é uma evocação de númen melusino14 nos terreiros, com várias camadas totêmicas de ancoragens numinosas e funções específicas. É uma hipótese que exploraremos na parte final deste estudo: o seu vínculo inquice com modelos viperinos e felinícios de divindades aquático-aladas urânicas. Antes disso, vamos destrinchar o acervo “Maria Padilha” para entendermos como se formaram enredos possíveis para sua evocação como pombagira melusina no século XX.
Acervos de enredos da pombagira Maria Padilha
Entre os séculos XVI e XVIII, o “espírito auxiliador” Maria Padilha dos conjuros ibéricos não era ainda a entidade mediúnica pombagira do Rio de Janeiro do começo do século XX, mas fica evidente a mesma função, geralmente solicitada por mulheres periféricas em situações de dilemas conjugais, dificuldades afetivas, parcerias abusivas e infortúnios venéreos, materiais, profissionais, sociais e afetivos. Nos pontos antigos cantados sobre Maria Padilha – alguns são evocações por meio de enredos arquetípicos –, a referência à sua condição de rainha alude à histórica Maria de Padilla , mas também não podemos desconsiderar que, nos casos de calundus estudados por Elisângela Oliveira Ferreira, as sacerdotisas centrais ao enredo do rito, quando já entoadas por espírito(s), apresentavam-se à audiência como rainhas. 15 Há pistas evidentes de rituais, vocabulários, materialidades de culto e enredos de rito de calundus por ela resgatados dos processos do Santo Ofício sobre a Bahia setecentista que também se apresentam nas configurações de umbandas e macumbas cariocas do início do século XX, 16 anteriores e paralelas à solução espírita da umbanda de Zélio Fernandino de Moraes.
Quando falamos anteriormente que a pombagira Maria Padilha assume a mesma função de “espírito auxiliador” da Maria Padilha dos conjuros no Brasil Colonial, isso não quer dizer que todas as casas de umbanda do Rio de Janeiro entendam, atualmente, a entidade como um espírito purgatorial de mulher devassa e feiticeira que viveu numa época e retorna sob sua roupagem mediúnica. Alguns lugares podem entendê-la como emanações inquices de divindades ou mesmo como suas servidoras sagradas, que é o caminho que temos metodologicamente trilhado na pesquisa, por conta dos casos observados de culto.
Por esse viés, a roupagem pombagira seria uma forma cultural local de traduzir ou aproximar o númen individualizado de antigas divindades ao númen coletivo do panteão atual das casas de sagrado mediúnico, cujas divindades seriam regentes de linhas cosmológicas com atributos, funções e servidores sagrados específicos. Nesse caso, as pombagiras seriam entidades mediúnicas como outras (caboclos, pretos-velhos, exus, erês etc.) que trariam para as sessões de giras algumas parcelas especializadas do númen de divindades específicas, mas também poderiam fazer encruzilhadas cosmológicas conciliadoras de númens de mais de uma divindade, o que chamamos na nossa pesquisa de enredos cosmológicos vesica piscis , cujo grafismo aparece em pontos riscados.
Em sua genealogia de enredo, a pombagira Maria Padilha tem também várias camadas e tradições de sentido que se ancoram na figura histórica de Maria de Padilla (1334-1361) e na memória social construída a seu respeito a partir de poemas, crônicas e epopeias de corte que a difamaram postumamente, 17 que criaram a figura mítica da bela cortesã sedutora e feiticeira devassa que destruiu o casamento do rei Pedro I (1334-1369) com Branca de Bourbon (1339-1361), estabelecendo um misterioso domínio impróprio sobre o monarca (utilizando-se de filtros de amor, ou amarrações , recursos baseados em repertórios mediterrâneos antigos) 18 e teria sido a responsável pelo assassinato de Branca de Bourbon.
As figuras históricas Branca e Maria, no entanto, morreram no mesmo período em que Castela estava assolada pela Peste Negra, enquanto Pedro I foi assassinado em 23 de março de 1369 por seu irmão bastardo e sucessor do trono de Castela e Leão: Henrique das Mercês (1334-1379), entronado como rei Henrique II. A imagem construída pela difamação póstuma de Maria de Padilla pela cultura letrada de corte pró-Henrique II ganhou grande circulação social trovadoresca na Península Ibérica, tanto que seu nome já aparece em fórmulas de evocação de “espíritos auxiliadores” nos séculos seguintes.
O que reverberou e ficou na memória social dos meios populares rurais ibéricos – igualmente interferidos pela proximidade cultural dos muçulmanos – foi a imagem da cortesã morena de vestido escarlate, portadora de um misterioso poder que colocou um rei diabólico (Pedro, o Cruel ) aos seus pés, exibindo um poder quebra-sina frente à sociedade de linhagens aristocráticas e hierarquias estamentais. Se o rei Pedro I é postumamente difamado como rei diabólico e cruel, em contraste com o rei Henrique II das Mercês , não é de estranhar que as conjurações ibéricas coloniais ao “espírito auxiliador” Maria Padilha venham epitetadas com “Mulher de Lúcifer”.
As epopeias de corte que a difamaram lhe imputaram o episódio em que enfeitiça um cinto para Branca de Bourbon, que se transforma em cobra quando Pedro I pretende cumprir núpcias com ela. Por consequência, ela foi definitivamente repudiada como esposa e rainha. Embora num primeiro nível de repertório o surgimento da serpente ratifique o estigma do pacto diabólico , tal passagem literária de difamação remete também a um fundo mítico mais antigo do que o bíblico: a dimensão viperina-fálica do sagrado feminino primordial . Isto é indiretamente recuperado no repertório melusino19 da pombagira Maria Padilha quando é epitetada como Diaba ou Mulher de Lúcifer nos pontos cantados, o que, como veremos, carrega o vínculo urânico com o númen aquático-alado propiciador de abundância, amor, fertilidade, vingança, fúria e justiça casuística, juntando em si o que a mitologia grega dividiu entre Afrodite (fruto do sêmen celeste que cai no oceano) e suas irmãs Erínias (fruto do sangue celeste que cai na terra), mas que vemos arquetipicamente reunidos nas Iyami Oxorongá, Inanna e em Lilith.
Alguns sentidos e funções imputados ao diabo pelos padres doutos do Santo Ofício não eram necessariamente compactuados pelo repertório mágico-encantatório das mulheres “sozinhas e públicas” degredadas para o Brasil colonial. O diabo delas era mais um gênio que domina os númens do mundo natural, com o qual se podia trocar favores em lugares específicos, geralmente liminares, como encruzilhadas, bordas de rios e árvores frondosas ou antigas que margeassem ou definissem limites entre áreas selvagens e cultivadas. O seu diabo cabe em garrafas, bolsas de couro, pedras, ilhargas, amuletos de pescoço, cajados, bonecos, anéis, ferros moldados consagrados e alguidares. Esses sentidos e formas de gênios naturais com os quais se estabeleciam laços propiciatórios familiares não seriam estranhos às cosmologias indígenas e centro-africanas encontradas pelas feiticeiras ibéricas degredadas no Brasil colonial.
Portanto, podemos dizer, provisoriamente, que a pombagira Maria Padilha tem atributos, enredos, funções, ferramentas, epítetos, materialidade votiva e performances sociais que demonstram a seguinte encruzilhada transcultural:
Em crônicas, poemas e epopeias de corte, a histórica Maria de Padilla foi tratada como a dama escura (no sentido moral, mas depois isso adquiriu projeção fenotípica racista: morena) em contraste com a alvura (pureza virtuosa) e a altura sociomoral de Branca de Bourbon, descendente de reis sagrados franceses. Entretanto, nas iluminuras de manuscritos da corte de Pedro I que chegaram aos dias atuais, Maria e Branca são representadas como mulheres loiras de pele clara. Para a tradição letrada cortesã que plantou o mito da dama escura, Padilla seria a cortesã sedutora astuta (ou seja, puta ), cujos encantos diabólicos (isto é, bruxa ) submeteram um soberano igualmente diabólico. Assim, tal enredo é empático à visão tardo-medieval popular do diabo (gênio natural) como algo que se controla com pactos propiciatórios, diferentemente da visão demonológica erudita dos padres doutos, que entre os séculos XIV e XVII tentaram plantar, sem muito sucesso, nos meios populares ibéricos e coloniais a ideia de que, no pacto, quem é soberano é o diabo.
É eminentemente ginofóbica a tropologia de difamação puta-bruxa nas cortes tardo-medievais e modernas: atinge especificamente mulheres quando alcançam repentina ascensão social por conta de seus enlaces afetivos com a alta nobreza, reis ou príncipes. A sua quebra-de-sina é difamada como algo interferido por poder sobre-humano, propiciador e copulante, ou seja, o diabo. Por esse viés, elas seriam as mulheres-serpente da perdição satânica da cultura bíblica dos padres. Contudo, nas raízes míticas dos conjuros a “Maria Padilha” das mulheres ibéricas degredadas para o Brasil colonial, há também rastros totêmicos das antigas serpentes melusinas propiciadoras, protetivas e justiceiras. A singularidade no caso da histórica Maria de Padilla é que a sua transmutação mítica (de puta-bruxa para diaba ou “espírito auxiliador”) alterou o seu tom de pele e fixou nela vestes escarlates. Não encontramos paralelo de tamanha metamorfose mítica póstuma nas histórias de outras cortesãs nobres difamadas em cortes europeias tardo-medievais e modernas.
Portanto, podemos dizer que Maria de Padilla impregna-se do repertório totêmico melusino das mulheres-sereia, mulheres-dragão ou mulheres-serpente quando conseguimos identificar as bases míticas das imputações tardias que recebera e que formaram os repertórios que a configuraram como “espírito auxiliador” em rincões rurais ibéricos que ainda lidavam com a noção de diabo a partir de lógicas e funções pré-cristãs : amar, alimentar ou agradar o gênio natural era uma forma de controlar seu númen propiciatório. Tais bases míticas formaram os primeiros repertórios cosmológicos que, miscigenados com aqueles africanos e indígenas suscetíveis a leituras inquices da cosmologia católica, redundaram na atualização histórica de Maria de Padilla como pombagira no Rio de Janeiro do começo do século XX.
A “Maria Padilha” dos conjuros ibéricos coloniais é a serpente-diaba do recalque sexual dos colaboradores do Santo Ofício, que a imputaram em cada mulher “sozinha” e “pública” degredada para o Brasil sob a acusação de prostituição e maleficium . No entanto, para cada degredada que conjurava “Maria Padilha”, tal entidade estaria numa função cosmológica distinta daquela normatizada pelos padres do Santo Ofício: mais equivalente às gênias naturais ou ninfas da Antiguidade, potencialmente perigosas, amorosas, furiosas, travessas, propiciatórias, vingativas, protetivas e fertilizadoras, mas, fundamentalmente, eram as afrodisíacas agentes quebra-sina , muito necessárias numa terra formada em bases violentas, ginofóbicas, estamentais, racistas e escravistas.
Mais adiante, veremos também como a pombagira Maria Padilha se conecta com o númen quebra-sina das yabás urânicas africanas e das divindades femininas aquático-aladas felinícias, corníferas e viperinas do Levante Mediterrâneo Antigo. Antes, porém, é importante avançarmos com hipóteses de contextualização dos enredos de pombagira à luz da revisão crítica feminista do tema sagrado feminino . Gostaríamos de começar com um aparente desvio: o resumo da polêmica talmúdica em torno da deusa semita Asherah.
Reinvenção crítica feminista do sagrado feminino na arqueologia
A formação histórica do monoteísmo jeovita no Levante do Mediterrâneo foi algo historicamente localizado: configurado entre os séculos VIII e VI a.C. 21 Em larga medida, a hegemonia referencial do culto jeovita se construiu em contraponto às divindades canaanitas e de outros povos semitas vizinhos, impondo-lhes a visão de um deus único, masculino, protetor-punitivo, criador absoluto do mundo e pai de filhos decaídos. 22 Algumas etnias semitas existentes em Israel cultuavam, no entanto, a deusa Asherah, que foi subalternizada na linguagem da bíblia como um tipo de árvore que era derrubada em nome do respeito ao culto jeovita. 23
Isso ocorria porque as árvores chamadas de “asherah” eram plantadas para demarcar e embelezar alamedas ou quadrantes ajardinados, próximos a fontes de água, onde ocorreriam “idolatrias”.
“Idolatria” e “superstição” são categorias acusatórias usadas para desqualificar os campos sagrados que se pretendem combater, extinguir ou subordinar. São espelhos das intenções de poder de quem acusa. Muitos atributos geradores de Asherah como deusa-mãe primordial foram incorporados ao culto jeovita. No entanto, a própria exegética talmúdica não considera que haja prova suficiente na linguagem da Torah que valide a hipótese de que “asherah” se refira a alguma divindade feminina primordial criadora, sobre a qual não há prova arqueológica de templos dedicados a ela. Contudo, como poderia haver indícios arqueológicos de templos no mesmo sentido que havia para o culto jeovita quando árvores eram derrubadas em locais acusados de serem sítios de idolatria, segundo as próprias narrativas bíblicas?
Ao contrário do suposto silêncio de provas nas fontes escritas e arqueológicas, podemos nos indagar se as próprias linguagens da Torah e do Antigo Testamento cristão (em que o termo “asherah” é genericamente traduzido como “árvore”) já seriam indícios suficientes para supor que os jardins com “asherah” eram, na verdade, sítios sagrados a céu aberto, lugares de culto sintomaticamente próximos de fontes de água ou quedas d’água, recursos, já naquela época, bastante disputados pelos reis sagrados jeovitas.
Ora, é difícil pensar em tanta hostilidade aos jardins de “asherah” sem remeter e comparar às funções dos jardins de roseiras, macieiras, pessegueiros, mirtos, astrágalos, fontes e quedas d’agua construídos no Chipre para honrar Afrodite, sobre os quais não há indícios arqueológicos, mas escritos nos relatos tardios de viajantes como Pausânias (180 d.C.), ou são metaforicamente referidos nos hinos dedicados a Afrodite entre os século VIII e VI a.C. 24 E quem já preparou alimentos votivos para marias padilhas no Rio de Janeiro não vai se espantar ao perceber que alguns elementos vegetais postos em alguidares para elas faziam parte do repertório vegetal dos jardins sagrados de Afrodite.
O processo de subalternização ou incorporação de atributos de divindades femininas por masculinas ocorreu em diversas culturas que se tornaram patriarcais. 25 Igual sintoma é a feminilização categórica ou submissão sexual de divindades masculinas quando são incorporadas em panteões de uma divindade masculina dominante. Isso ocorreu com alguns trânsitos étnicos e deslocamentos populacionais de cultos públicos coletivos (formação de panteões) a voduns no Daomé entre os séculos XVII e XVIII, quando várias divindades mudaram de gênero para se tornarem esposas ou filhas de um vodum dominante nos templos (o que implica em evidente relação de subordinação quando as etnias são patrilineares, o que é o caso da maioria das etnias africanas que vieram da região gbè para o Brasil), ou foram reduzidos a filhos, inimigos derrotados ou servidores de voduns principais (geralmente, de famílias e linhagens dominantes numa localidade na qual controlam a formação do corpo sacerdotal dos templos). 26
Nos enredos cosmológicos de divindades nos candomblés do Brasil e nos tardios versos do século XVIII de Ifá da Nigéria vemos a subordinação ocorrer com as orixás femininas (yabás), que são narradas e significadas a partir de seus vínculos com os orixás masculinos (oborós). 27 E as grandes deusas geradoras primordiais iorubanas são abordadas como irascíveis, guerreiras, rabugentas e portadoras de energia sexual ameaçadora, cercadas de tabus severos, como ocorre em narrativas sobre as Iyami Oxorongá e em algumas sobre Nanã. 28 É lendo alguns desses enredos a contrapelo das expectativas patriarcais que podemos resgatar, pela comparação, um recorrente medo (e, portanto, tentativa de controle) sobre o númen independente das grandes deusas primordiais protetivas-guerreiras-geradoras que estão bem longe de serem apenas parturientes passivas .
O mesmo medo se traduz nas imputações de puta, bruxa e diaba para as pombagiras, mas as entidades tomam esses estigmas para si de maneira debochada, irreverente, expansiva e subversiva, trazendo para essas imputações o númen que as conecta com a divindade da grande vulva primordial apotropaica que vemos multiplamente localizada em diversas culturas antigas, segundo os estudos de Marija Gimbutas (1921-1994) e Miriam Dexter, 29 que questionaram os postulados herdados da arqueologia colonial anglo-saxã do século XIX, marcados por visões vitorianas ( parturientes e passivas ) a respeito das deusas-mãe paleolíticas e neolíticas indo-europeias.
Mantendo a linhagem crítica de Marija Gimbutas, a arqueóloga Miriam Dexter afirma pontos importantes para nosso trabalho: a anterioridade histórica do culto às deusas primordiais guerreiras e geradoras em diferentes culturas antigas – delas nascem a humanidade e as divindades masculinas (de certa forma, isso fica subterraneamente presente nas tópicas temáticas bíblicas cristãs da divina concepção de Jesus na Virgem -Mãe); 30 reconhecer isso cria impactos na forma de estudar a visão de mundo e a concepção de papeis de gênero em diferentes culturas antigas e pré-históricas; a importância de revisar criticamente premissas e valores patriarcais cristãos vitorianos que interferiram na forma de criar perguntas sobre ricos indícios arqueológicos paleolíticos e neolíticos indo-europeus.
Portanto, antes de se tornar moda no mercado editorial exotérico wiccano e no mercado terapêutico jungiano no Brasil, o tema dos sagrados femininos emergiu exemplarmente nos estudos arqueológicos da lituana Marija Gimbutas desde o começo da década de 1970, que valorizaram, metodologicamente, algo que ainda hoje é visto com muita reserva em muitos centros de pesquisa histórica no mundo europeizado pós-colonial: o comparativismo transcultural como forma de lidar com os silêncios, faltas ou falhas materiais das fontes arqueológicas paleolíticas e neolíticas. De certa forma, Gimbutas dava um novo enfoque às trilhas metodo-lógicas do comparativismo cultural estruturalista de George Dumézil (1898-1986) e Mircea Eliade (1907-1986). Foi, então, a partir da comparação de sítios arqueológicos na Europa e na Ásia – ou seja, o complexo cultural paleolítico e neolítico indo-europeu – com culturas antigas posteriores que já codificavam por escrito os seus ritos e mitos fundadores de sociedade, condutas e instituições, que Gimbutas questionou os modelos de interpretação que focavam apenas no sentido gerador, sofredor, parturiente e passivo das deusas paleolíticas e neolíticas que faziam a exposição sagrada da grande vulva.
Gimbutas desenvolveu a hipótese de que a exposição sagrada da vulva tinha também um papel de enfrentamento apotropaico de mazelas que afligiam diversos povos paleolíticos e neolíticos indo-europeus. O mesmo sentido encontramos no gesto de enfrentamento numinoso da pombagira quando segura a saia em rituais de incorporação mediúnica. O sentido fica também evidenciado em algumas iconografias do estatuário de gesso que médiuns ou as próprias pombagiras escolhem para seus assentamentos individuais: o gesto frontal de suspender a saia sugere a exposição da vulva com função de enfrentamento apotropaico.
Miriam Dexter continuaria o legado crítico de Gimbutas. Diferentemente do que ocorre no mercado exotérico wiccano no Brasil, que tende a enfatizar uma conexão naturalista-mística entre sagrado feminino e útero gerador como centro do poder feminino, Miriam Dexter demonstra que os povos antigos – e, de certa forma, isso permaneceu em culturas posteriores em metáforas, gestos e alguns rituais de plantio – enfatizavam a função numinosa saneadora, protetiva, combativa e geradora da vulva sagrada. Mais adiante veremos as implicações importantes desse deslocamento de ênfase categórica para entendermos a pombagira como expressão de sagrado feminino em nossa cultura religiosa, independentemente do gênero biológico do médium, para além de estigmas sexuais, maniqueístas e demonológicos. 31
Chaves cosmológicas em imputações literárias e históricas
A difamação moral-religiosa com imputações de puta e bruxa nas cortes europeias tardo-medievais e modernas era especificamente aplicada a mulheres que ascendiam rapidamente e tinham fama (real ou inventada) de soberania afetiva e material nas suas relações com homens poderosos. Maria de Padilla , por exemplo, não teria grande elegibilidade para casamentos régios se considerarmos a posição estamental de sua família de origem. Ela era filha de Juan Garcia de Padilla, nobre servidor de câmara do rei Pedro I, mas de posição baixa em relação a Branca de Bourbon, que descendia de reis franceses e traria evidentes ganhos diplomáticos para os reinos de Castela e Leão. Como foi Padilla e não Branca quem gerou descendência para Pedro, ela foi honrada postumamente como rainha para legitimar a sua descendência ao trono.
Historicamente, somente depois de consolidar a segurança das fronteiras do norte que os soberanos de Castela, Leão e Aragão intensificaram a ação de Reconquista no centro-sul da Península Ibérica, avançando suas fronteiras contra os domínios dos potentados muçulmanos. Portanto, é no século XV que a erudita, moralista e demonológica tópica da dama escura (puta-bruxa) que difamou Maria de Padilla incorporou a morena , ou moura , feiticeira aciganada da tradição trovadoresca popular ibérica do centro-norte, caracterizada como ameaçadora, independente e lasciva, em vestes escarlates e destruidora de casamentos e vidas. 32
Em outra escala temporal de comparação de circulação da mesma morfologia de enredo e mitopoética dos motivos, temos a novela Carmen (1845) de Prosper Mérimée (1803-1870). Não se trata, aqui, de estabelecer um vínculo causal entre a novela de Mérimée e as performances de Maria Padilha nas umbandas cariocas, mas de demonstrar o quanto a novela, ao caracterizar a personagem Carmen, parte de um mesmo acervo de repertórios atribuídos às mulheres ibéricas degredadas pelo Santo Ofício para o Brasil colonial, acusadas de conjurar o espírito auxiliador “Maria Padilha e sua quadrilha”. 33
Por meio do olhar possessivo, machista, moralista e ciumento de D. José, que domina a narrativa sobre Carmen – ele mesmo se considera moral e socialmente decaído como bandido ético na quadrilha de ladrões e contrabandistas de Carmen, situação pela qual ele a culpa –, observamos uma brevíssima passagem em que ela conjura “Maria Padilha”, o espírito auxiliador, enquanto faz magia com chumbo derretido numa terrina de cobre 34 para propiciar os negócios do seu bando.
No entanto, todo o ambiente social e geográfico de Carmen proposto na novela evoca “Maria Padilha” muito antes de o nome aparecer conjurado: há clara alusão ao rei Pedro I, por meio de um busto dedicado a ele na “Rua do Lampião [da Velha]”, local mal afamado nas décadas de 1830 e 1840 por ser lugar de pessoas periféricas à ordem burguesa andaluza, e que viviam, ocasionalmente, de expedientes ilícitos. Uma lenda urbana vinculada a tal monumento 35 circulava desde, pelo menos, o século XVII: sob disfarce, nos seus passeios noturnos pela rua, o jovem rei Pedro I se enamorou de uma linda jovem do povo e, por conta disso, caiu em duelo e matou um jovem cavalheiro concorrente.
Com tal ação desatinada, o rei Pedro I descumpria a sua própria lei (punível com decapitação e exposição da cabeça no local do crime) que criminalizava duelos. 36 Para remediar a situação, um agente de justiça do Rei (instituição), com sua anuência, puniu o rei (pessoa particular no cargo, Pedro) por meio de sua efígie: cortou a cabeça de uma estátua de Pedro I e apresentou-a no local onde ocorreu o crime. Desde o século XVII, segundo Mérimée, a “cabeça de Pedro” fora substituída pelo monumento que é referido na novela.
Todos os estudos históricos e linguísticos prévios de Mérimée para ambientar a rede de Carmen na Rua do Lampião (da Velha, aquela que supostamente testemunhou o crime noturno do rei Pedro I com seu lampião) têm um claro propósito de ligá-la, por implicação de locus e analogia, àquela “Maria Padilha” já lendária como rainha dos ciganos na Andaluzia. Com a ajuda subornável de Dorotea, Carmen tem um quarto na casa da velha, à Rua do Lampião, para levar os amantes sobre os quais aplica golpes, ou por meio dos quais monta a rede de contrabando para a sua quadrilha. Sedução que abre sendas e fendas em muros de cidades, portos, alfândegas, mercados, fortes e casas burguesas.
Magia, sedução, sedição e irreverência estão presentes nos objetivos de Carmen de ruptura de barreiras morais e sociais, mas a personagem não pretende se tornar um bibelô para burguês ou tem um apego sério e cego à conquista de ascensão social: Carmen busca a riqueza para aproveitar a vida, ser livre sem medo; a riqueza é para gerar movimentos e prazeres provisórios, não para se fixar em altas camadas que fingem a ideologia da ascensão social como prova de ascese moral . Por isso, Carmen não aceita ser a dama estável do oficial inglês no rico sobrado de Gibraltar, nem atende à proposta de D. José de tentar uma vida estável e remediada fazendo a América .
Carmen sempre está à frente de seus próprios negócios, chefia que finge ser chefiada , encanta incautos e usa camuflagens, viperinamente: escolhe o melhor ponto para dar o bote e troca de pele (social) quando precisa, sem apagar a estereotipia de cigana, porque ela usa o preconceito sociorracial e o machismo que a desejam (em nichos específicos de usabilidade social) para cavar sobrevivências que nunca a prendem num lugar, porque o seu maior prazer é viver e dormir livre sob as estrelas, ao ar livre, nos prados e florestas, defendendo-se de doenças e perigos com sua medicina-magia cigana milenar 37 que não responde a barreiras religiosas e jurídicas nacionais. Carmen é vento: não é vaso para ser contido por tetos ou diaba que se escraviza em garrafas.
Considerando a consciência que tem do lugar que os homens ricos e poderosos tentam definir para ela, não chega a ser chocante para nós que Carmen não sinta remorso em enganá-los e, se necessário, emboscá-los e matá-los, mas o seu comportamento é moralmente chocante para D. José, um cristão-velho de Navarra que pretendia carreira militar e inserção na ordem burguesa carlista andaluza. Carmen é o diabo, mas não é Lúcifer: Não se sente decaída, mas, sim, plena no que aventa. Na verdade, ela tem algo da serpente-Satanás: é aquela que testa a consistência das leis civis, da fé, das promessas, dos contratos, das hierarquias sociais, dos valores instituídos e das regras morais. Antes que a acuse disso, ela mesma adverte D. José: “Deu de cara com o diabo, isso mesmo, o diabo; nem sempre ele é mau, nem lhe torceu o pescoço! Eu visto lã, mas não sou ovelha”. 38
Eis a rainha-diaba conjurada pelas degredadas ibéricas no Brasil colonial se mostrando na própria ação e conduta da cigana Carmen, de Mérimée: senhora de seu corpo, desejo, quadrilha, negócios e dos atravessamentos de barreiras sociais. Carmen é a mulher “pública”, a mulher “sozinha”, do vocabulário patriarcal do Santo Ofício: aquela que tece redes secretas e camuflagens; inspira fascínio e medo; encruzilha a providência 39 entre a puta , a bruxa e a santa que protege sua quadrilha com sua mantilha. Se não está em estradas e florestas, a sua maior camuflagem é a própria pobreza do bairro de Dorotea, porque suas habilidades, contatos e saberes são úteis a periféricos, ciganos ou não – o mesmo lugar possível de negociação social das degredadas ibéricas no Brasil colonial. Carmen é alada como a fortuna, mas não se deixa pegar pelos cabelos. As palavras que a defendem são esguichos de fogo e barravento.
Carmen não está a serviço da moral da família burguesa cristã – usa sua hipocrisia social contra ela mesma, tirando proveitos provisórios de suas inconsistências e paradoxos na vida social: enquanto Carmen for um prazer proibido, escondido, exótico e/ou perigoso na ordem burguesa, o seu poder de barganha estará garantido. Carmen não aceita nenhum cabresto ou freio à sua liberdade – liberdade de nômade, tensamente negociada com a hegemonia da legalidade séssil burguesa, que represa e segrega a humanidade em barreiras nacionais, raciais, sociais, legais, econômicas e de gênero. Para seu bando, Carmen é a própria providência, vai na frente , 40 em um mundo hipócrita de pompa que se estrutura sobre desigualdades, individualismo econômico e lucro. Carmen é a translocalidade multiadaptativa de serpentes e pombas. Aprende rápido idiomas, costumes e etiquetas. Brilha conforme a luz, feito um proteu, mas para refleti-la conforme seus interesses e ânsias, que não permitem que afetos femininos se tornem prisões patriarcais.
O arco morfológico de temas, funções, enredos e motivos literários, mitológicos e históricos da póstuma tropologia de difamação puta-bruxa a que foi submetida Maria de Padilla – e que perpassa a caracterização da Carmen, de Mérimée – se presentifica no Rio de Janeiro quando observamos o modo como as marias-padilhas performam-se e são enredadas como pombagiras de terreiros de umbanda (pelo menos, naqueles espaços menos interferidos pelos moralismos categóricos da umbanda sagrada paulista ou pelo kardecismo): apresentam-se altivamente como rainhas e os assuntos ou demandas que lhes são apresentados deixam pouco a dever a enredos, interditos, funções e morfologias serpentinas das aquático-aladas melusinas. 41
Tal modelo sagrado de feminino ousado também evoca mitologicamente enredos arquetípicos de deusas antigas como Inanna da Suméria (3.000-1.250 a.C.) ou Afrodite (séculos IX a V a.C.) do Chipre, as quais borram as fronteiras entre céu e terra, alto e baixo, ar e água, ave e peixe, masculino e feminino. São deusas quebradoras de regras cosmológicas e, sintomaticamente, são criadas sobre elas enredos punitivos, seja pelo viés trágico (Inanna), seja pelo cômico (Afrodite), ou mesmo narrativas ascensionais purgatoriais 42 estruturalmente análogas ao caso da divindade Oxum, que será resumido na conclusão deste estudo. As transgressoras de fronteiras sociais e cosmológicas são recorrentemente desqualificadas em culturas patriarcais que reforçam a dualidade moral na educação de filhos e filhas. O seu modelo de divindade feminina não serve como parâmetro sagrado de comportamento para vitorianas, cristãs, castas (castradas?) e redentoras damas alvas burguesas.
As pombagiras em nossa cultura assumem papéis de proteção, de ação antidestino, de cura física (moléstias sexuais e de infertilidade), de energizadoras vitais e afetivas, análogos àqueles atribuídos às deusas Inanna, Afrodite, Hécate ou outras similares do Mediterrâneo Oriental na Antiguidade. As pombagiras aquático-aladas servem-se das fortunas críticas, visagismo prosérpino à moda de Carmen e demais tradições temáticas e enredos em torno de Maria de Padilla porque é uma forma de escolherem uma máscara forte da cultura local para conectá-la com um enredo-modelo de divindade feminina que a precede e caracteriza seus fundamentos e segredos iniciáticos, e que a cultura bíblica patriarcal pretendeu enterrar como possibilidade não válida de modelo sagrado de comportamento para mulheres, como observamos acima com o caso do apagamento vocabular e arqueológico de Asherah, ou com os enredos punitivos sobre Inanna e Afrodite, mas também ocorre com os casos de yabás iorubanas aquático-aladas que apresentam morfologias melusinas de enredo: entrega de númen de prosperidade/fertilidade condicionada ao tabu de segredo sobre seus fundamentos cosmológicos que, uma vez quebrado pela contraparte masculina, gera a perda desse númen para famílias, clãs, comunidades, regiões ou reinos.
Como já sinalizamos inicialmente, há terreiros de umbanda no Rio de Janeiro atual que abordam as pombagiras como servidoras sagradas de linhas cosmológicas de “orixás”. Por esse viés, considerando o estágio atual de observação de materialidades de culto, ritos e enredos com pombagiras (2017-2021), podemos afirmar que médiuns que incorporam marias-padilhas têm uma forte conexão constitutiva com o númen da divindade “Oxum”. Médiuns que tivessem qualidades de Iemanjás mais geradoras (isto é, iarinas) do que absorvedoras ctônicas 43 também teriam tendência à conexão com marias-padilhas. E pessoas portadoras de Iemanjás ctônicas (geralmente também conectadas à natureza ctônica de Omolu/ Obaluaê e Yansan) tenderiam a desenvolver trabalho mediúnico com marias-mulambos. Não tivemos oportunidade de observar como seria o vínculo cosmológico de Nanã e sua tradução numinosa como pombagira em médiuns sob transe mediúnico: houve uma situação observada de Maria Padilha das Sete Catacumbas na Casa de Dona Rosa Caveira (Penha/RJ), mas se tratava do estatuário da firmeza pessoal de uma equede com constituição Nanã.
Portanto, o desenvolvimento mediúnico em terreiros de umbanda do númen de pombagira não é independente da constituição de odus de cabeça de médiuns. Mesmo que as nomenclaturas locais variem, há uma semelhança nos enredos, atributos e caracteres que estruturam o vínculo numinoso entre pombagiras e médiuns. Nesse sentido, cada entidade em umbanda carioca é um caminho específico de conexão de médiuns com sua ancestralidade cosmológica e memória genética. As entidades são agentes metonímicos de aproximação numinosa entre médium e divindades-inquices ou gênios naturais , assim como, com memórias de antepassados desindividualizados ( ancestrais ) que interferem na constituição, escolhas e trajetórias de vida de médiuns. Daí, tal como outras entidades em umbandas cariocas , a pombagira ocupa funções cosmológicas que outrora seriam delegadas a antepassados(as) específicos(as), ou mesmo a inquices, nos calundus coloniais centro-africanos.
Além disso, se considerarmos o odu Oxé 44 como um verificador metodológico válido de evidências para nossa pesquisa de campo, também devemos assinalar que há o atravessamento, em médiuns de Maria Padilha, do númen das grandes feiticeiras ancestrais, ou seja, as deusas neolíticas que se traduzem como as aladas Iyami Oxorongá, deusas primordiais de todos os pássaros. Daí, mesmo que todas essas categorias não sejam operadas conscientemente pelos médiuns em iniciação ou suas chefias espirituais, observamos periodicamente nos casos estudados a ratificação do vínculo cosmológico melusino aquático-alado da pombagira Maria Padilha com funções numinosas ligadas ao propiciamento de riqueza, geração, saúde/cura venérea ou do ventre, proteção, combatividade e ação quebra-sina , que caracterizam os modelos femininos europeus, africanos e asiáticos de divindades aquático-aladas urânicas.
Um outro polo de nossa pesquisa foi perseguir provas que nos aproximassem do momento em que a pombagira insurge no Rio de Janeiro como entidade mediúnica e, portanto, como algo distinto da divindade centro-africana Bombojira, ou das rainhas entoadas dos calundus coloniais. Antes de seguirmos por esse caminho, é importante um esclarecimento sobre os processos linguísticos agregativos diaspóricos que interferiram e localizaram historicamente “Maria Padilha” como atuante cosmológico pombagira .
Etimologicamente, a presença sociocultural e linguística do termo pombagira no Brasil remete ao inquice Pambu Njila , que foi aportuguesado para Bombonjila ou Bombonjira (também Bombojila ou Bombojira), divindade geradora ligada à terra e sua transformação, à troca comercial, sem gênero fixo, protetora dos caminhos, portas e passagens, com pontos de forças nas encruzilhadas. Não assume os papeis mercuriais que há no Exu iorubano e no vodum Elegbara no Brasil, porque isso está atribuído ao inquice serpente Angorô (similar à antiga deusa grega aquático-alada Íris em suas funções mercuriais), mas a divindade Bombojira é comumente sincretizada com as divindades Aluvaiá, Mavambo e Exu e, a partir do referencial católico, com Diabo, Santo Antônio, São Gonçalo ou Santo Onofre.
O nome Pambu Njila deriva do quimbundo pambu-a-njila , que significa encruzilhada . Contudo, no processo de aportuguesamento do termo de origem quimbunda no Brasil colonial, o vocábulo Bombojira adquiriu uma sonoridade, na raiz, que remete ao quicongo mbombo , que significa porteira . Indivíduos desses grupos étnicos de matriz banto chegaram ao território do Brasil colonial na condição de escravizados desde a segunda metade do século XVI, havendo grande concentração demográfica no interior fluminense cafeicultor – particularmente, em Vassouras – na primeira metade do século XIX, núcleo demográfico centro-africano importante na formação de saberes jongueiros no Rio de Janeiro e foco de algumas resistências antiescravagistas ou antitráfico. 45
Simbólica e ritualisticamente no caso de cultos a Bombojira no Brasil, a encruzilhada seria a beira, a zona liminar da aldeia, o portal entre mundos e dimensões, a passagem entre caminhos, o atravessamento de destinos, o encontro do contraponto, o começo-fim do fim-começo, o que “sei” e o que “desconheço”, o lugar-de-vazio e descarrego por excelência, ponto vulvugino absorvente, próprio para limpezas que saneiam comunidades e restauram a vitalidade, o que também explica, a depender do trabalho espiritual, a presença de vesica piscis absorvente (geralmente é preta) em pontos riscados das entidades pombagiras. Estar na encruzilhada é saber observar, trocar, purgar, mesclar, brigar, brincar, quebrar, dançar, tocar, comer, sensualizar, beber e cantar para se vitalizar e aprender a despachar perigos. Daí, não seria difícil a sua associação funcional com enredos hagiográficos populares (apropriações não canônicas ) de Santo Antônio (eloquência, guerra, vitalidade geradora animal, justiceiro alado que vai a túmulos e acorda mortos etc.), São Gonçalo (música, dança e vitalidade geradora animal) e Santo Onofre (cura, purgação ascética e vitalidade geradora vegetal) ou com a parceria bélico-festiva-defensiva-vitalizante e quebra-sina da folclórica e medieval tradição ibérica do Diabo como gênio da natureza .
As funções cosmológicas da encruzilhada enquanto vitalizadoras-saneadoras de indivíduos e comunidade não eram concepções historicamente específicas de etnias da África central e ocidental que formaram as culturas religiosas brasileiras: os povos ibéricos tardo-medievais, camponeses ou citadinos, conservaram a referência cultural da encruzilhada como uma zona especial para feitiços, despachos e pactos com gênios naturais ou espíritos, os quais seriam demonizados pela retórica erudita dos padres; na antiga Suméria, desde o terceiro milênio a.C., segundo indícios nos registros arqueológicos e na tradição dos hinos sagrados da sacerdotisa Enreduana (posterior a 2300 a.C.), os templos dedicados à deusa Inanna ficavam em pontos de convergência de encruzilhadas afastadas, ou na beira ou borda das muralhas das cidades, onde geralmente atuavam as prostitutas. 46 O mesmo ocorreria, entre os séculos IX e VI a.C., durante a configuração grega para cultos olímpicos da deusa oriental Afrodite, que em alguns sítios fora do Chipre incorporou atributos da deusa Hécate, da Anatólia, a qual foi incorporada pelos gregos entre os séculos XII e VIII a.C., já que é mencionada na Teogonia, de Hesíodo. 47
Como seres cosmológicos da beira, interseccionais ou da interzona aberta absorvente ( vesica piscis preta) da encruzilhada, a “Mulher de Lúcifer” das conjurações coloniais e aquela dos pontos cantados de umbanda carioca do início do século XX são atualizações culturais locais de enredos de sagrado feminino quebra-sina . Nas periferias da cidade, os númens quebra-sinas de pombagira ainda são solicitados às escondidas pela sociedade dominante carioca, tal como já se fazia com as rainhas dos calundus Setecentistas. O medo e o fascínio do feitiço quebra-sina e a expectativa de sua eficácia nas relações sociais são sintomas tácitos da desigualdade estrutural (epistemológica, social, racial e de gênero) que não se acredita poder enfrentar pela via aberta política, jurídica ou cível; mas, ironicamente, é a sua casuística “ineficácia” que provoca a sua exposição às lentes legais-policiais civilizatórias do Estado, por meio das quais conseguimos acessar casos mais antigos que ganharam a imprensa ou formaram processos policiais. 48
Como a imprensa carioca do começo do século XX foi o nosso principal meio de aferição da transição categórica de atributos e enredos de Bombojira para a pombagira, medir o significado dos indícios encontrados dependeu muito de comparações com ritos atuais (observados in loco ou em vídeo), os quais envolvem: a presença ritual de pombagiras incorporadas; as formas e materialidade de suas firmezas, vestimentas e alimentos votivos; padrões de temas, demandas e diálogos com chefias, assistência e audiência nos terreiros; pontos cantados para elas e por elas mesmas; o seu acervo de enredos nos terreiros ou no médium; os processos ritualísticos de possessão mediúnica; a morfologia de gestos, sons e palavras; os raros momentos em que riscam seu ponto para serem vistos pela chefia, assistência ou audiência das casas; e a forma como encaravam os seus vínculos com “orixás” e médiuns.
Exus e Pombagiras em pele cabocla
Por lidarmos com um contexto repressivo racista de produção de fontes escritas sobre as religiões mediúnicas periféricas na imprensa da cidade do Rio de Janeiro, precisamos ler com cuidado os seus silêncios de registros próprios, tal como outros autores já fizeram em relação à documentação do Santo Ofício sobre os calundus coloniais e as feiticeiras ibéricas conjuradoras de “Maria Padilha”. Como muitos relatórios policiais da primeira metade do século XX desapareceram dos arquivos da Polícia Central no Rio de Janeiro, temos acesso a muitas de suas informações nas notas de jornais não assinadas sobre batidas policiais a terreiros ou nas poucas matérias-inquérito assinadas e com direção temática sobre as macumbas cariocas do início do século XX. 49
Com exceção dos casos de inquéritos assinados, 50 os jornalistas recorriam na maior parte das vezes às informações contidas nos relatórios policiais e das que eram obtidas durante as idas à delegacia para entrevistar os praticantes periféricos de sagrado mediúnico em situação máxima de constrangimento social, quando viam as suas ferramentas sagradas serem juntadas como troféus pela polícia para serem exibidas como caças de um safari africano para o deleite fotográfico sensacionalista e olhar assimétrico de repórteres racistas. Raramente os jornalistas conheciam, presencialmente , os sítios sagrados varejados pela repressão policial, particularmente os mais afastados do Centro, como era a maioria entre as décadas de 1920 e 1940 – um cenário social bem distinto daquele descrito pelo jornalista “João do Rio” (1881-1921) em 1904, em que se refere a um terreiro no Centro, onde havia manifestação da divindade Bombojira. 51 Na década de 1920, sem que o nome pombagira apareça no vocabulário da imprensa carioca, é possível identificar a sua presença em alguns lugares de culto por conta do que se descreve sobre o comportamento de mulheres (nunca homens) em ritos de possessão que incorporam “caboclas”. 52
Ainda não encontramos referências mais antigas na imprensa carioca do começo do século XX. É somente em 1938 que vemos o vocábulo “Pombagirá” (sic) aparecer no jornal A Noite (RJ) como referência à entidade pombagira e não à divindade Bombojira. 53 A reportagem fala de eventos ocorridos na noite de segunda-feira, 10 de outubro de 1938, dia comumente devotado a sessões com entidades exus e pombagiras nos terreiros afastados do Centro. A polícia tomou como prova de charlatanismo o fato de a médium Judith Cali, mulher parda periférica do bairro de Ramos, estabelecer preço para as consultas com entidades da casa. No caso, aparecia numa tabuleta, entre outros nomes, a referência à “Pombagirá”, cuja consulta custava módicos cinco réis. A casa que sofreu a violência policial ficava na Rua Nabor do Rego, n. 170, bairro Ramos. Atualmente, o lote com esse número não existe mais.
Dois meses depois, temos uma pista importante em Benfica 54 sobre a presença da indumentária tradicional vermelha, à la Carmen, da pombagira Maria Padilha. O bairro era pouco urbanizado à época. A notícia de batida policial menciona que, na noite de sexta-feira, 9 de dezembro de 1938, mulheres vestidas de “diabolinas” (sic) escaparam do cerco policial a uma sessão noturna. Baseando-se no relatório policial, a reportagem diz que o local, na Rua Boituva, n. 44, 55 era de difícil acesso e que, correndo para os matos, conseguiram fugir do cerco policial “três ou quatro mulheres fantasiadas de diabolinas, pois se vestiam de vermelho e se ornavam de tudo o que caracteriza a indumentária de Prosérpina”. 56
No entanto, em 1936, o mercado fonográfico carioca já havia lançado o jongo “Pomba Girá” (sic), de J. B. Carvalho (1901-1979) e Jorge Pereira Nóbrega, em que o termo é empregado no sentido de entidade pombagira e não inquice Bombojira. 57 Assim, podemos constatar, dos jornais ao mercado fonográfico, a circulação dos vocabulários de terreiro entre letrados do Centro e entre populares da periferia, o que não explica por que o jornal – baseando-se no relatório policial para narrar os eventos de 9 de dezembro de 1938 – não nomeou de pombagiras as “diabolinas” de Benfica.
Os primeiros grimórios impressos de umbanda são de inícios da década de 1940, mas é somente na década de 1950 que podemos cotejar obras impressas exegéticas de “ umbanda branca ” que colocavam em suas capas a imagem de pombagira como cabocla cornífera em vestes vermelhas . No Museu do Folclore de Edison Carneiro (Catete/RJ), a única figura de gesso de pombagira não é Padilha, mas Menina. Em todo caso, não é peça datada e foi concebida a partir do modelo iconográfico do Nascimento de Vênus , de Sandro Botticelli (c.1444-1510), o que é algo já canônico no caso da Pombagira Menina no Rio de Janeiro.
Somando mais uma localização histórica às transculturais e sagradas cosmologias femininas de encruzilhada, a entidade pombagira pode ser indiciada, como já assinalamos, numa das reportagens-inquérito de 1924, da série “No Mundo dos Espíritos”, 58 para o jornal A Noite (RJ), feita pelo jornalista Antônio Eliezer Leal de Souza (1880-1948). Todas as matérias desse inquérito foram publicadas entre janeiro e maio de 1924, de segunda a sábado, sempre com destaque de primeira página. A matéria de abertura foi lançada na segunda-feira de 7 de janeiro de 1924. Diferentemente das reportagens do mesmo gênero de “João do Rio” para o Gazeta de Notícias (RJ), em 1904, Leal de Souza focou apenas nos testemunhos de ritos de possessão, desde as práticas dos espiritismos kardecistas (científicos e religiosos) até os terreiros mais afastados do Centro, com traços ritualísticos que remetiam a um modelo cosmológico mais próximo dos sincretismos ibero-banto-indígenas com referências inquices de “orixás” e “santos católicos”.
O olhar investigativo, detalhista, racista e assimétrico de Leal de Souza demonstra – ao contrário da maioria das notícias racistas sobre batidas policiais a terreiros em A Noite (RJ), no qual também foi editor intermitente – que ele efetivamente esteve nos locais relatados no seu inquérito jornalístico (possivelmente feito ao longo de 1923), 59 o que torna o seu testemunho e trajetória pessoal muito valiosos para nossa pesquisa: ele teve acesso a repertórios de umbandas de matriz cosmológica centro-africana em territórios negros e pardos periféricos da cidade do Rio de Janeiro, fora de contextos policiais repressivos, replicando, testando e aumentando o arco urbano percorrido por João do Rio em 1904, o que justamente nos possibilita perceber as transformações nesses territórios negros depois das reformas urbanas de 1906-1908. Tal como seu jornal, Leal de Souza enquadrava como “baixo-espiritismo” 60 os sítios ibero-banto-indígenas de sagrado mediúnico de camadas periféricas da cidade.
Em um de seus inquéritos jornalísticos, Leal de Souza conheceu a umbanda de Zélio Fernandino de Moraes (1891-1975), tornando-se adepto. A sua adesão a essa umbanda implicou-lhe numa empreitada de livrá-la da pecha “baixo-espiritismo”, o que explica o lançamento, em 1933, do livro O Espiritismo, a Magia e as Sete Linhas da Umbanda , 61 que tem um tom ao mesmo tempo investigativo, exegético e proselitista , visando a esclarecer as autoridades sobre a umbanda de Zélio e a sua diferença em relação ao “ baixo espiritismo ” e ao espiritismo kardecista. Contudo, numa notícia de 12 de dezembro de 1932 em O Globo , sabemos que a Tenda de Nossa Senhora da Conceição, então na Rua da Quitanda, 201, Centro do Rio de Janeiro, sob a chefia de Leal de Souza, sofreu batida policial por denúncia de vizinhos incomodados com seus cânticos, defumações e danças até as 22h. Para o jornal e a polícia, era “macumba” e, portanto, “ baixo espiritismo ”. As ferramentas litúrgicas e imagens foram apreendidas, os seus praticantes foram humilhados publicamente pela polícia no percurso até a delegacia, mas foram liberados pelo delegado às 4h da manhã. 62 Pesaram a influência e a calma de Leal de Souza.
Segundo os memoriais do Templo Nossa Senhora da Piedade, as bases da umbanda de Zélio foram lançadas em 1908, como uma dissidência devido à discriminação dos ritos kardecistas em relação às entidades mediúnicas pretos-velhos e caboclos . Contudo, Leal de Souza não aborda a origem dessa umbanda, mas a forma e a função da sua cosmologia. O espiritismo kardecista do começo do século XX no Rio de Janeiro não reconhecia a cosmologia, os altares, os ritos e as ferramentas sagradas das umbandas, dos candomblés e do catolicismo, constituindo um Evangelho próprio que oferecia uma nova exegética e papel cosmológico para as revelações de Cristo. Em O Espiritismo … fica evidente que a umbanda de Zélio se apropria da escatologia reencarnacionista purgatorial do espiritismo kardecista e faz uma amálgama seletiva, com os arranjos cosmológicos e as funções apotropaicas e concelhias dos ritos com entidades mediúnicas das umbandas antonianas centro-africanas configuradas no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX.
Até a sua morte, em 1948, Leal de Souza terá uma atuação impor tante para a umbanda de Zélio conquistar um lugar de segurança jurídica que já vemos o espiritismo kardecista desfrutar desde a década de 1910. Embora houvesse uma revivescência da memória da umbanda (de Zélio) por conta do “centenário” em 2008, deve-se considerar que, na primeira metade do século XX, a luta dessa umbanda, dita de “linha branca” (o nome já é um sintoma), é para se diferenciar dos candomblés e das umbandas centro-africanas (estigmatizadas como macumbas desde o século XIX, ou simplificadas como quimbandas por Lourenço Braga na década de 1940). 63
Leal de Souza era dirigente da Tenda de Nossa Senhora da Conceição, um dos braços do Templo Nossa Senhora da Piedade. O seu livro impresso de 1933 – que não segue o formato de grimório de umbanda, gênero impresso inaugurado por Lourenço Braga em 1942 no mercado religioso do Rio de Janeiro – é o primeiro a explicar o modelo cosmológico de “ umbanda branca ” para além dos adeptos. Inicialmente, Leal de Souza fala em seis linhas brancas de “orixás”: 64
Oxalá/Jesus ou Nosso Senhor do Bonfim , cor branca, linha formada por pretos-velhos de todas as regiões, com falanges de entidades que se apresentam como crianças devotadas aos santos gêmeos Cosme e Damião;
Ogum/São Jorge , cor vermelha, formada por caboclos e pretos-velhos da África em sua maioria;
Oxossi/São Sebastião , cor verde, formada por entidades de grande sabedoria que se apresentam como indígenas brasileiros;
Xangô/São Jerônimo , cor roxa, agente da justiça implacável; 65
Yansan/Santa Bárbara , cor amarela, formada por desencarnados que eram, em vida, devotos de Santa Bárbara;
Iemanjá/Virgem Maria ou Nossa Senhora da Conceição , cor azul, formada por falanges de trabalhadores do mar, espíritos de tribos indígenas litorâneas, marujos, pessoas que se afogaram no oceano, os baianos e pretos livres do Brasil, ou “povo da Bahia”.
No entanto, é a sua descrição da sétima linha que nos dá pistas sobre entidades mediúnicas exus e pombagiras na década de 1930. Leal de Souza se refere à linha “ das almas ” ou “ de santo ” como formada por caboclos e pretos-velhos egressos da linha negra (magia negra) de “Exu”. Ao que parece, a referência a “Exu” acaba tendo uma equivalência cosmológica como o oposto de Oxalá/Jesus, 66 ou seja, o Diabo. Em sua explicação, Leal de Souza faz a equivalência entre “povo da encruzilhada” e “Exu”. Então, é provável que Exu esteja no mesmo plano de equivalência da divindade banto Bombojira, que faz parte do repertório cosmológico sincrético banto do qual Leal de Souza e Zélio se serviram seletivamente para organizarem a cosmologia de sua umbanda dita “de linha branca”. Segundo Leal de Souza, caberia à linha “das almas” ou “de santo” preparar os despachos propiciatórios ao “povo da encruzilhada”, buscando convencer seus ex-companheiros da “linha negra” a suspenderem hostilidades aos filhos e protegidos da “linha branca”. Segundo seu entendimento, a “linha de santo” ou “das almas” atravessa as demais linhas cosmológicas e, para se identificarem, associam a cor preta, “de Exu”, à cor da linha que estiverem atravessando. 67
O que Leal de Souza chama de “caboclo” (mas também podemos inferir “cabocla”) na linha “de santo” ou “das almas” é o que entendemos hoje como entidades exus e pombagiras de lei da “linha de esquerda” da umbanda, ou seja, os que atuam segundo as regras cosmológicas da umbanda das casas que se definem como “linha branca”. Uma ressalva: no entendimento atual que se tem da linha das almas no Rio de Janeiro, tal linha cosmológica é o lugar por excelência dos pretos-velhos; enquanto a linha de esquerda na umbanda atual não fazia parte, em 1933, do vocabulário cosmológico de Leal de Souza. Disso decorre que as entidades exus das umbandas de hoje seriam os “caboclos” da linha “de santo” ou “das almas” da cosmologia desenhada por Leal de Souza.
Em todo caso, em sua iconografia mais tradicional da primeira metade do século XX no Rio de Janeiro, as entidades exus e pombagiras são representadas com cores preta e/ou vermelha, pele morena e cabelo liso, podendo ou não ser corníferas. Se voltarmos ao paralelo com a mourisco-proserpina Maria Padilha que veste escarlate como a expressão mediúnica e iconográfica mais antiga de pombagira no Rio de Janeiro, podemos perceber um tipo específico de sobreposição entre o repertório afro-ibérico tardo-medieval de Portugal e o repertório miscigenado ibero-banto-indígena da história religiosa colonial e pós-colonial do Rio de Janeiro. Portanto, a morenidade iconográfica mais antiga no Rio de Janeiro para figurar entidades mediúnicas exus e pombagiras de umbanda pode ter relação com a sua antiga concepção como categorias cosmológicas específicas de “caboclos” e, no caso de Maria Padilha , a condição cosmológica “cabocla” na umbanda do começo do século XX dialogaria com a tradição ibérica demonológica da moura escarlate aciganada e feiticeira que tingiu a recepção póstuma da histórica Maria de Padilla .
Algumas situações observadas por Leal de Souza nas reportagens de 1924 apontam, de fato, para o caso de incorporações de “caboclas” em mulheres vestindo seda que pareciam contorcer demais o corpo, sendo provocantes, ruidosas ou espalhafatosas. 68 Tratavam-se, portanto, de possíveis manifestações mediúnicas de pombagiras do começo da década de 1920, 69 que expressariam traços de um sagrado feminino subalternizado pelo moralismo patriarcal cristão da umbanda carioca de “linha branca” do começo do século XX, que tendeu ao esvaziamento das “orixás” femininas de sua sensualidade guerreira-geradora, por meio da santificação catolicizada, e a concentrar apenas nos exus e pombagiras o recalque e estigma sexual. 70
Oficialmente, na primeira metade do século XX, Zélio e seus herdeiros no Templo Nossa Senhora da Piedade nunca afirmaram publicamente que faziam trabalhos espirituais com exus e pombagiras, mas com “caboclos” e “pretos-velhos” da sétima linha , os quais atravessavam as outras seis linhas cosmológicas e auxiliavam as entidades mediúnicas específicas dessas linhas. Nesse desenho cosmológico, identificamos uma inconsistência que sinaliza um recalque demonológico na forma de conceber Exu: todas as seis linhas cosmológicas têm um santo, divindade ou orixá inquicizado na sua regência; a linha “de santo” ou “das almas” é a única que não tem santo, divindade ou orixá inquicizado na sua regência e, portanto, não é efetivamente uma sétima linha cosmológica, pois, se o fosse, a sua divindade regente seria Exu ou Bombogira. Como eles são o Diabo, não têm status de divindade no enredo cosmológico apresentado por Leal de Souza, em 1933.
O irônico é que recalcar a encruzilhada e suas divindades acaba por colocá-la no centro da cosmologia substituta proposta: não tendo um lugar próprio regido por uma divindade claramente estabelecida no enredo cosmológico, as entidades da “sétima linha” da umbanda de Zélio atravessam todas as outras, trazendo um estigma ou marca cosmológica – a cor preta . Logo, Exu, o seu antigo mestre das trevas , só pode ser preto . 71 Nisso notamos o emblema-Diabo dos demonólogos tardo-medievais e modernos que a umbanda de Zélio simplesmente replica. Tal entendimento é distinto daquele construído pelo revisionismo crítico editorial da umbanda sagrada paulista perante a busca de legitimação institucional para um “centenário”, em 2008, centrado no marco-Zélio.
Na obra de Leal de Souza de 1933, o lugar cosmológico dos egressos de Exu é uma espécie de não lugar ou transfunção : tropa auxiliar de encruzilhada a proteger a zona liminar de negociação entre linhas brancas e linha negra de umbanda . Lembremos que, no Rio de Janeiro, é somente no começo da década de 1940 que Lourenço Braga publica o primeiro livro que configura quimbanda ( magia negra ) como antítipo de umbanda ( magia branca ), alterando os sentidos dessas palavras em relação às culturas centro-africanas que as legaram para o Brasil. Lourenço Braga também consolidou na cultura livresca sobre umbanda uma operação de distinção que não era ainda clara para Leal de Souza em 1933, muito menos para a imprensa jornalística carioca, para a qual Leal de Souza trabalhou.
Nos enredos cosmológicos apresentados por Leal de Souza, recai sobre os egressos de Exu um enredo cosmológico purgatorial reencarnacionista de origem kardecista: a “sétima linha” não existe em si porque é a própria encruzilhada cosmológica, a qual Leal de Souza (e, portanto, Zélio) situa como “auxiliar” das demais linhas, formada por “caboclos” e “pretos-velhos” inferiores cujas almas seriam de indivíduos em recente resgate purgatorial. Considerando a história da escravidão e do racismo no Brasil, é sintomático imaginar que a “linha branca” de umbanda conceba um tácito idioma de escravidão na organização de sua cosmologia: os egressos de Exu, que portam o preto, são como maculados egressos do cativeiro e, como tais, continuam cativos, subalternos, semisselvagens, semicivilizados, “caboclos auxiliares” das linhas santificadas, ditas brancas. Sua inserção é subalterna nessa concepção de umbanda de linhas brancas.
Ironicamente, a linha “das almas” (do purgatório?) ou “de santo” (quem salva?) não é santificada, porque é formada por egressos de Exu . No final das contas, na origem dessa umbanda, para a qual se inventou um centenário em 2008, Exu não era o gênio divino brincante-brigante, apotropaico e mercurial quebra-sina, o plantador fertilizante de caminhos, o guardião insone das passagens e oráculos, o gênio da natureza conjurado nas encruzilhadas pelas feiticeiras coloniais, mas o mesmo e fixo Diabo, oposto ao Cristo dos demonólogos do Santo Ofício. Mas o que se negou de atributos cosmológicos a Exu e Bombojira, para imputar-lhes o Diabo, reaparece nas funções cosmológicas definidas para seus “egressos” na umbanda marco-Zélio.
Outra ressalva importante em relação ao vocabulário de O Espiritismo… : fala-se em Tranca-Rua não como uma qualidade de entidade exu – isto é, a forma como a conhecemos hoje no Rio de Janeiro –, mas como um chefe brigadista de falanges especiais dentro da linha de Ogum (Nkosi?). Por esse viés categórico, não sendo nem preto-velho nem erê, o chefe de falange especial Tranca-Rua seria para Ogum o mesmo que Urubatan , como chefe brigadista de falange especial na linha de Oxóssi: um “caboclo”. Aqui, um idioma militar tenta dar sentido aos agentes cosmológicos. Embora a condição fenotípica de “caboclo” não seja propriamente estranha à iconografia de seu estatuário mais antigo no Rio de Janeiro, Tranca-Rua é comumente enredado de forma mais telúrica: um elegante, sedutor, viril e robusto homem moreno (ou de pele vermelha) com cabelos lisos bem escovados, cornífero ou não, trajando capa (manto?), com peito desnudo ou com colete direto sobre a pele como uma armadura peitoral, cartola (elmo?), bengala (espada?) e calça como os cavalheiros da Belle Époque, mas quase sempre está descalço, pé na terra, ou está com pés de bode nas versões demonizadas mais populares. 72 Há nesse modelo antigo de iconografia de Tranca-Rua – possivelmente acessível a Leal de Souza quando publicou seu livro em 1933 – um vínculo direto com os estereótipos populares de “povo da encruzilhada”, mas Leal de Souza não se refere a Tranca-Rua como um egresso da linha de Exu; pelo contrário, é como se respondesse a ordens diretas de “Ogum”, tal como Urubatan em relação aos comandos de “Oxossi”, ou seja, ambos respondem como “caboclos-chefe” de falanges cosmológicas. Para além do que não é dito ou reconhecido por Leal de Souza sobre Tranca-Rua em 1933, o seu antigo modelo de iconografia sobrepõe enredos históricos e cosmológicos que ainda hoje nos são familiares: (1) o mais óbvio é o medieval demônio-íncubo, mas cuja face demonizada nos remete a enredos de divindades masculinas telúricas justiceiras protetoras, fertilizadoras e propiciadoras de fortuna;(2) o emblema do caboclo-índio rústico, forte, honrado e sábio-prático dos românticos, os quais reencenam nele os enredos clássicos de Quíron, mas Tranca-Rua tem também seu lado mais estritamente Centauro 73 quando se desaponta com seus médiuns, consulentes, chefias e casas; (3) o emblema serviçal do escravizado africano no Brasil (somente livres e libertos podiam usar sapatos); e, por fim, (4) o segredo iniciático de seu vínculo inquice modelar com Ogum/Nkosi/Santo Antônio, paradigma telúrico de divindade absorvente, agrário-metalúrgica, engenhosa, fertilizadora (animal e vegetal), viril, guerreira, protetora e plantadora de portas e caminhos.
Tal como as divindades Exu e Bombojira no Rio de Janeiro atual, as entidades exus e pombagiras têm encruzilhadas e porteiras como pontos de força, atuação e assentamento. Mesmo que algumas sejam ligadas ao númen de cemitérios, estradas, mares e rios, vários trabalhos espirituais são feitos nas encruzilhadas e seus assentamentos devem ser postos, preferencialmente, na esquerda (polo absorvente) das entradas (“porteiras”) dos espaços sagrados de umbanda e dos candomblés angola e congo-angola, onde são os guardiães, protetores ou depuradores de númen de vivos e mortos que entram e saem no lugar, exercendo, portanto, funções protetivas e apotropaicas nessas zonas liminares dos terreiros. Nessa função apotropaica, não há distinção entre essas entidades que chamamos exus e aquelas que Leal de Souza demarcou como “caboclos” egressos do cativeiro diabólico de Exu. Mal sabia ele que estar na encruzilhada de Exu é não ser preso , lição das pombas…
Conclusão: “ Olha as pombas! ”
Comparando especificamente as agregações semânticas, narrativas, alegorias, temáticas, mitologias, enredos, pontos cantados, pontos riscados, performances em rituais, tradição iconográfica, desenhos cosmológicos e acervo material ritualístico das pombagiras “Maria Padilha” no Rio de Janeiro atual, podemos notar que incorporaram ao seu arquétipo sagrado local ideias sutis que conectam o repertório da difamação póstuma da histórica Maria de Padilla com atributos das rainhas entoadas dos calundus coloniais setecentistas, da divindade Bombojira, da divindade Exu, da divindade Oxum; e também o repertório sagrado de modelos de divindades femininas quebra-sinas do Mediterrâneo Oriental, como Inanna, Ishtar, Hathor, Qadesh, Hécate e Afrodite.
Há ainda que assinalar o seu evidente vínculo com a tradição das deusas paleolíticas e neolíticas indo-europeias que faziam a exposição sagrada da grande vulva apotropaica, da qual observamos sobrevivências tardias nas medievais Sheela-na-Gigs de tradição celta, que trazem o númen protetivo amniótico dos rios para portas e janelas de castelos e igrejas rurais irlandesas do século XII, deixando pouco a dever, em forma e função, ao modo como vemos hoje as firmezas de pombagiras em terreiros cariocas de umbandas ou nas lojas comerciais de Madureira (RJ) especializadas em suas demandas de culto.
Em contexto de observação etnográfica na Casa Luz da Manhã (Vila Isabel/RJ), em maio de 2021, uma pombagira que usa roxo e vermelho como seus fundamentos nos lançou uma provocação morfológica localizada, mas epistemologicamente expansora: “Observa o comportamento das pombas na Casa… Olha as pombas!”. O seu gesto referia-se às rolinhas que lá estavam, mas parecia falar de níveis de segredos iniciáticos constitutivos das pombagiras. Assim, entendemos que uma conclusão provisória para este estudo só poderia ser uma nova encruzilhada, de vetores abertos, conclusão datada (22 de outubro de 2021) e alada: transcontinental; doméstico-selvagem; jogo de esconder, proibir e propiciar, como um enredo-serpente de melusina. Olhemos as pombas, então.
A pomba branca é um animal votivo a Oxum, mas há fontes escritas que se referem ao mesmo papel em relação à deusa Afrodite, por volta do século VI a.C., algo que sobreviveu no repertório neoantíquo da iconografia da deusa na cultura letrada e visual da Europa do Antigo Regime, embora a pomba tenha sido preenchida com o sentido de “espírito santo” e, quando pintada com Afrodite, se tornava não a representação da “funesta volúpia” (que ocorre quando é associada a cupido, abelhas com ferrão e mel), mas do “amor divino” ou “amor espiritual”, a conexão entre Céu e Terra, ou seja, o tema da ascensão. O pombo preto, por outro lado, é um animal votivo para a divindade Exu, mas também para as Iyami Oxorongá.
Afrodite e Exu, em seus respectivos nichos culturais e épocas, são divindades que turvam as fronteiras entre os seres humanos e as divindades. São poderosos quebradores de sina, sem os quais não há a figura do herói e sua jornada de superação de dificuldades em suas respectivas culturas. E, no caso específico de Oxum, além de proteger a saúde geradora do ventre animal, tal como Afrodite, há no Brasil o modelo de enredo que conta como ela sacrificou a sua beleza: passa de pavão dourado a urubu no seu voo incinerante em direção ao sol. Trata-se de uma forma alegórica de remeter à sua especial conexão aquático-alada com o númen das grandes feiticeiras ancestrais Iyami Oxorongá, mas também absorve os tons locais de enredos de ascensão: o objetivo de sua jornada era reconectar a humanidade com o Orum. 74 Esse é um dos modelos de itãs que a protagonizam como orixá patrona do candomblé iorubano no Brasil, reproduzindo na narrativa o mesmo topos de ascensão (“porta para o Céu”) que os catolicismos medieval e moderno na Europa vão associar às formas locais (“Nossas Senhoras”) de santidades centradas na Virgem Maria ou nas fórmulas eruditas modernas de Afrodites columbinas. O que tudo isso tem a ver com a pombagira Maria Padilha?
Se é evidente que o termo pombagira deriva de Bombojira e evoca parte de seu númen específico, a apropriação que as entidades fazem desse nome ao sobrepô-lo a gírias como “pombo(a)” e “gira” do português urbano carioca do começo do século XX é provocativamente alegórico, estando impregnado de númen e segredos iniciáticos que as conectam com permanências bem antigas de sagrado feminino guerreiro-protetivo e saneador-apotropaico, facilmente incorporáveis e miscíveis aos enredos da histórica Maria de Padilla , da qual a má reputação póstuma como puta e bruxa é transformada pelas pombagiras em enredo-segredo iniciático que metaforiza o seu vínculo com o poder guerreiro-protetivo-gerador e absorvedor-saneador-apotropaico da grande vulva sagrada da mãe-deusa que encontramos em registros arqueológicos de várias culturas paleolíticas e neolíticas em todos os continentes do planeta.
As pombagiras têm amplo conhecimento dos sagrados segredos mágicos de mobilização extracorpórea da energia vital ancorada no númen da vulva primordial existente nos corpos macho e fêmea da espécie humana. Pelo seu viés, a embriogênese das genitálias humanas macho e fêmea (que, na gíria, são pombo e pomba ) expressa em si a energia universal modelar primordial da grande vulva sagrada da mãe-deusa que absorve os atributos masculinos, tal como podemos observar, comparativamente, nas narrativas sobre Inanna, mas também nos enredos e nas materialidades votivas propiciatórias dedicados às Iyami Oxorongá, as quais absorvem muitos elementos votivos (mineral, vegetal e animal) que também seriam dedicados à divindade Exu, como a pimenta malagueta e bebidas com alto teor alcóolico, como gin, rum e cachaça, que têm um significado vitalizante, sexual e fálico nos alimentos para essa divindade e também são servidas para algumas qualidades de pombagiras no Rio de Janeiro.
Então, a puta ébria ou boêmia (Carmen!) é mais do que uma representação cultural de estigma social, machista, sexista e colonial quando toma a expressão de pombagira em nossa cultura carioca de sagrado mediúnico: é uma forma local de enredo de enfrentamento sagrado e de saneamento vital que evoca númens divinos de combatividade guerreira feminina (“peito de aço, coração de sabiá”, como aparece em pontos cantados), ancorados na energia sexual melusina da vulva primordial, desenhada na saia levantada diante da impossibilidade civilizatória de se apresentar nua em plena cidade. Tais topoi sagrados são recalcados pelas oficiais concepções ascéticas cristãs de sagrado, para as quais os ventres abertos que balançam e gargalham ficam apenas no lugar do grotesco, vulgar, demoníaco e incivilizado. E balançam e saneiam porque gargalham, como a deusa Deméter que ri das terapêuticas obscenidades sagradas (verbais e gestuais) de suas servidoras ou a columbina e aquático-alada Afrodite, epitetada deusa risonha. Então, “olha as pombas!”, pois são rolas (ops!), família Columbidae. São também de casa, mas torná-las aceitáveis, como pretende a umbanda sagrada paulista, em termos morais de um código cristão hegemônico, é domesticá-las: tornar apenas reta aquilo que é encruzilhada, beira de rua e casa.
Desde finais da década de 1990, algumas expressões de umbandas sagradas e exotéricas de matriz paulista tentam deslocar o sentido genital de “pombo” ou “pomba” para o sentido asséptico (ascético?) de “mensageiro”, em parte, por conta do recorrente repertório referencial metafórico bíblico; em parte, porque trouxeram para o campo da umbanda um dos sentidos da divindade Exu do candomblé iorubano: “mensageiro dos deuses”, o Exu “mercurial”, o Hermes vermelho-laterítico, 75 sem o qual não há comunicação votiva e oracular entre pessoas e divindades.
Não é muito consistente tal deslocamento semântico e, no fundo, é sintoma do prurido moral das umbandas sagradas e exotéricas paulistas de lidar com a expressão sagrada comunicativa, protetiva e apotropaica de exus e pombagiras, cuja ancoragem mediúnica é no chacra sexual, ou seja, o campo vibracional vermelho dos chacras, se usarmos o próprio vocabulário que se opera nesses campos terapêuticos sagrados. O deslocamento semântico de pombo ou pomba para “mensageiro(a)” não é consistente porque isso não singulariza exus e pombagiras nas umbandas cariocas. Afinal, todas as entidades mediúnicas que configuram sua atuação em linhas cosmológicas de umbanda – a exemplo da já antiga configuração apresentada por Leal de Souza em 1933 – são “mensageiros”, “soldados” ou “servidores” sagrados que atuam no campo vibracional terapêutico de divindades inquices (isto é, o entendimento de “orixás” dessas expressões de umbanda).
Rolas rondam por aí e sabem girá nas encruzas… A palavra “gira” é verbo e substantivo ao mesmo tempo. Tem agregações metafóricas mais amplas e também deve ser contextualizada à luz do uso que as próprias pombagiras fazem dela quando tomam, ressignificam ou transformam o arquétipo colonial-patriarcal da puta em expressão numinosa transcultural do poder da antiga vulva sagrada apotropaica. Daí, na performance numinosa da pombagira, “gira” é “ronda”, tal como o movimento do corpo das prostitutas na rua, seu ir e vir na frente, atento a oportunidades e perigos, como a Carmen de Mérimée. Podem brigar entre si, mas são mais fortes quando demarcam e somam as especialidades e espacialidades de seus singulares territórios cosmológicos. Portanto, “gira” se relaciona com o númen sexual protetivo-apotropaico-vitalizador da mãe-deusa geradora-guerreira.
“Gira” também é o movimento rotatório frontal dos quadris na exposição da genitália da prostituta à clientela de rua, o qual também tem um teor de enfrentamento. Trata-se de um gesto primordial do sagrado feminino, ativador numinoso apotropaico do poder da grande-deusa, 76 mas que fora esquecido pela maioria das cariocas hoje, que o associam à puta de rua ou à mulher [preta] barraqueira. Pensemos nesse peso do preconceito social, moral, misógino e racista do processo civilizatório que recrimina o “gira”. O “gira” é um gesto de enfrentamento e guarda, mas também é a máxima polaridade absorvente. Daí, se a vulva não pode ser mostrada num ritual urbano, resta desenhar a vulva apotropaica com a forma como a pombagira segura a saia e solta a sua numinosa e igualmente apotropaica gargalhada quebra-miasmas.
“Gira” remete ainda ao giro ritualístico da saia da pombagira, o jongueiro “pombagirá” em sentido anti-horário, que drena e aterra as energias fluídicas densas ou negativas do ambiente da “gira” (isto é, o círculo sagrado mágico-religioso formado por médiuns, assistência e audiência em datas, dias e horários específicos). Esse último sentido de “gira” é marcado por pontos cantados, instrumentos musicais, paramentos e ferramentas específicas às demandas que se apresentem no terreiro.
E se nessa “gira” não houver nada disso, ainda é gira (no sentido de círculo sagrado mágico-religioso), mesmo quando o(a) médium está sozinho(a) como corpo físico em atividades mediúnicas de incorporação de espíritos auxiliadores, de emanações inquices de divindades ou de seus servidores sagrados, que chegam ao campo da incorporação mediúnica de acordo com as finalidades da gira e com o modo como cada casa configura, no caso específico das umbandas cariocas atuais, os seus entendimentos de linhas cosmológicas de trabalho espiritual.
Por fim, enfatizamos que, mais do que gírias genitais, as várias características do bicho-referência pombo(a) expressam númens dos segredos iniciáticos das pombagiras: as Columbidae são também aceitas como seus atuantes sagrados e animais votivos em contextos específicos de ritos oraculares ou propiciatórios. Os atributos da família Columbidae podem nos dar outros níveis de pistas sobre os fundamentos sagrados das pombagiras: em todos os continentes de nosso planeta, há espécies das mais diversas cores – brancas, pretas, cinzas, azuis, verdes, amarelas, beges, marrons, vermelhas ou coralícias, além das espécies resultantes de cruzamentos que geram diferentes matrizes de aves malhadas com vários rigores de plumagens; todos os espécimes têm a mesma estrutura de canto, variando no prolongamento de graves e agudos; são marcados pela intensa atividade sexual e reprodutiva, pela capacidade de se adaptarem a vários ecossistemas e por sua habilidade de atravessarem fronteiras entre meios urbanos, rurais e selvagens. As pombas são Carmens.
Tal como as degredadas ibéricas que conjuravam “Maria Padilha” e as escravizadas africanas que eram rainhas entoadas em calundus coloniais, as Columbidae são nossos seres de travessias, de centros e periferias, domesticáveis e selvagens ao mesmo tempo; são resistentes e frágeis como asas de Íris e Hermes; são negociadoras de sobrevivências em beiras de mundo; e geradoras camufláveis de dimensões inefáveis, como melusinas. As nossas rolas nativas de Vila Isabel/RJ, de plumagem caboclística, têm machos rufiões que se pompeiam piões nos lances, mas elas, altivas e exigentes, só são amantes de quem melhor dance. Quando precisam, formam bandos (falanges?) que expandem vigílias e rotas (“ Olha a Rota! ”, gritou uma agora, com númen de trovão). Elas dividem territórios e famílias. Sabem que rola sem ronda não vive de brisa e, sem ginga, a briga viperina não desvia de enxadas, ou quebra destinos pró-adâmicos de anáguas. E sabem que rainha que vem de longe e não faz nome, some…, não a Padilha.
AGRADECIMENTOS
Este trabalho agradece primeiramente às pombagiras que tornaram possível o acesso ao seu campo sagrado e alguma aproximação aos seus fundamentos; e a médiuns e casas, anônimos e conhecidos, que me disponibilizaram acesso mediúnico às entidades pombagiras. Nas pessoas de Joel da Costa Marques e Hérica Rosa, agradeço a tantos que ficaram no anonimato nessa jornada de trabalhos e vivências iniciadas em 2017. Agradeço a todas as entidades da Casa Luz da Manhã pela partilha de testemunhos, inspirações, encantamentos e curas. Agradecimentos ao corpo discente que emprestou suas vidas às laboratoriais optativas que ajudaram nos percursos da pesquisa. Agradecimentos à Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, que ainda defende a importância da carreira do professor-pesquisador de dedicação exclusiva em ambiente público federal de ensino e pesquisa, de modo a garantir autonomia e liberdade nos experimentos de pesquisa, epistemologias e práticas pedagógicas. Agradecimento ao corpo docente e técnico-administrativo do Instituto de Ciências Humanas e Sociais, porque, afinal, ninguém é sozinho no tempo do trabalho que desenvolve.
Notas