MEMÓRIA

“DEU SAMBA”: O CEAA E A MILITÂNCIA POLÍTICA-ACADÊMICA NA LUTA CONTRA O RACISMO NO BRASIL *

Amauri Mendes Pereira
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

“DEU SAMBA”: O CEAA E A MILITÂNCIA POLÍTICA-ACADÊMICA NA LUTA CONTRA O RACISMO NO BRASIL *

Afro-Ásia, núm. 66, pp. 551-581, 2022

Universidade Federal da Bahia

A emoção – inimiga dos pretensos intelectuais neutros –

entra em campo, arrastando dores antigas e

datando silêncios enferrujados

Cuti 1

Vice-Diretor do CEAA:

– O CEAA é uma instituição acadêmica!

Militante do Movimento Negro:

– Mas esse tipo de centro acadêmico, no Brasil, é político.

O diálogo acima ocorreu, mesmo, nos primeiros tempos do Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA), do Conjunto Universitário Cândido Mendes (UCAM), em 1973 ou 1974. De um lado,a afirmação de um centro de estudos desbravador – fora dali, estudos africanos e conexões com a questão racial no Brasil tinham escassas interlocuções e colaborações. De outro, uma militância negra consciente de sua importância política e ávida por saberes e informações que circulavam naquele espaço: fundamental conhecer África, para estruturar a crítica ao eurocentrismo amplamente dominante. Ampliar, aprofundar, difundir aquele conhecimento, além de fortalecer a consciência negra, seria fator de desequilíbrio na produção de conhecimentos, pretensamente “cegos à cor” (na verdade cegos à questão racial) em interpretações da formação e desenvolvimento da sociedade brasileira. Tudo isso municiaria as lutas do Movimento Negro contra o racismo.

O ponto de vista defendido nesse texto, a partir de longa vivência e compartilhamentos em diferentes momentos e contextos, informações e conversas com antigos pesquisadores e parceiros, é que o CEAA cumpriu importante papel na institucionalização da luta contra o racismo no Brasil: pelo que produziu (a formação e “conversão” de jovens pesquisadores, a biblioteca, até a primeira década do novo século conhecida como das mais completas no Brasil e sempre disponível, pesquisas e outras formas de produção de conhecimento); pelo que articulou (eventos, presença e diálogos com a militância do Movimento Negro e com africanos, com fontes de informações e conhecimentos incomuns entre nós até então); pelo que difundiu (os Cadernos de Estudos Afro-Asiáticos, as palestras, cursos e diálogos abertos); e pelo que apoiou (uma protoação afirmativa na composição de seu quadro de pessoal, e a abertura de seu acervo a pessoas interessadas de fora da universidade).

Nos anos de 1970 e 1980, em termos de estruturas universitárias, o CEAA era único. 2 Que características, condições institucionais e de funcionamento, que tipo de pessoas e projetos, intenções, atividades potencializaram sua dimensão institucional muito além do esperado para aqueles tempos? Uma resposta se encontra no nível de engajamento e na qualidade imprimida aos trabalhos por dirigentes e pesquisadores com seus temas e “objetos” de estudo, mas também na presença da militância negra, ávida pela produção e difusão daqueles conhecimentos, e nos diálogos – nem sempre amistosos – que protagonizaram. Era um contexto de interações instigado por antiguidades e novidades “de África” – bibliografia, iconografia, jornais, negociações diplomáticas e comerciais, conferências… Vez em quando, conversas com personalidades africanas e da diáspora reconhecidas no mundo político e acadêmico: “o CEAA representava sua ‘janela aberta’ para olharem o Brasil”… 3 Tudo isso era difundido entre a militância negra, junto a pessoas e grupos dispostos a enfrentar o preconceito e a discriminação racial, e em todo espaço aberto ou, pelo menos, simpático ao antirracismo.

Para a militância negra do Rio de Janeiro nos anos de 1970 e 1980, foram preciosas a oportunidade, características e atividades do CEAA. Por outro lado, abrigar aquela militância representou uma fortuna para o CEAA. Mais ou menos tensas, ao longo de todo o tempo, aquelas relações geraram energias, pesquisas e ações criadoras – simbiose de diferentes militâncias!

A partir dos anos finais da década de 1970, era evidente a derrota militar da heroica resistência de setores da esquerda armada, e a ditadura militar sinalizava uma “distensão lenta, gradual e segura”. Essa “abertura” permitiu o incremento e publicização de visões críticas, e de novos agentes sociais e políticos. A militância negra no Rio de Janeiro (como depois se soube que acontecera, também, em outras regiões) vivenciava intensamente a empolgação da nova dinâmica política institucional. Mas suas demandas problematizavam o “mito” da democracia racial, então amplamente hegemônico, e isso dificultava sua interação com a vaga progressista, tanto em contextos acadêmicos, quanto na política institucional. Aí eram proeminentes tensões internas ao próprio campo de interesses desses grupos, mas não só! Vale ressaltar a existência, que vinha de longe já naqueles tempos, de um campo, por assim dizer, desinteressado: exercícios acadêmicos e culturais amplamente hegemônicos, para os quais os Estudos Africanos e quaisquer considerações da questão racial não eram relevantes – não eram praticados, não faziam parte de suas problematizações e de seu escopo de pesquisas e atividades. Outra ordem de motivações e interesses políticos e acadêmicos, outras epistemologias.

De um lado, dirigentes e pesquisadores do CEAA e aliados batalhavam pela legitimação e consolidação acadêmica dos temas correlatos à África e às “relações raciais no Brasil”, e a militância negra enfatizava a dimensão política daquela militância acadêmica e sua importância para “repensar o Brasil”.

De outro, nas Ciências Humanas em geral, um pensamento difuso e hegemônico respaldado em “clássicos”, que costumava (ainda costuma?) desconsiderar, e muitas vezes menosprezar e desqualificar, tais proposições políticas-acadêmicas. Em geral pretendendo-se universais, e se furtando a alinhamentos políticos-ideológicos-acadêmicos explícitos, esses esforços de produção, legitimação e reafirmação do que já há – de epistemologias, teorizações e metodologias “consolidadas-canônicas” – não serão, também, militância?

Então podemos pensar que, assim como houve simbiose militante do lado de cá , nas hostes antirracistas, houve (e haveria mais intensamente adiante, na virada do século), também, simbiose militante do lado de lá , entre aqueles que, em todo o espectro da sociedade, rejeitavam novos conceitos, novas teorias e metodologias, novas perspectivas políticas e institucionais em se tratando da questão racial no Brasil. Espaços de avanço e espaços de atraso! 4

Razões e emoções na criação e desenvolvimento do CEAA

Dois personagens são centrais na trajetória do CEAA: José Maria Nunes Pereira, seu criador, e Carlos Hasenbalg, que assumiu em 1986. Cada um com suas escolhas e ao seu jeito, e às vezes a despeito de equívocos, desejos ou intenções, contribuíram para o avanço da luta contra o racismo. Foram determinantes para isso as posturas de ambos: afirmando a importância dos novos campos de estudo – África e relações raciais –; procurando e acolhendo estudantes mais e menos experientes afinados com aqueles temas; pessoalmente se insurgindo, descolando ou, pelo menos, não se deixando levar pelas correntes intelectuais predominantes. Fundamental, também, era a institucionalidade garantida pela postura atenta e aberta, independente, do reitor do Centro Universitário Cândido Mendes desde os primeiros tempos – seu olhar brilhava de dúvidas e força. Não era seu mundo e isso parecia instigá-lo: a impressão é que remoía tudo intimamente – talvez, um pouco com seus vice-diretores, quase nunca diretamente com a militância negra, às vezes tão próxima… Vinha o “sinal verde” e o CEAA crescia: a quantidade e tamanho das salas, a equipe que atraía e acolhia estudantes e intelectuais inquietos de lugares distantes, mais equipamentos, os eventos, a biblioteca, a revista, a rede de relações… 5

Um estudioso de África, José Maria Nunes Pereira Conceição se autodefinia como um “especialista em generalidades” sobre aquele continente. 6 Desde os primeiros momentos manteve relações com militantes negros: às vezes mais, às vezes menos amistosas, com alguns mais, com outros menos. Em seu primeiro casamento com uma mulher angolana teve um casal de filhos, e sempre tinha presente, para todos os efeitos (psicológicos, afetivos, financeiros) a sua família angolana: avós, tios e primos de seus filhos, conforme suas tradições de parentesco. Em seu segundo casamento, agora com uma mulher negra brasileira, também teve um casal de filhos e “curtia” um diferencial: pertencia (como dizia, orgulhoso, aos mais íntimos) à “tribo dos africanistas brancos casados com mulheres negras” – um testemunho de envolvimento, também, emocional com a “causa”.

Para que se compreenda a dimensão de sua interação, e o respeito que gozava junto à militância negra – em 2010 eu havia dedicado a ele meu livro África: para abandonar estereótipos e distorções – é por demais relevante registrar duas das muitas mensagens, quando de seu falecimento, em 2015. De Antônio do Spirito Santo: 7

Não tenho na minha já velha memória nenhuma referência de mestre, sábio condutor de vidas, maior que este maranhense emotivo que soube hoje que se foi. Nem encontro palavras para descrever a perda irreparável que a alma vívida e intensa dele fará no rol de minhas memórias mais preciosas, na memória de todos que conviveram com ele...

Sem nenhuma dúvida, tudo que sou hoje, esta ligação com a pesquisa da cultura do negro no Brasil, a escrita, a música, tudo dessas mesmas coisas, o kissange e a marimba dos quais me tornei mestre fazedor e ensinador, o Grupo Vissungo , o Musikfabrik , meus textos, meu livro, tudo que sou como intelectual orgânico, compulsivo, veio dele, espécie de pai do que me transformei. 8

E de Marcos Aurore Romão: 9

O Brasil carece de homens brancos assim, machos o suficiente para enfrentar sem autopiedade todas as formas de racismo, que por nascença em nosso país lhe traria vantagens. Pagou o preço da incompreensão acadêmica, por sempre estar do nosso lado na luta de solidariedade aos povos sob jugo dos apartheids, colonialismos, e neocolonialismo, mas pode com isso gozar e viver em mundos de alegria e luta jamais imagináveis para os brancos presos no modo de ser do racismo brasileiro. 10

Argentino de nascimento, Carlos Alfredo Hasenbalg chegou ao Brasil em 1967 para estudar e trabalhar no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), da Universidade Cândido Mendes. Apesar de amizade com militantes negros, confidenciou várias vezes que “despertou mesmo” para a dimensão da questão racial no Brasil por influência de um professor seu na universidade de Berkeley, onde foi fazer o doutorado; e, também, devido à proximidade de Berkeley com a cidade de Oakland, onde havia um quartel-general do Partido dos Panteras Negras – grupo de militantes negros norte-americanos radicais, na conjuntura em que se confirmavam as conquistas do Movimento por Direitos Civis. Mais contido no trato pessoal do que Zé Maria, não se pode, porém, desdizer seu envolvimento emocional com “a causa” e com militantes negros.

Foi notória sua amizade estreita, em momentos diferentes, com Beatriz Nascimento e com Lélia Gonzalez, destacadas intelectuais e militantes negras. À primeira dedicou seu primeiro e fundamental livro, assim como aos estudantes da Universidade Federal Fluminense (UFF), militantes do Movimento Negro que haviam organizado a Semana do Negro naquela universidade, em 1975. 11 Com Lélia Gonzalez publicou um livro de enorme repercussão, 12 e manteve forte amizade até se desentenderem politicamente, “em 1987, quando ela saiu do PT [Partido dos Trabalhadores] e se filiou ao PDT [Partido Democrático Trabalhista]”. 13

Somente os dois poderiam falar mais reflexivamente e com propriedade de suas motivações para trilharem caminhos tão diferenciados do que era mais comum à época, no quadro de desenvolvimento da pesquisa na área das Ciências Humanas e Sociais no Brasil.

O que se sabe publicamente dessas motivações? Sobre Zé Maria um pouco mais, sobre Hasenbalg menos. Para além da orixalidade e de outros caminhos subjetivos insondáveis, resta tentar entender tais motivações em suas trajetórias de vida: pelo menos o que foi colhido de Zé Maria publicamente e em longa e profícua convivência, além de conversas, sempre bem humoradas, com uma variedade de antigos pesquisadores e parceiros; no caso de Hasenbalg, o mesmo, além de curtas mensagens por correio eletrônico em 2013, e diálogos em breves situações de convivência em sua sala, no CEAA; também a partir do texto de uma aula-magna no IUPERJ, em 2007, em que ele falou de sua trajetória acadêmica no contexto das Ciências Sociais, no Brasil, e das entrelinhas de depoimentos ou textos, como é o caso do livro Quase catálogo , no qual critica a pouca importância devotada ao tema das relações raciais entre cientistas sociais brasileiros. Além disso, vivenciei desabafos e fúrias comedidas em diferentes contextos, como em participações no Grupo de Trabalho de relações Raciais na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) – espaço em que ele “imperava” – onde observações e conversas-disputas de bastidores eram reveladoras.

A tônica das pesquisas do CEAA mostra dois momentos principais: até 1986 a ênfase eram os Estudos Africanos; daí em diante os Estudos de Relações Raciais adquirem proeminência. Isso não quer dizer que na primeira fase não tenha havido pesquisas e discussões sobre o negro e racismo no Brasil – no âmbito dos chamados Estudos Afro-Brasileiros –, e que na segunda, África tenha desaparecido do CEAA.

O CEAA de Zé Maria: um centro acadêmico-político de portas abertas

Em seu período inicial e já entrados os anos de 1980, militantes do movimento negro que habitualmente frequentavam o CEAA – era o meu caso – podiam ter acesso a quase tudo: à biblioteca, aos cursos, livros e jornais (especialmente africanos) recebidos regularmente, mesmo antes de serem catalogados. E até em reuniões do staff da casa, em momentos mais informais ou para determinadas discussões. Tensões havia: às vezes desacertos e mal entendidos. Jamais algo maior que bloqueasse (totalmente) amizades, acessos, convites, partilha de ideias, etc. Como havia militantes negros e negras insatisfeitos com o papel institucional e acadêmico, e com certas posturas reservadas da direção e de pesquisadores do CEAA, destes últimos também havia certa reserva e cautela em relação à militância: dúvidas sobre sua efetiva representatividade e eficácia na luta contra o racismo, também sobre sua seriedade no estudo, pesquisas, e em discussões político-acadêmicas.

Por mais acadêmico que se desejasse, o CEAA não perdia oportunidade de marcar posição política. Assim, uma solenidade marcou, em 24 de setembro de 1974, a passagem de um ano da declaração unilateral de independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde (então pensadas como uma única nação). Desde 1975, todos os anos o centro celebrava o Dia da Libertação Africana, em 25 de maio. Ainda em 1975, outras solenidades marcaram o 25 de junho (e depois o 25 de setembro) da independência de Moçambique, e o 11 de novembro, dia da independência de Angola. Em 1976 se celebrava, também pela primeira vez no Brasil, o Dia Internacional Pela Eliminação da Discriminação Racial, em solenidade no CEAA.

Desde então, e até os meados dos anos 1980, se sucederam eventos tendo as relações raciais, África e problemas africanos ou as relações Brasil-África como motivação. Invariavelmente contavam com a participação de entidades negras do Rio de Janeiro – especialmente o IPCN e a Sociedade de Intercâmbio Brasil (SINBA) – e da militância negra.

Depoimentos empolgados e fotos de antigos pesquisadores guardam lembranças especiais da solenidade do 25 de maio de 1979: após a saudação, como sempre eloquente, do Diretor Cândido Mendes de Almeida, e da palavra de Zé Maria, introdutória e explicativa sobre a data, em arrebatadora emocionalidade Olympio Marques dos Santos, antigo militante negro e comunista, várias vezes preso ao longo do regime militar, deu as boas vindas ao “Padre” Alípio de Freitas declamando um poema de Solano Trindade: “Negros opressores não são meus irmãos, somente negros em luta contra o colonialismo, o imperialismo e o racismo são meus irmãos”… “Padre” Alípio, que acabara de sair da prisão militar, mostrava uma aura e uma energia impressionantes – a seu respeito se dizia ter sido dos mais torturados presos políticos. Nascido e criado em Portugal, viera como sacerdote católico para o Brasil, onde se engajara nas lutas políticas e abandonara o sacerdócio. Preso desde 1970, passara por quase todos os presídios militares. Sua coragem pessoal e a forma de enfrentar a tortura eram verdadeira lenda nas hostes das esquerdas. Mesmo encarcerado, acompanhava as lutas de libertação de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau e Cabo Verde. Após a apresentação, Olympio pediu que todos ficassem de pé e dirigiu uma saudação apaixonada àquelas “nações africanas que nasciam para a liberdade”.

Estiveram sempre presentes entidades da sociedade civil, como o Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI), e o Instituto de Países em Desenvolvimento (IPD). Embaixadas, cônsules, representantes comerciais de países africanos também marcavam presença. Entre estes se destacava a Casa do Brasil da Fundação Leopold Senghor – à época dirigida por Henri Senghor, sempre apresentado como primo do presidente do Senegal.

Vale a pena referir, por sua amplitude e ousadia, a realização do 1º Seminário sobre o Racismo e o Apartheid na África Austral, de 26 a 30 de maio de 1980, na Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro, cuja organização fora capitaneada pela equipe do CEAA e por dirigentes da SINBA e do IPCN. Foram quatro dias de conferências, apresentação de trabalhos, mesas redondas e muitos debates, com a presença de diplomatas, intelectuais e políticos brasileiros e estrangeiros, além de vários recém-anistiados, alguns dos quais haviam sido exilados, ou cooperantes em países africanos. Ainda que houvesse unidade na denúncia do apartheid sul africano e sobre a ocupação ilegal da Namíbia, e vigorasse empolgação geral em relação ao processo de independência do Zimbábue, que se consolidava em clima razoavelmente ameno, certa tensão se instalava quando militantes negros observavam ser insuficiente e cômodo combater o apartheid , na África do Sul, cobrando que todos assumissem o combate ao racismo na própria sociedade brasileira. A equipe do CEAA perfilhava aquela demanda de forma quase exclusiva; raros participantes de outras instituições da sociedade civil assumiam tal palavra de ordem.

Outro exemplo que atesta a importância do viés político (às vezes maior do que o acadêmico) nos primeiros anos do CEAA é a trajetória universitária de seu fundador. Do frustrado curso de Medicina em Portugal nos anos de 1950, bacharelou-se em Ciências Sociais na UFF nos inícios dos anos de 1970, e apesar de dirigir um centro de excelência acadêmica só muito adiante foi completar sua pós-graduação – defendendo seu doutorado em Antropologia na Universidade de São Paulo (USP), em 1999. Teve uma história de vida incomum que lhe dispôs de maneira especial perante os desafios postos à esquerda nas lutas políticas dos anos de 1960 no Brasil.

Filho de pai comerciante no Maranhão, costumava dizer que foi um “caminho natural” estudar em Portugal, onde vivenciou as articulações anticoloniais na Casa dos Estudantes do Império, e conviveu com alguns daqueles que, mais à frante, liderariam as lutas de libertação em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde, e São Tomé e Príncipe. Cursava Medicina quando a morte do pai e dificuldades financeiras o trouxeram de volta ao Brasil. Depois do “ensaio cosmopolita” restava tentar a vida no Rio de Janeiro. Suas ligações políticas, na efervescência do início dos anos 1960, levaram a que assumisse um setor de relações internacionais da União Nacional dos Estudantes (UNE) – onde lhe cabiam, especialmente, as relações com movimentos de libertação africanos. 14

Apesar de sua militância esquerdista, foi peculiar a trajetória de suas prisões pelo regime militar: ocorriam devido à sua ligação com os partidos em luta naquelas nações africanas, e ao fato de que Zé Maria abrigava militantes daquelas organizações, refugiados ou em passagem pelo Brasil – seu codinome era “Camarada Caipira”. Agentes da polícia política portuguesa que vinham prendê-los chegavam até sua casa, no Catete, região central do Rio de Janeiro, guiados por agentes do Centro de Informações da Marinha Brasileira (CENIMAR) – era a “internacional da repressão”!

Zé Maria contava, também, que foi na condição de preso político, membro “de carteirinha” de partidos africanos de libertação, que conheceu Cândido Mendes de Almeida. Este se mostrava dos poucos brasileiros efetivamente solidários àquela militância, que visitava nos porões de cadeias militares brasileiras, nos anos de 1960, e apoiava material e espiritualmente os encarcerados. Nos inícios de 1972 se reencontrariam em palestra daquele renomado cientista social na UFF, onde Zé Maria, que havia desistido da Medicina, agora concluía o curso de Ciências Sociais. À surpresa de Cândido Mendes seguiu-se o convite, e Zé Maria tornou-se o primeiro vice-diretor do CEAA (o diretor seria sempre o próprio Cândido Mendes). Como já foi dito, um espaço de menos de 8 m 2 no Conjunto Universitário Cândido Mendes, em prédio anexo à Igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema. 15

Tudo aconteceu muito rápido, pois a criação de um centro dessa natureza atendia à visão e ao interesse estratégico de Cândido Mendes de Almeida. Percuciente analista das relações internacionais e afinado com as lutas “dos povos de cor do Terceiro Mundo”, ele percebia a iminente vitória dos movimentos de libertação africana contra o exército colonial português, fator determinante da insurreição dos capitães, que resultou, em abril de 1974, na Revolução dos Cravos e na deposição do governo de Marcelo Caetano (que assumira o comando da ditadura implantada em 1933 por António de Oliveira Salazar, morto em 1968). Para Cândido Mendes, “obsessivo” pela possibilidade de “colaborar” com uma política terceiro mundista do Itamaraty, aquele era o momento: mais que necessário, era imprescindível acompanhar o mais perto possível aquele processo de descolonização. Seu desejo, os recursos de que dispunha e a nova institucionalidade conferida pelo CEAA conjuminaram inteiramente com a avidez de Zé Maria em vivenciar “ao vivo” cada uma das etapas das independências, celebrando a vitória junto com os antigos camaradas. 16

Além do interesse e participação em fóruns internacionais e nas conferências em que delegações portuguesas e de dirigentes dos movimentos de libertação negociavam prazos, condições, e características das independências, Zé Maria se mostrava atento à necessidade de interagir com um “público interno”, que acompanhava ávido aqueles processos. A referência é à jovem e incipiente militância negra no Rio de Janeiro, que nos inícios dos anos de 1970 se articulava com diferentes motivações e características, e em diversas regiões do Grande Rio. O nascente CEAA se abria e convidava, e jovens negros para lá afluíam em tardes de sábados ao longo de 1973 e 1974. Realizavam memoráveis e cada vez mais quentes e mobilizadoras reuniões, que propiciavam animadas trocas de experiências, mutualidade de reconhecimento e indagações. Papel saliente naquelas articulações e na condução dos trabalhos se devia à personalidade intensa e instigante da historiadora Maria Beatriz Nascimento, então cunhada de Zé Maria. Em muitas memórias perduram sua beleza e inquietação cativantes, e o prestígio intelectual que lhe rendiam suas intervenções, sempre bem preparadas e fundamentadas, de maneira surpreendente para aquela juventude negra ávida de “representatividade” e protagonismo em diversos contextos educacionais e políticos. Alguns textos seus circulavam entre os participantes de grupos e entidades, do que, adiante, seria conhecido como Movimento Negro. 17

A crescente adesão às reuniões de sábado em Ipanema – vinha gente de todo lugar! – mostrava o ímpeto de uma juventude negra que se esforçava por ascender socialmente, mas se via impactada por experiências de preconceito e discriminação racial. Surpreendente, além do mais, e “doía” mais, porque havia a crença, largamente disseminada e acreditada, de que “o preconceito era social”, ou seja, se exercia contra a pobreza e não contra a cor da pele – o Brasil seria o país da convivência harmoniosa entre as três raças: brancos, negros, indígenas. Em tal idealização aqui vigoraria uma democracia racial. 18

Era cada vez mais evidente para aquela juventude negra que de nada adiantava “furar barreiras”, se “vestir, se comportar, conversar adequadamente”, ingressar e cursar universidades públicas e mesmo cursos prestigiosos, se fazerem afins àqueles ambientes culturais e artísticos, e se esforçarem para “chegar lá”. Como explicar que, à medida que assumiam posturas de igualdade, que “batalhavam” por melhores condições profissionais e insistiam em frequentar e curtir espaços culturais vistos como mais nobres, ao invés de abrandarem, se intensificavam olhares e piadas racistas? Seriam aqueles espaços reservados para brancos?

Evidente que eram “lenha na fogueira” as memórias recentes de Martin Luther King Jr. e do Movimento pelos Direitos Civis, a mística revolucionária do Partido dos Panteras Negras, da saga de Angela Davis, o vigor e a exuberância de Muhammad Ali, e a eloquência e a radicalidade de Malcolm X, nos Estados Unidos; e os êxitos crescentes dos movimentos de libertação em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, e Timor Leste (próximo à Indonésia,no oceano Pacífico), até então colônias portuguesas.

Estes últimos eram acompanhados com dificuldade através de raras reportagens em jornais brasileiros e no noticiário de política internacional. Silenciamento ou omissão da imprensa, abalada em abril de 1974, quando a Revolução dos Cravos depôs Marcelo Caetano e colocou fim ao regime fascista imposto por António de Oliveira Salazar ao povo português quase quarenta anos antes. O movimento liderado por oficiais de menor patente, especialmente capitães, expôs as contradições entre a propaganda oficial, que alardeava efêmeras vitórias nas guerras em África, manipulavam informações e procuravam legitimar o regime colonial, e a realidade de crescente mobilização dos povos africanos e de sucessos militares, políticos e diplomáticos dos movimentos de libertação.

Alguns militantes negros tiveram oportunidade de “estar por dentro” do momento único daqueles processos de descolonização: no CEAA se acompanhava viagens, informações e atuações de Zé Maria naquele contexto, seus acessos nem sempre oficiais em meetings e discussões restritas, nos sucessivos eventos preparatórios, e nas conferências de alto nível, em que foram acertados os acordos de independência entre o governo revolucionário português e os movimentos de libertação africanos. 19

Zé Maria se mostrava importante em certos momentos perante a insegurança de agentes da posição oficial brasileira, tradicional aliada do colonialismo português (algumas vezes, já nos anos 1970, “em cima do muro” em votações na Organização das Nações Unidas). O “Camarada Caipira” identificava as linhas de pensamento e intenções de lideranças africanas nas mesas de negociação das independências – de capital interesse para o Itamaraty; mas também circulava bem entre a diplomacia brasileira mais progressista. Tudo isso, mais sua credibilidade junto a antigos “camaradas” e amigos, aliados ao suporte institucional da Cândido Mendes, se mostravam valiosos para os interesses dos movimentos de libertação – a partir de agora, futuros governos de reconstrução nacional. 20

Preciosos eram, também, cursos e palestras oferecidos nos primeiros tempos do CEAA. Alguns devidamente estruturados, difundidos e que atraiam bastante gente, outros nem tanto. Foi marcante, especialmente, um curso sobre colonialismo e descolonização ministrado por Zé Maria: extrapolou completamente o número de aulas previsto e foi se alongando informalmente, até ser encerrado por uma conferência especial de Fernando “Tanzânia” Lemos, que voltara de uma temporada de estudos e cooperação técnica naquele país africano. Este curso começou com cerca de vinte pessoas. Além de aulas expositivas de Zé Maria havia palestras de visitantes experientes em algum aspecto dos Estudos Africanos e de amigos do coordenador. Havia também cursos e palestras sobre o oriente, como um curso ministrado por Severino Bezerra Cabral Filho sobre a China: história e política contemporânea – precioso!

Encerrando essas reminiscências seletivas de momentos emblemáticos do “velho” CEAA, como não referir a organização e realização do Encontro Nacional Afro-Brasileiro, de 29 de julho a 1 de agosto de 1982 – o primeiro a reunir militantes negros e estudiosos de África e de Relações Raciais de todas as regiões do país? Vale destacar nesse episódio três dados que mostram o entrosamento “quase perfeito” da direção do CEAA e da militância negra: primeiro que, dos nove membros da comissão organizadora, seis eram intelectuais-militantes negros, na época integrando a equipe do CEAA – Paulo Roberto dos Santos, Joel Rufino dos Santos, Ari Araújo, Judite dos Santos Rosário, Jacques D’Adesky e Manuel Faustino (médico caboverdiano, estudioso da obra de Fanon, e em diferentes momentos, a partir da independência, foi ministro da Educação e da Saúde em seu país). Apenas Zé Maria, Cândido Mendes e Sarita Albagli (então, também, namorada de Paulo Roberto dos Santos) não eram negros. Além disso, foi constituída uma assessoria especial composta de doze membros, em que apenas quatro não eram militantes negros. Desafiador para ambas as partes foi o esforço de complementaridade entre o esquema institucional e a comissão de apoio, composta de militantes negros, que estabeleciam pontes e discutiam horários, temas, a lista de convidados… Havia extensa lista de militantes de outros estados.

O propósito era aproveitar aquele encontro para realizar a mais ampla reunião – de abrangência nacional – da militância negra de vários estados brasileiros. Até então pouco se conheciam e se comunicavam. Seria – e foi! – uma oportunidade de discutir aspectos comuns e específicos de seus processos regionais e locais, para tecerem estratégias de articulação e ação. A interação com a comissão de organização foi muito bem sucedida: em 30 de julho uma “folga geral do encontro oficial” permitiu um dia inteiro, que se entendeu pela noite, de reuniões plenárias e de grupos específicos, na sede do IPCN – então a “sede” do Movimento Negro no Rio de Janeiro. 21

O CEAA de Hasenbalg: nova militância e um novo paradigma – os Estudos de Relações Raciais

O doutorado de Carlos Hasenbalg na Universidade da Califórnia – Berkeley, nos Estados Unidos, abordava as relações raciais no Brasil. E sua tese inovadora questionava a visão, cara à Escola Paulista de Sociologia, com Florestan Fernandes à frente, de que as desigualdades raciais se deviam a “resquícios da escravidão”. 22 Era muito influente a ideia de que havia um “ deficit negro” – anomia social, inaptidões e inabilidades herdadas das agruras da escravidão, que os incapacitava para assumirem novos papéis sociais e atenderem às exigências da sociedade inclusiva que se transformava celeremente nos meados do século XX. Para aquela escola teórica, preconceitos e discriminação racial tendiam, então, a ser superados à medida que negros vencessem suas defasagens e interagissem favoravelmente com as novas dinâmicas desencadeadas pelos processos de industrialização, da modernização das relações de trabalho e da urbanização acelerada.

Para Hasenbalg, já nos finais dos anos 1970, não era isso o que estava acontecendo. O que havia eram mecanismos econômicos, sociais e políticos de adscrição que atualizavam permanentemente o preconceito e a discriminação, perpetuando as desigualdades raciais e sociais. E ele – contando com parceiros, destacadamente Nelson do Valle Silva – se esmerou ao longo de toda a sua vida acadêmica em comprovar essa tese através da análise sociológica e de estudos estatísticos que procuravam medir as desigualdades raciais.

Seu tempo e suas ações na direção do CEAA, assim como sua trajetória acadêmica mesmo antes de assumir o cargo, precisam ser analisados não apenas com respeito à imensa contribuição que representaram para a criação de um novo subcampo acadêmico, mas também pelo que sinalizavam de rupturas, distanciamentos e problematizações de esquemas acadêmico-institucionais e de linhagens teóricas até então incólumes. Parece que, assim como em relação a Zé Maria, é adequado se aplicar à sua trajetória, aquilo que Mariza Corrêa identificou ao estudar a “escola” Nina Rodrigues, e o papel de seus discípulos face à questão racial e à institucionalização das Ciências Sociais no Brasil (evidentemente sem compará-lo, nem de longe, ao médico maranhense-baiano):

acredito que as pistas e sugestões aqui incorporadas apontam para a relevância de se relacionar a postura propriamente teórica dos intelectuais, com sua atuação concreta na vida social se quisermos entender a influência de uma sobre a outra sem reduzir nenhum dos níveis ao outro. 23

Desde sua íntima amizade com Beatriz Nascimento e a opção de estudar as relações raciais devido a “muita efervescência pós-68, Panteras Negras (com QG em Oakland, vizinha a Berkeley), feministas, mobilização contra a guerra no Vietnã”, conforme seu próprio relato. 24 É importante considerar, que embora seu trabalho não convergisse com as interpretações de correntes majoritárias das Ciências Sociais, e mais adiante, reclamasse da existência de um gueto sociológico, 25 ele não se recolheu inerte e pesaroso ao gueto. Escolheu e assumiu um caminho espinhoso para lidar com a institucionalidade das Ciências Sociais no Brasil: Carlos Hasenbalg constituiu o grupo que, em 1979, criou o Grupo de Trabalho sobre Relações Raciais na ANPOCS. Devido ao prestígio que desfrutava foi escolhido coordenador nos anos iniciais.

Hasenbalg entre pares assumia postura política-ideológica de esquerda. Embora não fosse filiado a nenhum partido político (até porque era estrangeiro), não será importante considerar sua declaração de que arrefeceu sua amizade com Lélia Gonzales, em 1987, quando ela saiu do PT e se filiou ao PDT? A discussão que faz sobre o marxismo e a questão racial em 1985 testemunha a determinação que teria mais tarde à frente do CEAA – opção por caminhos acadêmicos “contracorrente” como decorrência de uma postura política, que pode ser vista como de esquerda, embora não convergente com suas linhagens mais influentes. Em menos de dez páginas Hasenbalg questionava o pensamento de Marx como datado e localizado, aludindo às suas análises do colonialismo e a certos etnocentrismo e evolucionismo teórico, ao tratar do desenvolvimento de sociedades não-européias. Questionava, também, o modelo teórico e a “camisa de força conceitual” presentes em abordagens marxistas de sociólogos brasileiros a respeito da escravidão; e, por último, discutia brevemente a inconsistência nas abordagens marxistas mais influentes sobre as lutas contra o racismo nos Estados Unidos. Na mesma mesa de debates, Octávio Ianni, por exemplo, se prendeu à profissão de fé em Marx: embora reconhecesse etnocentrismo e lacunas, e mesmo concordando com o fato de que Marx “não dá conta” da questão racial no Brasil, sua discussão ficava no plano teórico. A postura de Hasenbalg era diferente: sua razão principal era defender os estudos de relações raciais, com novas posturas metodológicas e teóricas. Engajamento mais no tema do que em teorias – teoria sem amarras: como ferramenta para analisar e entender os fenômenos sociais e históricos. 26

O contexto das Ciências Sociais em torno de Hasenbalg era francamente reativo à sua linha de pesquisa. Os Estudos Afro-Brasileiros ou estudos sobre o negro e cultura negra no Brasil vinham de longe e mereceram atenção das Ciências Sociais em geral desde os primórdios de sua institucionalização entre nós. Seu foco era “o negro”, sempre mirando o que acontecia nos Estados Unidos. Em geral, essa intelectualidade “dialogava” com as “maneiras brasileiras” de lidar com a questão racial, às quais era comum opor os “radicalismos raciais” norte-americanos. Na verdade, incorporava um “desejo manifesto” no âmago da construção idealizada da nacionalidade: a singularidade da integração e harmonia racial brasileira. E essa idealização contrastava com o quadro norte-americano, majoritariamente de segregação e o ódio recíprocos, que mobilizavam a atenção mundial.

Difícil lembrar de outros cientistas sociais, além do âmbito do CEAA e com a exceção de Nelson do Valle Silva no IUPERJ, que discutiam as relações raciais com perspectiva de enfrentamento e de denúncia das desigualdades. 27 Daí, na visão arguta de Hector Segura Ramirez, ter se estabelecido os estudos sobre relações raciais como um subcampo acadêmico tensionando o campo dos Estudos Afro-Brasileiros ou estudos sobre os negros no Brasil. O livro de Hasenbalg teria inaugurado um novo paradigma e este autor passou a capitanear uma “escola carioca” de estudos de relações raciais. Segura Ramirez é preciso:

O que é, afinal de contas, relações raciais? Então, é importante determinar quais pressupostos éticos-políticos implícitos tanto nesse recorte temático, quanto no recorte do “cadastro” publicado pelo CEAA. Quais os sentidos desses recortes? Qual a pertinência teórico-política dos recortes propostos? A minha impressão inicial é que “relações raciais” é fundamentalmente um tipo específico de enfoque teórico-metodológico, isto é, uma certa forma de “encarar” o objeto de estudo. 28

“Escola carioca” soa provocativo. Sinaliza que toda produção de Hasenbalg e de pesquisadores que compartilhavam as mesmas visões se estabelecem em oposição ou diálogo conflitante com a orientação básica dos principais trabalhos sobre a questão racial ou sobre “o negro” no Brasil, emanados da chamada “escola paulista de Sociologia”, com “sede” na USP. Mas “escola carioca” soa bem, também, para reafirmar outra visão que transparece da análise de Segura Ramirez: os cadernos Estudos Afro-Asiáticos passaram a estar sob estrito controle de Hasenbalg, cujas premissas conceituais e linha teórico-metodológica enunciadas em seu livro de 1979 constituíram a referência fundamental de quase tudo que foi publicado entre 1986 e 1996, tornando-se hegemônicas no campo dos estudos afro-brasileiros ou sobre os negros no Brasil. 29

O CEAA político-acadêmico-militante

Hector Segura-Ramirez é convincente em seu argumento de que, sob a direção de Zé Maria, o CEAA era visto como mais militante e engajado nas lutas contra o colonialismo e o neocolonialismo em África, e em relação à questão racial no Brasil, e que, em 1986, houve uma convergência de interesses entre pesquisadores da linha capitaneada por Hasenbalg e a Fundação Ford, no sentido de superar aquele estágio “militante” e tornar o CEAA um centro de estudos capaz de formar pesquisadores e produzir pesquisa e conhecimentos com rigor conceitual, teórico e metodológico – tudo propriamente acadêmico.

Havia essa voz corrente bem captada por Segura-Ramirez. Peter Fry era, então, o dirigente da Fundação Ford no Brasil, e (comentava-se abertamente) “negociou” com Cândido Mendes um apoio substancial daquela fundação norte-americana, que se tornou o principal suporte financeiro do CEAA, com a condição de que Hasenbalg assumisse o efetivo comando. 30 Entretanto, sempre há mais que as aparências. Segura-Ramirez peca – e isso é fundamental para o que pretendo dizer nesse texto – quando não percebe que, mesmo proclamando uma mudança de ênfase, do político para o acadêmico, e da África para as relações raciais no Brasil, ainda assim o CEAA não deixou de ser militante – mesmo após a saída de Hasenbalg – e muito menos deixou de cumprir um papel essencialmente político na institucionalização da luta contra o racismo no Brasil.

Apenas alguns exemplos:

Uma conjuminância de características construiu o CEAA como referência acadêmica de centralidades temáticas até então vistas como subsidiárias. Vale dizer: o CEAA – com África ou com os Estudos de Ralações Raciais – navegou fora da corrente (ou contra ela) por um longo tempo, e só encontrou canais para escoar sua produção, desde há muito vista como de excelência, simultaneamente aos avanços da luta contra o racismo.

É duvidoso afirmar que a saída de Hasenbalg, em 1996, teria determinado o “enfraquecimento” do CEAA e perda de influência em disputas teóricas que afirmavam o subcampo acadêmico dos estudos de relações raciais, e junto à militância negra. Um indício do contrário: tanto a manutenção dos financiamentos para os Estudos Afro-Asiáticos , quanto a criação, em 1996, do primeiro Curso de Pós Graduação lato sensu em História da África, com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que se mantiveram até que as disputas internas se tornassem demasiado agudas. Em 2002 Lívio Sansone deixou a Universidade Cândido Mendes e se transferiu para a Universidade Federal da Bahia, e, como divisão de área de influência, foi criado o Centro de Estudos Afro-Brasileiros (CEAB) sob a direção de Rosana Heringer, antiga e prestigiada pesquisadora do CEAA. Aí, já se anunciava o colapso daquela exitosa experiência – ao que parece, em grande parte devido às já referidas disputas internas na direção da universidade e no seio da própria família Mendes de Almeida, proprietária da entidade mantenedora, a Sociedade Brasileira de Instrução. 36

É razoável se desconsiderar aspectos políticos-emocionais-afetivos em análises dos caminhos e resultados de qualquer tipo de instituição? No caso do CEAA, parece que sua “heterodoxia” tem tudo a ver com as amizades e afetividades (e vice-versa) de Zé Maria e Hasenbalg, Ambos, aos seus jeitos, incorporaram e buscaram enfrentar o contencioso das relações raciais no Brasil, que nas décadas finais do século XX se tornara um problema para a sociedade, graças aos êxitos da militância negra – urgia denunciar a folclorização e a culturalização incensada pelos chamados Estudos Afro-Brasileiros, proeminentes ao longo de quase todo o século XX! Era isso que, ungindo as ideias de democracia racial no Brasil, de benignidade da escravidão, e da abolição como um processo pacífico, enaltecia certas personalidades, como a princesa Isabel, e silenciava sobre outros protagonismos. Já os estudos de relações raciais e uma nova linhagem historiográfica que identificava o protagonismo negro em variadas formas funcionaram como lenha na fogueira daquela militância que se adensava em todas as regiões brasileiras desde os anos 1970. 37

Se conjuminâncias de questões políticas e político-acadêmicas objetivas e subjetivas (além de outras insondáveis) que instigam e nutrem agentes político-acadêmicos determinaram as características e qualidades do CEAA, como isso estará se dando na formação de centros de estudos – os chamados NEABIs – que vêm sendo criados em incontáveis universidades, em todo o país, nos últimos quinze anos? 38 Vale um alerta: a peculiar trajetória político-acadêmica do CEAA, que inspirou e serviu de modelo a essa nova geração que se mobiliza em torno dos NEABIs. Da mesma forma que aquelas conjuminâncias criaram o CEAA, teriam algum papel na falência do centro, nos meados da primeira década do século XXI?

É útil, a propósito, o refinamento analítico de Fernando Rosa Ribeiro sobre esse “campo saturado de tensões”, como se referiu Lívio Sansone ao campo de estudo das relações raciais. 39 Para Rosa Ribeiro, não se atinge o cerne da questão racial dentro da visão de nacionalidade brasileira construída na simbiose entre o senso comum e a intelectualidade em geral. Para a grande maioria é preciso zelar por uma ideia de nação homogênea, sem diferenciações; enquanto para o Movimento Negro o diferencial está dado nas históricas desigualdades de oportunidades entre brancos e negros – a ideia de nação socialmente homogênea seria uma idealização, distante da realidade. Aquele autor preconiza alguma forma de mediação capaz de superar o “diálogo de surdos” entre as duas posições.

De outro ponto de vista, a trajetória do CEAA, conforme vem sendo exposta aqui, pode ajudar a nova militância que assume “o campo” política e academicamente. A defesa ardente da centralidade do problema racial no Brasil não deve, e não precisa, se afirmar como “verdade única”, e sim se esforçar na construção de espaços de diálogos. Se há quem não queira, ou que menospreze e rejeite a discussão, cabe aos que “militam” no tema e nas lutas sociais insistirem e manterem o problema na cena pública, cada vez mais, e mais refinadamente, mais bem explicado e fundamentado. Não soa paradoxal? Na primeira década do século XXI, com a institucionalização e a crescente legitimação, a ampliação e o aprofundamento dos estudos africanos e de relações raciais (o que parecia impossível no século XX), e quando se acelera vertiginosamente o acesso de negros, indígenas e pobres ao ensino superior, inclusive como professores, criando os NEABIs, desaparece o CEAA – entre os espaços acadêmicos-institucionais, o mais notório apoiador da militância negra naquelas demandas!

Mas então o CEAA e a militância negra de duas gerações já haviam cumprido um importante papel – “deu samba”! Cabe às novas gerações de acadêmicos-militantes criarem e exercerem os seus.

Notas

1 Estudos Afro-Asiáticos , n. 8-9 (1983), p. 215.
2 O primeiro centro acadêmico brasileiro voltado para temas africanos foi o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade Federal da Bahia, criado em 1959. Depoimentos de pesquisadores e militantes negros desde então apontam que, diferente do CEAA, as lutas de libertação africanas e as relações étnico-raciais não eram a tônica da sua biblioteca. Também não foram encontrados registros de participações em oferta de cursos e programas e atividades de extensão, e, segundo alguns dos mais antigos militantes do Movimento Negro da Bahia, como Gilberto Leal, só a partir dos anos de 1990, o CEAO se abriu a relações com a militância negra da capital baiana. O Centro de Estudos Africanos (CEA) da Universidade de São Paulo foi fundado em 1965. Seu criador, o professor Fernando Mourão, concentrou sua atuação em Estudos Africanos e nas relações com países africanos. Não há registro, nem memórias conhecidas, de que seu diretor, ou o CEA, mantivessem relações com militantes negros paulistas. Em 1985 foi criado o Núcleo de Estudos Afro-Asíáticos (NEAA), na Universidade Estadual de Londrina, que incentivou e contou sempre com participação negra, conforme relato de respeitados acadêmicos-militantes negros, como a professora Maria Nilza da Silva, que foi sua coordenadora entre 2014 e 2019 – a partir de 2014, rebatizado como com novo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB). Durante mais de dez anos o CEAA ocupou uma salinha de menos de dois metros de largura por menos de quatro de comprimento. Reuniões, recepções a visitas e convidados eram realizadas em salas cedidas de outros núcleos do Conjunto Universitário Cândido Mendes, ou da Sociedade Brasileira de Instrução (SBI) – instituição da família Cândido Mendes, que funcionava em prédio anexo à igreja católica na Praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, no Rio de Janeiro. Só nos anos de 1980 o centro ocupou espaços mais amplos e adequados, num prédio novo e dos mais modernos (consta que era integralmente patrimônio familiar), no centro do Rio de Janeiro – na Rua da Assembleia, número 10. E, logo, foi levado para outro prédio, na praça da Candelária, onde foi se desfazendo a partir dos finais da primeira década do século XXI.
3 Comentários de pesquisadores “da casa”, e acadêmicos e militantes negros convidados, alguns fluentes em francês, atribuem essa frase a Joseph Ki-Zerbo, em visita alegre e descontraída ao CEAA, em 1977.
4 Útil, a propósito, considerar o termo anti-antirracistas. Penso tê-lo encontrado pela primeira vez no livro de Sergio Costa, Dois Atlânticos: teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo , Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. Após longa discussão sobre a importância do antirracismo no mundo contemporâneo, identificando inclusive limitações a respeito em “clássicos” da Sociologia, Costa discute a complexidade do contexto em que emergem as demandas de ações afirmativas para negros na sociedade brasileira, e analisa os esforços contrários de amplos setores políticos e acadêmicos, que, em sua visão, rejeitavam o racismo, mas também aquelas demandas, vistas como “exageradas” e potencialmente disruptivas do tecido social. Para esse segmento, tais medidas corresponderiam a um nível inaceitável de racialização da sociedade brasileira, ainda mais desnecessárias e inoportunas devido à existência de uma cultura peculiar brasileira, especialmente no âmbito das relações raciais, capaz de dirimir, sem traumas, o contencioso histórico derivado de preconceitos e discriminação racial. Estes comporiam um campo anti-antirracista. Discursivamente pode-se questionar a ideia de democracia racial no Brasil; desprender-se dela existencialmente e culturalmente foi, e continua sendo, difícil para muita gente.
5 Ele era o “dono de tudo” (a expressão muito utilizada entre gargalhadas era outra, “dono da p* toda”, inconveniente aqui). Cândido Mendes era, até seu falecimento em fevereiro de 2022, aos 93 anos, um intelectual com respeitável trajetória, sempre progressista (embora tivesse fama de circular bem entre membros da esquerda e da direita). Era política e ideologicamente refratário ao regime militar, e, também por tradição familiar, vinculado aos setores progressistas da Igreja Católica (seu irmão foi presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, no período final do regime militar, quando aquela instituição fazia clara oposição ao regime). Uma considerável reputação intelectual e política lhe granjeara amplo controle do Centro Universitário, de propriedade de sua família. Como instituição privada de ensino superior, não dependia de verbas oficiais, nem estava totalmente ao sabor de lutas políticas-acadêmicas intestinas – seus apoios vieram principalmente da cooperação internacional, da Fundação Ford, Mellon e MacArthur, entre outros. Era corrente o comentário (mas jamais feito abertamente) sobre a ambição do reitor em se tornar, um dia, chanceler e implantar uma via “terceiro-mundista” em um governo brasileiro progressista. Essa oportunidade fora frustrada quando participou do Instituto Brasileiro de Estudos Africanos (IBEA), dirigido por Eduardo Portela no breve governo Jânio Quadros. Este o receberia, vinte anos depois, em sua posse como novo “imortal”, na Academia Brasileira de Letras.
6 Biografia e perfil completo podem ser vistos em entrevista ao CPDOC da Fundação Getúlio Vargas. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), Rio de Janeiro, Entrevista, José Maria Nunes Pereira Conceição . http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/historia-oral/entrevista-tematica/jose-maria-nunes-pereira-conceicao
7 Antigo militante do Movimento Negro, pesquisador e músico, foi um dos criadores do Grupo Vissungo, referência de musicalidade comprometida com as matrizes africanas da sociedade brasileira, que atuou longos anos em diversos países europeus. Spirito Santo criou e dirigiu, também, o Musikfabrik – formação de músicos e produção de instrumentos e de espetáculos artísticos-culturais, junto ao Departamento Cultural da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
8 Antônio do Spirito Santo, “Zé Maria no Kalunga Ngombe. Tributo ao branco que foigrande”, Spirito Santo , 11 jul. 2015 . https://spiritosanto.wordpress.com/2015/07/11/ze-maria-no-kalunga-ngombe-tributo-ao-branco-que-foi-grande/
9 Militante do Movimento Negro desde os anos de 1970, sociólogo e coordenador do Programa SOS Racismo do Instituto de Pesquisas da Cultura Negra (IPCN), de 1987 a 1991. Foi membro da Ashoka Empreendedores Sociais, e criador da Rádio Mamaterra, em Hamburgo, na Alemanha, onde viveu do início dos anos 1990 a 2010. Depois de sua volta ao Brasil, atuou e prestou consultoria em órgãos governamentais de direitos humanos e de promoção da igualdade racial, em Niterói, e no fortalecimento de articulações das lutas quilombolas. Faleceu em 2018.
10 Marcos Romão, “Falece José Maria Nunes Pereira”, Mamaterra , 12 jul. 2015 . https://mamapress.wordpress.com/2015/07/12/falece-jose-maria-nunes-pereira/
11 Dedicou o livro, também, a seu pai, Adolfo Hasenbalg.
12 Lélia Gonzalez; Carlos A. Hasenbalg, Lugar de negro , Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982.
13 Comunicação pessoal (correspondência eletrônica), 8 mar. 2013.
14 Para uma súmula da importância histórica da Casa dos Estudantes do Império, “berço de lideranças das lutas de libertação africanas”, ver João Carlos, “Casa dos Estudantes do Império: berço de líderes africanos em Lisboa”, Deutsche Welle , 13 out. 2012, . https://www.dw.com/pt-002/casa-dos-estudantes-do-imp%C3%A9rio-ber%C3%A7o-de-l%C3%Adderes-africanos-em-lisboa/a-16233230
15 São pungentes suas memórias e a forma como descreve a sucessão de “coincidências” e conveniências que foram forjando a criação do CEAA em seu depoimento ao CPDOC, em 2006.
16 Seria necessário mais espaço para falar a respeito dos papéis desempenhados por Zé Maria – pelo CEAA – junto a diplomatas do Itamaraty, que ele via como quase sempre despreparados e inseguros, naquele contexto das conferências de descolonização entre os militares portugueses e os comandantes dos exércitos de libertação. Isso será brevemente abordado adiante. Permanece viva a emocionalidade e a euforia com que eram recebidos seus telegramas, cartas, e raros telefonemas. Sobretudo seus relatos vibrantes encantavam aos membros do CEAA e convidados, logo que voltava, e em muitas outras oportunidades fortuitas. Reverbera na memória de antigos pesquisadores e outros participantes sua familiaridade e intensidade ao relatar os diferentes aportes dos personagens principais naqueles contextos, e ao analisar suas motivações e posturas em quadro tão dinâmico, denso e complexo.
17 Nascida em Aracaju, em 1942, e falecida no Rio de Janeiro, em 1995, Beatriz Nascimento formou-se em História na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1971. Foi uma intelectual e articuladora eficaz e atenta junto à militância negra, nos inícios dos anos de 1970. Era como uma “tutora” do grupo de estudantes da UFF que criou o Grupo de Trabalhos André Rebouças e realizou a I Semana do Negro naquela universidade, em 1975. Mesmo tendo buscado a orientação de José Honório Rodrigues – dos mais prestigiados e produtivos historiadores na época – seus esforços de ingressar em pós-graduações (dizia que havia tentado na UFRJ, na USP e na UFF) foram frustrados até ser acolhida por Muniz Sodré, na Escola de Comunicação da UFRJ, em 1994. Hoje é reconhecido seu pioneirismo, entre outras questões, em discussões sobre a condição da mulher negra, e na conceituação das favelas como “quilombos urbanos”. Fundamental conhecer mais, na obra de Alex Ratts, Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento , São Paulo: Imprensa Oficial; Instituto Kuanza, 2006 . https://www.imprensaoficial.com.br/downloads/pdf/projetossociais/eusouatlantica.pdf
18 A propósito, em 1969, o samba-enredo do Grupo Recreativo Escola de Samba (GRES) Imperatiz Leopoldinense (de Carlinhos Sideral e Mathias de Freitas), falava em “Brasil, flor amorosa de três raças”; no mesmo ano, o GRES Imperio Serrano desfilou com o enredo “Heróis da Liberdade” (de Mano Décio da Viola e Silas de Oliveira). Ambas são escolas tradicionais e das mais importantes, no Rio de Janeiro, e ambos são sambas-enredo antológicos. De diferentes maneiras repercutiam a ansiedade de amplos setores da sociedade brasileira, especialmente entre as grandes maiorias negras, que no ano anterior – quando foram escolhidos os enredos – haviam se manifestado contra injustiças, preconceito e discriminação racial, oitenta anos depois da abolição da escravidão.
19 Zé Maria, em suas memórias ao CPDOC cita Carlos Aberto Medeiros, Paulo Roberto dos Santos, José Ricardo D’Almeida, Yedo Ferreira e Amauri Mendes. Mas Irani Maia Pereira, Vera Mara Bragança Teixeira, Lincon Peixoto dos Santos, Carlos Alberto de Oliveira (Carlão, não o futuro deputado), entre outros, também estavam sempre por lá.
20 Pessoas assíduas no CEAA contam do orgulho de Cândido Mendes e de Zé Maria quando o Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência e legitimidade do novo governo angolano – era conhecida sua (e de Zé Maria) proximidade e parceria com o embaixador Ítalo Zappa, um dos diplomatas brasileiros mais progressistas, cujas posições e intervenções teriam sido decisivas para aquela posição oficial brasileira. A mesma foi vista como inusitada, pois, até ali, o Brasil sempre apoiara ou se omitia em votações contra o colonialismo português na Organização das Nações Unidas. Adiante aquele embaixador consolidaria sua excepcional carreira, representando o Brasil, em alguns dos mais desafiadores contextos revolucionários da época – Moçambique, China, Cuba e Vietnã.
21 Essa era a postura ostensiva da diretoria do IPCN naquele período – Yedo Ferreira, Suzete Paiva dos Santos e Amauri Mendes Pereira, e um grupo ativíssimo que incluía Aderaldo Pereira dos Santos (o Gil), Azoilda Trindade, Cecília Luíz de Oliveira, Carlos Roberto dos Santos, Pedrina de Deus, Estela Costa Monteiro, Adélia Azevedo Antunes e Oir do Nascimento, e outros que falha a memória. A abertura total à militância negra (em termos de ocupação de espaços para reuniões e outras necessidades) não era bem aceita por muitos associados. Eram comuns as discussões sobre o perfil e estratégias a serem seguidas pelo IPCN e pelo conjunto do Movimento Negro. O fato é que a militância mais participativa, em diferentes grupos do Rio de Janeiro frequentava regularmente o IPCN. Eram exceções os não associados.
22 Cf. Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes , Tese (Livre Docência), Universidade de São Paulo, São Paulo, 1964.
23 Mariza Corrêa, Ilusões da liberdade , Bragança Paulista: Ed. Universidade São Francisco, 1998, p. 313.
24 Comunicação pessoal (correspondência eletrônica), 8 mar. 2013.
25 Carlos A. Hasenbalg, “Discurso sobre a raça: pequena crônica de 1988”, Estudos Afro-Asiáticos , n. 20 (1991), p. 193.
26 Essa discussão foi feita em uma mesa redonda intitulada “Materialismo Histórico e a Questão Racial”, da qual participaram Wilson do Nascimento Barbosa (USP), Carlos Hasenbalg (IUPERJ), Octávio Ianni (USP) e Muniz Sodré (UFRJ). Esta mesa e mais uma, intitulada “Prática Política e Questão Racial”, da qual participaram Luiz Werneck Vianna (IUPERJ), Wilson do Nascimento Barbosa (USP), Apolônio de Carvalho (PT), e Joel Rufino dos Santos (na época no CEAA), ocorreram no âmbito do seminário “O pensamento de esquerda e a questão racial”, realizado no CEAA, em 16 e 17 de outubro de 1985.
27 Justiça seja feita a mais uma exceção: Lúcia Helena Garcia de Oliveira; Rosa Maria Porcaro; Tereza Cristina Nascimento Araújo, O lugar do negro na força de trabalho , Rio de Janeiro: IBGE, 1985 – o texto original foi apresentado pelas pesquisadoras no IPCN, em 1981. As autoras procuraram a instituição e debateram seu trabalho com a militância negra, antes da publicação. https://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-catalogo?id=284660&view=detalhes
28 Hector Fernando Segura-Ramirez, Revista Estudos Afro-Asiáticos e Relações Raciais no Brasil: elementos para o estudo do sub-campo acadêmico das relações raciais no Brasil , Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Universidade de Campinas, Campinas, 2000, p. 56 . https://hdl.handle.net/20.500.12733/1588385
29 Carlos A. Hasenbalg, Discriminação e desigualdades raciais no Brasil , São Paulo: Graal, 1979. Um mergulho no “espírito” do texto de Segura Ramirez poderia interrogar sobre certa reticência do autor, induzindo um “julgamento” – parece que ele quase “condena” Hasenbalg como arbitrário – da obra e da ação de Hasenbalg à frente do CEAA. Seria bom ou ruim tamanha influência? Isso não fica explícito.
30 Peter Fry, antropólogo e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, foi decisivo para que Hasenbalg assumisse o comando do CEAA, e por consequência para que os estudos desse autor passassem a fundamentar as demandas do Movimento Negro, incluindo a conquista das ações afirmativas e cotas. Fry, posteriormente, já na virada do século, se tornou um dos mais fervorosos críticos das políticas de cotas. Quem diria, deu uma de “aprendiz de feiticeiro”!
31 Seria um bom exercício identificar negros e brancos na equipe do CEAA ao longo do tempo. Por fotos, ou em listas nos Estudos Afro-Asiáticos, folders da instituição, ou ainda nas memórias de pessoas de frequência regular, capazes de fazer a identificação. Não havia outro centro acadêmico tão “escurecido”.
32 Isso consta de um relatório do Comando da Marcha Contra a Farsa da Abolição, Rio de Janeiro, 11 maio 1988. Ver “CULTNE – A Marcha e a Farsa – 1988”, Youtube . https://www.youtube.com/watch?v=y74IDa8KyXc
33 Já na segunda década deste século, apesar de muitos esforços de busca, foi impossível localizar e resgatar arquivos, documentos, fotos e fitas de gravação de pesquisas importantes de pesquisadores do CEAA, a exemplo daquela realizada por Joselina da Silva e Amauri Mendes Pereira, sobre a participação brasileira na III Conferência Mundial Contra o Racismo e Intolerâncias Correlatas, em Durban, em 2001.
34 Vale lembrar o fato, que soa como anedota, de que o acervo de África do CEAA (que se jactava de ser o mais completo do Brasil) ficou muito reduzido quando Zé Maria se afastou das atividades regulares na instituição e levou muitos dos seus livros para casa. Seu pequeno apartamento na Rua das Laranjeiras, n.º 1, 4º andar, passou a abrigar provavelmente o mais completo acervo brasileiro sobre África, pelo menos até o incremento dos Estudos Africanos, no Brasil, já avançado o século XXI. Segundo a professora Luena Pereira, filha de Zé Maria, este acervo está atualmente sob a guarda do professor Marcelo Bittencourt, na UFF.
35 Hasenbalg, “Discurso sobre a raça”, p. 193.
36 A existência e continuidade do curso, presencial até 2011, decorreu da visão e do empenho de Zé Maria. Ele projetou o curso, foi o coordenador geral, e atuou junto ao governo federal, em Brasília, para obter financiamento – inclusive com bolsas de estudos. Juca Ribeiro, militante do Grupo de União e Consciência Negra (GRUCON), e, mais tarde, assessor do Deputado José Amorim, do Partido Progressista, autor da primeira lei de cotas para universidades estaduais do Rio de Janeiro, foi um dos bolsistas da primeira turma. Também foi bolsista Denise Barbosa de Souza, destacada militante do Movimento Negro Unificado (MNU).
37 Alentada discussão e referências fundamentando essa análise se encontra em Amauri M. Pereira, Para além do racismo e do antirracismo: a produção de uma cultura de consciência negra na sociedade brasileira , Itajaí: NEAB-UDESC; Editora Casa Aberta, 2013; e Trajetória e perspectivas do Movimento Negro brasileiro , 2ª ed., Belo Horizonte: Nandyala, 2008.
38 O CONNEABs-Consórcio Nacional de Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros, em 10.06.2020, tinha 170 NEABIs e grupos correlatos. Informação do prof. Cleber Vieira (UNIFESP), presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as) (ABPN), que foi Coordenador Nacional do CONNEABs.
39 Fernando Rosa Ribeiro, “Ideologia nacional, Antropologia e ‘questão racial’”, Estudos Afro-Asiáticos , n. 31 (1997); Lívio Sansone, “Um campo saturado de tensões: O estudo das relações raciais e das culturas negras no Brasil”, Estudos Afro-Asiáticos , ano 24, n. 1 (2002).
* Esse artigo foi inicialmente construído com base em anotações para uma publicação comemorativa dos quarenta anos do Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA), “o mais antigo e o mais importante Núcleo de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros, no Brasil”. Nas décadas de 1970 a 1990, o CEAA era a mais visível “porta de entrada” para africanos e interessados em África e relações raciais no Brasil. O centro publicou uma revista acadêmica de referência internacional, formou inúmeros pesquisadores, realizou cursos, eventos nacionais e internacionais, e acolheu a militância do movimento negro. Longa e intensa vivência, desde os primórdios, guiou a pesquisa bibliográfica e documental. Além disso, me vali de conversas com antigos parceiros e pesquisadores. A publicação não aconteceu, e retomo agora este texto com a motivação de homenagear os professores José Maria Nunes Pereira (1937-2015), criador do CEAA, e Carlos Hasenbalg (1942-2014), que assumiu a direção de 1986 a 1996. Penso que é uma iniciativa útil, nesse momento em que a questão racial “explode” nacional e globalmente, e está chegando a duas centenas o número de Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABIs), em universidades de todo o país, em torno dos quais se mobiliza uma crescente militância antirracista.
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