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MOVIMENTO DE MULHERES NEGRAS
Carolina Santa Rosa
Carolina Santa Rosa
MOVIMENTO DE MULHERES NEGRAS
Afro-Ásia, núm. 66, pp. 528-550, 2022
Universidade Federal da Bahia
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ENTREVISTA

MOVIMENTO DE MULHERES NEGRAS

Carolina Santa Rosa
Universidade Livre de Berlim
Afro-Ásia, núm. 66, pp. 528-550, 2022
Universidade Federal da Bahia

"Lacunas” talvez seja o termo que melhor descreva os desafios encontrados por quem se propõe a contar histórias negras. Na busca por retraçar os passos de personalidades pretas, cujas trajetórias sofrem um sistemático processo de apagamento operado pelo racismo, são frequentes os momentos em que faltam peças no quebra-cabeçaS. Com a biografia de Lélia Gonzalez (1935-1994) não é diferente. Felizmente, nos últimos anos, atores da academia e das militâncias negra e feminista vêm fazendo importantes contribuições e esforços para resgatar sua história, divulgar suas ideias e preencher as lacunas que permanecem.

Filósofa, antropóloga, professora, militante do movimento negro e feminista, Gonzalez foi uma das mais importantes intelectuais brasileiras do século XX. Atuou ativamente contra o racismo estrutural, e sua obra acadêmica e suas ações políticas foram pioneiras no país ao articularem as relações entre gênero, raça e classe. A ideia hoje conceitualizada como “interseccionalidade” – tão cara ao feminismo contemporâneo – era central em seu pensamento já na década de 1980. Dentre sua extensa produção, destacam-se os livros Lugar de negro (1982) – em coautoria com Carlos Hasenbalg –, Festas populares no Brasil (1987), além de numerosos artigos e ensaios, reunidos recentemente na publicação Por um feminismo afro-latino-americano , organizada por Flávia Rios e Márcia Lima. 1

Uma particularidade da trajetória de Gonzalez foi sua intensa atuação internacional. Numerosas viagens e estadias no exterior, e sua participação em diferentes eventos e congressos estrangeiros, possibilitaram a ela estabelecer diálogos com intelectuais e militantes dos Estados Unidos, América Latina, Caribe, África e Europa.

Na busca por investigar esses deslocamentos transnacionais que influenciaram profundamente a obra de Gonzalez, me deparei, em uma biblioteca em Berlim, com uma longa entrevista dela em alemão, publicada em junho de 1985 na revista feminista austríaca AUFEine Frauenzeitschrift . 2 Eis uma peça ainda solta no quebra-cabeças de sua vida, uma vez que os registros biográficos disponíveis sobre Gonzalez não mencionam que ela tivesse passado especificamente pela Áustria. 3

Neste artigo, disponibilizo a tradução da entrevista para o português, facilitando a leitura por brasileiros e a sua introdução ao acervo de contribuições de Gonzalez para o pensamento feminista negro.

A entrevista foi originalmente conduzida pela associação austríaca Grupo de Informação América Latina (Informationsgruppe Lateinamerika, IGLA), em Viena, em outubro de 1984. Em novembro desse mesmo ano, apenas uma versão compacta e editada da entrevista foi publicada na edição n.º 24 C, da própria revista do IGLA , chamada Lateinamerika Anders . 4 Nos meses seguintes, o material bruto da entrevista foi então concedido à revista feminista AUF , que publicou uma nova versão da entrevista na íntegra, em quatro páginas, e com direito a imagens, na sua edição n.º 47.

A revista Lateinamerika Anders se propõe a informar sobre o continente latino-americano a partir de uma perspectiva progressista e dos movimentos sociais, lançando um outro olhar para a região e noticiando com profundidade aspectos distintos daqueles geralmente abordados pela mídia hegemônica austríaca. Lançada em 1976 e publicada até hoje, a revista se consolidou ao longo de mais de quarenta anos, seja pelo seu comprometimento em informar criticamente sobre a América Latina, seja pelo seu aberto posicionamento solidário às lutas contra o autoritarismo e o neoliberalismo no continente.

Em contato estabelecido com a redação da revista, fui informada que infelizmente não foram encontrados registros internos em que constem por quem e em qual contexto a entrevista com Gonzalez foi realizada em Viena. 5 Tampouco em qual língua, uma vez que ela – a despeito de conhecer outros idiomas – não dominava o alemão. A publicação original, portanto, consiste na tradução para o alemão de uma conversa possivelmente conduzida ou em francês – língua em que Gonzalez era mais fluente e tradutora –, em inglês, espanhol, ou até mesmo em português – ou melhor, “pretuguês”, como preferia a entrevistada. Portanto, esta versão aqui publicada seria a tradução da tradução, o que acarreta todos os desafios impostos por essa condição.

A versão compacta publicada na Lateinamerika Anders tinha como título “ Schwarze Hoffnung ” (“Esperança Negra”, em português), e contava com sete perguntas mais direcionadas à organização do Movimento Negro Unificado (MNU) e do Coletivo N’Zinga, no contexto de resistência política ao regime militar e de reabertura democrática no Brasil. Em um box informativo, a publicação também menciona as futuras eleições presidenciais no Brasil e, citando Gonzalez enquanto representante do Partido dos Trabalhadores (PT), levanta dúvidas sobre a efetiva representatividade da candidatura de Tancredo Neves (PMDB) para os setores minoritários – mulheres, moradores de favelas, negros, indígenas e homossexuais. Alinhado aos interesses editoriais da revista, na mesma página da entrevista, encontram-se ainda mais conteúdos sobre os desdobramentos das ditaduras e ações de resistência em outros países latino-americanos.

Em sua versão da entrevista, a AUF ampliou o recorte da Lateinamerica Anders , abordando uma diversidade de temas e desempenhando um importante papel para a circulação do conteúdo, como poderá ser conferido a seguir. A edição na qual a entrevista foi publicada estampava na capa o título “Mulheres em Posição de Poder”, abordagem que condiz com a apresentação feita de Lélia Gonzalez na entrevista, destacada por sua posição de professora universitária e de liderança nos movimentos sociais e políticos.

Ao comparar o conteúdo publicado em cada uma das revistas, é notável que passaram por processos de edição e tradução completamente diferentes. Para além de léxicos distintos, na Lateinamerika Anders as respostas de Gonzalez aparecem mais formais, concisas, diretas e mais informativas. Já na AUF , aparecem mais informais, longas e fortemente marcadas pela oralidade e impessoalidade.

Da mesma forma, o contato estabelecido com a antiga redação da AUF , extinta em 2011, também não foi capaz de elucidar as condições sob as quais se deu a entrevista, como foi conduzida a sua tradução e as motivações pelas quais a publicaram. 6 Por fim, ainda que a autoria e o contexto da entrevista permaneçam desconhecidos, cabe aqui levantar algumas hipóteses.

Apesar de as peças não se encaixarem com perfeição, indícios no acervo pessoal de Gonzalez apontam que ela possivelmente esteve na capital austríaca em 1984, por ocasião de um evento promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU). É praxe a organização de eventos preparatórios para as grandes conferências internacionais da ONU; justo no ano seguinte, Gonzalez esteve presente na III Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada também pela ONU, em Nairóbi.

Um dos fatores que corrobora essa hipótese é que a edição n.º 47 da AUF foi o último exemplar publicado antes da conferência no Quênia, e traz em suas outras páginas conteúdos em referência ao evento que marcaria o encerramento da Década das Nações Unidas para a Mulher. Além de abordar as principais pautas da conferência e a preparação da delegação austríaca, um dos temas de destaque é a questão das “mulheres do Terceiro Mundo”, que discorre sobre as desigualdades globais entre as mulheres e invoca apoio e solidariedade às pautas dos movimentos de mulheres de países então denominados “subdesenvolvidos” – mais tarde, denominação substituída pela expressão “em desenvolvimento”.

Foi nesse contexto que talvez a revista tenha optado por pautar e publicar a entrevista com Lélia Gonzalez na edição específica – como um espaço concedido à voz de uma mulher não-branca e não-europeia, e do Terceiro Mundo, cujos desafios se diferenciavam em tantos aspectos daqueles da experiência feminina e feminista austríaca.

O indício mais sólido dessa relação é que, logo encerrada a entrevista com Gonzalez, na mesma página segue um pequeno quadro informativo que anuncia um mapeamento, feito pelo grupo de mulheres do Serviço de Informação Austríaco para Políticas Desenvolvimentistas (Österreichische Informationsdienst für Entwicklungspolitik, ÖIE) sobre a situação das mulheres no sul global, preparado por ocasião da Conferência em Nairóbi. Ali também são listadas uma série de reivindicações para que as políticas desenvolvimentistas austríacas passem a considerar a questão de gênero.

Por fim, vale também mencionar que, na mesma página, se anuncia que Lélia Gonzalez estaria novamente em Viena no mês seguinte à publicação, em julho de 1985. Considerando que a Conferência em Nairobi aconteceu entre os dias 15 e 26 de julho daquele ano, supõe-se que esse possível retorno à capital austríaca pode ter se dado logo antes ou após a realização do evento na África, como uma parada na Europa no percurso entre Brasil e Quênia. Eis, aqui, mais uma lacuna a ser preenchida: até o momento, não obtive acesso a qualquer registro dessa segunda visita de Gonzalez a Viena, se é que de fato aconteceu.

Mas a busca continua, a investigação está apenas começando. Nesse sentido, cabe ressaltar o importante trabalho e esforço dos demais colegas engajados em retraçar a trajetória de Lélia e recontar essa história. Gostaria de agradecer nominalmente a Flávia Rios, Rubens Rufino e Melina Lima, por todo o apoio nessa jornada de procura pelas peças perdidas. Nessa caminhada conjunta, Axé Muntu!

Notas sobre o texto em alemão e sua tradução

Uma vez que a entrevista foi publicada em 1985 na Áustria, cabe contextualizar e levantar alguns problemas presentes no original em alemão, que são frutos tanto daquele momento histórico quanto do processo tradutório a que foi submetido.

Assim, é emblemático o recorrente uso do termo alemão Neger – hoje considerado altamente racista, ofensivo e degradante, mas empregado para designar pessoas negras em diferentes momentos ao longo da entrevista, tanto nas perguntas quanto nas respostas de Lélia Gonzalez. Derivado da palavra latina para cor preta, niger , o termo era amplamente usado e integrava o vocabulário cotidiano do idioma alemão. A partir dos anos 1970, a expressão começa a ser problematizada no espaço germanófono e, ao longo das últimas décadas, foi caindo em desuso, em um processo difuso e gradual. O motivo, em ambos os casos, é o intrínseco valor negativo do vocábulo: é originado do imperialismo europeu e resultou do discriminatório processo de construção do “outro” negro pelo sujeito branco, sendo usado para descrever não apenas a cor da pele de pessoas africanas e afrodescendentes, mas também seu lugar de subordinação e inferioridade. Além disso, no espaço germanófono, o termo remete, historicamente, não apenas ao colonialismo alemão, mas às teorias de supremacia racial e à eugenia, fortemente associadas à ideologia nazista.

Para evitar ofensas e não oferecer mais espaço à violência discursiva provocada pelo termo, hoje recomenda-se evitar a própria enunciação e grafia da palavra, substituindo-a, nos países de língua alemã, pela expressão N-Wort – em inglês, N-word , em português, “palavra com N” – ou simplesmente N. – a menos que se trate de uma citação direta da fonte. Esse contexto justifica a decisão de manter neste artigo a transcrição fiel ao conteúdo original, de reproduzir o termo problematizado na íntegra e de não editá-lo ou substitui-lo, preservando assim o marcador espaço-temporal da fonte e levantando de forma transparente os desafios que atravessam processos de tradução, além do protagonismo exercido pelos tradutores sobre o texto.

A entrevista, realizada em 1984, não foi originalmente conduzida em alemão – como já dito. Logo, o emprego da N-Wort foi uma decisão do processo de tradução conduzido pela revista AUF na época. Uma evidência disso é que a versão resumida da mesma entrevista, publicada na Revista Lateinamerika Anders em novembro de 1984, não faz o uso da expressão, apontando que o material possivelmente passou por duas traduções distintas, uma em cada veículo.

Cabe ressaltar que a escolha pela N-Wort se dá apenas em determinados momentos da entrevista na AUF , predominando o termo Schwarz (em português, “preto”) – reconhecido por sua conotação neutra –, cujo uso segue difundido na língua alemã, sendo aceito e apropriado pela comunidade afrodescendente na Áustria e Alemanha. Não foi possível identificar se a escolha por expressões diferentes em cada trecho da entrevista buscava reproduzir algum tipo de variação no próprio vocabulário usado por Gonzalez no idioma original em que se deu a conversa, provavelmente o francês. Outra hipótese para as oscilações pode ser a tentativa equivocada de uma tradução ipsis litteris do equivalente “negro” em português e espanhol – idiomas nos quais não é atribuído uma conotação intrinsecamente racista ou pejorativa ao termo, considerado neutro, apesar da etimologia e raízes coloniais comuns.

De qualquer forma, a transcrição na íntegra do conteúdo revela como a AUF optou em utilizar a palavra N. , ainda que na década de 1980 a palavra já fosse publicamente problematizada e evitada no idioma alemão, como reflexo da condenação do termo equivalente nos países anglófonos após os movimentos pelos direitos civis e o movimento Black Power nos Estados Unidos. 7 Especialmente a partir dos anos 1970, as reivindicações desses movimentos tiveram recepção global e, na Europa, grupos políticos progressistas e simpatizantes notadamente estabeleceram diálogo e manifestaram solidariedade às reivindicações do efervescente movimento negro norte-americano. Contexto que, via de regra, também incluía o espaço germanófono e grupos ativistas austríacos, conforme evidencia a própria tradução publicada pela revista Lateinamerika Anders do mesmo conteúdo, que, já no ano anterior, havia optado em empregar o termo Schwarz . O veículo feminista AUF e, consequentemente, o movimento de mulheres que o representa, mostram-se alheios a tais debates, na medida em que se usou a palavra N. como um vocábulo corriqueiro e, ironicamente, não se hesitou em inseri-la no discurso antirracista de uma militante negra, inclusive o empregando para nomear o próprio Movimento Negro Unificado (MNU) em alemão.

No que diz respeito à tradução do conteúdo para o português, optei por não diferenciar as variações entre Neger e Schwarz , traduzindo ambos igualmente como “negro” e suas variações ao longo da entrevista. Tal decisão justifica-se, primeiro, por considerar o uso da palavra N. e a oscilação entre os dois termos no alemão um equívoco do primeiro processo tradutório, que altera o sentido daquilo que originalmente foi dito por Gonzalez, tomando por consensual que não houve na fala dela nenhuma intenção de reproduzir violência ou racismo discursivos. E segundo, por entender que o objetivo maior desta tradução consiste exatamente em reproduzir da forma mais fiel possível a mensagem de Gonzalez, cabendo, portanto, retificar tal equívoco com o intuito de restaurar sua fala original.

Outra observação relevante é que, atualmente, no espaço germanófono, o termo Schwarz , quando usado para a designação identitária de pessoas afrodescendentes, é frequentemente escrito deliberadamente com o S maiúsculo, para evidenciar seu significado de posição sociopolítica – e não de uma cor – em uma ordem social predominantemente branca. A grafia maiúscula sinaliza também uma prática emancipatória e de resistência, por marcar sua qualidade de autodefinição, afastando-se da hierarquia imposta pela nomenclatura colonial, designada por terceiros brancos. 8 Contudo, no texto da entrevista, a prática ainda não era recorrente e o termo aparece majoritariamente com letra minúscula, com exceção das vezes em que se manifesta em sua forma substantiva ou em nomes próprios, meramente seguindo a normativa ortográfica da língua alemã.

Da mesma forma, o texto base emprega em alguns momentos a palavra Rasse (“raça”, em português) e seus compósitos. Hoje, no espaço germanófono, o uso desse termo em atribuição a seres humanos é igualmente obsoleto, devido a sua conotação biologizante, considerada racista, discriminatória e fortemente associada ao desenvolvimento de teorias de supremacia racial, à eugenia e à ideologia nazista. Em substituição, em círculos políticos e acadêmicos, é recorrente o uso do termo equivalente em inglês race , destacando sua condição de categoria e constructo social. Outro vocábulo em desuso e presente no texto é Indianerin (“índia”,em português) e suas variações. Na época, o uso do termo era habitual no idioma alemão, tanto no mainstream quanto em círculos acadêmicos e militantes, como evidencia a publicação. Assim como no português, atualmente a palavra vem sendo problematizada por sua conotação pejorativa, colonialista e racista. Em substituição, é recomendado o adjetivo indigen – equivalente a indígena – para a designação de povos originários de diferentes partes do mundo. A tradução do termo foi feita de forma literal para o português como “índio” e “índia”, respectivamente, mais uma decisão de manter fidelidade à fonte e marcar a temporalidade do texto no contexto brasileiro que, naquela época, também admitia o emprego da palavra. Apesar do desafio de saber se tal termo foi, de fato, falado por Gonzalez na ocasião, ou se trata-se de uma escolha da tradução da entrevista para o alemão, há outros registros que evidenciam que as palavras “índio” e “índia” integravam o vocabulário da entrevistada, sendo usadas por ela em diversas outras circunstâncias. Ao mesmo tempo, Gonzalez também empregava a palavra “indígena” em muitos de seus ensaios, geralmente na função de adjetivo – contexto que justifica aqui a escolha por traduzir as combinações de substantivos Indianerfrau e Indianerbewegung –, recurso frequente no idioma alemão em substituição a adjetivações – como “mulher indígena” e “movimento indígena”, respectivamente, mesmo que no texto original não conste, em nenhum momento, o adjetivo equivalente em alemão indigen .

Enfim, é relevante mencionar que o texto em alemão apresenta estrangeirismos, indicando vestígios que podem ser úteis para apurar em que idioma a entrevista se deu originalmente. Um deles é o termo Konkubinage – inexistente no léxico alemão. O termo correto é Konkubinat (“concubinato”, em português). Parece ter ocorrido uma mescla com o vocábulo equivalente no francês, concubinage – talvez um equívoco da tradução, indicando uma possível influência do idioma original em que se deu a entrevista – nessa hipótese, em francês. Todavia, em outras ocasiões em que Lélia Gonzalez relatou este mesmo episódio em português, ela frequentemente recorreu ao neologismo “concubinagem”, que definia como uma mescla de “concubinato” com “sacanagem”, para descrever o julgamento pejorativo da branquitude a respeito de relacionamentos afetivos inter-raciais. Assim, Komkubinage pode significar a transposição descontextualizada do neologismo para o alemão, indicando, neste caso, que a entrevista tenha ocorrido em português.

O uso deliberado da palavra francesa pardon (em português,“desculpe”), em detrimento do seu equivalente em alemão no final da entrevista, sustenta a hipótese do francês. Embora não seja totalmente inconvencional o emprego dessa expressão na linguagem cotidiana alemã, seu uso pode ser novamente um indício de que a entrevista tenha ocorrido originalmente em francês e que o termo teria sido mantido no processo de tradução para o alemão.

Contudo, a escolha pelo termo espanhol compañera (em português, “companheira”) em um momento da entrevista apresenta outro possível contraponto à hipótese anterior. Uma possibilidade é que, contrariando outros indícios, a entrevista tenha ocorrido em espanhol e o termo foi mantido no processo de tradução. Entretanto, outra justificativa plausível pode ser a intenção do entrevistador ou tradutor de atribuir um sentido latino-americano ao termo e evitar o uso da palavra equivalente no alemão, Genossen , por, naquele momento histórico, ter sido incorporada ao vocabulário cotidiano dos regimes socialistas vigentes, especialmente na Alemanha Oriental, e ter seu sentido fortemente associado a uma experiência política de esquerda europeia e branca, da qual Gonzalez buscava se diferenciar.

Feitos esses apontamentos, a tradução pode ser conferida a seguir.

Tradução de entrevista com Lélia Gonzalez, AUF Eine Frauenzeitschrift , n.º 47 (junho de 1985), pp. 32-35.

A entrevista foi realizada pela associação Informationsgruppe Lateinamerika (IGLA), em Viena, em outubro de 1984, possivelmente em francês. O texto que segue é a tradução para o português da tradução em alemão publicada na revista AUF e carrega consigo uma série de desafios impostos por essa condição. Por este motivo, recomenda-se que a leitura da tradução seja acompanhada também pela leitura da introdução e notas de rodapé que integram esta publicação.

MOVIMENTO DE MULHERES NEGRAS: ENTREVISTA COM LÉLIA DE ALMEIDA GONZALEZ

Militante e cofundadora do Movimento Negro Unificado (MNU); cofundadora do movimento de mulheres negras no Brasil; membro do coletivo de mulheres N’Zinga, no Rio de Janeiro; membro fundadora do Partido dos Trabalhadores (PT).

Lélia Gonzalez é professora universitária. Além de inúmeros artigos e ensaios, publicou o livro Lugar de negro (juntamente com Carlos Hasenbalg, Rio de Janeiro, 1982).

Pergunta: A consciência política geralmente se origina de aspectos decisivos de nossas próprias vidas. Como foi isso para você?

Lélia : Isso também se aplica a mim. Eu passei por uma verdadeira lavagem cerebral. Começou no jardim de infância e seguiu até os tempos de universidade. Meu pai era operário e minha mãe índia, eles tiveram 18 filhos e eu fui a penúltima. Como todos os pais, eles também queriam que seus filhos tivessem uma vida melhor e isso significava para eles integração, o que eu hoje chamo de assimilação. Mas para as pessoas negras, a cor da pele é também o limite da assimilação. De qualquer forma, eles me enviaram para o jardim de infância, escola primária e universidade. Estudar não teria sido possível sem a ajuda dos meus irmãos. Um irmão também pôde estudar, e precisou usar o caminho “permitido e aceito” para os negros no Brasil, o futebol, para financiar seus estudos e os meus.

O que você quer dizer exatamente com lavagem cerebral?

Lélia:Eu quis dizer que os valores que me foram transmitidos e que eu aceitava como corretos contradiziam minhas origens e meu gênero. Uma vez que o sistema social brasileiro é colonialista, esses valores que mencionei e que chegavam até mim sempre foram os valores da civilização ocidental. Todo este caminho da escola primária à universidade, até a conclusão dos estudos, foi uma experiência dolorosa. Tendo a pele preta, você vai se tornando cada vez mais solitária, mesmo fisicamente, porque os poucos colegas negros e as poucas colegas negras vão se tornando cada vez mais escassos. Como mulher negra, para ser aceita, na verdade, eu só tinha a opção de ser uma aluna excepcional. Mas, evidentemente, isso não decorreu de forma consciente. No Brasil há uma expressão: “ah, ela ou ele é negro, mas é inteligente”. Isso eu nem preciso explicar em maiores detalhes, né?

Em certos espaços, a opressão por causa da cor da sua pele é óbvia. E, então, há espaços onde você mesmo vira o lacaio de sua própria opressão. Quero dizer, por ter sofrido uma verdadeira perda de identidade, eu oprimi a mim mesma e a minha negritude, oprimi isto em mim. E chegou a um ponto em que eu podia falar sobre qualquer coisa, menos sobre isso.

Você era politicamente engajada durante sua época de estudante?

Lélia:Evidentemente, o que você acha!? No Brasil, quem não vê os conflitos de classe é porque não quer enxergar. Eu era de um grupo de estudantes de esquerda. Lá discutíamos muito sobre luta de classes, colonialismo e capitalismo. Mas falar sobre raça, negro e tal… era muito doloroso para mim, absolutamente doloroso.

Agora você já não é apenas uma militante da esquerda, mas também da pauta racial. O que aconteceu?

Lélia:Eu me casei com um homem branco. Ele obviamente me apresentou a sua família, que simplesmente não quis acreditar que a gente tinha se casado e, por isso, acabou me aceitando de início. Eles pensavam que a gente vivia juntos em alguma forma de concubinato. Relacionamentos sexuais entre homens brancos jovens e mulheres negras não são considerados problemáticos, porque o jovem branco depois acaba se casando com uma “menina de família”. Quando a família dele acabou descobrindo que estávamos de fato casados, ela se tornou completamente hostil a mim, me acusando até mesmo de imoral. Então meu marido cortou totalmente relações com a família. Aí eu me vi pela primeira vez obrigada a refletir sobre a cor da minha pele. Foi uma tortura. Você não pode imaginar o que é carregar sentimentos de ódio de uma ideologia branqueadora dentro de um corpo negro.

Infelizmente meu marido faleceu muito cedo, também um destino à brasileira. Depois eu me casei novamente. Meu segundo marido descendia de um casamento inter-racial de negro com branco. Este homem era visivelmente negro, já pela cor de sua pele, mas que, ao longo do nosso relacionamento, foi se tornando cada vez mais “branco” em suas atitudes etc. Depois que, enfim, banquei a tentativa de me aceitar e de enaltecer minha identidade negra – e finalmente parei de alisar meu cabelo crespo, que era só para ficar parecida com os brancos –, fiquei extremamente consternada com essa situação [do marido] . E por esta consternação que me separei dele e entrei ativamente no movimento negro.

Quando foi isso?

Lélia:Isso foi no início dos anos 1970. Já nos anos 1930 existia um movimento negro no Brasil e ele despertou novamente na década de 70.

Isso foi pouco depois do surgimento do movimento Black Power e do movimento por direitos civis nos EUA.

Lélia:É verdade, no Brasil nós fomos fortemente influenciados pelo movimento Black Power. Maior ainda, contudo, foi a influência das lutas de independência de países africanos de língua portuguesa –Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.

Porém neste momento ainda não se podia falar de um movimento negro organizado?

Lélia:Você tem razão. Mas olhe a partir de hoje. O começo dos anos 70 foi o início do “milagre econômico brasileiro”. Dentro de um curto período de tempo, a parcela de pardos e pretos – esta distinção é, na realidade, um absurdo – dentre a população empregada cresceu de quase zero para cerca de 40%. Os negros exerciam os trabalhos marginais, formando o exército industrial de reserva. Devido à baixa escolaridade, não chegavam nem perto dos postos de trabalho qualificados e hoje têm que pagar a dívida brasileira, apesar de nunca terem gozado do milagre econômico. Os negros não são cegos, não. Que esta distribuição foi injusta, isso nós já vimos durante o boom. E é evidente que, por causa destes custos sociais que a reação hoje está mais militante, porque as condições se agravaram drasticamente.

Você quer dizer que, à primeira vista, as origens não eram tão políticas?

Lélia:Sim, exato. Primeiramente era uma empolgação pelas lutas anticolonialistas na África e depois foi a música negra, o soul. Intelectuais negros e trabalhadores negros das favelas se encontraram pela primeira vez nestes eventos de soul. Essas foram as origens. Em 1974 aconteceram no Rio de Janeiro as Semanas Afro-Brasileiras. Além da música e dança de origens africanas, tratava-se da reflexão sobre a nossa própria cultura.

Essas semanas foram então o ponto de partida para mais atividades políticas?

Lélia:Sim, daí pra frente se formaram variados grupos e centros, cada um trabalhando com um aspecto diferente da consciência negra. Eu, pessoalmente, comecei a me ocupar da cultura negra no Brasil. Realizei uma espécie de coleta de pistas [na história] com o objetivo de chegar até o presente negro. Eu trabalhava na Escola de Artes Visuais, que era o grande ponto de encontro de todo o pessoal progressista no Rio de Janeiro. Lá eu realizei uma grande quantidade de exposições sobre arte negra, cultura negra e também seminários. Muito importante, naquela época, foi a cooperação com meus outros colegas de trabalho. Porque quando se fala de discriminação racial, sempre se deve dizer que também temos nossos aliados brancos que lutam juntos conosco.

Então, pessoas progressistas das duas mais importantes organizações negras de São Paulo e do Rio logo começaram a contribuir para o debate político. Aí, em julho de 1978, fundamos o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU).

Desse jeito me parece que tudo ocorreu sem muitas dificuldades, mas não deve ter sido bem assim, né?

Lélia:Eu relatei resumidamente. A fundação do MNU teria certamente demorado mais se, naquela altura, não tivesse ocorrido uma série de casos gritantes de racismo. Infelizmente neste momento acabamos percebendo que os partidos, os de esquerda, não se manifestaram nem um pouco. Então nós mesmos tivemos que empreender algo.

O comportamento dos partidos de esquerda gerou outras consequências?

Lélia:Fez principalmente com que nós tivéssemos consciência da importância de nossa autonomia. Antes mesmo da fundação [do MNU] , já éramos confrontados com isso, que os partidos de esquerda demandavam de nós uma subordinação aos seus objetivos políticos e recebiam nossos objetivos e reivindicações apenas de forma deficiente.

Apesar disso, o MNU não era um movimento que atuava meramente pela causa racial, né?

Lélia:Para nós era claro que não podíamos discutir raça sem relacioná-la com a luta de classes, se me permite ser agora direta e reta. Nós não queríamos e não queremos nos apartar, o que significa participar na luta política, mas, sobretudo, mobilizar as pessoas negras, advertir sobre seus direitos civis, sobre discriminação, sobre proteção de agressões policias. Você sabe, né, que o cidadão brasileiro negro é considerado – politicamente, socialmente etc. – um cidadão de segunda categoria. Portanto, nossa luta é uma luta política.

Como vocês lutam?

Lélia:Em todos as grandes cidades do Brasil instalamos os chamados Centros de Luta, que realizam trabalhos de divulgação e iniciativas contra a discriminação racial, tanto juridicamente quanto com ações, como manifestações. Em geral se tratava de mobilizar os negros pela defesa de sua dignidade, direitos e interesses.

Você está em um partido, né?

Lélia:Eu estou no Partido dos Trabalhadores (PT) e também sou suplente de deputada federal, porém no MNU eu não faço trabalho partidário, mas militância política negra. Para os europeus de pensamento linear talvez isso seja difícil de entender. Evidentemente, o direcionamento político do PT é também o meu. Mas a gente já vinha trabalhando com brancos antes e quando aparece um partido onde é possível incorporar o ponto de vista dos negros em prol de um projeto nacional comum, temos que estar ali junto. No Brasil nunca houve um tipo de Apartheid9como nos Estados Unidos, o que nos facilitou estabelecer uma relação entre raça e classe e, assim, lutar junto com os demais brancos explorados. Este ponto de vista também é compartilhado pelo movimento indígena e os homossexuais, que também integram o PT… não por todos, isso eu entendo, mas por muitos.

O PT também parece ser uma espécie de movimento, né?

Lélia:Quando você entende por movimento a junção dos mais diferentes setores desfavorecidos da sociedade por um objetivo comum, então sim. Mas o PT excede a ideia de movimento porque criou uma estrutura que permite o trabalho político a longo prazo. Pode-se dizer que não é que diferentes movimentos sociais estejam no PT, mas sim que o PT está nos diferentes movimentos sociais. Neste sentido, ele com certeza não é um partido clássico.

Uma estrutura como essa não se torna também frágil?

Lélia:Sim, também é verdade. Derrotas sempre levam à reflexão e, frequentemente, ao afastamento de um partido. Mas, no PT, a atuação se dá geralmente nas bases. Para as eleições de 1982 juntaram-se no PT negros, índios, homossexuais, mulheres, pessoas de grupos autônomos, que reunindo seus problemas e reivindicações de forma ampla, visavam obter resultado por meio das eleições. Eu, por exemplo, me apresentei como candidata em uma favela no Rio. Você só tem chances, primeiro, quando as pessoas te conhecem e, segundo, quando elas te apoiam. As pessoas assumiram a campanha eleitoral e fizeram de tudo, propaganda, assembleias, boca a boca, cartazes, até dinheiro elas arrecadaram. Imagine só, dinheiro vindo das favelas! E se então houver derrotas, de quem estas pessoas devem se afastar, afinal? De si mesmas? Ou o partido será dissolvido, ou sua estrutura terá que se transformar. E em um partido, onde as decisões se dão de baixo pra cima, você também consegue modificar as estruturas partindo de baixo.

Você não está apenas no Movimento Negro Unificado contra Discriminação Racial (MNU) e no PT, mas também no movimento de mulheres negras...

Lélia:Uma das consequências dos encontros com moradores de favelas para as eleições de 1982 é que muito da minha consciência se transformou. Nos encontros do MNU a gente falava muito sobre ideologia, luta de classes e economia. O povo da favela falava sobre coisas completamente diferentes: iluminação, rede de água e esgotos, e as mulheres falavam justamente sobre seus problemas imediatos. Assim, fundamos o N’Zinga em 1983, um coletivo só de mulheres, formado por mulheres de classe média e por mulheres de favelas.

E o que vocês fazem?

Lélia:Os homens brasileiros nunca acreditaram que as mulheres, especialmente as mulheres das favelas, fossem capazes de fazer trabalho político, apesar de que já fazemos há um bom tempo. Agora, a gente simplesmente faz e dá o devido nome. E isso inclui discussões sobre o que significa o fato de ser negra e, além disso, ser mulher negra, e ser tudo isso no Brasil. Em um âmbito prático – ou melhor, em um âmbito mais prático –, se trata de lidar com problemas como aborto, higiene, mulheres encarceradas, estupro, prover proteção legal, assessoria jurídica, ações concretas, e assim vai.

A atuação está restrita ao Rio?

Lélia:O trabalho do N‘Zinga é no Rio, naturalmente. Mas foram dados passos importantes para uma coordenação nacional dos grupos de mulheres existentes. Há mulheres negras tanto quanto machismo em todo o Brasil.

Mas o machismo não existe apenas no Brasil.

Lélia:Também reagimos a isso. Participamos do Congresso de Mulheres Negras da América, no Equador, e estivemos também em um grande encontro dos movimentos de mulheres do terceiro mundo. Infelizmente a aderência ao encontro no Equador foi muito baixa pois faltou dinheiro em todos os cantos. Mas nós não vamos desistir. Também temos contato com o Comitê Feminista da América Latina e Caribe, que inclui mulheres negras e indígenas. Infelizmente é mais fácil encontrar mulheres indígenas de outros países afro-latino-americanos do que do Brasil. As mulheres indígenas brasileiras estão principalmente no campo, o que torna o acesso a elas difícil.10

Mas esse também não é o caso de muitas mulheres negras?

Lélia:Sim, mas há mais negros que índios nas cidades e, uma vez que os laços familiares entre os negros são muito fortes e estreitos, acaba gerando também um sistema de comunicação melhor.11Nesse quesito, infelizmente o Brasil é um país grande pra dedéu e os custos de viagem são muito altos. De qualquer forma, ficou evidente que a situação de outras mulheres do terceiro mundo não é muito diferente da nossa.

No Brasil também existe um movimento de mulheres brancas – qual é a posição de vocês?

Lélia:O problema aí é que temos não apenas diferenças culturais, mas também históricas. O chamado movimento de mulheres brancas no Brasil nasceu da classe média alta. Mulheres dessa classe se permitem ter uma consciência feminista, enquanto uma empregada doméstica lhes poupa daquele trabalho sobre o qual elas costumam teorizar. Além disso, ouvíamos frequentemente nos encontros com mulheres brancas a acusação de que nós somos agressivas.

E é verdade?

Lélia:Via de regra, a mulher branca é criada para estar pronta para casar no futuro. E, no Brasil, é a única coisa que se espera [da mulher branca]!

Com a gente é diferente. A mãe negra, no máximo, vai dizer – porque tem que dizer: – “vá trabalhar!”. Desde muito cedo nós temos que nos virar sozinhas. O casamento, em si, não tem valor nenhum pra gente, porque, nos piores casos, significa ainda mais trabalho, ou que o homem vai nos deixar com uma penca de filhos.

Então não é de se estranhar que nós tenhamos uma autoconsciência totalmente diferente e, em geral, sejamos menos passivas que as mulheres brancas. E depois elas chamam a manifestação dessa autoconsciência de agressividade. E elas [mulheres brancas] têm esta mesma visão em relação aos homens negros.

O que você acha que está escondido por detrás desta acusação?

Lélia:O medo de mulheres negras organizadas. Mesmo assim, é importante apontar que temos boas relações com ambos os movimentos. Precisamos umas das outras como aliadas. No coletivo N’zinga trabalha uma mulher branca.

Mas eu pensava que era um coletivo de mulheres negras, não?

Lélia:Verdade, mas isso não tem a ver tão rigidamente com a cor da pele. Uma companheira disse uma vez que não somos nenhum movimento epidérmico, mas sim lutamos contra o racismo! Aliadas são sempre bem-vindas, mas ninguém que venha querer nos tutelar.

Isso lembra um pouco Jesse Jackson e sua coalizão arco-íris.

Lélia:A ideia dele pode ser muito boa para os EUA, mas no Brasil as coisas já são um pouco diferentes. Queremos não apenas um lugar melhor dentro do sistema social, mas defendemos que o próprio sistema deva ser substituído. No capitalismo é impossível que os negros se realizem, ou, em geral, qualquer pessoa não branca que viva nesta sociedade branca e capitalista. Esse princípio da concorrência é abrangente e transforma as pessoas em mercadorias que, então, passam a perceber uns aos outros apenas por suas diferenças qualitativas. Nós sabemos muito bem o que significa viver nas favelas, frequentar escolas racistas etc.

Mas é justamente o Brasil que se promove com a imagem de uma democracia racial, não é?

Lélia:Sim, sim, essa imagem foi construída de forma muito habilidosa. Mas você pode acreditar em mim, quanto mais alto você olhar no escalão da política, mais branca fica a vista. E os poucos políticos negros têm também uma alma branca. Então, politicamente o Brasil é absolutamente branco, mas em termos culturais se aproxima dos negros. Quando você encontra um branco na rua, ele é branco, mas quando ele dança samba, aí ele vira negro. O compositor de uma escola de samba não recebe absolutamente nada, mas sua escola é parte do roteiro de passeios para turistas. Uma única batida de olho nas estatísticas de desemprego ou nas taxas de analfabetismo já revela o quão racialmente democrático é o Brasil. Aí você só precisa comparar as parcelas de brancos, negros e índios.

E suas próprias experiências de racismo, como são?

Lélia:Para além daquelas bem escancaradas, manifestam-se principalmente nas pequenas experiências cotidianas. Já me passou, por exemplo, de, ao abrir a porta da minha casa para pessoas que estavam chamando fora, me perguntarem se a dona da casa estava. Outro exemplo: meus alunos declaram frequentemente cheios de orgulho seus posicionamentos liberais mencionando que têm “até um amigo negro”. Aí isso não me impede de constatar que eles são também “até mesmo ensinados por uma professora negra”. É também um jeito de militar, essa alfinetada intelectual. Aliás, estava dando uma olhada pela Universidade de Viena e vi aqueles bustos de mármore em homenagem aos professores de vocês, todos empoeirados. Pareceu muito engraçado e acho até que o busto de uma mulher ficaria solitário ali no meio.

Uma última pergunta: como você vê a possibilidade de uma transformação estrutural na América Latina – desculpe, e na Afro-América – e, neste contexto, o papel do seu trabalho?

Lélia:Em relação a todo o continente, eu acredito que nunca podemos chegar a uma revolução se questões elementares como a discriminação racial e a opressão das mulheres não forem incluídas. Aqui nos contrapomos criticamente à esquerda porque eles ainda não querem reconhecer certas coisas. Eles só pensam dentro das categorias europeias, meramente em divisões de classe. É muito insuficiente, nisto eles são conservadores. O meu trabalho, e o de todos que se preocupam com um futuro diferente e melhor para todos, é um fragmento, composto de pequenezas, não é nada comparado a tudo que deveria ser feito. Mas acredito que, em relação ao passado, muito dessa percepção também mudou. Hoje sabemos que é o trabalho minucioso, diário, que abre novas perspectivas. Estou muito confiante de que virá uma geração de pessoas que pensam de forma diferente e que elas serão ao menos bons aliados nesta luta necessária. E acredito que nós – os mais oprimidos – muito temos a dizer e a contribuir para que essa luta tenha sucesso.

E você está otimista?

Lélia:Sim, muito, porque nós, mulheres, somos o futuro .

Material suplementar
Notas
Notas
1 Lélia Gonzalez, Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos , Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
2 Em português, AUF – Uma revista para mulheres (tradução livre).
3 Alex Ratts e Flávia Rios (orgs.), Lélia Gonzalez , São Paulo: Selo Negro, 2010.
4 Em português, América Latina de Outra Maneira (tradução livre).
5 Referência aos e-mails trocados com Hermann Klosius, atual editor da Lateinamerika Anders , ao longo de fevereiro e março de 2022.
6 Referência aos e-mails trocados com Eva Geber, uma das antigas editoras da revista AUF – Eine Frauenzeitschrift, em março de 2022.
7 May Ayim, Grenzenlos und unverschämt , Berlim: Orlanda, 1997.
8 Grada Kilomba, Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano , Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
9 A palavra Apartheid consta no original em alemão e foi mantida na tradução, ainda que no Brasil ou no espaço germanófono o termo não seja comumente associado à política segregacionista norte-americana. Uma vez que a entrevista se deu quando o regime do Apartheid era vigente na África do Sul, é possível que Lélia tenha optado por usar o mesmo termo para denunciar que a situação dos negros no Estados Unidos, antes da campanha de direitos civis e mesmo depois dela, tem conexões importantes com o regime de segregação sul-africano.
10 A partir do conjunto da obra de Gonzalez, cabe aqui entender esta declaração não como um ímpeto de comparar ou hierarquizar as populações indígenas e negras, mas sim como uma tentativa de marcar as particularidades demográficas e territoriais de ambos grupos, para mostrar que a população negra é maior e mais concentrada no meio urbano, condição que facilita a integração, circulação e as trocas entre seus membros.
11 Vide nota anterior.
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