Artigo
DOS RETORNOS À ÁFRICA OCIDENTAL: SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS*
ON RETURNS TO WEST AFRICA: SIMILARITIES AND DIFFERENCES
DOS RETORNOS À ÁFRICA OCIDENTAL: SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS*
Afro-Ásia, núm. 67, pp. 174-246, 2023
Universidade Federal da Bahia
Recepção: 06 Novembro 2022
Aprovação: 27 Fevereiro 2023
Resumo: Existem diversas pesquisas sobre comunidades na África fundadas pelos chamados “retornados”, mas não há estudos aprofundados que busquem comparar as trajetórias desses “retornos”. O que se propõe neste ensaio é, portanto, um estudo comparativo que tem um foco específico: no centro das preocupações analíticas estarão as relações que os/as retornados/as - mais especificamente as primeiras duas gerações - estabeleceram com as populações locais. Além da identificação de semelhanças objetiva-se apontar para diferenças substanciais e relacioná-las com conjunturas e contextos específicos. As experiências em Serra Leoa, na Libéria, no Benim e em Gana servirão como exemplos que permitem reconstruir “modos” de “reinserção” de populações, sequestradas das suas comunidades de origem, em terras africanas.
Palavras chave: Retornados, Serra Leoa, Libéria, Benim, Gana.
Abstract: There are many studies on communities in Africa founded by so-called “returnees”, but there are no in-depth studies comparing the trajectories of these “returns”. This paper is a comparative study with a specific focus: its central concern is the relations that the returnees - specifically the first two generations - established with the local populations. Besides identifying similarities, the paper points out substantial differences, relating them to specific conjunctures and contexts. The experiences of returnee communities in Sierra Leone, Liberia, Benin and Ghana serve as examples that allow the reconstruction of different “modes” of “reinsertion” of populations, once kidnapped from their communities of origin, into the African continent.
Keywords: Returnees, Sierra Leone, Liberia, Benin, Ghana.
Existem diversas pesquisas sobre comunidades na África fundadas pelos chamados “retornados”,1 mas não há estudos aprofundados que busquem comparar as trajetórias desses “retornos”. O que se propõe neste ensaio é, portanto, um estudo comparativo que tem um foco específico: no centro das preocupações analíticas estarão as relações que os/as retornados/as - mais especificamente as primeiras duas gerações - estabeleceram com as populações locais. Além da identificação de semelhanças, objetiva-se apontar para diferenças substanciais e relacioná-las com conjunturas e contextos específicos. As experiências em Serra Leoa, na Libéria, no Benim e em Gana servirão como exemplos que permitem reconstruir distintos “modos” de “reinserção” de populações, sequestradas das suas comunidades de origem, em terras africanas. Não se trata aqui de criar tipologias: a abordagem proposta quer muito mais entrar num diálogo crítico com vieses analíticos consolidados, tais como o do Atlântico Negro, consagrado pela obra de Paul Gilroy, que se tornou uma espécie de paradigma de análise para estudos sobre diásporas africanas.2 Por um lado, há amplo consenso quanto ao fato de a ênfase em uma perspectiva transnacional e na elaboração de redes e trocas culturais ter trazido inovações fundamentais para os estudos afro-diaspóricos; por outro lado, emergiram, diversas críticas que apontam para algumas ausências e lacunas importantes nas análises de Gilroy - entre elas, a subvalorização da participação das comunidades afrodescendentes na América Latina e das populações residentes no continente africano na construção do Atlântico Negro.3 É também para essas críticas que quero dar uma contribuição.
Em minha análise, não nego a validade de um enfoque pós ou decolonial, que permite desconstruir os discursos hegemônicos; mas, ao mesmo tempo, não abro mão de um olhar antropológico em busca de elementos estruturantes, os quais - e é isso que quero argumentar - foram corresponsáveis pela consolidação de modos de interação diferentes entre retornados e populações locais. Baseando-se em tal abordagem, torna-se possível mostrar, por exemplo, que não é um acaso que na Libéria os descendentes dos retornados falem inglês, em Serra Leoa usem um “crioulo” como língua de comunicação e que os descendentes dos retornados brasileiros se comuniquem hoje em línguas locais, embora o português tenha sido, durante muito tempo, a língua franca em uma vasta região do litoral da África Ocidental. Tampouco é coincidência que na Libéria e em Serra Leoa, países construídos por pessoas escravizadas por colonizadores anglo-saxônicos, até hoje a cidadania seja vetada a pessoas consideradas não negras, e que o surgimento do movimento pan-africanista e o chamado processo de etnogênese dos iorubás contou com a importante participação de partes das elites dos retornados. No que diz respeito ao envolvimento na emergência desses fenômenos, podemos perceber diferenças substanciais entre os que viveram sob o domínio de um poder colonial anglo-saxão e aqueles que foram escravizados em terras brasileiras. Podemos mostrar que os diálogos transatlânticos que deram estímulos fundamentais para tais transformações não se deram de maneira uniforme no chamado Atlântico Negro. Se nos Estados Unidos a disseminação de ideias pan-africanistas teve, desde muito cedo, um impacto forte, os discursos e movimentos que enalteciam a cultura e a religiosidade iorubana não tiveram, num primeiro momento, praticamente nenhuma repercussão social. Ter se dado exatamente o contrário no Brasil também não foi mera coincidência.
Trata-se de diferenças que são, de certo modo, negligenciadas pelo paradigma Atlântico Negro, que não deixa de analisar os discursos das elites (por exemplo, Crummell, Blyden), mas pouco se interessa pelas relações - não raramente hierárquicas - que se desenvolveram entre retornados e populações locais. Faz também parte dessa história o fato de que a primeira geração dos retornados, aquela que construiu as bases dos diálogos transatlânticos - afinal, foram eles que atravessaram o Atlântico duas vezes e, por vezes, mais de duas -, não era vista pelos africanos como “negra”, pois era chamada frequentemente de “branca”. A premissa implícita do paradigma Atlântico Negro, segundo o qual os construtores e produtores das redes transatlânticas eram e continuam sendo “negros” - sugerindo, assim, uma identidade transatlântica homogênea -,4 pode também ter contribuído para que o foco da análise tenha sido desviado dos complexos processos de diferenciação e identificação que ocorreram nos litorais da África Ocidental. Iluminar esses processos é um dos objetivos centrais deste artigo.
Serra Leoa
Sabemos que os portugueses foram os primeiros a estabelecer entrepostos em diversos lugares da costa africana. Alguns escravos e ex-escravos brasileiros devem ter aportado e convivido nesses enclaves criados pelos lusitanos já no final do século XVII,5 mas a primeira grande onda de retorno do Brasil se iniciaria bem mais tarde, sobretudo no período imediatamente posterior à Revolta dos Malês (1835). Já no mundo anglo-saxônico, as primeiras mobilizações que visavam levar africanos de volta ao “seu continente de origem” surgiram em Londres, onde os chamados Black Poor viviam em condições miseráveis e sua presença começava a incomodar os cidadãos britânicos.
“Repatriar” esse grupo composto de ex-escravizados/as, de soldados que tinham lutado do lado britânico na Guerra da Independência dos Estados Unidos e também de alguns caribenhos e até bengalis foi propagado como um projeto justo, que devia devolver aos “negros” a possibilidade de recriar uma vida digna em liberdade. Foi este o discurso assumido por abolicionistas britânicos que, num primeiríssimo momento, contou até com o apoio de dois famosos ex-escravizados nascidos na África Ocidental, Gustavus Vassa (aliás, Olaudah Equiano) e Ottobah Cugoano, os quais, após terem conquistado sua liberdade, tornaram-se eminentes lutadores em prol da abolição da escravatura. Em pouco tempo, porém, mudariam sua posição: convenceram-se de que esse projeto tinha como objetivo principal livrar os britânicos daqueles “negros” pobres que já não eram obrigados a viver sob o jugo da escravidão. A primeira tentativa de fundar, no ano de 1787, uma comunidade de retornados em Serra Leoa acabou num desastre. Apenas dois anos e meio depois da chegada de 411 potenciais “colonos”, entre os quais algumas mulheres brancas descritas pela historiografia oficial como prostitutas, suas habitações foram erradicadas. O novo chefe dos temne (grupo étnico local) discordava do acordo que seu antecessor tinha feito com os britânicos e mandou incendiar a chamada “Granville Town”, construída pelos retornados.
Logo depois, em 1792, a Sierra Leone Company (Companhia de Serra Leoa) assumiu o projeto de fixar ex-cativos/as negros/as naquela região da África. Houve duas ondas migratórias iniciais que, juntamente com os sobreviventes dos Black Poor, formariam o grupo dos primeiros colonos (settlers): primeiro chegaram cerca de 1.200 Nova Scotians, escravizados que durante a Revolução Americana tinham aderido às forças britânicas em troca de promessa de liberdade e, terminadas as batalhas, tinham sido levados para uma região no norte do continente - a Nova Escócia -, que continuava sob o domínio britânico. No ano de 1800, um segundo grupo - 550 maroons jamaicanos - desembarcou naquela península em que o projeto de colonização estava sendo organizado em torno de uma vila chamada de Freetown. Aliás, logo depois de sua chegada, as habilidades de guerreiros seriam aproveitadas pela Companhia de Serra Leoa para reprimir uma rebelião dos Nova Scotians, que se mostravam descontentes com as condições de vida que encontravam na inicialmente chamada Província da Liberdade.
A Companhia de Serra Leoa, fundada por abolicionistas britânicos, apostava no uso de mão de obra livre em plantações que deveriam fornecer produtos que pudessem ser comercializados no mercado nacional e internacional. O trabalho na lavoura deveria ser executado pelos retornados sob a orientação e os auspícios dos administradores brancos da empresa. Os ideólogos desse projeto queriam também provar que o trabalho livre era não somente socialmente mais justo, mas gerava também mais lucro - seria, portanto, mais racional em termos econômicos - do que o trabalho escravo. Eles entendiam o comércio livre como um catalisador de um projeto civilizatório e de missão mais amplo. Acreditavam que o trabalho assalariado suplantaria as práticas escravistas e que as populações locais seriam convertidas ao cristianismo em pouco tempo.6 Havia ainda a esperança de que emergissem novos mercados e que os africanos fossem transformados em consumidores cristãos. Diferentemente dos enclaves de intervenção colonial criados em torno de fortes construídos em diversos outros lugares do litoral da África Ocidental (por exemplo, Costa do Ouro), o projeto britânico previa, portanto, uma expansão até os interiores do continente.7
Devido a diversos fatores - inadequação das terras, pragas, falta de instrumentos agrícolas, abandono dos retornados do trabalho agrícola e adesão a atividades ligadas às redes de comércio locais -, a aposta na criação de um amplo projeto agrícola não deu certo; a empresa perdeu dinheiro e resolveu entregar a administração da península Freetown à Coroa Britânica. Foi assim que em 1808 a Serra Leoa se tornou a primeira colônia britânica na África Ocidental.
O historiador Sidbury mostra que o projeto de retorno à África contou, num primeiro momento, com amplo apoio das comunidades negras, tanto nos Estados Unidos quanto na Grã-Bretanha. No final do século XIX, narrativas e discursos que prezavam a origem africana dos escravizados e ex-escravizados ganhavam força, sem ao mesmo tempo romper com ideais cristãos e civilizatórios ocidentais. Assim, o importante abolicionista Olaudah Equiano, que atuava nesse momento na Inglaterra, apresenta, na sua famosa autobiografia (1789), ideias e convicções que mobilizavam grande parte da população afrodiaspórica no mundo anglo-saxão.8 Equiano referia-se aos africanos como um povo escolhido por Deus e, baseando-se no Velho Testamento e em comparações com o destino dos judeus, acreditava que essa população havia sofrido um movimento de dispersão e desagregação já na própria África, mas teria ainda um futuro brilhante: ao retirá-la da “escuridão pagã”, a África haveria de assumir um dia um lugar digno ao lado das outras grandes nações desse mundo, cumprindo assim a Providência Divina. A chave para abrir esse caminho promissor seria um movimento amplo de evangelização que permitiria reunificar os africanos e seus descendentes, superando a escravidão e substituindo esse regime desumano pelo comércio livre, que traria benefícios tanto para as populações na África quanto para as nações dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha.9 Uma vez integrada ao mercado, esse continente deixaria para trás o “primitivismo”, e os africanos se constituiriam como um povo próspero. Com essas transformações, acreditava Equiano, os africanos dariam ainda uma contribuição notável para o progresso da humanidade.
Nos Estados Unidos, por sua vez, ideias muito semelhantes foram articuladas em associações e, sobretudo, nas primeiras igrejas negras que emergiram, no final do século XVIII, a partir de cisões dentro de denominações protestantes. Sidbury chama a atenção para as múltiplas entidades e movimentos que usaram o termo African como autodenominação: African Baptist Churches (a primeira fundada em 1777, na Geórgia), African Union Society (1780, em Rhode Island), African Masonic Lodge (1784, em Boston), Free African Society (1787, na Pensilvânia)10 e African Methodist Episcopal Church (1816, na Pensilvânia).11 Surgiram diversos líderes religiosos carismáticos que igualmente pregavam a luta contra a escravidão como um dever moral-religioso e indicavam a volta para a África e a dedicação ao comércio legal como caminho da salvação. Em pouco tempo, a linguagem bíblica em torno do êxodo de um povo escolhido por Deus seria ouvida também entre os Nova Scotians, que sofriam humilhações e começavam a rebelar-se contra o racismo.
Em 1807, o Parlamento britânico promulgou o chamado Slave Trade Act, que proibiu o tráfico de escravos dentro do Império Britânico. Essa lei não afetou inicialmente as contínuas práticas de venda de escravizados/as no interior da nova colônia,12 mas mesmo assim constituiu um marco para a política de intervenção colonial. Foi a partir desse momento que os britânicos começaram a caçar navios negreiros, com o objetivo de “libertar” escravos transportados “ilegalmente”. Dessa maneira, entre 1808 e 1823 estima-se que 14.500 escravizados - chamados de “recapturados” -13 foram levados para Freetown.14 Uma parte desse grupo seria integrada às forças armadas britânicas, outra distribuída entre os “colonos” “mais produtivos”15 para servirem como mão de obra barata no sistema de apprenticeship: essa prática, que garantia o uso de trabalhadores domésticos nas casas de pessoas abastadas na Grã-Bretanha, era agora adaptada ao contexto colonial de Serra Leoa, onde assumiria formas de convivência entre o “empregador” e o “aprendiz”, que não raramente apresentavam características da relação entre senhor e escravo. O primeiro governador Thompson, amigo do eminente abolicionista Wilberforce, comentou essa situação com preocupação, ao chamar a atenção para o fato de que os/as “aprendizes” eram chamados geralmente de my slave boy e my slave girl.16
Se na Grã-Bretanha havia uma linha divisória clara entre trabalho escravo e trabalho livre, em Serra Leoa o status legal dos “negros capturados” era ambíguo e certamente não era de um cidadão pleno. Os “libertados” deveriam ficar sob o controle dos libertadores. Havia a expectativa da parte dos administradores coloniais de que os “recapturados” se mostrassem gratos aos seus “libertadores” e se subjugassem às suas orientações e projetos societais.
O discurso antiescravista, empregado com orgulho e com um tom de superioridade moral, engrandecendo a Grã-Bretanha diante de países escravistas como o Brasil, deveria cumprir funções importantes nos projetos expansionistas coloniais britânicos. Os prêmios pagos por escravo recapturado incentivavam os militares a perseguir navios e contribuíam fundamentalmente para a militarização da política abolicionista e o empoderamento das forças armadas. Dessa forma, criou-se um grande contingente de recapturados, os quais eram usados como soldados nas diversas intervenções coloniais - não somente na África Ocidental, mas também no Caribe - e que ajudavam a consolidar e a expandir o Império Colonial Britânico: os ex-cativos interceptavam navios negreiros e traficantes que atuavam no litoral, e atacavam, inclusive, fortes controlados por outros poderes coloniais, forçando, consequentemente, sua inclusão no território britânico.17
No seu livro Freedom's Debtors. British Antislavery in Sierra Leone in the Age of Revolution, Scanlan chega à conclusão de que o antiescravismo britânico tinha objetivos expansionistas e era motivado pela geração de lucros econômicos. Se o projeto de colonização nessa parte da África era inicialmente concebido como um modelo de comércio legítimo em oposição ao comércio ilegal de escravizados/as, em pouco tempo Serra Leoa tornava-se um “plano piloto para um modo específico de colonialismo britânico e de expansão territorial”.18 Em poucas décadas, o antiescravismo vinculado a um projeto acima de tudo comercial teria se subordinado aos objetivos de um plano imperial.
Com a intervenção colonial na região, implantou-se e disseminou-se também um modelo hierárquico de relações sociais. Num primeiro momento, os grupos que tinham sido levados pelos britânicos à Serra Leoa buscavam se manter separados e evitavam contatos entre si. Os Nova Scotians viam-se como superiores aos Maroons, e ambos, Nova Scotians e Maroons, olhavam com certo desprezo para os recapturados e a população nativa de Serra Leoa. O fato de os administradores terem concedido aos colonos o direito de receber recapturados como “aprendizes” acabou contribuindo para consolidar e formalizar a hierarquia colonial. O critério por trás dessa ordem hierárquica era, nitidamente, o maior ou menor contato com padrões de comportamento associados ao mundo do colonizador britânico. Quanto mais “ocidentalizado”, maior o status social.19
As contínuas capturas de escravos africanos “ilegalmente” transportados faria com que em pouco tempo os “africanos libertados” se tornassem a maioria da população de Freetown. Mesmo que inicialmente predominasse uma preocupação entre os grupos de manter uma distância social entre si, a presença de um número cada vez maior de africanos originários de diversos lugares do continente que, juntos, recomeçavam suas vidas em Serra Leoa, fomentaria aos poucos um processo de interpenetração e fusão cultural que acabava se expressando, entre outras coisas, na criação de uma língua crioula própria. O chamado krio, que se desenvolveu na virada do século XIX para o século XX, em Freetown, a partir de um pidgin baseado no inglês, incorporaria diversas outras influências de muitas outras línguas, tais como o árabe, o português, o francês, o crioulo jamaicano, as línguas africanas hauçá, wolof, fula, mende, temne e sobretudo o iorubá. Se a maior parte das palavras da língua crioula krio podem ser derivadas do inglês, chama a atenção o fato de cerca de um quarto do léxico krio ter origem no iorubá.
No fundo, não existia naquele momento nem uma língua nem um povo que se autoidentificasse como iorubá.20 Foi em decorrência do jihad organizado por Usman dan Fodio, que levou à expansão do califado de Sokoto, e com a consequente destruição da capital de Oió pelas tropas de Afonjá em 1835, que provocou a implosão deste importante império situado na atual Nigéria, que um grande número de africanos vivendo sob a influência de Oió foi escravizado e vendido para a escravidão nas Américas. Nesse contexto, não poucos acabavam sendo capturados pelos navios ingleses, chegando, assim, a Freetown, onde formariam uma comunidade à parte, chamada de aku. Zelosos das suas tradições, os akus elegiam seus próprios reis, que eram, aliás, respeitados pelos governadores coloniais como representantes de seu grupo. A comunidade crescia não apenas em número, pois também exercia cada vez mais influência cultural, política e econômica na região, especialmente a partir da década de 1840. A projeção dos akus na vida colonial provocou fortes reações da parte dos colonos, que relutavam em aceitar a ascensão de um grupo de recapturados, fato que punha em xeque sua própria posição privilegiada. O primeiro rei aku, Thomas Will, tornar-se-ia uma das pessoas mais ricas na colônia; ele e outros líderes akus começaram a comprar propriedades no centro de Freetown sob protesto dos colonos, que consideravam essa área como uma espécie de território ancestral seu. Alguns Nova Scotians ficaram tão irritados e frustrados que resolveram voltar para a América. Por volta de meados do século XIX, porém, os colonos começaram a encarar o domínio dos akus como um fato incontornável, o que contribuiria para quebrar as barreiras entre colonos e africanos libertados. Foi dessa forma que o caminho se abriu para a intensificação de um processo de crioulização que se cristalizaria perto do final do século XIX não apenas na formação de uma língua própria, mas também na emergência de um grupo étnico particular também chamado de krio.21
Sabe-se que o termo “iorubá” era empregado inicialmente somente em referência ao reino de Oió.22 Naquela região, e em muitas outras partes da África Ocidental, os sentimentos de pertencimento eram marcados por relações de proteção e dependência que as pessoas mantinham com diversos focos de poder, inclusive com os diversos reinos que existiam dentro da hoje chamada Iorubalândia. As identificações grupais eram frequentemente múltiplas e, entre elas, podia haver sobreposições. Mesmo no auge do poder de Oió, esse reino não incluía todos aqueles que hoje se autoidentificam como iorubás; ao mesmo tempo, englobava “populações não iorubás”, devedoras de tributos ao rei (por exemplo, o reino de Daomé). Diversos autores chamaram a atenção para o fato de que um senso de etnicidade mais amplo parece ter emergido primeiro em contextos diaspóricos em que pessoas de várias regiões da Iorubalândia se encontravam: os akus em Serra Leoa, os nagôs no Brasil e os lucumi em Cuba.23 Os múltiplos contatos que se desenvolveram a partir de movimentos de dispersão e de reimigração, envolvendo os dois lados do Atlântico, teriam sido os fatores principais por trás da consolidação da identidade iorubana contemporânea, fato que motivou Matory a referir-se aos iorubás como uma “nação transnacional”.24
Nesse processo, coube a um pequeno grupo de akus, o qual foi formado em escolas de missão e decidiu “voltar” às suas terras de origem, um papel de destaque. Pastores saros - como seriam chamados os akus que migraram para a Iorubalândia -25 montaram um centro de missão na cidade de Abeocutá, onde pretendiam organizar seu projeto de evangelização,26 O lema da Church Missionary Society of England - a missão mais ativa na região - era disseminar os três “C”s: o cristianismo, a civilização e o comércio.27
Profundamente marcados pelos valores civilizatório-religiosos dos colonizadores, os pastores saros empenharam-se em dar sua contribuição para “melhorar” a vida dos colonizados. Foram eles também os primeiros a traduzir a Bíblia e a elaborar os primeiros textos sobre os iorubás. Para isso, os missionários-tradutores precisavam operar com um “padrão linguístico” específico, que contribuiria de forma decisiva para consolidar uma espécie de “standard iorubá” e, de maneira indireta, homogeneizar os dialetos locais.28 Os religiosos Crowther e Johnson foram responsáveis pela publicação dos primeiros dicionários, as primeiras gramáticas e uma primeira história dos iorubás. Com suas traduções e descrições da língua e da cultura de um povo, eles não apenas criaram um saber sobre uma realidade específica; deram também os primeiros impulsos a processos de sua codificação, cujos fundamentos eram caracterizados por valores e concepções de mundo que predominavam naquele momento na Church Missionary Society of England e que refletiam muitas das experiências dos processos de nation-building europeus: pressupunha-se, assim, que cada povo possuía uma (sua) língua, um território específico e compartilhava determinados valores e hábitos. Se é inegável que esses pastores evangélicos não deixavam de promover intervenções que serviam aos interesses expansionistas do colonialismo britânico, a sua atuação missionária acabou plantando também algumas sementes para a emergência de movimentos protonacionalistas na região.29
Libéria
Os processos em torno da “inserção dos retornados” na região que assumiria o nome de Libéria apresentam várias semelhanças com aqueles que ocorreram em Serra Leoa, mas há também diferenças marcantes. No caso dos Estados Unidos, a emergência de projetos de “repatriação de ex-escravos” estava ainda mais diretamente vinculada aos debates sobre a abolição e o futuro do país após o fim do regime escravista do que na Grã-Bretanha. Sabe-se que as divergências a respeito da prática escravista dividiam o Norte e o Sul, mas o fato de cada vez mais ex-escravizados ganharem a liberdade nos estados do Sul preocupava praticamente a totalidade das elites brancas. Temia-se que a libertação incondicional dos cativos facilitasse não apenas atos revanchistas da parte dos ex-escravizados, mas também processos de miscigenação que “manchariam o sangue” da população branca. Foi nesse contexto que surgiram, já no século XVIII, as primeiras propostas de transportar afrodescendentes de volta para a África ou para outro lugar distante.30
Em 1816, reuniu-se em Washington um grupo de importantes personagens do mundo político e religioso norte-americano para fundar a American Society for Colonizing the Free People of Color - mais conhecida como American Colonization Society (ACS) - que assumiu como projeto principal o retorno de afro-americanos ao continente africano. Os fundadores eram todos homens brancos, e muitos deles se entendiam como filantropos. Assim, na sua justificativa dos objetivos da organização, Elias B. Caldwell, escrivão da Suprema Corte dos Estados Unidos, reconhecia que, para além das preocupações da classe política com “a segurança do Estado”, seria o preconceito racial que impediria que os afro-americanos livres desfrutassem dos direitos constitucionais.31 A ACS abrigava, no entanto, pessoas com posicionamentos políticos e visões de mundo bem distintos, desde abolicionistas do Norte - clérigos32 e humanistas - que se opunham à escravidão, até políticos e fazendeiros do Sul que investiam pesadamente em formas de produção baseada em mão de obra escrava. O que eles tinham em comum era a avaliação de que o aumento da população negra livre nos Estados Unidos colocaria em xeque um projeto de nação que era pensada como fundamentalmente branca: não reagir à proliferação de negros livres seria um desastre para o futuro do país. Havia a expectativa de que as mobilizações da ACS recebessem amplo apoio, inclusive financeiro, do governo federal. De fato, houve subsídios esporádicos,33 mas, para a frustração dos mentores do projeto, a organização e efetivação dos retornos e a implementação da colônia dependeriam, em grande medida, dos recursos da própria ACS e de doações particulares.
Vimos que o historiador Sidbury chama a atenção para o fato de, num primeiro momento, na virada do século XVIII, os próprios afro-americanos terem se entusiasmado com a ideia de emigrar para o continente africano. Uma figura importante nessas mobilizações foi o quaker Paul Cuffe. Nascido livre nos Estados Unidos como filho de um pai africano (axânti) e uma mãe indígena (wampanoag), capitão marítimo e comerciante muito próspero, ele buscava contato com os líderes das igrejas negras, como Daniel Coker (um dos fundadores da African Methodist Episcopal Church), com o objetivo de agregar afrodescendentes e organizar os primeiros retornos dos Estados Unidos para o litoral africano. Cuffe acreditava que a região para onde os britânicos tinham levado os primeiros Black Poor podia ser o ponto de referência a partir do qual se tornaria possível expandir o projeto de construir uma sociedade controlada por africanos e seus descendentes, e criar redes comerciais entre a África, os Estados Unidos e a Inglaterra, para o benefício de todos os envolvidos. Após sua primeira estadia em Serra Leoa, em 1811, viajou para a Inglaterra, onde se encontrou com líderes abolicionistas locais, da The African Institution, em busca de apoio. Como mantinha boas relações com abolicionistas brancos que não deixava de tratar como aliados, Cuffe via inicialmente a fundação da ACS como uma oportunidade de obter apoio para a realização de seu sonho. Em pouco tempo, boa parte da comunidade afro-americana se convenceu, porém, de que essa nova organização servia, acima de tudo, aos interesses dos escravistas sulistas.34
Essa reavaliação iniciou uma mudança radical de posicionamento, sobretudo dos líderes negros dos estados nortistas, que começaram a fazer discursos inflamados nos seus encontros políticos (conventions) contra as iniciativas da ACS. A atitude “stay and fight” (“fique e lute”) foi defendida com mais veemência e vigor pelo eminente abolicionista afro-americano Frederick Douglass. Emigrar não resolve as discriminações sofridas pela maioria dos negros, dizia Douglass, que acreditava ainda que os avanços a serem conquistados na América beneficiariam todos os negros no mundo inteiro.35 Não poucos abolicionistas negros apoiavam, porém, iniciativas de emigração para o Haiti, país que, pela revolução histórica, inspirava empatia e sentimento de solidariedade entre os afro-americanos. Entendia-se que tal movimento migratório podia pôr em xeque o projeto da ACS.36
O grande opositor de Douglass na comunidade negra foi Martin Delany. Para ele, os Estados Unidos eram um país de brancos e para brancos, em que o domínio dos anglo-saxões era tão avassalador que fechava todos os caminhos possíveis para os afro-americanos se afirmarem como concidadãos. “Ficar e lutar” não era, portanto, uma opção. Criar uma colônia na África, sim, mas tal projeto não podia ter cooperação de brancos; tinha de ser iniciado e executado exclusivamente por afro-americanos.37 Assim, investiu na fundação de uma colônia de negros norte-americanos na Iorubalândia, mais especificamente na região de Abeocutá, onde os saros já tinham consolidado contatos com as lideranças locais. Uma ideia era investir na produção de algodão; o lema era produzir “free-grown cotton”. Vários abolicionistas apostavam nesse projeto também como uma estratégia econômica e política que poderia minar os fundamentos do regime escravista no sul dos Estados Unidos.
No final da década de 1850, Delany chegou a assinar um contrato com o alake (rei) de Abeocutá, que dizia que os chefes locais concordavam em conceder aos colonos afro-americanos o direito de fixar residência entre a população egbá (um dos muitos subgrupos que compõem os iorubás) e cultivar terras não usadas pela população local. No entanto, o projeto faliu devido a vários fatores: depois da volta de Delany aos Estados Unidos, diversos chefes locais se rebelaram contra o acordo, alegando que, conforme as tradições locais, tal decisão não podia ser tomada por uma única pessoa. Além disso, os missionários britânicos, comprometidos com o projeto colonial britânico e preocupados com a intromissão de outros agentes - estrangeiros - na região, utilizaram sua influência, inclusive sobre os chefes locais, para barrar a vinda de colonos afro-americanos.38
Após uma primeira tentativa desastrosa de criar um núcleo de colonização afro-americana na ilha Sherbro (cerca de 120 quilômetros ao sul de Freetown), os agentes da ACS decidiram procurar um lugar ainda mais ao sul. Conta-se que no ano de 1821 o oficial da marinha Robert Stockton, ao chegar ao Cabo de Mesurado, colocou uma pistola na cabeça de “rei Peter” e fez o líder dos gola assinar um documento de venda de terras à ACS.39 Nem contratos escritos, nem posse de terra particular faziam parte das “tradições” das populações que viviam no local. Embora os gola e os vai tivessem certo domínio sobre o mencionado cabo, havia ainda um terceiro grupo - os dei - que habitava essa região havia muito tempo.40 Não é de estranhar que com a chegada dos primeiros retornados surgissem diversos conflitos, e que os grupos locais reagissem com ataques e rebeliões contra aqueles que sentiam como ameaça para o mundo que dominavam e que lhes era familiar.41
Os primeiros afro-americanos aportaram no ano de 1820. Até a eclosão da Guerra Civil nos Estados Unidos, cerca de um terço dos emigrantes veio do chamado Upper South,42 especialmente dos estados de Virgínia e Carolina do Norte.43 Era exatamente nessa região que as tensões em torno da manutenção do sistema escravista se acirravam cada vez mais. Foi também nesse contexto que as chamadas “igrejas negras” (black churches), frequentemente associadas às tradições metodistas ou batistas, ganharam força, e muitos dos seus líderes engrossaram as fileiras do movimento abolicionista. Diferentemente do Caribe e do Brasil, a maioria da população negra era composta por “crioulos” (isto é, nascidos no continente americano), fato que indica também que a reprodução da população escrava não dependia - como em outras partes das Américas - de constantes importações de escravizados/as da África.44
Ao mesmo tempo, o grupo dos livres e libertos crescia num ritmo muito acelerado. Segundo Tyler-McGraw, entre os anos 1782 e 1790, somente no estado de Virgínia a população de negros livres aumentou de 3.000 para 12.866, e em 1800 atingiu a marca de 20.000. Cerca de 40% de todos os afro-americanos livres teriam vivido nesse estado. Uma lei emitida em Virgínia em 1806, que dizia que todos os afro-americanos livres teriam de deixar o estado num prazo de doze meses, não foi executada com rigor. No entanto, o mero anúncio dessa determinação legal funcionava, evidentemente, como uma ameaça aos negros da região.45
A maioria dos emigrantes dos primeiros anos eram pessoas que já tinham nascido livres. Entre elas, havia, aliás, não poucos mulattoes, que tinham condições financeiras melhores: estes podiam logo se engajar em atividades comerciais, o que os diferenciava dos escravizados que seriam libertados pelas ações da ACS. Havia entre aqueles que chegavam à Libéria uma porcentagem de alfabetizados bem maior (39%) do que entre a totalidade da população ex-escrava que vivia nos Estados Unidos (15%).46 Esse fato fez também com que tenhamos hoje acesso a importantes documentos produzidos pelos próprios emigrantes sobre suas experiências de vida;47 para além disso, é um indício de que os “retornados” - sobretudo aqueles das primeiras décadas - pertenciam a certa “elite” entre a população afro-americana.48 Com o decorrer do tempo, as ações da ACS que estimulavam manumissões de escravizados/as trariam também cada vez mais ex-cativos à Libéria.49 No total, até a eclosão da Guerra de Secessão, cerca de treze mil afro-americanos emigraram para a Libéria, de acordo com uma estimativa de Power-Greene.50 Mais do que no caso brasileiro, os retornos dos afro-americanos envolviam frequentemente projetos familiares.51 Ou uma família inteira voltava ou uma pessoa - frequentemente o pai - de uma família viajava primeiro com o objetivo de juntar dinheiro para libertar outros entes queridos que ficaram do outro lado do Atlântico.
A chegada ao Cabo de Mesurado foi, para muitos, uma grande decepção. Houve aqueles que, devido aos seus recursos financeiros e a sua formação educacional, se destacaram imediatamente, prosperaram em termos econômicos e conquistaram um status social nessa sociedade em construção que nunca teriam adquirido nos Estados Unidos. Não foram poucos, porém, que sequer sobreviveram ao primeiro ano devido às condições locais, para as quais muitos não estavam preparados, e que nos relatos de época eram descritas como “insalubres”. De acordo com Burin, na primeira década, entre 1820 e 1830, 29% dos recém-chegados faleceram de malária e de outras enfermidades. Após uma primeira sensação de alívio por ter escapado da escravidão e do racismo vigente nos Estados Unidos, a desilusão, e até o desespero, tomaram conta de não poucos/as emigrados/as. Mais de 35%, ainda de acordo com Burin, resolveram voltar aos Estados Unidos antes de terem concluído um ano de vida na África.52
Muitos sentiam-se enganados pelas promessas da ACS veiculadas de diversas formas, como em suas publicações (por exemplo, African Repository and Colonial Journal). A garantia de abrigo e alimentação durante os primeiros seis meses não era sempre cumprida, e muitas vezes era insuficiente para os emigrantes conseguirem consolidar suas vidas. Os cerca de quatro hectares de terra distribuídos pela ACS frequentemente não ajudavam nem aqueles que tinham habilidade de cultivar a terra, já que havia falta crônica de instrumentos agrícolas adequados.53 Muitos desistiram e resolveram se dedicar exclusivamente a atividades comerciais, de compra e venda.
Os discursos e os planos concretos da ACS seguiam os moldes de outros projetos de intervenção colonial da época. O objetivo declarado era construir uma colônia baseada em uma produção agrícola firme, voltada não somente para o consumo interno, mas também para o mercado internacional. O discurso justificatório dos protagonistas da ACS fundamentou-se em dois argumentos centrais: contribuir tanto para “resolver” o “problema racial” dos Estados Unidos quanto para civilizar e missionar a população nativa africana. Para efetuar tal projeto, era necessário, como primeiro passo, submeter uma área geográfica delimitada ao comando e às regras da ACS, organizar dentro dela a produção e buscar constantemente expandir as fronteiras da área ocupada. As expectativas dos dirigentes da ACS não se realizaram, porém, por diversos motivos: a emigração em massa não ocorreu, de um lado, porque a maioria dos afro-americanos continuava cética em relação ao projeto de emigração e, de outro, porque o governo norte-americano não deu o apoio esperado; outro problema talvez ainda maior era que a organização da produção local enfrentava muitos problemas inesperados. Do ponto de vista econômico, a colônia estava fadada à falência. Foi nesse momento que a ACS se retirou, e um grupo de líderes dos colonos que já colaborava com a ACS assumiu o comando sobre o projeto, que adotaria outro rumo: teria agora como objetivo a construção de uma república negra.54
Na Libéria estabeleceu-se uma hierarquia social marcante. No topo, havia aqueles imigrantes que chegaram dos Estados Unidos como livres. Esse grupo, composto majoritariamente por mulatos e negros com uma tez relativamente clara, fixava-se no litoral e, sobretudo a partir da proclamação da Independência em 1847, dominava os assuntos comerciais e políticos do país. Abaixo dessa elite, encontravam-se os que foram libertados pelas ações da ACS e, seguindo as orientações dessa organização, buscavam sua sorte como pequenos agricultores no interior. O terceiro grupo era formado pelos congoes, como eram chamados os recapturados levados para a Libéria;55 e, por fim, na base da pirâmide havia os vários grupos étnicos locais que constituíam a grande maioria da população que vivia dentro das fronteiras do novo país.
A situação que os recapturados enfrentavam na Libéria não se distinguia substancialmente daquela na Serra Leoa. Aqui também eram integrados ao sistema de apprenticeship. Distribuídos entre os retornados, muitos tinham de executar diversos trabalhos nas casas dos colonos; a função mais importante dizia respeito, mais uma vez, a serviços militares. A única diferença em relação à Serra Leoa era que os congoes não precisavam lutar em guerras coloniais em regiões distantes, longe das fronteiras do país. Em contrapartida, desempenharam um papel de destaque na política de expansão territorial e no combate à resistência das populações nativas, servindo aos colonos como uma espécie de “amortecedor” (buffer) e como “porrete” (“cudgel”) na sua relação com os nativos, escreve o historiador norte-americano Clegg.56 Sempre quando havia uma rebelião de algum grupo étnico, os congoes eram chamados para reprimir ou retaliar as mobilizações indígenas. Como efeito colateral, criou-se uma animosidade mútua entre congoes e nativos, embora existam também alguns registros de colaborações e cooperações entre eles.57
Não é de se estranhar que os recapturados vissem a maneira como foram inseridos na sociedade liberiana mais como uma nova forma de “servidão” (bondage) do que um ato de “libertação” (emancipation), como era propagado pelos colonizadores britânicos e norte-americanos. Em um dos raros trabalhos existentes sobre os recapturados, a historiadora norte-americana Fett aponta para as diversas formas de resistência que os congoes - a grande maioria deles, crianças - desenvolveram contra o sistema de apprenticeship. A pesquisadora documentou vários casos de fuga de congoes. Em uma circunstância, um jovem fugido e recapturado argumentava, ao ser questionado por um pastor luterano, que “nem ele nem seu pai eram escravos”, que “sangue bom e nobre corria nas suas veias” e que queria voltar à sua terra.58
Os nativos foram, certamente, a população mais marginalizada no projeto político que se impôs na Libéria. A Constituição da República, proclamada em 1847, que seguia em muitos pontos a Carta Magna dos Estados Unidos, restringia a cidadania a homens negros proprietários de terra.59 Aliás, até hoje não negros continuam excluídos desse direito fundamental. Tal como em outras colônias instauradas na África, a cidadania era um privilégio de poucos, já que a Constituição definia a adesão aos valores socioculturais hegemônicos como precondição mínima para alguém adquirir o status de cidadão. Sem abdicar daquilo que a elite dos retornados entendia como fetichismo, sem frequentar regularmente a igreja, ser fluente na língua inglesa e usar vestimenta “ocidental”, nenhum nativo seria tratado como igual.60 Consequentemente, a quantidade dos cidadãos nativos foi, durante décadas, irrisória.61
O projeto de colonização que estava se instaurando na Libéria não se distinguia substancialmente das outras intervenções coloniais promovidas por poderios europeus na região, com uma exceção: desde o início, os dirigentes liberianos buscavam reprimir tanto o tráfico de escravos quanto o uso de mão de obra escrava dentro das fronteiras da Libéria. Essa região não era foco principal do tráfico internacional; no entanto, havia, sim, em diversos pontos do litoral, embarques de escravizados/as e diversas formas de dependência nas sociedades do interior, das quais fazia parte o uso de mão de obra escrava. Burin calcula que, com todos os esforços para reprimir o tráfico de escravos, cerca de quinze mil cativos eram exportados por ano, na década de 1840, de um dos portos clandestinos de Cape Mount (província ao norte da capital Monróvia). O combate ao tráfico tinha amplo respaldo da população dos retornados, muitos dos quais se envolveram em ações concretas de combate: vários arriscaram suas vidas em ataques a barracões à beira-mar que eram usados pelos traficantes como abrigos dos/as escravizados/as à espera da chegada de um dos navios negreiros.62
Foi, porém, uma forma específica de dependência e exploração de mão de obra humana que os colonos condenaram e chamaram de “escravidão”: a prática de compra e venda de pessoas era proibida desde o início do projeto de colonização. Outras relações assimétricas parecidas, como servidão temporária por dívida, não eram combatidas. Nas sociedades nativas era possível encontrar um espectro de relações de proteção e exploração, em que os limites entre servidão temporária (pawnship) e escravidão não pareciam muito nítidos para pessoas estranhas. “Adaptada às necessidades e aos valores de cada aldeia, a escravidão era uma instituição maleável entre os dei e os povos vizinhos, às vezes assemelhando-se ao penhor e às vezes lembrando a servidão”, escreve Clegg.63
Os retornados aproveitaram-se dessas “tradições”.64 O sistema de apprenticeship assemelhava-se, de certo modo, ao pawnship praticado pela maioria dos grupos étnicos da região. Esse fato fez com que vários pais nativos não resistissem a entregar filhas e filhos seus a uma das casas dos colonos para lá trabalharem de sete a quatorze anos. Se comunidades inteiras, como os vai, revoltaram-se contra maus-tratos e abusos dessa instituição,65 houve também os que viam nela até uma maneira de abrir aos seus filhos a oportunidade de aprender “the fashion of the white man”, da qual fazia parte o domínio da língua inglesa, visto, com razão, como precondição fundamental para poder ascender na sociedade liberiana.66
A “branquitude” atribuída pelos nativos aos colonos é explicada por Clegg da seguinte maneira: “Muitos africanos simplesmente pensavam nos colonos, culturalmente, como homens brancos que por acaso tinham pele escura”.67 E o historiador Murray complementa: “Foi essa recusa de se colocarem sob os ‘reis’ africanos e a sua continuação de práticas culturais ocidentais, codificadas racialmente como ‘moda [fash] do homem branco’, que levou os africanos ocidentais a identificar todos os praticantes desta moda [fash] como brancos”.68 Esse fenômeno se repetia com praticamente todos os retornados afrodescendentes, inclusive com os afro-brasileiros. A diferença é que no caso da Libéria dispomos de uma grande quantidade de documentos produzidos pelos próprios afro-americanos, que ilustram bem suas atitudes frente ao novo contexto: tanto as reações à maneira como eram vistos pelos nativos (heteroidentificação) quanto a maneira como eles próprios olhavam para a população local.
O primeiro encontro com a população nativa provocou, em muitos dos retornados, um sentimento de forte estranhamento e até de repulsa: “Quando vi os nativos todos nus pela primeira vez, pensei que nunca conseguiria me habituar a isso”, escreveu um clérigo metodista em 1834 e, em uma outra carta enviada por um ex-escravizado norte-americano, lê-se: “É algo estranho pensar que essas pessoas da África são chamadas de nossos ancestrais. No meu pensamento atual, se tivermos ancestrais, eles não poderiam ser como essas tribos hostis”.69
Essa visão que os retornados tinham dos nativos, juntamente a um espírito missionário-colonizador, fazia com que se preocupassem em se mostrar, em público, como “pessoas civilizadas”. Ao cultivar hábitos e comportamentos característicos da sociedade norte-americana - entre os quais se destacavam vestimenta formal ocidental, religião protestante e língua inglesa -, os colonos marcavam e aprofundavam a diferença entre eles e a população local.
Vários colonos tinham o desejo de retornar aos Estados Unidos ou para libertar parentes ou para visitar amigos e até seus ex-senhores. Suas correspondências deixam claro que, nesse retorno, temiam ser tratados novamente como negroes, fato que demonstra o quanto ficaram traumatizados pelas humilhações sofridas nos Estados Unidos e o quanto valorizavam e prezavam o status que tinham assumido na sociedade liberiana: “eu não estaria disposto a voltar para a América para ser chamado de negro”, lê-se em uma das cartas enviadas em 1847.70
A autoidentificação mais comum usada pelos colonos num primeiro momento era simplesmente American ou Liberian e, no final do século XIX, também Americo-Liberian, mas, como salienta Clegg, nunca African ou alguma derivação hifenizada desse termo.71 Eles não mostravam muito interesse em conhecer as diferenças entre os diversos grupos étnicos locais; costumavam tratá-los como um único grupo, chamando-os geralmente de selvagens, pagãos ou ainda de nativos.72 Essas terminologias eram empregadas, inclusive, pelas lideranças religiosas e políticas comprometidas com a implementação de um projeto civilizatório e de missão cristã, que se inspirava nitidamente no modelo da sociedade norte-americana.
“As pessoas entre as quais vivemos são muito ignorantes e supersticiosas”; “os nativos são um povo preguiçoso e admirador de ídolos”; “eles são as pessoas mais selvagens e sedentas de sangue que eu já vi”, são algumas das frases que Murray encontrou nas cartas escritas por colonos.73 Ideias parecidas eram compartilhadas também pelos governantes do país. As palavras do quarto presidente da Libéria, o pastor metodista James Sprigg Payne (1819-1882), que era, aliás, filho de pais mestiços, expressam bem a visão que a elite dos colonos tinha da população local e o espírito missionário e civilizador que movia suas intervenções naquele pedaço do continente africano. “Ó África, levanta-te, resplandece, porque a glória do Senhor está sobre ti. A África é escura [dark]… Mas posso ver um dia melhor, quando haverá telégrafos e ferrovias conectando tribo com tribo, e nação com nação; quando o fetichismo [fetish religion] será substituído pelo cristianismo; e uma estação [telégrafa] será plantada em Lover’s Rock, onde os filhos e filhas da Libéria receberão mensagens da orgulhosa América”.74 Tal postura explica também por que os primeiros mapas da Libéria apresentavam manchas brancas em todos os espaços povoados pelos nativos. A narrativa hegemônica, de acordo com a qual a população local não sabia fazer um uso adequado da terra que habitava, respaldava a convicção dos colonos de que estavam envolvidos na execução de uma grande missão civilizatória.75
Mesmo outro importante líder, Alexander Crummell (1819-1898), que juntamente com Edward Wilmot Blyden (1832-1912) é considerado hoje um dos pioneiros do pensamento pan-africanista, não deixava de disseminar ideias muito semelhantes a respeito da população nativa. Segundo Crummell:
A África é vítima de suas idolatrias heterogêneas. A África tem definhado sob o peso do aumento das misérias moral e civil. A escuridão cobre a terra, e uma grande escuridão, o povo. […] Moloch domina e impera em todo o continente e, pelo ordálio da Sassywood,76 dos fetiches, dos sacrifícios humanos e da adoração do demônio, vem devorando homens, mulheres e crianças.77
Crummell, que atuou durante vinte anos como missionário (ligado à Protestant Episcopalian Church) e pedagogo na Libéria, tal como seu amigo Blyden, entendia que era o dever dos negros norte-americanos voltar à “sua pátria” e contribuir para a obra que visava “elevar” seus irmãos tanto em termos espirituais quanto materiais. O conceito norteador nas suas reflexões era a categoria raça,78 e o modelo societal eram os Estados Unidos, enquanto a língua inglesa - tratada como “língua da liberdade” - era enaltecida em oposição aos “falares” dos nativos,79 e seu ensino tornava-se uma exigência civilizatória.
Blyden, pastor presbiteriano, educador e político, chegou à Libéria em 1850. Embora reconhecesse certos exageros nas políticas coloniais, não deixava de acreditar que fundar “comunidades de negros civilizados da América” e anexar territórios subjugando-os à supervisão e fiscalização permanente era a melhor política, era “a maneira mais eficaz de espalhar a civilização na África intertropical”.80 A África encontrava-se, para Blyden, num “estado de barbarismo”: era um lugar de “ruidosas apresentações dançantes”, onde reinavam o “fetichismo” e a poligamia.81 Essa situação era, porém, atribuída por esse intelectual ao problema da estagnação, que teria basicamente duas causas: o “isolamento da população da parcela progressista da humanidade; e, em segundo lugar, [a] influência nociva do tráfico introduzido entre eles pelos europeus”.82
Já os negros escravizados nas Américas eram vistos por Blyden como exilados que deviam “voltar para a terra de seus pais”; desta forma, abrir-se-ia aos afro-americanos não somente a chance de “FICAR EM PAZ CONSIGO MESMO[S]”, 83 mas eles podiam ainda ajudar a “salvar extensas partes do continente da barbárie e da contínua degradação”.84 Ao destacar analogias com a história bíblica dos judeus, Blyden interpretava a escravidão imposta aos afro-americanos como um sinal de que Deus teria escolhido esses sofredores para redimir o continente dos seus ancestrais. Nestas e em outras afirmações desse líder religioso-político, podemos sentir ecos das ideias de Equiano e de vários pastores negros norte-americanos do final do século XVIII.
Como nas obras de todos os pensadores e pensadoras, é possível encontrar também neste grande orador, político e intelectual certas mudanças de ideias e enfoques que não podemos, porém, explorar, de forma adequada, neste ensaio. Se em todos os seus escritos a raça aparece como tema fundamental e tem um papel importante de análise e como instrumento político, é somente a partir da década de 1880 que Blyden começa a aprofundar as reflexões de ordem conceitual e elabora, finalmente, uma década depois, o conceito de “personalidade africana”.85 Com esta categoria, procurava opor ao mundo branco valores africanos próprios que deveriam ser reanimados e ganhar nova força no processo de “regeneração” do continente africano (“towards the sunrise for the regeneration of a continent”).86
Ao entender que “toda raça é dotada de talentos específicos” e possui, portanto, uma personalidade própria, Blyden defendia agora enfaticamente que cada raça tem o dever de lutar por sua integridade e individualidade (Race Integrity and Race Individuality), mantê-la e desenvolvê-la.87 Essas ideias não deixavam de criar uma tensão - senão contradição - em relação a suas visões de missionar, colonizar e civilizar, o que pode explicar várias avaliações ambíguas e até pejorativas a respeito de certas tradições e crenças nativas feitas por ele. Blyden nunca deixou de usar, nas suas aparições públicas, dois signos identitários importantes da elite “culta” branca norte-americana: o terno e a gravata.
Inspirado em ideias racialistas de sua época, Blyden conjugaria a noção da raça negra com a de nation-building, colocando, assim, as bases de um nacionalismo negro que influenciaria futuras gerações da militância negra em diversos lugares do mundo.88 A afirmação da raça negra constituía, portanto, a base do espírito de união propagado por Blyden: “A restauração do negro à terra de seus pais será a restauração de uma raça à sua integridade original, a si mesma”.89 Blyden acreditava que ainda era reservada à raça negra um lugar importante na história da humanidade, e “o continente africano será o palco principal de sua atividade”.90 Para que essa sina se concretizasse num futuro próximo, seria necessário o fortalecimento de uma “consciência negra”. Assim, a consolidação da noção da raça negra tornava-se um fator aglutinador e unificador fundamental nos projetos políticos de Blyden. É dessa perspectiva que esse líder religioso e político valorizava, de um lado, a pureza racial e, de outro, desprezava a mestiçagem e criticava e atacava explicitamente a “decadente” elite mulata na Libéria. Blyden partia da ideia de que a humanidade era composta por diferentes raças e que cada uma delas tinha, de acordo com a Providência Divina, um papel especial a cumprir. Ser negro seria “um presente” de Deus, mas, segundo Blyden, os tempos ainda não estavam maduros para as pessoas entenderem qual era a exata função que a Providência Divina tinha reservado à raça negra.91
Costa da Mina
Os retornos do Brasil ao continente africano eram moldados por contextos e formas de agenciamento semelhantes. No entanto, havia também diferenças marcantes. Se no caso dos Estados Unidos o fluxo maior seguia da Virgínia e da Carolina do Norte para a Libéria, no Brasil o foco dos embarques era Salvador da Bahia,92 e a maioria das viagens tinha como destino o Golfo do Benim. Aqui também o clima repressivo contra os libertos africanos foi se agravando, acima de tudo, logo após a famosa Revolta dos Malês, que assustou a elite local.93 Foi nesse contexto que surgiram algumas vozes propondo um projeto mais amplo de extraditar a população ex-escravizada. O importante cientista Frederico Leopoldo Cezar Burlamaqui, diretor do Museu Nacional entre 1847 e 1866, defendeu, em 1837, que o processo de abolição da escravidão deveria ser acompanhado por uma política de deportação, a exemplo do que já faziam os ingleses e norte-americanos. “Não se pense que, propondo a abolição da escravidão, o meu voto seja o de conservar a raça libertada”, escreve Burlamaqui.94 O projeto defendido por esse intelectual previa que a população escrava, uma vez atingida a idade de 25 ou 30 anos, fosse libertada e mandada de volta para a África.95
Sabe-se que houve, de fato, deportações. Tratava-se, porém, mais de reações momentâneas de autoridades poderosas a explosões de conflitos locais (por exemplo, rebeliões). Elas não se transformaram em políticas de longa duração executadas por “companhias” particulares ou ainda por instituições do Estado, como ocorreu nos casos britânico e estadunidense. No entanto, face às restrições e pressões - e, no caso específico de Salvador, perseguições contra supostos/as envolvidos/as na Revolta dos Malês -, não poucos africanos libertos decidiram retornar à África. Calcula-se que, ao longo do século XIX, cerca de oito mil “ex-escravos” vindos do Brasil fixaram-se em um dos lugares do litoral da África Ocidental.96
Há alguns pontos que distinguiam o escravismo dos Estados Unidos daquele praticado no Brasil e que - e é isto que quero argumentar a seguir - tiveram repercussão também sobre o modo como os ex-escravizados se inseriram no continente africano. Se a reprodução da população escrava era muito maior nos Estados Unidos, no Brasil, e especialmente na Salvador do século XIX, os escravizados tinham mais chances de adquirir a carta de alforria. Parés calcula que nas primeiras décadas daquele século a porcentagem das pessoas de cor, livres e libertos, na Bahia chegava a cerca de 30 a 40% da população total;97 já nos Estados Unidos, nesse mesmo período, somente 6% da população livre era composta por não brancos.
Sabemos também que, no caso do Brasil, não foram poucos os libertos que compravam um ou outro escravo e que havia escravizados que eram, eles próprios, donos de escravos.98 Estudos recentes de Parés e de Silva Júnior apontam para a emergência de uma minúscula “elite negra” de libertos associada a atividades diretamente vinculadas ao comércio transatlântico, inclusive ao tráfico negreiro.99 Uma parte não desprezível dela reunia-se na Irmandade Bom Jesus das Necessidades e Redenção (IBJNR, 1770-1830), na qual havia uma predominância de afrodescendentes jejes. Muitos eram barbeiros-sangradores,100 milicianos ou capitães do mato, fato que conferiu à IBJNR um caráter de corporação profissional. Parés mostra que a ascensão social dos libertos estava relacionada a uma “relativa inserção no mundo dos ex-senhores, fossem eles brancos ou africanos”. A manutenção de relações duradouras entre libertos e ex-senhores era frequente: aos laços entre senhor e escravo, padrinho e afilhado, protetor paternalista e protegido, juntava-se, por vezes, uma relação entre mestre e aprendiz - o senhor introduzia o escravizado num ofício - que podia evoluir para uma parceria comercial.101 É dessa forma que Parés explica a entrada de muitos libertos da IBJNR no tráfico de escravos (no mínimo, desde a década de 1770);102 e mais: teria sido a fortuna acumulada por alguns ex-escravizados mais prósperos e o status econômico e social conquistado que teriam aberto o caminho para “a subsequente constituição de uma comunidade mercantil em terras africanas”.103 Foi esse contexto que teria dado impulsos importantes para a emergência de ondas de retorno para a África Ocidental, em um momento em que a asfixia política começava a pesar cada vez mais sobre a comunidade de libertos, que via agora no comércio ilegal (a partir da proibição do tráfico ao norte da linha do Equador, 1815) um nicho de atuação para conquistar certa autonomia sociopolítica.104 Parés argumenta, consequentemente, que os retornos para a África não se explicam somente como uma reação à repressão e às perseguições pós Revolta dos Malês, pois devem-se também ao êxito de vários ex-escravizados em se tornar partícipes em uma rede de comércio em que colaboravam tanto com representantes das elites africanas quanto com comerciantes europeus e brasileiros brancos. O sucesso econômico de alguns retornados no litoral africano teria servido como estímulo para outros libertos embarcarem também na “viagem de volta”.
Em diversos outros trabalhos, o antropólogo catalão-brasileiro Parés tem mostrado que a alta porcentagem de livres e libertos na população baiana foi ainda fundamental para a formação das primeiras casas de candomblé. Sabemos também que os terreiros, juntamente com as irmandades católicas negras, funcionavam como espaços importantes, onde a população não branca se reorganizou e conseguiu desenvolver formas de religiosidade e sociabilidade próprias, em um momento em que o regime escravista ainda imperava no Brasil. Aliás, muitos/as líderes e adeptos/as das casas de religiosidade de matriz africana eram também membros de uma das muitas irmandades católicas negras. A convivência entre catolicismo popular e cosmovisões de matriz africana sabidamente não era sem conflitos; mas, mesmo assim, uma diferença em relação às experiências dos escravizados e ex-escravizados norte-americanos é inegável. A religiosidade vivenciada nas igrejas protestantes negras nos Estados Unidos, que funcionavam também como espaços de afirmação grupal, reprimia com mais eficácia as formas de religiosidade de matriz africana.
Os estudos de Parés revelam, ainda, que a abertura das casas de candomblé operava também como um investimento político que estimulava a agregação de dependentes e clientes, dos quais cativos faziam parte. “Essa dinâmica associativa gerava a interdependência coletiva em volta de indivíduos poderosos, determinando [criando] formas de sociabilidade bastante hierarquizadas”.105 O modelo interpretativo que Parés usa para entender tal fenômeno orienta-se pela figura do big man (que podia ser performado também por uma mulher) das sociedades da África Ocidental que “acumula[va] poder em função do número de seguidores”.106 É com esse pano de fundo analítico também que Parés reconstrói partes da história da fundadora mítica do Casa Branca, a Iyá Nassô. O fato de Iyá Nassô ter sido o título da sacerdotisa responsável pelo culto de Xangô no palácio do alafin (rei) de Oió é um forte indício de que essa ialorixá tenha sido proveniente da “Iorubalândia”. Ela foi uma das libertas africanas que, junto ao seu marido, conseguiu acumular bens, tornando-se proprietária de 22 cativos quando, em 1837, resolveu deixar o Brasil com uma das escravas, para nunca mais voltar. O que levou Iyá Nassô a essa decisão foi, aliás, a ameaça de dois de seus filhos, acusados de terem participado da Revolta dos Malês, serem presos. Com análises que lembram investigações de detetive, Parés conseguiu comprovar que Iyá Nassô e seu esposo José Pedro Autran se instalaram em Ajudá (Uidá) - cidade que acolheu um grande número de retornados do Brasil -, onde montaram, inclusive, uma nova casa de culto.
Iyá Nassô e José Pedro Autran pertenciam a um grupo minoritário entre os libertos que se destacaram pelo posicionamento socioeconômico que conseguiram conquistar. Seu caso não deixa, porém, de confirmar certo padrão que envolveu os retornos do Brasil: se nos Estados Unidos “a volta à África” se tornava um assunto-chave nos debates sobre abolição e discriminação racial - emergiam entidades dedicadas exclusivamente a organizar a libertação e os retornos dos ex-cativos, e acirravam-se as discussões no meio da comunidade afro-americana sobre as melhores estratégias coletivas de luta negra -, no Brasil, as viagens para a África ocorriam, na sua maioria, como iniciativas particulares. Em contraste com a Libéria, onde os retornados estavam diretamente envolvidos em um projeto de colonização que visava - sob o lema de “civilizar” e “evangelizar” - uma transformação profunda das sociedades locais, os retornados do Brasil não perseguiam nenhum projeto coletivo transformador que fosse comparável.
A historiadora Souza encontrou um caso em que um grupo de libertos residentes no Rio de Janeiro relacionava seu desejo de retornar à África (no caso, para Cabinda) a um discurso marcado por ideais abolicionistas da época.107 Esse grupo que, em 1851, redigiu, em busca de apoio a seu projeto, uma petição direcionada a representantes do governo britânico residentes na capital,108 jurava que nunca fora proprietário de escravos e prometia que, ao chegar à África, não se envolveria no comércio de escravizados/as, mas dedicar-se-ia exclusivamente à atividade agrícola e ainda procuraria libertar pessoas escravizadas das mãos de traficantes em troca de poder usar sua mão de obra durante dois anos.109 Souza reconhece que se tratava de palavras “pouco comuns” para “libertos bem-sucedidos naquele então Brasil escravista”.110 “O discurso abolicionista que condenava moralmente a prática da escravidão já vinha estando presente no Brasil, mas não era, até esse momento, um conteúdo argumentativo de uso corrente, sobretudo nas falas que se referiam aos retornos para a África”.111 A aparição dessa postura antiescravista num documento dirigido a autoridades britânicas não foi, certamente, um acaso. Os signatários da petição tinham conhecimento do posicionamento que a Coroa Britânica tinha assumido no combate ao tráfico, visto por ela como ilegal; logo, eles conheciam os argumentos que poderiam agradar aos ingleses.
Sabe-se que os portugueses foram os primeiros europeus a construir entrepostos no litoral africano, de maneira que nesses lugares a presença de mercadores e militares lusitanos tem uma longa história. Sabemos também que, entre aqueles registrados por cronistas como “portugueses”, alguns podem ter sido africanos que tinham sido levados como escravizados às terras lusitanas ou mesmo ao Brasil, mas não podemos ter certeza, por exemplo, se um conselheiro do rei Huedá, descrito em documentos de 1649 como “um português negro” cristão, tinha tido passagem no continente europeu ou no Novo Mundo antes de assumir um cargo junto a uma corte real.112 Desde o início do século XVIII, há notícias de que pessoas vindas do Brasil residiram temporariamente na Costa da Mina. A maior parte era de comerciantes de tabaco e de escravizados, além de alguns funcionários do Império Português. Seria esse grupo, do qual faziam parte inclusive alguns forros de origem africana retornados do Brasil,113 que constituiria a base da formação das “comunidades brasileiras”, chamadas hoje de agudás e amarôs, no Benim e na Nigéria.
Relembrando essa história, uma pequena parcela dos agudás do Benim atual entende que os “verdadeiros” fundadores da comunidade eram “brancos”, fato que Milton Guran documentou na sua pesquisa de campo.114 No entanto, não há dúvida de que a maior parte dos agudás contemporâneos descende de libertos retornados do Brasil. Diversos relatos escritos por missionários revelam que também nesse contexto o uso de categorias de cor para identificar uma pessoa dependia, em primeiro lugar, de sua conversão ou não à religião cristã (neste caso, a católica) e, dessa forma, da - suposta - adesão ou não a valores e comportamentos entendidos como cristãos. Para além disso, a fusão entre escravo e cor negra propagada por letrados islâmicos e por religiosos cristãos, fundamental tanto na expansão do Islã na África quanto na execução dos projetos europeus coloniais nas Américas, não deixou de afetar os discursos e imaginários dos vários agentes daquele momento. Assim, o padre italiano Francesco Borghero, da Societé de Missions Africaines (SMA),115 que viveu entre 1861 e 1865 em Uidá, afirmou que
o batismo é como uma espécie de libertação que faz considerar o filho do escravo como se fosse filho do senhor. Essa influência do cristianismo foi tão poderosa que, mesmo na língua dos naturais (do país), as palavras “Branco” e “Cristão” são sinônimos de “Senhor” e de “Livre”, enquanto que [sic] “Negro” e “Pagão” equivalem a servidor e escravo. No Daomé, principalmente, chama-se de branco todos os cristãos, ainda que sejam negros como o ébano.116
Ao mesmo tempo, este e outros missionários da SMA comentaram horrorizado(s) que o catolicismo importado do Brasil convivia com rituais fetichistas e a prática da poligamia.117 De qualquer forma, Borghero e o abade Irinée Lafitte ficaram admirados com os próprios retornados referindo-se a si mesmos como “nós os brancos”.118 No entanto, sabemos que, dependendo dos interlocutores e dos contextos, outras autoidentificações eram também usadas, tais como “súditos portugueses” e mais frequentemente também “súditos brasileiros”, embora os assim autodeclarados tivessem deixado o Brasil na condição de “estrangeiros”.
De qualquer forma, pode-se constatar que a emergência de “comunidades brasileiras” se deu em torno de figuras poderosas que conseguiram se destacar pelo seu sucesso econômico e pela sua habilidade de negociar e estabelecer alianças, tanto com reis locais quanto com administradores coloniais europeus. A maioria delas envolveu-se no tráfico de escravos, e algumas conseguiram de governantes locais uma concessão de uso de terras. Não poucos, entre aqueles que voltaram, queriam retornar a suas comunidades. Mas eles sabiam também que a tentativa de buscar um “caminho de volta” podia expô-los ao risco de serem escravizados.119 A historiadora Amos conta um caso de reencontro com o lugar de origem, que acabou se revelando uma grande desilusão: um retornado partiu de Uidá para o interior; quando chegou à sua vila natal, encontrou-a saqueada e queimada; um outro grupo étnico tinha se instalado no que sobrou da vila; nenhum membro dos seus familiares vivia lá. O fato de os retornados terem sido desprezados pelos nativos por terem sido escravos foi outro fator que dificultava sua reinserção e contribuiu, assim, para a formação de uma comunidade à parte.120
“Permanecer nas cidades da costa e colocar-se sob a proteção de um chefe ou soberano local poderia ser a única saída aos grupos de retornados que chegaram nas décadas de grande fluxo do tráfico ilegal (1830-40)”, escreve Souza.121 Foi assim que as “comunidades brasileiras” acabaram se organizando em torno de “grandes homens”. Submeter-se a uma relação de dependência e até de exploração com poderosos traficantes brasileiros em troca de proteção não era algo que entrava em choque com as experiências da maioria dos retornados, principalmente daqueles que não faziam parte de uma minoria de libertos bem-sucedidos que vivia na Bahia. Nesse caso, a relação patrono-cliente prometia garantia contra a re-escravização e abria a possibilidade de começar uma vida nova e, quem sabe, prosperar. Assim, diversos retornados, ao desembarcarem na África, dirigiam-se diretamente a homens influentes. Em Lagos, na segunda parte do século XIX, Cândido Rocha, um dos homens de negócios mais ricos da cidade, nascido na Bahia, recebia os recém-chegados que vinham com cartas de apresentação a ele endereçadas.122
A administração britânica instalada nessa cidade chegou a incentivar os navios da Bahia a atracarem em Lagos, em vez de desembarcarem em Uidá. As autoridades dirigiam-se aos retornados frequentemente como “iorubás repatriados”.123 Na costa da África ocidental, esses ex-escravizados eram bem-vistos e até disputados, uma vez que traziam conhecimentos práticos e tecnologias que não estavam à disposição naquele momento na região.124 Em todo o litoral, desde a atual Gana até a Nigéria, os retornados ganharam fama não somente como comerciantes, pois também se destacavam no exercício de diversas profissões, como carpinteiros, marceneiros, alfaiates, costureiras, ourives, sapateiros, mestres de obras e pedreiros. As publicações de Guran e Amos trazem listas de nomes (e até minibiografias) de agudás que prosperaram e enriqueceram; não poucos se tornaram personagens famosas na vida pública, inclusive como importantes políticos.125
Outro ponto em comum entre os vários grupos de retornados era o apreço cultivado pela educação de seus filhos, o que não deixava de ser uma estratégia de conquistar e manter uma posição de reconhecimento na sociedade na qual estavam se inserindo. Havia, portanto, uma preocupação em construir escolas, enquanto os mais ricos mandavam seus filhos para estudar na Bahia.126 Era também uma maneira de fortalecer velhos laços e estabelecer novos, uma prática que ajudava a consolidar e até aumentar redes de comércio, funcionando, dessa forma, como um investimento econômico.127 É por isso - tendo em mente essas trocas e os fluxos promovidos pelos retornados e as relações e práticas compartilhadas, e entendendo o Atlântico como ponte de ligação - que Souza propõe o termo “comunidades atlânticas” para as comunidades criadas pelos retornados.128
No golfo do Benim, entre o final do século XVIII e o início do século XIX, as cidades de Uidá, Porto Novo, Badagri e Lagos tornaram-se importantes centros exportadores, inclusive, de cativos e polos de conexões transatlânticas de um comércio cada vez mais comandado por brasileiros. No caso de Uidá, a pessoa de referência para os retornados foi durante muito tempo a figura emblemática de Francisco Félix de Souza. Ele era, aparentemente, reconhecido até mesmo pelas autoridades brasileiras como um importante contato naquela costa. Segundo Alberto Costa e Silva, no ano de 1835, o presidente da província da Bahia, Francisco Gonçalves Martins, recebeu um ofício do intendente da Marinha, Antonio Pedro de Carvalho, no qual informava que os libertos deportados da Revolta dos Malês seriam recebidos por Francisco Félix de Souza em Uidá, e que este se comprometera a registrar o desembarque.129
Não se propõe aqui recontar a história impressionante desse personagem sobre a qual já existem trabalhos excelentes (por exemplo, Law e Costa e Silva). Focarei apenas em alguns elementos de sua trajetória e da comunidade criada em torno dele que, entendo, revelam características de uma sociabilidade distinta daquela que os retornados fundaram na Serra Leoa e na Libéria.130 Diferentemente dos projetos de colonização promovidos por retornados da América do Norte, os retornos para a Costa da Mina não estiveram acoplados a nenhum projeto explícito de civilizar e missionar populações locais, ou ainda de combater o tráfico de escravos e a própria prática da escravidão. Sabe-se, inclusive, que não poucos retornados do Brasil mantiveram em suas casas cativos, e aqueles que se sobressaíam na comunidade eram todos envolvidos no tráfico internacional de escravizados/as. Em contraste com o projeto da Libéria, aqui a elite não buscava ocupar espaços físicos, “reinar” sobre um determinado território, mas “contentava-se” em ter o controle sobre pessoas - uma estratégia de exercer poder que estava em sintonia com práticas sociais e concepções de mundo locais.
Alguns, como Francisco Félix de Souza, tinham grande habilidade em relacionar-se, a um mesmo tempo, com representantes de poderes coloniais europeus, comerciantes brasileiros e governantes africanos. O apelidado Chachá aparentemente não deixou nenhum documento escrito, nem um testamento. Embora - diferentemente da maioria dos retornados do Brasil - não pareça ter sido analfabeto, todos os acordos, inclusive os de negócio celebrados por ele, eram feitos verbalmente. Esse fato parece refletir também uma espécie de ética que tinha a confiança na palavra das pessoas como um dos seus fundamentos.131 Não obstante a falta de registros do próprio Chachá, os estudos de Law e Costa e Silva permitem-nos reconstruir os passos mais importantes da trajetória desse importante personagem.
Sabe-se que Francisco nasceu em Salvador, mas não existem dados comprovados sobre seus pais. Algumas tradições familiares no Benim afirmam que ele era filho ou neto de português e de índia do Amazonas; há quem diga que era branco, outros veem-no como mulato ou mestiço.132 É provável que tenha chegado pela primeira vez entre 1792 e 1795 à Costa da Mina e tenha começado a atuar como mercador particular em Badagri, ao leste de Uidá, onde fundou a feitoria Ajido. Em 1800, depois de ter permanecido um curto período no Brasil, voltou novamente à África. Enfrentou dificuldades nas atividades comerciais e resolveu aceitar o cargo de “guarda-livros do almoxarife” no forte português em Uidá.133 Ao mesmo tempo, cultivava contatos com Pequeno Popó, onde estabeleceu mais um entreposto, dando-lhe o mesmo nome: Ajido.134 Em cada um dos lugares tinha também seus agentes e sócios comerciais. Para além disso, casou-se com Jijibou, uma das filhas de Comlagan, o chefe da região, com a qual teve seu primeiro filho, Isidoro.135 Assim, Francisco foi criando residências em vários pontos da costa, entre as quais podia circular e que funcionavam como núcleos para suas atividades comerciais e pontos de referência para as comunidades dos retornados que emergiam em torno delas.
Costa e Silva descreve o casarão “Singomey”, que Francisco construiu em Uidá, da seguinte maneira:
Uma espécie de compound de chefe africano, com dependências próprias para cada uma das várias mulheres do Chachá. O resto do prédio viria a funcionar como uma casa-grande rural brasileira. Símbolo de status, riqueza e poder, era a um só tempo fortificação, residência, entreposto comercial, banco, hospedaria, oficina e cemitério.136
O depósito de escravos com vários barracões ficava, aliás, nas proximidades dessa sua residência. Estabelecer redes de comércio a partir das suas residências em vários pontos do litoral, criar alianças e pactos, inclusive por meio de casamentos com filhas de personagens locais politicamente influentes, tornar-se progenitor de um grande número de filhos (uma fonte da época fala de “oitenta filhos machos; não contaram as filhas”)137 e aumentar de diversas maneiras o número de dependentes e agregados eram práticas que convergiam para fundamentar e expandir o poder de Francisco Félix de Souza na região. Reproduzia-se aqui um padrão de poder característico da figura do big man, bem conhecida entre diversos grupos (por exemplo, os fons e os iorubás) que habitavam a região.
Francisco era, certamente, aquele entre os retornados que teve mais sucesso; ele se tornou o traficante mais rico, na primeira parte do século XIX, mas havia também outros retornados que seguiam seu modelo e conseguiram se tornar pessoas influentes e de referência para os agudás. Alguns competiram com o Chachá e no fim de sua vida até o superaram em status e poder (por exemplo, Joaquim d’Almeida, chamado também de Zoki Azata). Vários deles colaboraram com Francisco e estabeleceram, inclusive, relações de parentesco via casamento com uma das filhas do Chachá (por exemplo, Joaquim Telles de Menezes e Domingo José Martins). Havia certa tendência à endogamia entre os agudás, o que não excluía - como vimos - relacionamentos e até casamentos com africanas. Chama a atenção que, diferentemente do que ocorria na Libéria, os agudás não tinham, aparentemente, tanta rejeição a reconhecer a paternidade dos filhos gestados por mulheres africanas. Prova disso são os muitos registros de batismo de filhos e filhas dos retornados com várias mulheres, entre as quais não poucas nativas.138
Foi a conhecida história em torno do pacto de sangue entre Francisco - preso por ordem real - e o futuro rei Guezo, da qual faz parte a colaboração em um golpe de Estado no reino do Daomé (1818), que foi responsável por “Chachá” (apelido convertido em “título” por Guezo) ter se transformado, de acordo com Verger, no “maior traficante de escravos de todos os tempos” e, consequentemente, em um dos homens mais ricos de sua época, conquistando, assim, o ápice de seu poder.139
O Daomé era, de início, uma unidade política relativamente pequena no interior de uma região densamente povoada, em que existiam diversos outros reinos. A partir da primeira parte do século XVIII, o reino conseguiu se fortalecer e aumentar seu poder com uma política voltada para ações bélicas que “produziam” prisioneiros de guerra que eram transformados em escravos. Interessava aos reis, acima de tudo, levar os escravizados ao litoral para trocá-los por armas e munições europeias, as quais eram, por sua vez, fundamentais para alimentar a máquina de guerra daomeana. Ter acesso direto aos portos de exportação de cativos, eliminando intermediários nas suas transações, tornava-se, portanto, um objetivo político importante, e levava o exército daomeano a atacar os reinos litorâneos de Aladá e Uidá, os quais, sentindo-se ameaçados, buscavam ajuda de Oió. Esse grande império iorubano em expansão, preocupado com o crescente poderio do daomeanos, conseguiu derrotar, com sua cavalaria, as tropas inimigas, obrigando os reis de Daomé a se subjugarem e se tornarem tributários de Oió durante quase um século (1730-1823).
Foi logo após uma operação militar vitoriosa contra Oió, em 1823, que possibilitou ao Daomé libertar-se do domínio desse império, que Francisco Félix de Souza desempenhou um papel fundamental na restauração de certo controle do rei do Daomé, Guezo, sobre Uidá. No fundo, Uidá não seria incorporado totalmente ao Daomé. Ficou “sempre uma espécie de província exótica ou colônia adjacente” para os dadás (reis) do Daomé, escreve Costa e Silva.140 Embora o rei dependesse do comércio efetuado em Uidá, ele teria, de certo modo, desprezado a cidade como um lugar impuro, também pelo fato de seus habitantes terem venerado a jiboia Dã.141 Lá viviam, além de retornados brasileiros, vários outros grupos, tais como minas, krus, hulas, iorubás, hauçás, guns, mas também franceses, ingleses e espanhóis. Estes, por sua vez, olhavam, de acordo com Costa e Silva, com pavor para Abomé (capital do Daomé): um lugar cujo governante praticava sacrifícios humanos e tinha fama de antropófago.142
Uidá tinha um status especial. Para o filósofo e historiador Polanyi, Uidá era o paradigma daquelas cidades que ele nomeou “portos de comércio”: trata-se de uma espécie de enclaves em regiões cheias de conflitos nas quais pessoas de diferentes proveniências se encontravam, acima de tudo, para se dedicar a atividades de comércio.143 Nesses lugares, as normas e regras de convivência eram bem conhecidas por todos e aplicadas a todos; eram espaços que garantiam, inclusive àqueles que vinham de fora, proteção de suas vidas e de seus bens; neles podiam movimentar-se livremente, mas não lhes era permitido sair dali sem a permissão das autoridades locais.144
Chachá Francisco Félix de Souza tem sido chamado frequentemente de Vice-Rei de Uidá devido à grande importância política, econômica e militar que ocupou; comenta-se também com frequência que tinha o monopólio sobre o tráfico. O historiador britânico Robin Law entende que há certos exageros nessas interpretações, que ele atribui ao fato de os europeus terem sido obrigados a tratar com ele - e não com o rei - para fazer seus negócios. De fato, o cargo oficial do Chachá teria sido o de um “caboceer” de Uidá. Não há, porém, dúvidas de que Francisco tenha tido um papel fundamental no estabelecimento das relações e rotas entre Abomé e Uidá e na comercialização dos escravizados. De acordo com Law, o Chachá detinha “a primeira opção”: os demais mercadores só podiam fazer suas transações depois que o Chachá tivesse vendido todos os escravos do rei e os dele próprio.145 Francisco Félix de Souza atuava, assim, como agente do rei, mas na medida em que era ele quem controlava as exportações e importações, tinha não pouca influência sobre diversas decisões políticas do rei. A importância econômica e política que Chachá ganhou no jogo de poder local faria com que a comunidade de ex-escravizados retornados do Brasil que vivia sob sua proteção em Uidá não se tornasse simplesmente súdita do rei de Daomé, mas conseguisse conquistar um posicionamento de parceira e certa independência de Abomé.
Costa e Silva aponta, com razão, para os diversos papéis que o Chachá exerceu com grande habilidade: amigo, conselheiro e cabeceira de Guezo, exportador de escravos, líder dos agudás e protetor dos europeus.146 Dizia-se português ou brasileiro, “conforme o interlocutor e as conveniências do momento”; “hoje, escudava-se na condição de branco e diretor do forte português [de Uidá] e, amanhã, na de chefe daomeano”.147 “A gente da terra” via em Francisco frequentemente um europeu; já para europeus, podia parecer “um perfeito africano, quando [se movia] entre africanos”.148 Nessa habilidade se refletia a capacidade de lidar com diferentes códigos socioculturais e de usá-los em favor da consolidação de seus projetos pessoais e até da comunidade dos agudás que se formava em torno dele. É por isso que Costa e Silva chegou a caracterizar o Chachá também como um “camaleão cultural”.149
Independentemente da questão de Francisco ter recebido um título formal do rei daomeano ou não, o Chachá cultivava hábitos de um chefe local. “Ao sair de seus domínios, ainda que de calça, paletó, colete e gravata, Francisco agia qual um chefe daomeano. Caminhava debaixo de um grande guarda-sol, precedido por um funcionário que lhe abria caminho e anunciava a passagem, e acompanhado por músicos, cantores que lhe louvavam o nome, bufões e guarda armada. Esta podia ser de mulheres-soldados, que, em caso de guerra, iam somar-se às que compunham a tropa de elite do rei”.150 Mais do que isso: o Chachá dizia-se católico, mas na mais “coerente tradição” afro-baiana da época cultuava também a religião dos voduns.151 Consta que não perdia uma missa, mas, ao mesmo tempo, acredita Costa e Silva, recorria ao oráculo de Fá quando tinha de tomar uma decisão importante.152 O Chachá trouxe para a África, inclusive, um vodu pessoal que já cultuara na Bahia. Dizem que usava um anel em forma de serpente que representava sua divindade protetora Dagoun, que continua sendo venerado até hoje, em um santuário no chamado “bairro brasileiro” (Quartier Brésil). Francisco não foi o único a atravessar o Atlântico de volta com assentamentos de voduns ou orixás ou com outros objetos votivos. Na década de 1950, Verger encontrou em Lagos um descendente de brasileiros, devoto de Xangô, que “tinha um admirável ‘pegi’ trazido […] do Brasil” e, nas suas recentes pesquisas, Parés acredita ter conseguido localizar em Uidá o altar de Xangô para lá levado por José Pedro Autran e por Iyá Nassô.153
As intervenções cada vez mais incisivas dos britânicos contra o tráfico de escravos fizeram com que Francisco Félix de Souza, como vários outros comerciantes, explorasse o sistema de lagoas que tornava possível o rápido movimento de escravizados/as em canoas de Uidá para outros portos da região, escapando, assim, do controle dos britânicos. Nesse momento, o Chachá não agia mais como único agente do rei do Daomé, pois já enfrentava a concorrência de outros mercadores, como Joaquim d’Almeida e Domingo José Martins. Ele hesitava em largar o “tráfico ilegal” e investir no “tráfico legal” com o óleo de palma, como outros agudás faziam, e no fim da vida foi perdendo poder e bens materiais. Dizem que, quando faleceu em 1848, estava fortemente endividado e “quase indigente”.154 A uma ascensão fulminante sucedeu-se, como com tantos outros big men, uma rápida erosão de poder.
Seu funeral, no entanto, tinha características de um chefe local e foi o próprio rei Guezo que o concedeu. As festividades fúnebres duraram vários meses: 300 amazonas dançaram diariamente em uma praça de Uidá, sacerdotes imolaram pombos, galinhas, capotes, patões, porcos e bodes, e tudo isso foi acompanhado com “muita cachaça, e muitos gritos, e muitos tiros para o ar”.155 Guezo ordenou ainda que as cerimônias incluíssem o sacrifício de sete pessoas, uma prerrogativa reservada somente aos reis. Algumas narrativas falam da resistência dos filhos do Chachá contra essas imolações e não se sabe se a ordem de Guezo foi cumprida.156
O título de Chachá tornar-se-ia hereditário dentro de uma espécie de nova dinastia, e foi o primogênito de Francisco Félix de Souza, Isidoro, o primeiro a assumir esta qualificação após a morte do patriarca. As eleições de Chachá dentro da linhagem dos de Souza foram interrompidas algumas vezes, mas retomadas no ano de 1995.157 Guran mostra com seus estudos que o portador do título de Chachá continua exercendo um importante papel de identificação e integração dentro da comunidade atual dos agudás, que continua celebrando o aniversário do fundador da linhagem até hoje.158
Costa do Ouro
Na então chamada Costa do Ouro foi se formando, entre os retornados do Brasil, igualmente uma espécie de dinastia de “ascendência brasileira”. Aqui chegaram bem menos navios do Brasil do que na Costa da Mina, de maneira que o tamanho da comunidade de retornados é bem menor. De qualquer modo, o período da primeira onda dos retornos coincide aqui também com as hostilidades e perseguições que se acirravam com as rebeliões na Bahia no início do século XIX. De acordo com a tradição oral, os primeiros retornados vieram em dois ou três grupos separados, e todos eles desembarcaram no porto de Acra: o primeiro em 1829;159 o segundo - trazendo 200 “libertos” - em 1836, isto é, um ano após a Revolta dos Malês. De acordo com certas narrativas, houve ainda um terceiro grupo que teria chegado nesse mesmo ano; porém, antes de aportar em Acra, o navio teria feito uma escala em Lagos.
São poucos os documentos históricos que foram levantados sobre o passado dessas comunidades até agora, e relativamente poucas pesquisas foram feitas sobre os tabom contemporâneos. A tradição oral e estudos documentais apontam para uma “boa recepção” da parte dos líderes do grupo étnico gã, o qual tinha migrado do interior ao litoral onde fundou, no final do século XVI, um estado em torno de Gã Mashie (Acra).160 Desde muito cedo, os gãs dividiram-se em seis assentamentos independentes (Gã Mashie, Osu, La, Teshie, Nungua, Tema) e consolidaram uma estrutura sociopolítica baseada em clãs. Foi apenas em momentos de crise - ameaças de fora, guerras - que os seis grupos se juntaram, de fato, para atuar como uma unidade coesa.
Em contato com comerciantes europeus desde meados do século XVI, os gãs tornaram-se intermediários muito hábeis. Buscavam controlar o comércio - desde ouro, escravizados, marfim e óleo de palma - entre os europeus e os diversos grupos étnicos do interior, entre os quais se destacou o poderoso reino dos axânti que, no seu auge, ocupou uma região que incluía até algumas partes dos atuais países vizinhos de Gana, Costa do Marfim e Togo.
A estrutura política decentralizada, diferente daquela dos axânti, e uma atitude aberta a influências externas fizeram com que os gãs não apenas incorporassem e adaptassem diversos elementos culturais dos vizinhos fante e, inclusive, de seus inimigos axânti. Desenvolveram também uma política deliberada que visava integrar imigrantes por meio da atribuição de cargos político-administrativos. Assim, imigrantes com habilidades e capacidades que interessavam aos líderes gãs encontravam facilidade para se integrar como um subgrupo na estrutura política gã. Se esta estrutura buscava promover a identificação dos recém-chegados, o Estado gã não os pressionava a abandonar, de vez, suas práticas culturais; ao contrário, eles podiam inclusive, continuar a cultuar suas divindades.161
O núcleo mais antigo do Estado gã, Gã Mashie, é subdividido em sete bairros: (akutsei): Abola, Gbese, Asere, Otublohum (em Usshertown) e Akanmaji, Sempe e Alata (em Jamestown). Tradicionalmente, o Gã Mantse (chefe supremo de Gã Mashie) é escolhido entre as famílias mais importantes dos bairros-clãs mais antigos, Gbese e Asere; mas cada akutso (bairro) tem também até hoje seu chefe (mantse) local.
Toda a então chamada Costa de Ouro, e inclusive a Grande Acra, era disputada por diversas forças coloniais europeias (holandeses, dinamarqueses, britânicos) que construíam fortes a partir dos quais buscavam controlar suas transações comerciais, inclusive o “tráfico negreiro”. Os holandeses ocupavam o akutso Otublohum onde os tambom se instalavam. A esta altura, o chefe gã (mantse) de Otublohum, Nii Ankrah, desempenhava também a função de makelaar; ou seja, o líder gã local atuava também como agente dos holandeses e supervisionava todo o comércio, inclusive o de cativos. Foi ele o principal responsável pelo “acolhimento caloroso” dos tabom.162 Essa constelação marcaria profundamente o processo de “integração” dos tabom, que eram vistos, não só pelos europeus, mas também pelos chefes gãs, como pessoas que tinham o potencial de impulsionar o comércio com o Novo Mundo, especialmente com o Brasil - de fato, sabemos que não poucos da primeira geração envolveram-se no tráfico de cativos. Os líderes gãs, que já tinham largas experiências com a integração de populações de outras regiões do continente africano, podiam esperar que a acolhida dos tabom como aliados fortalecesse sua posição não somente diante dos colonizadores europeus, mas também diante de populações africanas vizinhas, como o poderoso reino dos axânti.163 Os retornados do Brasil traziam saberes e habilidades não conhecidas naquele momento e, portanto, muito valorizadas na região. Ainda hoje, as pessoas ressaltam o papel vanguardista que os tabom desempenharam na perfuração de poços, facilitando às comunidades o acesso à água potável; comenta-se também sobre os tabom terem introduzido profissões importantes, tais como as de alfaiate, carpinteiro e sapateiro.164
O fato de o português - mais especificamente um português crioulizado (Quayson fala de um Portuguese pidgin) - ter sido usado como língua franca de comércio em todo o litoral da África Ocidental durante quase 200 anos deve ter facilitado a comunicação entre os recém-chegados e os gãs.165 A primeira geração dos retornados falava, de fato, português;166 daí o nome “tabom” - derivação da resposta à saudação “como está?”, “está bom” - que seria dada ao grupo.167 Porém, em pouco tempo os tabom assumiram não somente a língua, mas tornaram-se também um subgrupo na estrutura social gã. Eles elegeram seu líder, que assumiu o nome de Azumah, o qual se tornaria uma espécie de título dinástico (o atual chefe dos tabom é o sexto na linhagem, Azumah VI). Os tabom incorporaram diversos elementos dos procedimentos ritualísticos dos gãs, inclusive os ritos de posse e as principais insígnias do chefe;168 eles participam também do grande festival anual homowo, que reúne todos os clãs (akutsei). Tal como os chefes de outros subgrupos (clãs) gãs, o líder dos tabom, quando se apresenta em público, é acompanhado hoje por um “intérprete” que comunica a palavra do chefe à população, pela Rainha-Mãe e por outros dignitários. Como benkumhene de Otublohum, o chefe tabom participa do conselho do Estado gã, no qual ocupa uma posição e função específicas (dzastse, que é responsável pela organização das cerimônias oficiais) e tem os mesmos direitos que os outros chefes locais.169 O chefe maior no Estado gã é o rei Gã Mantse.
Os homens da primeira geração apresentavam-se em público com roupas que sinalizavam o pertencimento a um “mundo da modernidade”, aproximando-se, assim, conscientemente ou não, daquele dos colonizadores europeus e, portanto, dos brancos. Uma fotografia de Azumah II do ano de 1890 mostra o chefe tabom, ao lado do Gã Mantse Tackie Tawiah I, rodeado por sete dignitários, alguns deles sentados no chão. Enquanto o rei e seus dignitários aparecem em panos tradicionais (kenté), Azumah II mostra-se de terno, gravata e cartola, sentado numa cadeira com uma postura rígida; os primeiros três chefes tabom - todos eles nascidos no Brasil - usavam esse traje.170
Há diversos indícios de que os primeiros tabom eram majoritariamente muçulmanos: os registros de nomes e sobrenomes (por exemplo, Maham Sokoto), o momento da chegada dos primeiros grupos pouco tempo depois da Revolta dos Malês (não se sabe, porém, se entre os tabom havia participantes dessa rebelião que, eventualmente, foram deportados pelo governo baiano) e o fato de as primeiras mesquitas em Acra terem sido construídas por retornados.171 Com a instalação de escolas de missão britânica, ocorreram, aparentemente, muitas conversões, de maneira que os muçulmanos constituem hoje uma minoria entre os tabom. Paralelamente a essas duas formas de religiosidade, existe ainda hoje outra tradição ligada ao culto de Xangô que, aliás, tem tido um papel fundamental no jogo identitário dos tabom.
As primeiras duas gerações conseguiram conquistar um status social e um bem-estar relativamente elevado. Não poucos enriqueceram com as atividades comerciais, embora ninguém tenha conseguido acumular tanta riqueza como o Chachá e seus descendentes no Daomé. A relação dos tabom com a escravidão é um tema complexo à parte, que tem marcado seu posicionamento identitário de diversas formas. De um lado, o estigma de ser escravo, ex-escravo ou descendente de cativos pesou também sobre esse grupo.172 Ao mesmo tempo, parece não ter havido, entre os líderes da primeira geração, nenhuma rejeição ao fenômeno da escravidão em si. Sabe-se que, como diversos outros grupos da região, os tabom mantiveram escravizados/as para executar serviços domésticos. Fizeram também amplo uso de mão de obra escrava nas suas lavouras onde plantavam diversos vegetais, tais como tomates, batatas, quiabo e mandioca.173 Já o papel assumido pelos tabom no tráfico de escravos foi destacado por administradores coloniais. O governador dinamarquês Edward Carstensen reportou do Christiansborg Castle (Acra), em 1845, que “a Acra holandesa tem sido há algum tempo o centro de comerciantes de cativos, especialmente os negros brasileiros emigrados”.174
A inibição do tráfico de escravos por parte da administração colonial britânica fez com que os tabom se dedicassem cada vez mais a atividades agrícolas e à comercialização de óleo de palma. A decadência social teve seu início com apostas em aluguéis e a venda de imóveis, fato que provocaria enormes conflitos e, finalmente, fissuras profundas na comunidade. Os problemas surgiram quando alguns tabom começaram a vender individualmente parcelas das terras, as quais tinham sido ocupadas e usadas pela primeira geração de forma coletiva. Essas transações seriam logo contestadas por outros tabom: as brigas resultaram em processos jurídicos que se arrastavam, por vezes, durante décadas. Ocorreu um movimento de dispersão e a desagregação que faria também com que em dois momentos a comunidade ficasse sem chefe: entre os anos de 1927 e 1936 e entre 1981 e 1997.
Em tempos mais recentes, a relação histórica com a escravidão ganhou nova importância para os tabom. De um lado, sua própria experiência escrava no Brasil continuava sendo um ponto central para a fundamentação da identificação grupal. É a memória coletiva desse deslocamento e sofrimento que une o grupo.175 No entanto, o envolvimento com o tráfico de escravos, que fazia com que outros africanos fossem obrigados a sofrer o mesmo destino do qual seus ancestrais tinham escapado, tornar-se-ia um assunto bastante conflituoso e, de certo modo, um “fardo moral” para as gerações contemporâneas.
Esse fato tem também a ver com a maneira como a história da região vem sendo revista no país. Desde o início do novo milênio, o governo ganês tem investido no turismo de rememoração, buscando atrair, sobretudo, negros norte-americanos. Focos dos programas de turismo são sítios históricos relacionados aos horrores da escravidão, tais como visitas aos castelos de Cape Coast e, acima de tudo, de Elmina, construído pelos portugueses em 1482, onde milhares de escravizados/as embarcaram para serem transportados ao Novo Mundo.176 Houve diversas solicitações da parte dos chefes tabom de incorporar às propagandas de turismo de rememoração internacional visitas a prédios históricos de sua comunidade, as quais não receberam, porém, muito apoio do governo.177 O papel que os ancestrais tiveram no tráfico de escravos tem dificultado a inserção e a participação dos tabom em roteiros turísticos e projetos de rememoração que buscam problematizar a história do tráfico negreiro. Diante desse contexto, a maioria dos tabom evita hoje falar sobre essa parte da história dos seus ancestrais, e muitos jovens descendentes dos retornados preferem identificar-se hoje, em primeiro lugar, como ganeses ou gãs.178
Existem, porém, dois contextos específicos em que a “identidade tabom” é celebrada pelo menos por uma parte dos descendentes. Ambos estão diretamente relacionados com o agbe, uma tradição musical com elementos performáticos que envolve toques de tambor, danças e cantigas e incorpora diversos elementos iorubás (vários nomes dos instrumentos usados são de origem iorubana). O toque do agbe ocorre, tradicionalmente, em funerais e em rituais dedicados a Xangô. Durante as cerimônias fúnebres, há um momento em que as pessoas presentes despacham o espírito do defunto de volta ao Brasil para lá reencontrar-se com os ancestrais.179 O caso dos ritos religiosos relacionados com a divindade Shango (Şángò ou Xangô) aponta para uma complexidade ainda maior no que diz respeito à construção e à reconstrução de relações e identidades diaspóricas. Shango é cultuado, acima de tudo, porque os tabom entendem que foi ele que protegeu os ancestrais na longa viagem de volta à África. Afirma-se, então, que essa divindade (às vezes chamada também de espírito) foi trazida da Bahia para Acra.180 Diz a história oral que o primeiro chefe tabom - Azumah I - esposou, na sua volta à África, uma mulher nigeriana chamada Teresa Iawo (ìyàwó, em iorubá, tem sido traduzido geralmente como “esposa”),181 que ele teria conhecido durante a escala em Lagos.182
A presença de diversas referências culturais iorubanas nas tradições tabom pode estar relacionada também com contatos contínuos diretos e indiretos que os tabom têm cultivado com outras comunidades de retornados que se fixaram no litoral ocidental africano, incluindo a região da Nigéria e do Benim.183 “No início do século XX, eles [os tabom] se deslocaram para frente e para trás entre as comunidades afro-brasileiras ao redor da Baía de Benim (Benim, Togo e Nigéria) por várias razões que incluíram comércio e visitas a outros membros da família ao longo da costa da África Ocidental”, escreve Essien.184 Ao defender sua visão de African Diaspora in Reverse, o historiador ganês relaciona a ocorrência de elementos culturais iorubanos entre os tabom com esse tipo de mobilidade (“mobilidade reversa”) e critica, com razão, esse fenômeno não ter sido considerado nas grandes teorias sobre o tema “diáspora”.185 As reflexões críticas de Essien se aplicam também às outras comunidades formadas por retornados do Brasil, como as atuações de Francisco Félix de Souza ao longo do litoral da Costa da Mina; de fato, foram criadas redes que não somente atravessavam o Atlântico, mas foram se estendendo também sobre as costas da África Ocidental.
No entanto, para além do reconhecimento da importância dessas redes que possibilitavam manter contatos entre essas comunidades, este ensaio quis, acima de tudo, chamar a atenção para diferentes processos de inserção nos locais de chegada. No que diz respeito a esta questão, podemos perceber uma nítida diferença entre os tabom de Acra e os agudás de Uidá. Ambos os grupos se adequaram, de certo modo, às estruturas locais, tanto é que seus descendentes falam hoje as respectivas línguas locais. Se os tabom se tornaram uma espécie de ramo dentro de um grupo étnico, os agudás também se associaram a um reino poderoso, embora tomassem residência num lugar distante do seu centro de poder. Ambos criaram uma espécie de dinastia própria que sobreviveu até hoje. No entanto, devido ao poder econômico e político que o Chachá conseguiu estabelecer, fundamentado também em um pacto de sangue com Guezo, os agudás conquistaram certa independência, e seu líder foi até capaz de exercer certa influência política sobre o rei.
Comparações e conclusões
Este artigo teve como objetivo iluminar as experiências das primeiras gerações de retornados ao continente africano, tendo como foco quatro casos específicos. Houve diversas semelhanças, sobretudo as experiências de escravização, exploração e diferentes formas e consequências dos racismos sofridos por essas populações: todos aqueles que atravessaram o Atlântico carregavam, inevitavelmente, esse trauma.
Deve-se destacar ainda as compartilhadas pressões sobre os libertos, já que nem na América do Norte nem em regiões mais ao sul as elites locais estavam dispostas a tratar os negros como “iguais”, concedendo-lhes o mesmo status social e os mesmos direitos formais. A preocupação maior das minhas análises é, porém, tentar analisar e comparar os processos de inserção dos retornados no continente africano e buscar e interpretar semelhanças e também, principalmente, diferenças entre elas.
O fato de não poucas das atuações e discursos dos retornados aparecerem para nossos valores e sensibilidades do século XXI como no mínimo “problemáticas” não diminui, evidentemente, a violência dos racismos, das discriminações e humilhações que todos aqueles que apostaram numa nova vida na África sofreram. Foram exatamente esses sofrimentos que levaram esses afrodescendentes a tomar essa decisão. Mesmo assim, tratar esta história melindrosa num artigo acadêmico pode ser visto como politicamente incorreto por alguém que procura combater o racismo contemporâneo. Eu acredito, porém, que um antirracismo sério não deve fechar os olhos diante daqueles aspectos das resistências e lutas pela sobrevivência que porventura nos incomodam. Uma compreensão do passado que evite maniqueísmos pode nos ensinar muito sobre como avaliar o presente e nos ajudar a elaborar estratégias de combate mais realistas, mais sensatas e mais eficazes.
Um ponto importante que distingue as experiências na Libéria e em Serra Leoa daquelas que ocorreram na Costa da Mina e na Costa do Ouro foi o fato de que nos primeiros dois exemplos os retornos se deram em um momento de intensas discussões sobre o escravismo tanto entre a elite branca quanto entre a população afro-americana. Os retornos envolveram a criação de associações (companhias) fundadas especialmente não apenas para promover a libertação de escravos e o translado, mas também para estabelecer e garantir estruturas políticas, econômicas e sociais básicas que permitissem organizar a vida dos ex-cativos após sua chegada à África. Em ambos os casos, houve participação e apoio de governos, embora, no caso da Libéria, os mentores do projeto de emigração tivessem contado com uma participação maior e mais financiamentos diretos da parte do Estado. Aqui, um projeto de iniciativa privada, a ACS, acabou se transformando na fundação de um Estado que nasceu com os lemas do antiescravismo e da defesa e afirmação da raça negra. No caso de Serra Leoa, foi a própria Coroa Britânica que socorreu a companhia fundadora, quando o projeto de investir na produção agrícola se mostrava não rentável. O combate aos “transportes ilegais” de escravizados promovidos pelo governo britânico fez com que chegasse à Serra Leoa uma grande quantidade de recapturados de diversas origens étnicas e falantes de muitas línguas diferentes, surgindo ali um idioma próprio, um crioulo de base lexical inglesa e com muitas influências do iorubá. Já na Libéria o maciço fluxo de retornados dos Estados Unidos que assumiram o controle sobre a criação de um novo país fez com que o inglês se tornasse a grande referência linguística para toda a população que vive dentro das fronteiras nacionais. Se os recapturados foram usados em Serra Leoa para servir aos interesses da Coroa Britânica, lutando como soldados (inclusive fora das fronteiras do país, como em intervenções militares no Caribe), na Libéria os recapturados ganharam mais importância em ações que visavam controlar e, por vezes, combater populações nativas vistas como rebeldes.
No Brasil não havia, no início do século XIX, uma discussão pública tão intensa como nos Estados Unidos sobre o fim da escravidão, tampouco sobre os retornos à África como possível “resposta” à liberdade dos africanos e seus descendentes. Os escravos e ex-escravos na Bahia terem conseguido reagrupar-se dentro das confrarias negras e, muitas vezes, paralelamente em casas de candomblé, fez com que não ocorresse um rompimento tão drástico com as cosmovisões africanas como foi o caso nos Estados Unidos, onde a reorganização dos negros se deu, em grande medida, nas igrejas protestantes. Nesse contexto, as reivindicações por liberdade e igualdade articuladas pelos líderes mesclaram-se com um espírito de evangelizar e “combater o mal” nesse mundo. A ideia da libertação era associada por pastores afro-americanos à imagem do êxodo bíblico dos judeus; assim, o líder religioso e político Blyden chamaria a atenção para semelhanças entre o destino dos judeus e o sofrimento dos escravizados/as afro-americanos/as para fundamentar o projeto de retorno à África. Já nas confrarias negras e nos terreiros da Bahia ocorreram processos de re-etnicização que se cristalizariam na forma das chamadas “nações”: nesse processo, reis, rainhas, ialorixás e babalorixás atuaram como figuras fundamentais de integração e identificação. A contínua força de concepções de mundo de matriz africana no Brasil deveu-se também - mas não exclusivamente - aos desembarques constantes de escravizados nos portos deste país e, portanto, ao fato de a porcentagem de africanos de primeira geração entre os escravizados e ex-escravizados ter sido bem maior do que nos Estados Unidos.
Essas “histórias” e experiências nas Américas teriam seus reflexos no momento da inserção dos retornados na África. De um lado, tivemos intervenções planejadas e organizadas por poderosas organizações privadas e governamentais; de outro, iniciativas particulares de retorno que se organizaram em torno de figuras poderosas, os big men, os quais tinham longa tradição na África Ocidental e não deixavam de tê-la no escravismo brasileiro. Delimitar um território dentro do qual o projeto missionário e civilizatório deveria ser realizado foi fundamental em Serra Leoa e, acima de tudo, na Libéria. Um dos lemas e ideais propagados pelos líderes dos retornados era salvar os irmãos africanos de seu estado pagão e elevá-los a um patamar de civilização de acordo com o modelo britânico ou norte-americano. Havia um consenso amplo em torno do combate à prática da escravidão; formas parecidas de uso de mão de obra local, que não deixavam de envolver relações hierárquicas, de dominação e até de inferiorização, eram toleradas e amplamente praticadas, e podiam ser justificadas como uma prática que contribuía para missionar e civilizar os nativos. Já os retornos do Brasil não foram vinculados a um projeto civilizatório, missionário e, portanto, de transformação social explícito. Dessa forma, as primeiras gerações não entraram em choque com formas de escravidão praticadas por populações locais, tampouco opunham-se às políticas dos administradores coloniais instalados nos diversos fortes nas costas da África Ocidental que não deixavam de instigar conflitos entre grupos étnicos, visando a “produção” de escravizados. Ao contrário, não poucos retornados, sobretudo os mais poderosos entre eles, engajaram-se no comércio transatlântico, do qual fazia parte o tráfico de escravos: foram habilidosos na criação de redes e laços tanto com a elite africana local quanto com comerciantes brancos europeus e brasileiros.
Em vez de conquistar um território, delimitá-lo e governar sobre ele, a “elite agudá” buscava ter domínio sobre pessoas, uma concepção de poder que convergia mais com concepções de mundo e práticas sociais de diversos grupos étnicos que encontravam na África do que com os ideais político-ideológicos que guiavam os mentores dos projetos de colonização na Libéria e em Serra Leoa. Associar-se a chefes locais e reis, fazendo alianças com eles, ou ainda a eles submeter-se fazia parte de uma lógica de poder que era familiar a muitos retornados do Brasil. Vimos, ao exemplo dos que “voltaram” para Uidá e dos que desembarcaram em Acra, duas modalidades diferentes da “aplicação” dessa estratégia de inserção. Comum a ambos os casos é o fato de que tanto entre os agudás quanto entre os tabom emergiram figuras de referência poderosas, que se tornaram fundadoras de “dinastias” existentes até hoje.
Gostaria de chamar ainda a atenção para outras implicações desses retornos. Vimos que no contexto específico da Libéria alguns líderes assumiram posições que traziam o germe de ideias pan-africanistas. Blyden tinha em mente um projeto missionário e civilizatório que deveria ser executado exclusivamente por negros e para negros e que visava a transformações sociais profundas. Se uma concepção essencializada e naturalizada da ideia de “raça negra” orientava o olhar desse religioso, ele não deixava de perceber grandes diferenças dentro dessa unidade postulada. Uma mescla de ideais religiosos com ideias iluministas fez com que, durante muito tempo, também esse importante líder não questionasse as violências que as intervenções propostas implicavam para aqueles que deveriam ser civilizados e salvos do “paganismo”. Nesse quesito, seu projeto não se distinguia substancialmente de outros colonialismos.186
Mostramos ainda que alguns princípios básicos do nacionalismo negro, do pan-africanismo e ideias como a personalidade africana podem ser associados a figuras históricas, tais como Blyden e Crummell, que estiveram profundamente envolvidos no projeto de volta à África. Sabemos que essas ideias repercutiram fortemente nos Estados Unidos e seriam retomadas por gerações posteriores de militantes e políticos negros. Já no Brasil, os mesmos posicionamentos e estratégias de luta foram rechaçados num primeiro momento pelos movimentos negros, cujos líderes não deixavam de ter tido conhecimento deles.187 No entanto, por aqui repercutiram outros movimentos e ideias também gestadas na África e que tiveram notável participação de retornados e recapturados. Comentamos o complexo processo em torno da etnogênese dos iorubás e o envolvimento direto de saros nesse processo. Há quem argumente que os protonacionalismos nigerianos, que emergiram a partir de meados do século XIX na região, receberam não somente impulsos de figuras emblemáticas como Blyden, que esteve pessoalmente em Lagos em 1891. Os pastores saros, com seus escritos sobre os iorubás - sugerindo, implicitamente, a existência de um padrão de língua, hábitos, valores e concepções do mundo compartilhados - teriam contribuído não apenas para fundamentar a ideia de que existe um grupo humano homogêneo (o povo dos iorubás), mas suas narrativas criadas em torno da cultura iorubana teriam servido também como fonte de inspiração para as primeiras ideias nacionalistas.188 Foi, aliás, o trabalho missionário - executado em boa parte por pastores saros - e a implementação de um primeiro sistema escolar que possibilitou a disseminação e a popularização do próprio termo iorubá na região, fato que ocorreu não antes de meados do século XIX.189
Por volta de 1890, uma elite burguesa de Lagos formou um movimento de cunho nativista chamado de “Renascimento Lagosiano”. Sentindo-se discriminada pela política colonial britânica e dialogando com personagens como Blyden e também com líderes afro-americanos, essa intelligentsia local reagiu, de acordo com Matory, a experiências de humilhação e discriminação com a produção de representações idealizadas e essencialistas das tradições locais “iorubanas”. Manuela Carneiro da Cunha chama a atenção para o envolvimento de uma parte dos retornados do Brasil nesse processo: “uma burguesia comerciante […] ligada aos valores ocidentais: é dela paradoxalmente que vai sair a primeira contestação política, um protonacionalismo que se manifesta sobretudo em uma revalorização das tradições iorubanas”.190
Teria sido nesse contexto histórico que se articulou e se firmou a noção da “pureza iorubana” (“pureza nagô”), que incluía a ideia da “superioridade” dos iorubás em relação a outros grupos. A elite lagosiana, que se via como cristã, não chegou a propagar a religião dos orixás nos seus escritos, mas prezava os “cultos iorubanos” como uma herança valiosa dos seus ancestrais. O conjunto de textos produzidos em torno dos iorubás, num momento do despertar nacionalista nigeriano, contribuiu, de acordo com Matory, para consolidar uma codificação cultural-religiosa que podia ser apropriada e reinterpretada por seguidores (“descendentes iorubanos”) nos dois lados do Atlântico.191 O antropólogo norte-americano localiza nesses processos a origem da projeção das casas nagô nos candomblés na Bahia.192
Parés critica Matory, não sem razão, por este não ter levado suficientemente em consideração nas suas análises os contextos brasileiros. Para ele, a “ideologia do prestígio”, fundada na tríade conceitual “África-pureza-tradição”, marcou o mundo do candomblé desde seus primórdios e é parte integrante dele. Parés193 atribui o destaque da nação ketu-nagô no mundo dos candomblés, acima de tudo, a disputas internas: uma luta de poder que envolvia congregações de origem africana com um número crescente de terreiros “crioulos” dedicados ao culto de caboclo.194 Ele não nega, no entanto, que a ideia da supremacia iorubana gestada do outro lado do Atlântico tenha favorecido a disseminação da “tradição nagô” em muitos lugares das Américas, onde iorubanidade tendia a se tornar sinônimo de autenticidade africana: ao enaltecer a pureza nagô, as casas antigas da Bahia conseguiram conquistar visibilidade e prestígio em detrimento de outras. Parés tampouco contesta que nesse processo libertos e negros livres ligados a casas de candomblé na Bahia que viveram durante algum período na Nigéria (especialmente em Lagos) tenham desempenhado um papel de catalisador nessas transformações. Se é, portanto, inegável que esses fluxos e refluxos tiveram algum impacto não desprezível sobre as crenças e práticas religiosas de amplas camadas da população brasileira, os contatos transatlânticos estabelecidos pelos retornados afro-americanos não impulsionaram nenhum fluxo semelhante de saberes ligados a cosmovisões africanas em direção à América do Norte: não havia receptividade por lá naquela época.
Foram reflexões como aquelas de Paul Gilroy em torno do Atlântico Negro que abriram o caminho para que os estudos acadêmicos se sensibilizassem com relações transatlânticas, como aquelas acima descritas. A perspectiva do Atlântico Negro rompe com o nacionalismo metodológico e reorienta nosso olhar para as redes, os diálogos e as múltiplas trocas entre os dois lados do Atlântico. É, porém, importante não perder de vista que as participações no Atlântico Negro se dão de diversas maneiras. Para entendê-las de forma adequada no caso dos retornados, é preciso focar também em processos históricos anteriores às viagens e nos contextos particulares dos dois lados do Atlântico. Com as comparações deste ensaio, que apontam para diferentes formas de inserção na África Ocidental, isto é, diferentes modos de relacionamentos com populações nativas, quero argumentar que existem forças estruturantes a partir das quais os agentes desenvolvem suas estratégias.
Análises informadas por um viés pós-estruturalista, que focalizam discursos e posicionamentos e fazem um uso da categoria “negro” que prescinde de reflexões sobre disputas contextuais em torno dela tendem a não reconhecer as diferenças estruturais de atuação explicitadas neste artigo. Podem ser simplesmente omitidas, como ocorre também na obra clássica O Atlântico Negro, de Gilroy.
As diferentes relações estabelecidas entre retornados e população nativa na África Ocidental apontadas nos nossos quatro casos empíricos revelam também usos históricos das categorias “negro” e “branco” que o modelo do Atlântico Negro não prevê e implicitamente exclui.195 Vimos que os retornados nas diversas regiões da África Ocidental eram tratados e até nomeados pelas populações locais como “brancos”, e não poucos retornados da primeira geração cultivavam este “status” por meio de hábitos que os distinguiam dos nativos. No caso da Libéria, mesmo aqueles que levantaram a bandeira de unir a “raça negra” não deixavam de contribuir, com suas ações e discursos, para estabelecer relações com a população local que impossibilitavam uma identificação mútua. Ficou evidente que os nativos não podiam se ver incluídos no grupo identitário que os colonizadores formaram.
Não deixa de ter certa ironia retornados afro-americanos, como Blyden e Crummell, mentores do nacionalismo negro e do pan-africanismo, terem sido associados pela população local exatamente àquele grupo humano ao qual esses líderes buscavam se opor. Revela-se aqui, uma vez mais, que autoidentificações podem não coincidir com heteroidentificações e que pode haver discordância e disputas em torno dos critérios que orientam as classificações e identificações. Nosso exemplo mostra bem que as categorias “negro” e “branco” (e também “raça negra” e “raça branca”) são articuladas pelos agentes com “fins identitários”: elas nos permitem “identificar”; isto é, possibilitam expressar pertencimentos e posicionamentos que sempre são contextuais. E sabemos que processos de identificação são permeados e moldados, de um lado, por valores e tradições culturais, das quais fazem parte esquemas de classificação, e, de outro, pelas estratégias particulares dos agentes neles baseados. Nesse sentido, o estudo dos nossos quatro casos pode servir também como - mais um - alerta para não atribuirmos a tais categorias significados trans-históricos e transculturais imutáveis. Pelo bem das nossas análises e pelo bem da convivência entre seres humanos.
Notas
Autor notes
andreas.hofbauer@uol.com.br