Artigo
Recepção: 16 Setembro 2022
Aprovação: 20 Março 2023
DOI: https://doi.org/10.9771/aa.v0i67.51073
Resumo: Nosso objetivo é analisar o envolvimento de indivíduos pardos com a devoção de uma santa africana, a Santa Efigênia, na Irmandade do Rosário dos Pretos do Alto da Cruz, em Vila Rica. A análise tem como base, especialmente, os documentos da tesouraria da confraria e o Livro dos Brancos, bem como as trajetórias de vidas e redes sociais de pardos da confraria. Percebemos que o investimento nas celebrações desta irmandade revela que o sodalício do Alto da Cruz elegeu a invocação de Santa Efigênia como símbolo principal de sua sociabilidade. Os irmãos pardos, aos quais nos referimos como beneméritos, tiveram atuação decisiva. O investimento votivo de pardos livres ou libertos na celebração de Efigênia tanto representou uma tentativa de demonstração de ascensão e prestígio social, a partir de uma comunidade negra, como, ao mesmo tempo, conferiu a esta solenidade um caráter de autonomia e mobilidade frente aos estigmas do escravismo.
Palavras chave: Escravismo, Religiosidade, Irmandades, Vila Rica, Santa Efigênia.
Abstract: This paper analyzes the involvement by pardos in the devotion of an African saint, Saint Iphigenia, in the Irmandade do Rosário dos Pretos do Alto da Cruz, in Vila Rica. The analysis is based, in particular, on documents of the confraternity’s treasury, and a record book entitled Livro dos Brancos, as well as the life trajectories and social networks of pardos who belonged to the brotherhood. We noticed that the investment in the celebrations of this brotherhood reveals that the Alto da Cruz sodality chose the invocation of Santa Efigênia as the main symbol of their sociability. Pardos, who we refer to as beneméritos [patrons], played a decisive role. The important presence of free and freed pardos in the worship of Iphigenia highlighted their social ascension and prestige in the black community at the same time bringing a sense of social autonomy and mobility, without the stigma of slavery, to the way the devotion to the saint was perceived.
Keywords: Slavery, Religiosity, Lay brotherhoods, Vila Rica, Saint Iphigenia.
Em 1754, a rainha Dona Maria I concedeu provisão a um Compromisso que fora escrito vinte e um anos antes, em 1733. O documento lido pela monarca, entretanto, referia-se a uma instituição ainda mais antiga. A escrita de um novo Compromisso foi justificada pelos irmãos mesários daquela irmandade devido ao fato de que o documento original havia sido “comido pelas baratas”. Uma das testemunhas que foi consultada para que se justificasse a petição de envio do Compromisso à rainha disse1
que a dita Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos pretos fora ereta na matriz de Antônio Dias com autoridade, provisão, compromisso e aprovação do ilustríssimo e reverendíssimo senhor bispo deste bispado Dom Francisco de Jerônimo, o que tudo sabe por ver as ditas licenças e compromisso [...].2
De todos os vinte e três capítulos remetidos à Dona Maria I, a dita rainha, posteriormente, vetou o décimo quarto (entre outros), exigindo que este fosse modificado e que a sua ordem fosse cumprida. Certamente, incomodou-se a rainha com o conteúdo tão pretensioso por parte dos africanos, regedores daquela irmandade. O décimo quarto capítulo, entre outras coisas, dizia que3
em razão de não ter concorrido a Mãe [Matriz] com coisa alguma, se não pagará nada ao dito Pároco [...] e será só sujeita no temporal aos Doutores, corregedores e no Espiritual ao Excelentíssimo e Reverendíssimo Bispo, e ao seu Padre Capelão, o qual na mesma fará todas as ações de Festividades [...], pois tem mostrado a experiência as continuadas desordens, que os Vigários fazem e promovem tudo a benefício do seu interesse [...].4
Com muita clareza, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do Alto da Cruz de Vila Rica demonstrou em seu Compromisso a pretensão por livrar-se, sempre que possível, da atuação do pároco da freguesia de Antônio Dias, ficando o capelão da irmandade responsável pelas atividades eclesiásticas da instituição. Dona Maria I tratou de tolher a autonomia pretendida pelos irmãos e reafirmar a necessidade do pároco para presidir as atividades que a ele competiriam. Ao longo do século XVIII, no entanto, diversas vezes a Irmandade esteve em litígio com o pároco, por tentar manter-se independente de sua atuação.5
Já no sétimo capítulo do Compromisso, que dispõe sobre o cargo da tesouraria, os irmãos ressalvaram que
O irmão Tesoureiro será eleito um homem Branco [...] de boa conduta e zeloso, mas caso que este não queira aceitar, poderão os Irmãos convocarem uma Mesa Redonda, e nela elegerem outro [...]; e caso que na Irmandade haja, como há, pretos estabelecidos, abundantes [zelosos] poderão tão bem serem eleitos para o dito emprego.6
Era comum e recomendado que os irmãos que ficassem responsáveis pela tesouraria das irmandades de negros fossem brancos e abastados, porque assim se evitariam os possíveis desvios.7 No Rosário do Alto da Cruz, entretanto, os irmãos trataram de evidenciar o potencial de seu sodalício, que contava com indivíduos de cabedal suficiente para a ocupação do cargo, ainda que fossem pretos. A mesma ressalva se fez no capítulo 3º do mesmo Compromisso, a respeito do cargo de escrivão. Deveria ser “branco, ou algum irmão ainda que Preto, que sentiam cabal inteligência para o dito emprego”.8
A Irmandade do Rosário do Alto da Cruz, desde quando se retirou de um altar lateral da matriz da freguesia de Antônio Dias e iniciou a construção de sua própria capela (em 1733), enredou tentativas para angariar maior grau de autonomia. Já na década de 1730, parece que podia haver irmãos africanos suficientemente letrados e abastados para ocupação dos cargos de tesoureiro e escrivão. Se ainda não houvesse à época, previu-se no estatuto da irmandade que, futuramente, haveria irmãos africanos bem estabelecidos e que estes poderiam ocupar, inclusive, os cargos tradicionalmente atribuídos aos brancos. Ficaria, assim, sob a guarda dos irmãos pretos todo o gerenciamento da confraria.
Não surpreende, portanto, que o Rosário do Alto da Cruz tivesse sido palco de conflitos confraternais, do surgimento de narrativas mitológicas, e da evolução de um culto que acabou por disputar espaço com a tradicional devoção de Nossa Senhora do Rosário, orago da capela. Este ambiente, que logo cedo demonstrou ser formado por irmãos dispostos a enfrentarem autoridades eclesiásticas e congêneres confrarias, possibilitou o desenvolvimento de uma devoção que, conforme mostraremos, se tornou expressão pública de sua autonomia.
A primazia de Santa Efigênia em relação às demais devoções da capela, e em relação à própria padroeira da irmandade indica ter havido no Alto da Cruz um movimento votivo em favor da santa africana, que pode ter sido iniciado pelos irmãos pretos, mas que teve dos pardos livres ou libertos o investimento derradeiro para se tornar a invocação referencial desta confraria. Tal mudança no padrão das categorias sociais investidoras na celebração de Santa Efigênia (de pretos cativos para pardos libertos), no entanto, não será aqui analisada à luz das disputas étnicas ou unicamente identitárias, recorrentemente exploradas pela historiografia. Chamaremos atenção para a condição jurídica dos sujeitos (de pretos cativos para pardos libertos) como determinante para o investimento na celebração da santa princesa africana. Pois a característica combativa ostentada pelo Rosário do Alto da Cruz, desde o seu Compromisso de 1733, permitiu a constituição de um ambiente de sociabilidade que pôde atribuir aos pardos beneméritos o crivo da mobilidade social fluida e sem constrangimentos.
Da diversidade devocional à primazia de Efigênia
Na década de 1730, o Rosário do Alto da Cruz viu crescer seu sodalício. O Livro de Receita e Despesa desta irmandade, que contempla os anos de 1726 até 1798, atesta o crescimento não só do sodalício, como da irmandade enquanto instituição religiosa - ambos os processos de evolução estiveram, obviamente, intimamente relacionados. Este documento é minucioso na descrição das entradas e saídas dos cofres da confraria, pelo menos até 1784 quando, na gestão do ouvidor Tomás Antônio Gonzaga, a modalidade de registro foi alterada, ficando anotados apenas os valores absolutos.9
É possível constranger o aumento demográfico de Vila Rica oriundo do tráfico atlântico com o processo de crescimento do Rosário do Alto da Cruz. Pois esta irmandade, já na década de 1730, havia se tornado importante reduto da sociabilidade negra na freguesia de Antônio Dias.10 Um dos livros de registro produzido pela confraria permite a observação da sua composição demográfica, em linhas gerais: analisando o Abecedário de Irmãos do Rosário do Alto da Cruz, confirmamos que esta irmandade foi, de fato, uma das mais populosas em número de irmãos, nas Minas Gerais e também na América Portuguesa, pois congregou cerca de 3800 irmãos entre 1770 e 1810.11
Constrangendo estes dados demográficos com os valores do Livro de Receita e Despesa, vemos que o crescimento demográfico da irmandade se traduziu também na sua diversificação devocional: o número de celebrações votivas realizadas pela confraria cresceu progressivamente. Uma vez que as festividades religiosas tinham a função de expor e celebrar publicamente os acontecimentos que fossem importantes para uma determinada comunidade, a diversificação de um grupo (em termos de composição étnica e social, neste caso) acabava ampliando e tornando múltiplas as representações presentes na celebração pública. Neste sentido, a escolha de determinados signos por parte dos indivíduos diaspóricos revelava a interação destes com o novo ambiente de sociabilidade, e com as novas necessidades de representação diante de uma coletividade.
Em 1727, foi registrado “o que se despendeu com a festa de Nossa Senhora”.12 Nos dois anos seguintes, o documento indica apenas a data da festa com a qual foram gastos os valores registrados, não menciona as devoções celebradas. Nestes anos, pagou-se pela exposição do sacramento, sermões, incenso, cera para as velas, músicos, entre outros gastos. De 1729 para 1730, o mesmo livro apresenta, entre os gastos do período festivo, o pagamento pelos sermões dedicados a São Benedito e a Santo Antônio do Notto. Em 1731, o registrador fez anotação “do ouro que se gastou nas festas de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito”. No ano seguinte, constam entre os gastos quatro sermões, “dois de Nossa Senhora e dois de São Benedito”. Em 1737, a confraria fez encomenda de uma imagem de Santa Efigênia. Já na década seguinte, em 1743, toda a receita foi agrupada como o “ouro que se tirou nas quatro festas assim como nas ditas festas no dia da posse dos nossos oficiais, bacias, anuais de defuntos, aluguéis de casa”, indicando que neste período já havia se consolidado a composição mais duradoura do calendário festivo: quatro dias de celebrações, cujas devoções festejadas eram respectivamente Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santo Antônio do Notto, Santa Efigênia e Santo Elesbão.
Também na década de 1730, quando observamos a ampliação do quadro devocional da confraria, a mesma irmandade registrou gastos com a encomenda de livros “para se assentar os irmãos novos”, o que sugere ter havido maior procura pela irmandade neste período. Ao analisarmos o crescimento demográfico da Vila na primeira metade do século XVIII, compreendemos bem o aumento do número de ingressos. A exploração aurífera atraiu forasteiros da América Portuguesa e do Reino, que migraram para as Minas Gerais. A mão de obra utilizada largamente foi a cativa africana, o que fez aumentar sobremaneira o volume do tráfico atlântico de escravizados em direção aos portos brasileiros. Também os africanos já estabelecidos na colônia foram enviados para as Minas, de Salvador e do Rio de Janeiro.13
Diferente do que ocorreu em outras vilas e cidades, em Vila Rica, a diversidade demográfica das confrarias do Rosário, que resultou na sua diversificação devocional, não viabilizou a constituição de irmandades independentes. Nesta vila, as devoções mantiveram-se abrigadas sob os Compromissos dos Rosários. No Rio de Janeiro, por outro lado, a Virgem do Rosário e São Benedito intitulavam uma irmandade, ao passo que Santa Efigênia e Santo Elesbão nomeavam uma confraria distinta. Em Mariana, havia uma irmandade do Rosário, em cuja capela eram abrigadas também a irmandade de São Benedito e a irmandade de Santa Efigênia. No Alto da Cruz, entretanto, a ampliação e diversificação do sodalício, embora não tivesse promovido a saída de alguma devoção específica do templo, acabou por gestar uma preferência devocional diferente daquela que intitulava a confraria.
É o que fica em evidência quando voltamos à análise do Livro de Receita e Despesa. Se, até 1743 o Rosário do Alto da Cruz ampliou seu quadro de devoções cultuadas nos altares da capela que estava sendo construída, a partir de 1746 a instituição identificou em seus registros financeiros as esmolas amealhadas em cada dia festivo, correspondente a cada devoção. Na notação das receitas dos anos de 1746, 1747 e 1748, foram discriminados os valores angariados em cada dia solene, de acordo com a doação de cada juiz (de eleição ou de devoção) responsável por determinada festividade, além dos valores arrecadados nas caixinhas.
Tais juízes não ocupavam cargos de direção da confraria. Com a responsabilidade de organização e investimento nas festividades do santo escolhido, os juízes e juízas de santos doavam esmolas de acordo com suas preferências devocionais. Na segunda metade do século XVIII, os juizados por devoção teriam se generalizado, aumentando as importâncias auferidas pelas devoções, independentemente dos juízes de santos eleitos. As contribuições espontâneas, que podiam simbolizar o cumprimento de promessas ou a demonstração da fé, evidenciavam, portanto, as preferências devocionais do sodalício. 14
Múltiplas são as justificativas para as históricas associações entre determinadas categorias sociais e as tradicionais invocações religiosas. Importante é lembrar o papel decisivo do proselitismo católico, que se esforçou pela conversão e manutenção da fé desde, sobretudo, o Concílio de Trento. Aos africanos escravizados e seus descendentes, os santos de tez retinta ou de origem africana lhes serviriam como modelos de superação da mancha de origem, e alcance da vida eterna. Outras associações entre grupos sociais e devoções se deram em função dos ofícios manuais desempenhados pelas diferentes categorias sociais e que, no caso da América Portuguesa, estiveram também relacionadas à cor da pele ou à origem dos sujeitos.15
Mas é bastante evidente que tais associações entre invocações religiosas e grupos sociais não ocorreram de modo uniforme. A sociabilidade oriunda das devoções cultuadas, com destaque para as devoções das pessoas escravizadas e de seus descendentes, não apresentava fronteiras intransponíveis.16 Pois até mesmo as categorias sociais, especialmente nos ambientes urbanos, eram fluidas e podiam ser reconfiguradas a partir do contraste. Neste sentido, os espaços confraternais, embora fossem regulados por estatutos, representavam ambientes de disputa e de construção dos significados das categorias sociais e, por consequência, de suas devoções pessoais e coletivas. 17
Na sociabilidade interna da confraria e na expressão pública na vila, o investimento material na celebração das devoções fornecia aos juízes de santos a possibilidade de atuação concreta em um momento de grande visibilidade da irmandade. Através de suas esmolas, os juízes de santos entravam no jogo das disputas representativas das irmandades, gerando tensões também sobre os significados dos cultos e das categorias sociais envolvidas.
Somando-se às doações dos juízes de santos as das caixinhas das devoções, em 1746, Nossa Senhora do Rosário angariou, com folga, o maior valor de esmolas. Os santos anexos arrecadaram porções de pouca disparidade entre si, o que evidencia certo equilíbrio entre as devoções. Dois anos depois, no entanto, a receita arrecadada pela padroeira da irmandade decaiu, embora ainda superasse os montantes individuais dos santos anexos. Naquele ano não houve menção à festa de Santo Antônio do Notto, o que resultou em nenhum somatório de esmolas arrecadado por esta entidade. Os devotos se dedicaram, então, às doações para São Benedito, Santa Efigênia e Santo Elesbão. O primeiro arrecadou 27% da receita oriunda das devoções da capela, enquanto Efigênia e Elesbão, juntos, somaram 37%. Deste montante, Efigênia, sozinha, arrecadou 66%, mantendo a posição de preferência entre os fiéis do último dia festivo, o que já havia sido notado em 1746.
A partir de 1749, foram agrupados os rendimentos dos dias festivos, sem discriminação dos valores doados por cada juiz ou arrecadados pelas caixinhas de cada devoção. Assim, a preferência por Efigênia, identificada nos valores arrecadados em 1746 e 1748, diluiu-se no montante angariado também por Elesbão.
A composição da receita das devoções percebida em alguns anos da década de 1740, como mencionamos, tendeu a se consolidar na década seguinte. O Quadro 1 mostra que, durante a década de 1750, já é possível observar o destaque do último dia do calendário de celebrações. Nossa Senhora do Rosário, que inaugura o período de solenidades, arrecadou menos recursos em seu dia de celebração, se compararmos com o dia de encerramento do calendário festivo. Já na década de 1750, o primeiro e o último dia de festas da Irmandade do Rosário do Alto da Cruz eram os que mais angariavam recursos. Fato curioso é que em todos os anos daquela década a celebração dedicada à Efigênia e a Elesbão foram sobressalentes à padroeira em arrecadação material.

À luz do que fora observado poucos anos antes do início da década de 1750, é possível supor que os valores arrecadados no último dia festivo correspondiam às doações recebidas por Santa Efigênia, e não às recebidas por seu par, Elesbão. A observação dos anos posteriores tende a confirmar esta suposição.
Para as décadas de 1770 e 1780, por exemplo, Anderson de Oliveira percebeu que Efigênia não só superou os demais santos anexos na arrecadação de esmolas no Rosário do Alto da Cruz, como também rivalizou com Nossa Senhora ao angariar maior porção de esmolas a partir de 1772 e, pelo menos, até 1783.18 Também sobre este tema, Tarcísio de Souza Gaspar identificou, no mesmo Livro de Receita e Despesas, a progressiva ascensão de Efigênia em relação às demais devoções anexas e à Virgem do Rosário, ao afirmar que
Muito embora a capacidade arrecadatória dos juizados e os valores levantados por cada um tenham decaído em todas as devoções, frutos da retração econômica geral vivenciada na segunda metade da centúria, a importância relativa das cinco invocações confessionais se alterou no interior da irmandade. Até princípios da década de 1770, a Virgem do Rosário manteve primazia como a devoção de maior vulto econômico dentro da confraria. Contudo, a partir de 1772, essa condição foi assumida pela santa etíope, única invocação devocional capaz de apresentar crescimento orçamentário em princípios da década de 1780, enquanto os outros visivelmente regrediam.19
À diferença de Oliveira e de Gaspar, nós chamamos atenção também para os anos anteriores a 1770. Os somatórios de esmolas auferidas por Efigênia e Elesbão durante a década de 1750 já se mostravam superiores aos montantes dedicados a Nossa Senhora do Rosário.20
É fato que, se observarmos o volume médio das arrecadações, em relação ao número de devoções (5 invocações), a padroeira da confraria ganharia, com folga, o local de preferência dos irmãos. Entretanto, o que parece se impor como exercício constante para os pesquisadores que lidam com esta irmandade é a ousadia das suposições sobre as lacunas documentais constitutivas de seus livros. Uma análise fria destes dados impossibilitaria identificar a gestação do culto dedicado à Efigênia já em meados do século XVIII: ainda que dividisse o último dia de celebração com Santo Elesbão, Efigênia demonstrou de forma clarividente a preferência do sodalício do Alto da Cruz por sua celebração nas décadas finais da centúria; o que nos leva a supor, com bastante segurança, que essa primazia pode ter sido vivenciada já na década de 1750.
De um processo de crescimento desde meados do século, para uma evidente consolidação nos Oitocentos - é o que sugere Gaspar ao se utilizar da interpretação de Alessandro Dell’Aira a respeito da litografia feita por Rugendas, conhecida como a retratação da Festa de Nossa Senhora do Rosário, provavelmente em 1825 (Figura 1). Dell’Aira aponta indícios de que a festividade apresentada pelo viajante se referiria à comemoração realizada no encerramento do calendário festivo da Irmandade do Alto da Cruz, ou seja, a festa de Santa Efigênia e de Santo Elesbão.21 Para Tarcísio de Souza Gaspar, Rugendas “teria optado deliberadamente pelo evento mais concorrido e mais importante” dentre os promovidos pela confraria.22 Já nesta época, a primazia de Efigênia havia-se tornado patente em número de juízes atraídos e de esmolas auferidas.

Chama a atenção que Rugendas tenha intitulado sua obra conferindo à Virgem do Rosário o título de patrona dos negros. Dificilmente esta intitulação seria alvo de críticas dos europeus e demais interessados na obra de Rugendas, a não ser aqueles que estivessem ambientados na complexa dinâmica devocional que se instalou no Alto da Cruz. Naturalmente, supunha-se, o brilhantismo representado na litografia e a escolha do viajante retratariam a celebração daquela que incentivou que “os negros se tornem rapidamente cristãos convictos e que todas as recordações do paganismo se apaguem neles ou se pareçam odiosas”.23 Ao que tudo indica, entretanto, Efigênia e Elesbão eram as devoções mais prováveis a receberem as atenções do sodalício, e suas respectivas esmolas naquele ano de 1825.
Poucos anos mais tarde, teria sido possível identificar na documentação da irmandade a consolidação de Efigênia como devoção principal a ser alvo do investimento dos irmãos. Conforme indicou Tarcísio Gaspar e, segundo confirmamos, o ano de 1832
marca o último ano administrativo em que o tesoureiro responsável pelo registro e esmolas pagas à irmandade preocupou-se em discriminar o vínculo ou a intenção devocional de juízes e doadores. Desde então, a notação dos recursos entrados no sodalício omitiu toda e qualquer referência confessional, generalizando-se uma escritura padrão diferente da verificada desde 1746. Não é difícil explicar o motivo dessa transformação. Num meio onde quase todos os irmãos eram devotos de Santa Efigênia, a identificação sistemática do elo devocional perdeu o sentido que possuía e tornou-se procedimento burocrático anacrônico.24
Com isso, não estamos dizendo que Nossa Senhora do Rosário teria deixado de figurar no imaginário devocional dos irmãos do Alto da Cruz. Por outro lado, não se pode deixar de observar que há certa contradição entre aquela que Rugendas entendeu como patrona dos negros e a interpretação renovadora de Dell’Aira. Novamente, levanta-se a questão: quais circunstâncias teriam privilegiado o protagonismo de Efigênia?25
Anderson de Oliveira sugere pelo menos duas causas para o engrandecimento do culto dedicado à princesa africana em Vila Rica. A primeira delas se justifica na natureza feminina de Santa Efigênia, que remeteria diretamente à figura mariana. A invocação à Virgem Maria tradicionalmente foi relacionada ao socorro dos fiéis, como intermediadora por excelência entre os cristãos e as benesses divinas. Associadas às figuras de provimento e proteção, “as mulheres, principalmente nos setores mais pobres da população, desempenharam papéis de provedoras das necessidades cotidianas e de chefes de domicílio, este último papel sendo assinalado inclusive nas famílias pertencentes à elite”.26 Neste contexto, teria se desenvolvido o culto à Efigênia como figura feminina intermediadora.
Outra interpretação mais aguçada sobre o fenômeno ao qual temos nos dedicado neste texto é oferecida pelo autor quando afirma que é possível observar em diferentes culturas africanas a importância das mulheres no comércio e na transmissão de valores e técnicas aos descendentes. Além disso,
Efigênia poderia consolá-los e protegê-los com maior conhecimento de suas causas e padecimentos, pois o patronato da santa, neste aspecto, refletia não só o simbolismo da mãe protetora e consoladora, mas também a ideia do parentesco ancestral que se reconstruía nas recordações da figura feminina transmissora de valores e igualmente protetora, presente em diversas sociedades africanas.27
Da hipótese de Oliveira, subentende-se que o protagonismo de Efigênia nas irmandades do Rosário em Vila Rica simbolizaria a evolução e permanência de tradições africanas, que chegaram às Minas no início do XVIII, e reconfiguraram-se até o século seguinte. A devoção à princesa africana significaria, portanto, a apropriação da catequese católica pelos negros, que acabaram por enganar o viajante europeu, celebrando mais vivamente uma santa-princesa africana, a despeito da “devoção branca de homens negros”, representada por Nossa Senhora do Rosário.28 Atribui-se a evolução deste culto, especialmente, aos pretos e crioulos que, num esforço por reconfiguração de suas identidades, buscaram numa representação feminina negra o estandarte de seus passados africanos. Esta hipótese é tensionada quando identificamos o determinante investimento dos irmãos pardos do Rosário do Alto na Cruz nas celebrações de Efigênia, através de um documento ainda pouco analisado pela historiografia, e que permite compreender o desenvolvimento deste culto no interior da confraria e nas dinâmicas urbanas e escravistas que a enredavam.
Efigênia africana por seus devotos pardos
Pelo menos desde a década de 1750, Santa Efigênia foi preferida pelo sodalício do Alto da Cruz, mesmo em relação à Nossa Senhora do Rosário, patrona da capela. Embora o Livro de Receita e Despesas poucas vezes indique a cor ou qualidade dos irmãos que foram juízes de santos, podemos supor que boa parte deles eram pretos, devido à composição demográfica da freguesia à época e devido às características gerais do sodalício do Alto da Cruz.
A partir de 1780, entretanto, um grupo social específico, os pardos, demonstraram forte interesse na festividade de Santa Efigênia e Santo Elesbão, mas sobretudo na devoção à santa africana. É o que se pode notar através do Livro de Entradas e Anuais de Irmãos de 1737-1829, ou Livro dos Brancos.
Este Livro é antigo conhecido da historiografia que se dedicou ao estudo desta irmandade. Mas é perceptível que este documento tem sido tratado como um genérico códice de registro de irmãos. De fato, as características constitutivas desta fonte pouco a diferenciam dos demais livros de entrada desta confraria, em que se registravam os irmãos africanos e seus descendentes. Uma análise mais pormenorizada deste documento, por outro lado, pode apontar para disputas e transformações que ocorreram no interior da confraria, e que se traduziram sutilmente nos registros apresentados pelo Livro, nos encaminhando para compreender o processo de desenvolvimento da devoção de Santa Efigênia. Convém então observar este Livro de forma exaustiva, em busca das sutilezas que historicizam tal fonte.
Entre os irmãos registrados no Livro dos Brancos, aqueles que não indicaram sua condição jurídica somam larga maioria: 479 em relação a uma totalidade de 551 registros. Os escravizados chegaram à cifra de 43 irmãos, sendo a maior parte deles (24) homens. Os forros somaram 20, enquanto os agregados não ultrapassaram 6. Houve ainda 1 irmão que estava preso, e nenhum coartado. Se comparado com outro livro de entradas do Rosário do Alto da Cruz, cuja análise foi apresentada por Anderson de Oliveira, percebemos que o Livro dos Brancos servira ao propósito de registrar os irmãos mais distantes da experiência do cativeiro. Pois, no “Livro dos Homens”, como é conhecido o Livro de Entradas de 1794-1810, o número de escravizados (162) supera amplamente a quantidade de forros (52) e a quantidade de não indicações da condição (35).29 O que nos leva a supor que, no caso do Livro dos Brancos, quando a condição não estivesse demarcada, poderia se tratar do registro de um irmão livre ou que tentava dissimular sua condição. A suposição é bastante segura, se considerarmos que, no interior de uma comunidade marcadamente negra e cativa, o reconhecimento enquanto sujeito branco, ou até pardo, automaticamente o aproximaria da experiência da liberdade. Deste modo, a ausência de registro da condição se justificaria pelo fato de o registro ter sido feito no Livro dos Brancos - qualidade de pessoas sabidamente livres.30
Sobre as qualidades dos irmãos registrados no Livro dos Brancos, nos chama a atenção a presença majoritária dos pardos (106 irmãos, dentre os quais 71 eram mulheres), como já dissemos. Os brancos, que acabaram intitulando o Livro, somaram apenas 18 registros. Os pretos, 17, e os crioulos, 14. Não indicaram sua qualidade 392 irmãos, do total de 551 registros encontrados neste Livro. Se observarmos os registros das qualidades do mesmo ponto de vista metodológico que observamos as condições, tornar-se-ia possível que muitos dos assentos que não indicaram esta informação fossem referentes a indivíduos brancos, omitidos porque esta era a qualidade a que o Livro se destinara inicialmente. É o caso dos registros de Thomaz Antônio Gonzaga e Cláudio Manoel da Costa, entrados em 1789, que não indicaram a qualidade, porém adicionamo-nos ao rol dos brancos por sabermos com certeza que o eram.31
Para que fosse justificado o registro de pardos no Livro dos Brancos, o escrivão ou os próprios irmãos não poderiam optar pela omissão da qualidade: ao contrário, a necessidade de indicação do distanciamento da África e, por consequência, do cativeiro, deveria ser ostentada pelos irmãos registrados no Livro dos Brancos. Por isso, vale a pena constatar que, dentre os 106 pardos registrados neste documento, havia apenas 5 escravizados. Por outro lado, entre os pretos constantes neste Livro, 11 deles eram cativos; entre os crioulos, 10 escravizados. Isto permite dizer que o Livro dos Brancos (catalogado como de 1737 a 1829) não se destinava ao assento de escravizados. A regra teria sido a ausência de notação, tendendo à dissimulação da liberdade ou à consciente omissão da condição.32
Interessa notar, ainda, os períodos de entrada dos irmãos que indicaram sua qualidade social. Na década de 1730, apenas 2 irmãos indicaram sua qualidade: um preto e um pardo. Houve um hiato na indicação das qualidades durante cinquenta anos. Somente depois de 1780 é que se tornou recorrente a notação das qualidades, conforme mostra o Quadro 2. Entre 1780 e 1800, 50 pardos ingressaram na confraria, ao passo que apenas 10 brancos foram registrados. Entre 1800 e 1830, mais 53 pardos entrantes, e 8 brancos. Importa observar que todos os crioulos foram registrados neste Livro apenas no século XIX, e que, à exceção de 2 pretos assentados na década de 1730, todos os demais pretos também tiveram seus registros feitos no Livro dos Brancos apenas no século XIX.

O documento indica certa generalização em relação à categoria social à qual foi inicialmente dedicado: se em 1737 o Livro tinha o propósito de servir ao registro dos irmãos brancos da confraria, a partir de 1780 os pardos passaram a constar nesta lista de forma majoritária; e vinte anos mais tarde, os crioulos puderam ser registrados neste mesmo Livro. O fato sugere, então, que não apenas a qualidade social identificada à ascendência do indivíduo determinaria o modo como os sujeitos seriam reconhecidos na sociabilidade negra do Alto da Cruz. O Livro dos Brancos aponta para a modificação dos critérios de registros que, conforme afirmamos anteriormente, indicam as transformações e disputas sociais internas à confraria. Indicam, ainda, a paulatina ressignificação das categorias sociais produzidas pelo escravismo. A fluidez dos critérios de qualificação, em Vila Rica, se deu em função da diminuição da extração aurífera, do crescimento do número de libertos e de mestiços. Fatores sutilmente percebidos nos registros confraternais.
Por isso, no entanto, não somente a experiência da liberdade ou a ascendência de um pai branco teriam viabilizado aos pardos o registro no Livro dos Brancos, cuja tônica seria a identificação dos irmãos livres ou libertos. O envolvimento destes pardos com os juizados de santos e com outras modalidades de investimento financeiro na confraria teria lhes permitido destaque entre os demais irmãos do Alto da Cruz, e consequente registro no Livro dos Brancos. Mas, sobretudo, o investimento em uma devoção já preferida por este sodalício, desde meados do século XVIII e que, através dos irmãos pardos, finalmente alcançou a primazia indelével entre as demais devoções.
Nem todos os irmãos registrados no Livro dos Brancos atuaram nos juizados por devoção. Os que assumiram estes encargos, no entanto, eram pardos em larga maioria, conforme ilustra o Quadro 3. É interessante notar que os pardos que foram juízes de santos estiveram presentes principalmente no juizado de Santa Efigênia, mas também nas celebrações de Nossa Senhora e de Santo Antônio. Santa Efigênia foi a única devoção que atraiu devotos de todas as qualidades encontradas neste Livro. Entre seus juízes, preponderaram as mulheres como mais frequentes no cargo. Isto permite dizer que, embora os homens somem maior número em relação ao total dos registros (301 homens e 250 mulheres), estas foram mais frequentes nos juizados. O que, talvez, seria suficiente para nos referirmos às Beneméritas de Santa Efigênia? A festa de Santo Elesbão atraiu apenas 1 investidor, crioulo, dentre os registrados no Livro dos Brancos, talvez porque a sua companheira de celebração, Efigênia, tivesse chamado mais a atenção dos irmãos. Também interessa notar que São Benedito não teve entre seus juízes algum irmão pardo, dentre os registrados no Livro dos Brancos. Vale lembrar que São Benedito era tradicionalmente muito identificado aos africanos cativos, assim como Nossa Senhora do Rosário, embora esta, por sua vez, por ser padroeira da capela, não deixaria de atrair devotos.

A análise cuidadosa dos dados quantitativos do Livro dos Brancos e do Livro de Receita e Despesa nos permitiu, até aqui, observar que a devoção por Efigênia crescia desde 1750, quando a irmandade teria sido ocupada em grande maioria por pretos e crioulos escravizados; já em 1780, percebendo o protagonismo que vinha sendo alcançado por Efigênia durante o calendário festivo da confraria, os pardos, sobretudo os pardos livres ou libertos, que podiam ou queriam contribuir com os cofres da irmandade, identificaram na devoção pela santa africana a possibilidade de participarem de modo ativo na sociabilidade do Rosário do Alto da Cruz. O que ainda convém questionar é: por que motivo estes irmãos pardos e pardas mantiveram-se financiadores da festividade de uma devoção de origem africana e de representação retinta?
O questionamento se dá, entre outras coisas, pelo fato de que, na mesma Vila Rica e em seus arrabaldes os pardos tendiam ao distanciamento dos signos que remetessem a uma ancestralidade africana ou a um passado de cativeiro. Em geral, esse grupo buscava, na verdade, o reconhecimento e a valorização de sua categoria social enquanto qualidade específica e valorosa entre os súditos do monarca.34
Ocupada e gerenciada em maioria por homens pardos, a Irmandade do Glorioso Patriarca São José, também de Vila Rica, intentou a valorização e singularização de seu sodalício pardo de forma pictórica: ao se transferir do altar lateral que ocupava na igreja matriz de Antônio Dias, substituiu a representação das ferramentas do ofício de carpintaria, que adornavam o escudo da confraria, por um painel que retratava o casamento de São José com a Virgem Maria. Para Daniel Precioso, que chamou atenção para tal mudança, a escolha pela nova representação imagética teria o propósito de distanciar os pardos da identificação com os ofícios mecânicos (aos quais atribuía-se conotação pejorativa) e aproximá-los do casamento legítimo, cujo símbolo modelar era São José, patriarca da Sagrada Família.35
No Alto da Cruz, entretanto, a sociabilidade da festa de Santa Efigênia parece não ter constrangido os irmãos abrigados sob a categoria parda: ao contrário, estes irmãos buscaram, com efeito, a participação na festa da santa africana. Como exemplo, temos o caso do pardo Calisto José, morador no distrito de Ouro Preto, que se assentou em 1803 nesta irmandade. Atuou no juizado de Nossa Senhora do Rosário em 1828, e por ele pagou 11$312 réis como esmola, além de ter sido também juiz de Santa Efigênia em data desconhecida. Calisto fora registrado como filho do casal Luiz José da Costa e Maria Izabel. Em 1833 doou para a quinta-feira santa a importância de trezentos réis. Podemos considerar este irmão como um dos distintos, ou beneméritos, registrados neste Livro, pois envolveu-se com os juizados e doações para o culto da irmandade, ainda que residisse na freguesia oposta à do Rosário do Alto da Cruz.
A formulação de uma hipótese que vise dar conta do envolvimento dos indivíduos registrados no Livro dos Brancos com o culto dedicado à Santa Efigênia se dará mais seguramente a partir da observação das trajetórias de algumas dessas pessoas. Pretendemos demonstrar que não somente clivagens étnicas internas à confraria teriam contribuído para a primazia de Efigênia, mas também o determinante espectro do cativeiro à liberdade. A sociabilidade da festa de Efigênia, promovida por uma rica irmandade negra, significava naquele espaço compartilhado do Alto da Cruz a possibilidade de ascensão ou o reconhecimento da mobilidade social. Isto teria motivado um Calisto José, morador no distrito oposto ao do Alto da Cruz, a participar da experiência confraternal deste Rosário, e figurar entre o que temos chamado de beneméritos de Santa Efigênia.
Os beneméritos de Santa Efigênia: redes no ínterim da liberdade36
A experiência da liberdade costumava estar associada à categoria parda, especialmente no caso de Minas Gerais. E, de fato, embora tenhamos encontrado entre nossos beneméritos alguns pardos escravizados, a grande maioria dos juízes pardos de Santa Efigênia que indicaram sua condição eram livres ou libertos. Já nos anos 1780, a qualidade parda havia se tornado mais complexa, na medida em que essas pessoas buscavam o reconhecimento de uma categoria social que fosse mais específica. No Livro dos Brancos, percebemos que a indicação da condição social era fundamental, especialmente quando esta podia aproximar o indivíduo da experiência de liberdade.37
É o caso do irmão José Lopes Cordeiro, pardo forro, que entrou no Rosário em 1784, e foi juiz de Santa Efigênia em 1785. José era filho de Rita Lopes da Cruz, e se casou com a crioula Maria Martins Chaves em 1770 na Matriz de Antônio Dias.38 O nome do pai de José não foi citado no registro de casamento, o que nos leva a supor que sua mãe fosse preta ou crioula forra, e que o pai tivesse sido homem branco. Daí José ter sido arrolado como pardo forro no Livro dos Brancos do Alto da Cruz. Sua esposa, por outro lado, não foi encontrada no rol de irmãos do Rosário, mas assentou-se como irmã da confraria das Mercês e Perdões da freguesia de Antônio Dias em 1781. Esta irmandade era um reconhecido reduto da sociabilidade crioula, inclusive porque carregava em seu título e na representação de sua padroeira a qualidade preferida pela confraria.39
É possível que José Lopes Cordeiro tivesse sido irmão de outra irmandade melhor representativa da qualidade de pardos, como era a de São José ou a Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco. Entretanto, na década de 1780, o Rosário do Alto da Cruz, e sobretudo, a sociabilidade da celebração de Santa Efigênia, parecem ter se mostrado a José como um interessante ambiente para conquista de prestígio local, para um indivíduo pardo forro que quisesse demarcar sua condição de liberdade. Aliás, especialmente porque este irmão pôde ser registrado no Livro dos Brancos. Fato que talvez não fosse possibilitado à sua esposa, Maria Chaves, pois, como vimos, apenas no século XIX foram registrados os crioulos neste livro de entradas.
Outro caso é que, em 1816, Joaquim Ferreira Veloso precisou recorrer à Provedoria dos Ausentes de Vila Rica para reclamar o legado do falecido Manoel de Magalhães Gomes. Na qualidade de procurador da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte da freguesia de Antônio Dias, Joaquim Veloso requereu o pagamento de seis mil réis, que Manoel Gomes teria deixado à confraria. O autor pediu que a Provedoria notificasse a viúva e testamenteira de Manoel, Dona Mariana Roiz Fontes, para que se transmitisse o valor à irmandade. A quantia foi entregue ao procurador, pois a viúva acusou ser verdadeiro tudo o que se requeria, e que tudo constava no testamento de seu falecido marido.40
Não somente da confraria da Boa Morte, entretanto, se conheciam o procurador Joaquim Veloso e o falecido Manoel Gomes. Manoel deu entrada no Rosário do Alto da Cruz em 25 de fevereiro de 1802. Já havia sido juiz por devoção de Santa Efigênia em 1789, na modalidade praticada por esta irmandade que permitia a quem não fosse irmão a atuação nos juizados por devoção. Devidamente assentado no Rosário, Manoel foi novamente juiz de Efigênia em 1806, pelo que pagou 16 oitavas. Morreu em 1813, e foi sufragado nesta confraria segundo consta no Livro dos Brancos. Este irmão, assim como outros, esteve envolvido com os juizados do Alto da Cruz, sobretudo com o de Santa Efigênia, e com outras irmandades nomeadamente dedicadas à sua qualidade social, como assim era reconhecida a Boa Morte.
Joaquim Ferreira Veloso, registrado como pardo no Alto da Cruz, por sua vez, atuou em diferentes juizados desde sua entrada na confraria, em 1801. Neste ano, foi juiz por devoção de Santa Efigênia, pagando como taxa de entrada a sua esmola pelo juizado. Em 1804 foi juiz de Santo Antônio, pelo que pagou 7 oitavas. Em 1823, foi juiz de Nossa Senhora do Rosário. Até 1832, devia todas as taxas anuais, desde 1801, totalizando 30 anos.41
Joaquim e Manoel nos ajudam a compreender o papel do juizado de Santa Efigênia no Alto da Cruz. Ambos os homens eram também irmãos da confraria da Boa Morte. Mas não quiseram se manter filiados apenas a uma instituição que lhes dava o público reconhecimento enquanto pardos. Ousaram atuar como financiadores das celebrações do Rosário do Alto da Cruz. Isto porque estas festividades, e, sobretudo, aquela dedicada a Santa Efigênia (a mais suntuosa, conforme registrou Rugendas), no final do século XVIII, já haviam extrapolado suas atribuições étnicas e se tornado ambiente de identificação da liberdade no interior da comunidade negra.
Os assentos do reconhecido músico Gabriel de Castro Lobo e de sua cunhada, Francisca Moreira da Silva, também nos ajudam a observar as celebrações promovidas pelo Rosário do Alto da Cruz como espaços de identificação de uma experiência de liberdade. Gabriel, homem pardo, deu entrada nesta Irmandade em 1812, e em 1822 foi juiz de Nossa Senhora do Rosário.42 Interessante é que, à época de seu assento na irmandade dos negros, Gabriel de Castro Lobo já constava entre os irmãos de uma importante confraria, reconhecida por reunir pardos em Vila Rica: em 1796 entrou na Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula, onde “ocupou por 11 vezes consecutivas entre 1797 e 1808 (com um breve lapso no ano de 1799) o cargo de corretor, que era o principal oficial do Definitório e a pessoa a quem, depois do diretor comissário, todos deveriam respeitar”. Também Francisca Moreira da Silva, mulher parda casada com o furriel Paulo de Castro Lobo, atuou no Rosário do Alto da Cruz, na confraria da Boa Morte e na Ordem Terceira dos Mínimos. No Rosário, foi juíza de Santa Efigênia em 1789; na Ordem Terceira parda, foi prefeita em 1806.43
Para Francisca, filha do pardo Domingos Moreira da Silva, o assento no Rosário do Alto da Cruz e o juizado de Santa Efigênia também satisfizeram a necessidade e a vontade por associação a uma instituição e a um grupo social que lhe identificasse. Isto porque, conforme temos dito, a devoção e celebração de Santa Efigênia no Alto da Cruz (distrito onde Francisca residia com seu marido) fornecia coesão a um grupo de indivíduos livres ou libertos que, não sendo constrangidos pela ancestralidade africana ou de cativeiro associados à tez retinta da santa, se beneficiavam do prestígio público local daquela festividade.
Um caso que elucida de forma exemplar nossa hipótese é o de Gertrudes Alves da Rocha, mulher parda escravizada, que deu início a uma ação de libelo cível em 1822. O procurador foi o advogado Manoel Camillo Carlos Jorge de Mendonça, e por cujo processo respondeu o Alferes Antônio Francisco Ferreira, testamenteiro de seu irmão, o Alferes João Francisco Ferreira. Era réu no processo o Alferes Antônio que acabou se tornando responsável pelos bens e órfão de seu falecido irmão que, por sua vez, respondia como tutor dos bens e órfãos da demente Rosa Alves da Rocha. Esta mulher herdara os bens de Joana da Rocha Campos, falecida em 1789, cujo marido e inventariante era José da Silva Guimarães, falecido em 1795, em Vila Rica.44
A finada Joana da Rocha Campos, segundo é alegado no libelo movido por Gertrudes, possuía uma escravizada, Francisca Crioula, que contava doze anos de idade à época da feitura do inventário da dita defunta. Teria determinado no documento que ficaria liberta a escravizada Francisca Crioula sete anos após a morte de Joana, tempo durante o qual serviria à família. Quatro anos depois do falecimento de Joana, em 1793, Francisca Crioula deu à luz Gertrudes Parda: fato que serviu como principal argumento do advogado de Gertrudes a respeito da natureza de sua condição livre, pois a mulher teria nascido durante o tempo em que a mãe, Francisca Crioula, estava já em vias de encerrar o cativeiro.45
Embora residissem no âmbito da freguesia do Pilar de Ouro Preto, onde lá também havia uma Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, Francisca Crioula e sua filha Gertrudes assentaram-se no Rosário do Alto da Cruz, na freguesia de Antônio Dias - o que não significa que não estivessem listadas também nas irmandades da respectiva freguesia onde residiam com seus senhores. Francisca Alves crioula foi listada no Abecedário de Irmãos como escravizada de Joana Alves, o que sugere a entrada na confraria entre os anos de 1770 (limite inicial do documento) e 1789, quando Joana faleceu. Gertrudes Parda, filha de Joana, também foi arrolada no Abecedário, porém como escravizada de João Francisco. Pudemos encontrar o registro de entrada de Gertrudes no Rosário do Alto da Cruz porque foi feito no Livro dos Brancos. Além disso, Gertrudes figura entre as juízas de Santa Efigênia: moradora na Rua de São José, como escravizada de João Francisco, ingressou na irmandade em 1818, pagando como taxa de entrada a sua esmola pelo juizado da princesa africana.46
Tendo morrido Joana em 1789, seus bens foram transmitidos ao
marido, José da Silva Guimarães. Falecido o José em 1795, o Alferes João Francisco Ferreira passou a responder pelos bens de sua esposa, a demente Rosa Alves da Rocha. Por este motivo, Francisca crioula fora registrada no Rosário do Alto da Cruz (entre 1770 e 1789) como escravizada da então senhora Joana. Em seguida, Gertrudes parda, ao dar entrada na confraria em 1818, já respondia ao tutor de Rosa, o Alferes João Francisco Ferreira. Chegada a morte do Alferes João, em 1822, o seu irmão Antônio Francisco Ferreira passou a responder por seus bens e órfãos, e também como tutor da demente Rosa Alves da Rocha. Neste ano, Gertrudes deu início ao libelo cível em busca do reconhecimento de sua condição de liberdade por natureza.
É afirmado no processo que os herdeiros de Joana da Rocha “mal e indevidamente fizeram batizar a autora por ser escravizada quando sua mãe já estava no meio estado de sua Liberdade”. Consta no libelo a transcrição da verba testamentária de Joana, requerida pela autoria do processo como primeiro documento comprovante do que se afirmava: “pelos bons serviços que tenho recebido da crioula Francisca minha escravizada lhe prometi de meu falecimento daí a sete anos servindo neste casal, a dar por forra e liberta e por esta razão em cumprimento de minha promessa peço a meu testamenteiro faça com que assim se cumpra”. O segundo documento comprovante foi requerido ao vigário da freguesia, que atestou constar entre os registros de batismos a inocente “Gertrudes, filha de Francisca crioula, escravizada de José da Silva Guimarães”, em 28 de agosto de 1793.47
O terceiro documento cuja transcrição foi requerida para constar nos autos do libelo indica ter sido a luta de Gertrudes iniciada vinte anos antes, pela própria mãe Francisca, em 1802. Interessa notar que o Alferes João Francisco não pretendia se indispor com Francisca, tampouco sofrer as penas de um possível processo - o que ocorreu mais tarde com o seu irmão e testamenteiro, Antônio Francisco.
Diz Francisca crioula escrava que foi do falecido José da Silva Guimarães e de sua mulher Joanna da Rocha Campos que este por seu falecimento declara [que] deixou a suplicante forra e liberta com a condição de servir ao casal o espaço de sete anos depois do falecimento da dita mulher, como consta da verba do testamento com que faleceu descrita na certidão junta e que a suplicante tem cumprido não só os ditos anos, como há mais de dois anos o que também verifica a dita certidão junta e como a suplicante quer gozar da dita liberdade que lhe foi conferida visto a restituição que lhe compete dos anos que de mais tem de por isso requer a vossa mercê seja servido mandar por seu despacho a vista de todo o expendido que o Tutor dos Órfãos e a quem mais competir passar à suplicante sua carta para título de liberdade [...].48
Ao que João Francisco Ferreira respondeu:
Senhor Doutor Provedor: Tudo quanto a suplicante alega é verdade e por isso não duvido tanto pela parte que me cumpre de herdeiro dos ditos falecidos por cabeça de minha mulher, como também tutor dos mais órfãos, os quais se acham impossibilitados de responder a este requerimento por um deles ser mudo, o outro se acha entrevado em uma cama e outro muito de menor idade e assim não duvido passar a suplicante sua carta: é o que posso responder a vosmicê que mandará o que for servido = Vila Rica = dezesseis de setembro de mil oitocentos e dois = como herdeiro e tutor João Francisco Ferreira [...].49
A autora do Libelo requeria não só o reconhecimento de sua liberdade, através da manumissão, como também o pagamento de 200 réis por cada dia em que serviu injustamente. Gertrudes obteve sentença em favor de sua causa, mediante a consistência de seu processo. O réu Alferes Antônio Francisco Ferreira recorreu da decisão, encaminhando a ação para o Tribunal da Suplicação do Rio de Janeiro, quando o Brasil já havia passado por seu processo de Independência.
Também do juízo do Rio de Janeiro, Gertrudes recebeu sentença favorável ao seu processo quando, porém, já havia falecido. No ano seguinte ao início do libelo da parda Gertrudes, a mesma faleceu, em 1823, deixando órfã sua filha Inês, que contava dez anos de idade. O inventário de Gertrudes possui apenas cinco folhas, dentre as quais, duas referem-se especificamente à sua filha e ao respectivo tutor, já que outros bens e órfãos não havia.50 Tratava-se do Alferes José Dias Monteiro, que a partir de então tornou-se responsável pelos cuidados da órfã Inês. A filha de Gertrudes era livre, segundo comprovava a sentença do libelo de autoria de sua mãe - e que contava com requerimento anterior, feito pela avó Francisca Crioula, em 1802. Segundo as Ordenações Filipinas, à tutoria dos órfãos relegavam-se a feitura do inventário do falecido, os cuidados do órfão e a respectiva administração dos seus bens. 51
Sabendo do processo em que Gertrudes foi autora, José Dias Monteiro informou no inventário da falecida parda que havia
no curso da Execução da mesma sentença emanada de uma ação de Libelo que por este mesmo juízo propôs a mesma Gertrudes cobrava a liberdade e da mesma órfã contra o Alferes Antônio Francisco Ferreira como testamenteiro de seu irmão o Alferes João Francisco Ferreira e curador da demente mulher deste Rosa Alves da Rocha [...].52
Por este motivo, em dezembro de 1824, José Dias Monteiro requereu o pagamento das custas às quais foi condenado o Alferes Antônio Francisco.53 O réu do Libelo teria de pagar 37$275 réis de acordo com a sentença do processo. O valor pertenceria a Inês, única herdeira de Gertrudes e, portanto, ficaria sob administração do tutor José Dias Monteiro. O réu Antônio, que se mostrou até agora bastante indisposto para com a ação de Gertrudes, se pronunciou diante do pedido de liquidação da dívida feito pelo tutor da órfã. Pediu que não tivesse que responder por qualquer quantia além daquela sentenciada. Apesar de extensa, a justificativa do requerimento do réu merece ser transcrita na íntegra, pois, segundo o mesmo senhor, o pedido se fazia
por muitos motivos: 1º porque a testamenteira na disputa da lide ficou muito lesada com custas. 2º porque o testador do [supradito] possuía aquela [autora] e sua filha na boa fé pela ter arrematado em Hasta Pública no Juízo dos Feitos da Fazenda Pública em uma execução Fiscal tratando-a com toda a [caridade] como forra e vagando pelas ruas, pondo a dita órfã sua filha nas escolas de ler, e costura. 3º porque a dita [autora] sem atender a estas benevolências roubou antes e depois do falecimento do testador seu irmão quantias consideráveis de dinheiro, joias, e trastes com tanta crueldade que até com venenos que dava a sua senhora que foi a [loucura] de sorte que tanto reprova este fato que depois de seu falecimento ficou melhor da doidice furiosa em que jazia. 4º que seu irmão testador faleceu pobre sem deixar bens suficientes para pagamento do supradito, e outros credores de quantias avultadas, e 5º finalmente porque se persuade o suplicante que tais jornais a sua liquidação deve ter princípio do começo da lide, em diante, ou para melhor dizer, da data da sentença da confirmação, e por todos motivos parece que com a liberdade em que fica a dita órfã, e despesas que sofreu a dita testamenteira que fica bem completada, portanto.54
Ainda que tivesse levantado novas justificativas para sustentar a injustiça do pagamento da sentença, o Alferes Antônio Francisco fez o depósito da quantia referente aos jornais de Gertrudes, que serviu injustamente à família do réu. Interessa notar que, dentre os motivos apontados pelo réu, o fato de Gertrudes ter podido “viver como forra” atenuaria a necessidade da execução da sentença. Ainda que estivesse posta injustamente em situação de cativeiro, já que nascera de ventre livre (ou em processo de libertação), a experiência da mulher Gertrudes a colocava numa situação de cativeiro bastante recorrente nas vilas mineiras.
Certa mobilidade no âmbito da vila, movimentada pelos tratos auríferos, faiscação, vendas de tabuleiro e residência na casa dos senhores era característica dos ambientes urbanos do território minerário, se comparados aos âmbitos rurais de grande produção agrícola. Usufruindo de maior possibilidade de trânsito, Gertrudes teria inclusive participado da sociabilidade negra da freguesia oposta à que habitava: o juizado de Santa Efigênia no Rosário do Alto da Cruz. O réu aponta ainda a educação da filha de Gertrudes, a menina Inês, que frequentaria escolas de ler e de costura. A intenção do Alferes Antônio, portanto, era criar uma tensão entre a condição jurídica de Gertrudes e a sua experiência pública na Vila: “tratando-a com toda a caridade como forra e vagando pelas ruas”.
Durante o processo, o advogado de Gertrudes lembrou as Ordenações Filipinas, no que tange à liberdade dos escravizados, pois tendia-se a incorrer à manumissão sempre que esta pudesse ser auferida. A tensão gerada pelo réu, após a emissão da sentença pelo Tribunal da Suplicação do Rio de Janeiro, não haveria de surtir efeito, baseando-se em suposta opinião pública a respeito da condição de Gertrudes. Para o Juízo do caso, de nada valia o modo como se vivia, se este não fosse devidamente registrado. 55
A querela iniciada formalmente em 1789, quando Joana da Rocha Campos veio a falecer, deixando forra em seu inventário Francisca Crioula, mãe de Gertrudes e avó de Inês, somente teve desfecho em 1824. Três gerações de mulheres acometidas pelo cativeiro experimentaram um processo de libertação moroso e substancial, o qual certamente será melhor analisado em trabalhos futuros. Interessa para nós que, além da liberdade finalmente reconhecida à menina Inês, a história desta promessa se entrelaça à história da sociabilidade religiosa negra de Vila Rica.
Tanto Francisca como Gertrudes foram devidamente registradas como irmãs no Rosário do Alto da Cruz, escravizadas de Joana da Rocha e de João Francisco, respectivamente. Joana como crioula, Gertrudes como parda: é evidente a relação entre o processo de libertação desta geração de mulheres e a miscigenação por que sua linhagem passou. O assento de Gertrudes parda no Livro dos Brancos do Rosário do Alto da Cruz, em 1818, atesta a diferenciação social desta mulher em relação aos demais indivíduos congregados: além de parda, usufruía de certa mobilidade e de uma promessa de libertação. Estes fatores teriam caracterizado o juizado de Santa Efigênia no Alto da Cruz, o qual, não obstante ter sido referido como devoção dos mulatos, também parece ter representado um continuum de libertação pelo qual passaram muitos dos indivíduos reunidos neste Rosário.56
Sempre registrada como parda, Gertrudes era filha direta do cativeiro e, por isso, também escravizada. Ainda que injustamente, segundo constatou o Juízo da Vila e o do Rio de Janeiro, a escravidão de Gertrudes submetida à família que herdou os serviços de sua mãe Francisca crioula. Usufruindo de alguma mobilidade, talvez se empenhando em pequenos serviços que lhe rendiam algum pecúlio, Gertrudes adentrou uma rede de sociabilidade específica no âmbito do Rosário do Alto da Cruz. Neste ambiente, a situação de cativeiro de Gertrudes podia ser ainda mais tensionada, especialmente se fosse confrontada com a experiência dos pretos e crioulos majoritariamente reunidos nessa irmandade.
Não parece fortuito, portanto, que a menina Inês tenha ficado relegada aos cuidados do Alferes José Dias Monteiro: homem pardo, irmão da Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco, na qual atuou no corpo administrativo. A família do Alferes José foi uma daquelas que teriam se empardecido, de acordo com Daniel Precioso. O patriarca português Felix Dias Monteiro, irmão terceiro da Ordem do Carmo, casou-se com Maria Josefa da Conceição, mulher parda, com a qual teve oito filhos. Felix foi registrado como irmão no Livro dos Brancos, em 1759, assim como o porta estandarte Manoel Dias Monteiro, em 1810, e Francisca Dias Monteiro, que em 1811 ingressou na confraria pagando como taxa de entrada a sua esmola por devoção a Santa Efigênia.57
Esta família esteve envolvida com diferentes ambientes confraternais de Vila Rica, como se pode perceber. Na qualidade de tutor da órfã Inez, José Dias Monteiro introduziria a menina a uma sociabilidade mais reconhecidamente parda, como era a da Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco. Não se pode supor, no entanto, que a menina Inês deixasse de ter contato ou de participar efetivamente do juizado de Santa Efigênia, pois a importância desta festividade mostrou-se consolidada já nas primeiras décadas do século XIX. Certamente a celebração se manteria atrativa nos anos de vida de Inês, tal qual atesta a arte de Rugendas (Figura 1).
Considerações finais
Diz-se que, quando da saída da confraria do Rosário da Matriz de Antônio Dias, rumo ao Alto do Padre Faria, neste local havia uma ermida dedicada à Santa Efigênia. A devoção a esta santa no distrito do Alto da Cruz seria, portanto, antecedente à instalação da irmandade naquele local, o que ocorreu efetivamente a partir de 1733. Neste sentido, o culto à princesa africana teria sido desde cedo conhecido e valorizado pelos irmãos do Rosário, figurando na gênese do corpo devocional que se constituiu nesta irmandade. A suposta precedência de Efigênia entre os santos cultuados no Rosário do Alto da Cruz, entretanto, não parece suficiente para explicar o seu crescimento progressivo em número de devotos e de esmolas auferidas, ou melhor, este fator poderia ter sido determinante para a evolução de qualquer outra invocação, que não fosse a patrona da confraria. É possível, neste sentido, que uma ermida primitiva de São Benedito tivesse contribuído para a evolução deste culto ao longo do século XVIII no interior da irmandade. Mas o fato é que Santa Efigênia tornou-se símbolo preferido pelo sodalício.58
O estudo dos pardos devotos da santa africana Efigênia, aqui desenvolvido, pretendeu encaminhar duas reflexões. Em primeiro lugar, pretendeu nuançar as possibilidades dispostas aos indivíduos pardos: confirmamos a recorrente perspectiva de distanciamento do passado cativo e africano como tônica das narrativas pardas, entretanto, num contexto mais complexo, quando estas podiam usufruir de espaços e de símbolos não identificados diretamente a uma trajetória parda. As histórias dos beneméritos se desenvolveram em ambiente reconhecidamente preto e tradicionalmente identificado ao cativeiro. Fugiram do padrão representativo mais esperado, qual seja, o envolvimento exclusivo com representações tradicionalmente atribuídas aos pardos. Em segundo lugar, e de forma interdependente do primeiro, este estudo pretendeu observar a celebração de Santa Efigênia como um ambiente de identificação de mobilidade, de autonomia e de prestígio social em Vila Rica face aos estigmas do escravismo.
O que propomos é considerar o contexto determinado pelo espectro cativeiro-liberdade, além de uma suposta diferenciação étnica proposital, que teria se traduzido na inversão das devoções preferidas no Alto da Cruz. A evolução do culto de Santa Efigênia não apenas evidenciaria um conflito étnico interior à irmandade, entre grupos de procedência africana ou entre africanos e pardos. Subjaz a este debate a condição dos indivíduos que mormente dinamizou a trajetória desta confraria: de escravizados associados à Nossa Senhora do Rosário para libertos mestiços, que passaram a se identificar com Santa Efigênia. Talvez, por este motivo, não tenha se tornado a devoção de São Benedito (muito identificada à conversão dos cativos) a preferida pelo sodalício do Alto da Cruz.
Retomando brevemente os casos tratados na última seção do texto, que objetivaram sustentar nosso estudo e hipótese através da experiência de vida de alguns dos beneméritos, vimos, como, por exemplo, que o matrimônio do pardo forro José Lopes Cordeiro elucidou o que já havíamos constatado na análise quantitativa do Livro dos Brancos. Os crioulos, e, dentre eles, Maria Martins Chaves, esposa de José Lopes, não foram assentados neste Livro até o início do século XIX, pois seriam muito próximos da ancestralidade africana e do cativeiro. O que lança luz para a prática de singularização do sodalício registrado neste documento, e encaminha a observação destes registros numa tônica de liberdade.
A requisição do legado deixado por Manoel de Magalhães Gomes, feita pelo procurador da Boa Morte, Joaquim Ferreira Veloso, demonstrou que irmãos pardos assentados em confrarias reconhecidas por reunirem esta qualidade de irmãos estiveram ativamente envolvidos com as celebrações promovidas pelo Alto da Cruz, especialmente a de Santa Efigênia: esta festividade também se tornou um reduto da sociabilidade livre ou liberta em Vila Rica. Semelhante é o caso dos assentos de Gabriel de Castro Lobo e de Francisca Moreira da Silva. Ambos estiveram na administração daquele que teria sido o ambiente mais honroso para reunião dos pardos, a Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula. Um meio de identificação religiosa e social pública que não foi constrangida pela atuação nas celebrações do Alto da Cruz.
O caso de Gertrudes encerra nosso estudo e hipótese de forma modelar. Ainda que remetesse a um passado africano e, consequentemente, de cativeiro, a celebração da santa-princesa africana se tornou momento de sociabilidade de indivíduos envoltos em experiências ou em promessas de liberdade, como ocorreu com Gertrudes. À diferença do que teria sido mais característico da Irmandade do Rosário do Pilar, no Alto da Cruz, a busca por autonomia e as possibilidades para alcançá-la foram mais evidentes e promissoras. A intenção e atuação combativa, já percebidas no Compromisso de 1733, tiveram na devoção de Santa Efigênia (a mais frequente, vigorosa e representativa) a consolidação desta trajetória.
Notas
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