ENTREVISTA
IWALEWA: ENTREVISTA COM O SHEIKH ABDUL HAMEED ABU BAKR AHMAD
IWALEWA: ENTREVISTA COM O SHEIKH ABDUL HAMEED ABU BAKR AHMAD
Afro-Ásia, núm. 67, pp. 530-581, 2023
Universidade Federal da Bahia
Até a primeira metade do Oitocentos, quando começou o declínio das comunidades muçulmanas no Brasil, Salvador era a cidade com a mais forte presença da religião islâmica no chamado Novo Mundo.1 Em que pese a diversidade de origens étnicas dos africanos islamizados, os malês (do iorubá ìmàle), como eram conhecidos os muçulmanos de origem iorubá, sobressaíram pelo grande número e por conta do seu protagonismo na rebelião escrava de 25 janeiro de 1835.2 A Revolta dos Malês teve como consequência a repressão violenta ao Islã, com a criminalização por muitos anos da matriz religiosa e deportações em massa de seus adeptos.3 Apesar da repressão, o islamismo sobreviveu em diferentes partes do país até a morte dos últimos afromuçulmanos na virada do século XX, voltando a se organizar na Bahia cerca de um século depois, por desígnio e por destino, liderado justamente por um muçulmano iorubá, um autêntico imàle, Sheikh Abdul Hameed Abu Bakr Ahmad.

Antes de focarmos mais diretamente nos diálogos com ele, é oportuno esboçar um relato sucinto de sua biografia, e uma breve contextualização do seu lugar de origem e da sua chegada ao Brasil. Como a proposta aqui é privilegiar as palavras do entrevistado na descrição e impressões dos acontecimentos, assim como a articulação destes com estudos sobre o tema, o texto preambular terá apenas por objetivo delinear, de forma circunscrita, alguns aspectos do ambiente familiar, cultural e religioso que enquadra a trajetória de vida e as percepções éticas do Sheikh Ahmad.
Atual líder espiritual da comunidade muçulmana baiana e um dos dois únicos sheikhs africanos do Brasil,4 Alhaji Abdul Hameed Abu Bakr Ahmad, mais conhecido como Sheikh Ahmad, é uma figura singular na paisagem religiosa nacional.5 Sua história também se entrelaça à história da Bahia, em um movimento transatlântico passado, presente e futuro. Nascido em 20 de novembro de 1950, em Iba, uma pequena comunidade rural com cerca de três mil habitantes no estado de Oxum, no sudoeste da Nigéria, ele corporifica um encontro entre territórios e pertencimentos. Filho de pais muçulmanos convertidos e neto e sobrinho de adeptos do Ifá, o sistema divinatório iorubá, e de outras tradições africanas, Ahmad foi socializado em um ambiente diverso desde cedo. Na família havia pastores protestantes, muçulmanos e cristãos, com variados graus de compromisso religioso, que conviviam harmoniosamente. Longe de um cenário excepcional, a composição da família Ahmad reflete dinâmicas comumente observadas entre os iorubás, em que as fronteiras entre práticas religiosas podiam ser tênues e o Islã, mesmo com ocasionais estranhamentos e ambiguidades, compõe um cenário tradicionalmente matizado pela coexistência inter-religiosa, maleabilidade e tolerância.6
A expansão do Islã na África se deu em diferentes momentos, de diferentes modos e com diferentes intensidades, a partir da expansão do Império Árabe-Islâmico pelo norte do continente em torno do ano 660, e chegando à África Ocidental através de uma combinação de conversões pacíficas e movimentos de jihad.7 Embora a chegada da religião no território tenha envolvido ondas de violência proselitista, na maioria dos casos o comércio foi a ferramenta principal de expansão, e o estabelecimento do Islã foi impulsionado pela capacidade de simbiose cultural por ele produzida em terras africanas.8 Mesmo diante do imperativo de referência às tradições e instituições estabelecidas no Islã, que incluem e referem sobretudo aos textos fundacionais do Alcorão e do Hadith,9 modelos normativos da religião foram gradualmente recodificados e atualizados de acordo com as interações culturais produzidas no sudoeste da Nigéria.10
Particularmente nos territórios iorubás, a primeira presença de nativos muçulmanos foi registrada em 1775.11 Com o processo de expansão da religião revigorado pelo jihad fulani de 1804, o Islã adaptou-se de forma seletiva aos costumes locais, conferindo legitimidade a práticas sociais já estabelecidas, como a poligamia masculina, com frequência permitindo a inclusão, também seletiva, das culturas locais. Conexões e empréstimos simbólicos entre o Islã e as religiões indígenas africanas são também constitutivos do universo das populações iorubás.12 Dentre esses, destaca-se a utilização de amuletos e patuás com escrituras corânicas que se tornariam indissociáveis dos malês envolvidos no levante na Bahia, e a incorporação dos muçulmanos à mitologia dos orixás - sendo exemplos paradigmáticos o parentesco alegórico entre o Deus supremo iorubá Olódùmarè (Olodumarê ou Olorum) e o Deus abraâmico, bem como entre os chamados orixás brancos como Óri alá (Oxalá) e os filhos de Alá.13
Essa dinâmica foi reconfigurada no último século, quando, após a imposição do domínio colonial britânico na década de 1890, se acentuou a disputa por hegemonia entre o Cristianismo e o Islã na África Ocidental. Embora não uniformes em sua distribuição regional, ambas as religiões experimentaram, de seus números modestos no final do século XIX, um crescimento dramático no século seguinte: até o final da década de 1930, a maioria dos iorubás havia se tornado muçulmana ou cristã, porcentagem que chegou a 90% no início da década de 1950.14 Além de identificação espiritual, dinâmicas envolvendo condições e agências locais, informadas por pragmatismo econômico e político, permearam a opção de adesão às duas tradições. Se o Cristianismo tinha sua associação com o poder colonial como força dinamizadora no processo de conversão, o Islã, mais enraizado, representava, em alguma medida, uma resistência simbólica a ele. Ainda assim, mais do que uma resposta direta ou sugestão de alinhamento específico e deliberado contra ou a favor da autoridade colonial, a aderência às religiões universais nessa região pode ser entendida também como um desdobramento geral que a modernidade e a experiência social do colonialismo contingentemente ocasionaram: a saber, um aumento na escala das relações sociais, com comunidades se abrindo para influências mais amplas através da expansão das redes comerciais e urbanas, um alargamento de horizontes trazido pelas interconexões globais e a introdução da imprensa, assim como transformações na educação.15
Estabelecida antes da chegada da educação ocidental, popularizada pelos missionários cristãos a partir da década de 1840, a alfabetização islâmica - introdução aos princípios islâmicos e o uso instrumental do árabe - foi um fator importante para o crescimento e desenvolvimento do Islã na Nigéria.16 Na terra iorubá, no entanto, com exceção de Ilorin, o Islã inicialmente se espalhou sem instituições corporativas de qualquer tipo, de baixo para cima, sem a força restritiva da ortodoxia islâmica.17 Os principais agentes de sua expansão foram os clérigos muçulmanos ou alufás, uma categoria social cujas duas características definidoras - alguma medida de conhecimento de árabe e a prestação de serviços religiosos - eram extremamente versáteis.18 Embora houvesse escolas corânicas ou madrassas espalhadas de forma assimétrica pela região, até a instauração da ordem colonial não havia um movimento educacional organizado e sistemático por parte dos muçulmanos na região iorubá. O quase monopólio cristão ocidental da educação que se instituiu no início do período colonial e a candente concorrência pelo mercado religioso que sucedeu fomentaram projetos institucionais de consagração de uma religião ou outra, ainda que muitas vezes houvesse interseção entre elas.19 Outro desdobramento da educação ocidental encetada pelo colonialismo europeu foi a consolidação do movimento de desvalorização da oralidade, aspecto central da herança cultural iorubá, que já havia sido iniciado pela introdução da escrita islâmica. Com menor impacto nessa dinâmica de remodelamento da configuração religiosa, a partir de 1960, teve início também um fluxo de graduados iorubás em direção a universidades egípcias, líbias e sauditas, especialmente a Universidade Islâmica de Medina, que no seu retorno ensinariam e pregariam em vários aspectos de suas especialidades.20
O conjunto de fatores e circunstâncias brevemente elencado acima contribuiu para um enrijecimento das fronteiras entre as crenças e o apagamento gradual da herança religiosa tradicional iorubá.21 Não obstante, por se tratar de um processo que tomou fôlego em um período recente - exceto em Ilorin, a maioria das pessoas se converteu há apenas duas ou três gerações - mesmo que drasticamente reduzidas em seu alcance, as religiões tradicionais ainda exercem uma grande e difusa influência no etos social. No cenário religioso iorubá, a competição por almas foi, na sua maior parte, conduzida dentro da estrutura moral compartilhada de pertencimento à comunidade, reforçando um intercâmbio considerável entre as diversas tradições. Os acordos práticos que marcaram a ecologia religiosa no território imprimiram um modo de ser que não só blindou a região iorubá dos violentos conflitos ocorridos no norte do país, mas instrumentalizou sua população para manter a coesão mediante a atuação de influências contraditórias. A interação pacífica dessas tradições nesse território, atribuída em alguma medida à própria qualidade polissêmica do culto aos orixás,22 acabou por tornar-se parte integral da própria identidade social iorubá.23 Mesmo tendo em vista a profusão de cenários e a intensificação de tensões religiosas a partir da independência do país em 1960, a valorização da tolerância e da capacidade de negociação com a diferença, de forma geral, permanecem até a contemporaneidade no fulcro da disposição iorubá e, por consequência, na participação iorubá na tradição islâmica.24 Em maior ou menor grau, esses elementos se imprimem tanto na história de Ahmad quanto no estilo de liderança religiosa exercido por ele, e não devem ser considerados incidentais na sua adaptação à Bahia.
O pai do Sheikh Ahmad, Tijani Ahmad, foi o primeiro de sete irmãos a se converter do Ifá para o Islã ainda jovem, provavelmente convertendo para o matrimônio sua futura esposa, filha de uma devota de Iemanjá. Tijani foi alfabetizado somente em árabe, já adulto, quando realizou seus estudos corânicos. Como a maioria dos membros da família, ele trabalhava no campo. O pai e a mãe de Ahmad, Raliatu, se mudaram para outra cidade em busca de trabalho, acompanhados de um filho mais novo, quando Ahmad tinha 8 anos. O mais velho de cinco irmãos, filhos da segunda esposa de um casamento poligâmico, Ahmad ficou aos cuidados de seu tio Abukari.25 Por influência deste - que era alfabetizado em inglês e árabe e também havia se convertido da prática do Ifá para o Islã - Ahmad passou a frequentar uma madrassa, ou escola islâmica, combinada ao ensino formal, a partir dos 10 anos. Lá, além de estudos religiosos, as crianças eram introduzidas ao idioma árabe, que se somava ao iorubá falado em casa e ao inglês ensinado na escola pública. Em 1969, com 19 anos, o jovem se mudou para o estado de Lagos, onde terminou os estudos e continuou a frequentar uma escola islâmica. Sob a mentoria de um sheikh local, Tohir Ajagbemakeferi, ele começou a estudar e depois a ensinar árabe e princípios islâmicos no Oriwu College, na cidade de Ikorudu, no estado de Lagos. A escola pública se caracterizava por uma clientela e plataforma educacional multirreligiosas, tendo se tornado uma referência dessa abordagem na região. Quando terminou os estudos, aos 21 anos, Ahmad e alguns amigos com quem estudara na escola islâmica escreveram uma carta para o governo da Arábia Saudita, pleiteando uma bolsa de estudos. Em dezembro de 1972, ele tinha acabado de completar 22 anos quando os jovens receberam uma resposta positiva e foram encaminhados à embaixada saudita, de onde viajaram para Medina.
No Golfo, Ahmad cumpriu uma parte do ensino médio e estudou quatro anos o idioma árabe, antes de ingressar na Universidade Islâmica de Medina, onde optou por estudar a Shari’a, ou direito islâmico. A formação religiosa na Arábia Saudita também envolvia viagens anuais para a Nigéria, onde o jovem era encorajado a demonstrar e testar, no seu próprio contexto, o que havia aprendido, o que contribuiu para uma capacidade de adaptação da doutrina salafista às particularidades culturais africanas.26 Ahmad permaneceu também em contato próximo com Ajagbemaqefir, seu sheikh na Nigéria, casando-se com sua filha, Sadiqat Ahmad, quando ainda residia em Medina. O casal teve seis filhos, três dos quais nasceram enquanto Ahmad estava na Arábia Saudita. Os estudos no Golfo duraram oito anos no total e Ahmad retornou à Nigéria de forma definitiva em 1980, aos 30 anos, com as qualificações requeridas para liderar uma comunidade religiosa islâmica.
De volta a Ikorudu, Ahmad seguiu ensinando árabe e princípios islâmicos no Oriwu College, onde permaneceu por uma década até quando, no final de 1991, Isa Bello, um amigo que havia sido seu veterano na Universidade Islâmica de Medina, lhe fez uma proposta inusitada. Bello, que era professor na Universidade do Estado de Lagos e diretor da Assembleia Mundial da Juventude Islâmica (WAMY) na África, o convidou para atuar como líder de uma modesta comunidade muçulmana na Bahia.27 O posto havia se tornado necessário depois que o sobrinho de Bello, Misbah Oywale Akanni, vindo à Bahia em 1988 como estudante de intercâmbio entre a Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a Universidade Obafemi Awolowo, articulou com o Centro para Divulgação do Islã na América Latina e Caribe (CDIAL), sediado em São Paulo, o estabelecimento de um Centro Islâmico em Salvador. Em verdade, a iniciativa foi resultado de uma confluência de circunstâncias e possibilidades: Akanni havia conhecido a história dos malês ainda na África, enquanto aluno do professor brasileiro Arnaldo Lima, que lá estava como consequência do intercâmbio intelectual, cultural e linguístico entre o Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA e universidades africanas, iniciado ainda na década de 1960.
Ao chegar na Bahia, o jovem nigeriano notou um apagamento da herança malê, expresso pela ausência de espaços para a realização de orações islâmicas, e se propôs trazer de volta uma presença islâmica para o estado. Ora, Saleh Mahdi al-Samarrai, um iraquiano que atuava como diretor da WAMY internacional, conhecera o trabalho de João Reis sobre a Revolta dos Malês, ainda em formato de tese de doutorado, em uma visita aos Estados Unidos.28 Um pouco antes da chegada de Akanni ao Brasil, Al-Samarrai já havia entrado em contato com membros do CDIAL e da WAMY no país para propor um resgate islâmico na Bahia, utilizando a presença histórica dos africanos muçulmanos como argumento. Motivado por ele, o libanês brasileiro fundador e diretor do CDIAL, Ahmad Ali Saifi, visitou a Bahia em 1987 e também foi informado por estudiosos no CEAO de que a iniciativa de resgate islâmico deveria envolver africanos. Em outubro de 1988, Akanni e al-Samarrai se encontraram durante um seminário islâmico realizado pelo CDIAL, sob a liderança de Saifi, em São Bernardo do Campo, no estado de São Paulo, e a ideia tomou forma.
Munido do financiamento e do apoio institucional da WAMY e do CDIAL, Akanni reuniu-se com cerca de sete imigrantes muçulmanos, na sua maioria africanos, que se encontravam em Salvador, e mais quatro brasileiros convertidos, para efetivamente (re)fundar uma comunidade muçulmana na Bahia. As primeiras orações foram realizadas na Casa da Nigéria, no Pelourinho, então residência para muitos alunos de intercâmbio nigerianos. Pouco depois, o primeiro Centro Islâmico passou a funcionar em uma casa alugada no bairro dos Barris, mudando-se mais tarde para um endereço no mesmo bairro, na adequadamente intitulada Rua da Mesquita dos Barris. Posteriormente, passou a ocupar uma casa maior na Rua da Independência, atualmente conhecida como Ladeira da Independência, em Nazaré.
Mais estruturado, o grupo passou a organizar seminários, como o Primeiro Seminário da Cultura Islâmica em Salvador em 1991, conferências e palestras, além de orações semanais. A notória relação entre intelectuais baianos e os candomblés, peça central do chamado revivalismo nagô no estado, em alguma medida, estendeu-se também à matriz muçulmana, e a neófita comunidade dispunha do apoio de professores e funcionários do Centro de Estudos Afro Orientais (CEAO), que sediou muitos dos eventos. O grupo contou também com o suporte do cantor e compositor jamaicano Jimmy Cliff, adepto do Islã, que na época morava em Salvador. Akanni havia conhecido Cliff em circunstâncias com toda probabilidade unicamente plausíveis na Bahia, quando ambos participaram como jurados do Festival de Música e Artes Olodum (Femadum), em 1991, e o convidou a se juntar ao modesto grupo de fiéis. Jimmy Cliff, que consta no documento oficial como membro fundador do Centro Cultural Islâmico da Bahia (CCIB), passou então a fazer palestras de divulgação da religião que, por conta de sua notoriedade, atraíam um público considerável, redundando em um aumento no número de conversões. Mesmo que modestamente, a comunidade crescia e se concretizava. Faltava, no entanto, alguém com formação religiosa para liderá-la.
A escolha de um muçulmano iorubá, um “autêntico” malê, dada a importância simbólica da revolta de 1835 e a relevância da identidade nagô na Bahia, fazia todo o sentido.29 Em 10 de fevereiro de 1992, o Sheikh Ahmad chegava à Bahia e, em 3 de novembro do mesmo ano, o Centro Cultural Islâmico da Bahia foi fundado. Com a sua vinda, Saifi organizou a compra de uma casa no bairro de Nazaré, no prédio onde funcionaria também a única mesquita do estado. Era a primeira vez que o Islã regressava à Bahia de forma organizada desde a repressão violenta das revoltas escravas oitocentistas. Desde então, passaram-se 30 anos. Completamente adaptado e, pode-se dizer, um tanto aculturado, o Sheikh Ahmad é hoje cidadão soteropolitano, título concedido pela Prefeitura de Salvador em 18 de dezembro de 2012. Imensamente carismático, é figura de grande relevância no diálogo ecumênico, sendo consultor de assuntos religiosos para a Secretaria de Direitos Humanos do estado da Bahia. Como sheikh, ele é também cabeça, coração e alma da comunidade muçulmana local, que cresceu e se solidificou. Seu trabalho é particularmente complexo, dada a composição móbil e diversa da comunidade. Com cerca de quinhentos membros, a comunidade muçulmana baiana é uma das mais heterogêneas do país, com um alto número de brasileiros e brasileiras convertidos e uma presença significativa de estrangeiros, na sua maioria africanos.30 Está também entre as comunidades com maior índice de conversão feminina e é uma das mais negras do país.31
Apluralidade linguística, étnico-racial, de origem nacional, de recorte social e de gênero, assim como a ausência de influência de signos diacríticos da diáspora árabe, o que difere do perfil da maioria das outras instituições islâmicas do resto do Brasil, demandam uma abordagem própria.32 Mesmo tendo em vista que cada contexto é produto de um conjunto único de circunstâncias históricas, a proximidade cultural, racial e simbólica entre a Bahia e a Nigéria, em particular a população iorubá, e a natureza agregadora do sheikh produziram uma combinação que permite que ele exerça as atividades de liderança com a maestria de um mestre malê feito de encomenda para uma Bahia “nagoizada”.

A entrevista
Os territórios iorubás são conhecidos por apresentarem uma convivência relativamente harmoniosa entre as tradições de culto aos orixás, o Cristianismo e o Islã, com experiências de aproximação e diálogo. Como a religião era vivenciada na sua família?
Na minha família, você não vai acreditar, tem de tudo. A família de meu pai tem pastor, tem babalorixá. Só não tem ateu, porque é difícil na África alguém dizer que é ateu. Mesmo quando não pratica a religião, ou é cristão, ou muçulmano ou pratica a religião local, que é similar ao Candomblé. Meu pai, o pai dele era do Ifá, ele é filho de praticantes do Ifá, mas se converteu ao Islã muito jovem, foi o primeiro de outros irmãos dele que também se converteram. Ele escolheu o Islã, depois os outros escolheram também. Minha mãe, a mãe dela era devota de Iemanjá, ela também se converteu. Em Oxum hoje a maioria das pessoas é muçulmana, na família de meu pai, de sete irmãos, cinco se converteram ao Islã. Mas lá tem gente do Ifá e devotos dos orixás também, o Islã lá é leve. Quando as pessoas que trouxeram o Islã chegaram, eles chegaram com respeito à cultura de lá, foram fazendo um diálogo, usando a cultura como referência. Como eu venho de uma família muito grande, mesmo tendo pessoas de diferentes religiões, a gente foi ensinado a respeitar, essas coisas estavam na cultura da gente. A gente morava em uma comunidade pequena, uma comunidade rural, e meu pai trabalhava na roça. Eu cresci com outros cinco irmãos da primeira esposa de meu pai e todas as crianças foram criadas juntas pelas duas mulheres em um espaço conjugado onde residiam também tios, tias, avôs e avós. Meus tios tinham uma casa grande, e todos da família viviam juntos, isso é normal na minha terra. A nossa educação em casa foi uma educação de respeito à família. E essas coisas, o respeito, estão no Islã também, então não é novidade para nós. Quando as crianças foram para escola islâmica, elas já tinham uma base da família, e como eu vinha de uma família diversa, isso tinha precedência sobre o que era ensinado na escola. Você sabe que na África se respeita muito a família, o lado da educação familiar, os professores da religião islâmica e da língua árabe não colocavam em questão a palavra da família, não forçavam a gente, tentavam enfocar as coisas que combinavam com a cultura da terra. Na época você não sabe ainda a diferença entre moral, ética social e religião, tudo é religião. E eu aprendi com meu pai que deveria respeitar as pessoas, tratar cada pessoa e cada família como eu gostaria de ser tratado. Meu pai era conhecido pelo nome de Iwalewa, um termo em iorubá que significa “ética é a beleza do homem”, eu nunca vi alguém o chamar por outro nome. Inclusive o nome dele eu só descobri quando eu comecei a ir para escola primária. Um dia eu perguntei a ele porque o chamavam assim e ele respondeu, “porque minha religião me ensinou isso, que você tem que ser uma pessoa boa, respeitar as pessoas, tratar cada família como você gostaria de ser tratado”, então isso ficou comigo para sempre e não tem como pensar em qualquer outra coisa quando eu penso no Islã.
O que o senhor entende por ética, nesse caso?
A ética e o Islã são a mesma coisa, andam juntos. Se você pega o Alcorão vai ver que aqueles que têm fé, fazem o bem, não só acreditam em Deus, mas a crença reflete na prática, não só para si, ou sua família, mas para e com todos. E aí quando nós falamos de ética, é algo que está dentro de você ou você está buscando. Se você aplicar um pouco da religião já vai funcionar. Ter respeito, falar bem, agir bem, comer coisas boas, 80% do que o Islã quer de nós está dentro da gente, e pode ser que você não tenha conseguido acessar. Se você quer falar a verdade, você pode, como pode também escolher mentir. A religião não força a nada, ela orienta, você escolhe. Quando o ser humano direciona sua intenção e a torna hábito é sempre uma escolha que está ao nosso alcance. Quando alguém direciona e torna falar a verdade um hábito, aquela prática se carimba, então mesmo que ele minta, sem querer, o que diz será carimbado como verdade, mas se ele tem o hábito de mentir, mesmo que diga a verdade, será tido como mentira. Então qualquer coisa que você insista na intenção, você está aprendendo a fazer, e o que você faz sempre, isso é ética. Ética é sua conduta contínua na prática em qualquer contexto.
O senhor lembra de situações específicas em que houve interação entre matrizes religiosas nesse contexto familiar?
Olha bem, quando começamos a ir para a escola islâmica na minha família, tínhamos um tio que era babalaô, que é um líder no Ifá,33 e tinha um tio pastor, que respeitávamos totalmente. Tínhamos uma regra que era que na família ninguém poderia discordar, então quando ele fazia festas, todo mundo participava. Todos nós morávamos no mesmo lugar respeitando uns aos outros. Inclusive, esse tio babalaô tinha um caderno onde ele anotava muita coisa sobre as tradições do Ifá. Daí um dia, ele viajou, e eu e meu irmão pegamos esse caderno escondido porque a gente não diferenciava entre o Islã e o Ifá, e nós começamos a anotar tudo que estava lá. Quando meu tio retornou da viagem, ele nos chamou e perguntou quem havia pegado o caderno, e por quê. Eu disse que eu tinha interesse de saber das coisas e ele disse que era só termos pedido, e disse que aquele caderno era nosso, que aquela tradição era nossa e a gente sentia mesmo que era, mas quando crescemos, estudamos melhor o Islã e aprendemos que aquilo que vimos lá, no caderno, os nomes, as práticas tradicionais do Ifá, não combinavam com o Islã, mas isso não significa que deixamos de gostar dele ou estar com ele. No Alcorão temos a sura al-kafirun, que diz “a sua religião é a sua religião, a minha religião é a minha religião”, então chegou um momento em que eu e meu irmão não participávamos mais das celebrações, mas a gente continuou respeitando nosso tio, só não misturávamos mais as coisas.34 No caderno havia muita coisa de adoração, mas ninguém falou para gente que não podia, ninguém proibiu nada, nós que optamos por nos afastar, mas nunca jogamos fora o caderno. Um dos filhos dele segue na religião do Ifá, e alguns jovens na minha terra ainda misturam as duas tradições até hoje. Quem trabalha com as religiões tradicionais tem instrução de como utilizar objetos para gerar riqueza, por exemplo. Já no Islã, você pode pedir coisas, mas não pode tentar interferir no curso da vida, e muitos jovens na Nigéria ainda misturam, embora seja errado. Querem ter fama e riqueza e acham que isso ajuda. A maioria deles não vai para a escola islâmica mais ortodoxa, é educada em domicílio. Acho que a gente, eu e meu irmão, só paramos de misturar através do contato com a escola, quando tivemos educação formal islâmica. O que fez a gente diferenciar a fé, através da educação, foi a compreensão do princípio de lā ʾilāha ʾillā -llāh, não há outra divindade que merece ser adorada senão Alá. Então quando outra religião lhe pede para adorar mais de uma coisa, já não é Islã. Nem meu pai nem meu tio cobravam da gente nada, porque, como te disse, tínhamos uma família diversa. Isso me lembra inclusive que isso acontecia com os malês aqui na época também, se você vai para o Arquivo Público [do Estado da Bahia] muita coisa indica uma mistura, reflete um pouco esse ambiente. Uma vez eu fui com um sheikh da Arábia no Arquivo Público e ele me perguntou o que eram aqueles amuletos, e eu expliquei que naquela época os muçulmanos, aqui, muitos não tinham acesso ao conhecimento islâmico mais ortodoxo.
O Islã e o Cristianismo tiveram um crescimento enorme entre a população iorubá no último século, movimento que, de alguma forma, contribuiu para um enfraquecimento da cultura tradicional, das religiões tradicionais. A que o senhor atribui esse fenômeno? Estudos sobre o tema sugerem que a introdução da educação formal religiosa foi um aspecto importante, elemento que o senhor cita também ter tido influência na sua trajetória pessoal.
Bom, o que eu sei, através de meus pais, e o que eu vi, é que quando o Cristianismo chegou lá, as pessoas que levaram o Cristianismo, os colonizadores, usaram a oportunidade da religião para dizer para as pessoas para mudarem os seus nomes, e quando o Islã chegou, chegou mais brando, estranho, então os filhos dos muçulmanos começaram a mudar os seus nomes também. Usavam muitas coisas para fazer do Cristianismo uma religião dominante na terra. Eu me lembro: até chegou um ponto que eles deixavam o Novo Testamento, uma Bíblia, para que o diretor do meu colégio, que era do Estado, do governo, mandasse colocar em cima da mesa de todos os alunos. Alunos de todas as religiões tinham que ler. Às vezes, tinha famílias que mudavam os nomes dos seus filhos porque eles condicionavam a mudança de nome para um nome cristão para a criança entrar na escola. E é verdade que antes disso a religião que dominava era o Ifá, como o Candomblé, parecida, religião da terra mesmo, o Ifá, mas até minha vó que era líder [do culto] de Iemanjá, tinha o poder de decidir quem entraria ou não, se converteu ao Islã perto de morrer. Eu não sei por que as pessoas abandonaram a religião [dos orixás], porque se converteram. Eu nunca perguntei ao meu pai e minha mãe por que se converteram. Eu até hoje não sei se minha mãe entrou no Islã por conta de meu pai. Eu não tenho resposta para isso, não tenho como ter certeza, mas a maneira como ela participava da religião, eu posso dizer que era ativamente, então ela entrou na religião com o coração mesmo. A maneira que percebi na minha família, que era muito grande, é que eu sabia que ninguém nunca forçou ninguém a nada. Meu pai foi o primeiro homem que converteu, depois uma tia, mas teve tio que permaneceu no Ifá. Como disse, quando o meu tio fazia festa, todo ano ele fazia uma festa, todos nós participávamos. Eu e meus irmãos comíamos as comidas especiais do Ifá. Realmente eu participei até ir para escola islâmica. Eu ia para escola do governo pela manhã e mais ou menos duas horas da tarde ia para escola islâmica e ficava até às 18 horas. A escola islâmica não era do governo, era financiada pela mesquita. Na escola islâmica o professor começou a falar que não tinha a necessidade de misturar e paramos de comer as comidas deles, porque as comidas de muçulmano têm que ser halal, tem que ter um abate especial. Quando o Islã chegou na minha terra, como em qualquer lugar do mundo, era algo estranho, por isso quando meu pai entrou na religião jovem, muito jovem, as pessoas achavam que ele e os outros que também entraram estavam de passagem, que voltariam para o Ifá, mas isso não aconteceu. Em Iba, hoje, a maioria das pessoas é muçulmana, o Candomblé, o Ifá, foi ficando mais tímido, porque os jovens não queriam mais. Muita gente também prefere que os filhos, mesmo os não muçulmanos, frequentem a escola islâmica por conta da educação voltada para a família, mas meu pai só se alfabetizou em idade avançada e se dedicou a aprender árabe e escrever para ler o Alcorão quando já era muçulmano, as letras latinas ele escrevia muito pouco. Mas veja, o que o Islã diz até hoje é que qualquer costume, qualquer cultura que não condena as coisas do Islã o povo pode continuar e tem que se respeitar, mas qualquer coisa que contraria a educação islâmica é melhor que muçulmano não participe. Mas você vai perceber que todo nigeriano, principalmente iorubá, a nossa roupa é igual, o que eu quero dizer é que mesmo com o Islã, a língua da gente, a maneira de viver, quando não contraria a religião islâmica, não tem problema. É verdade que quando terminamos o primário, é quase obrigatório na minha terra até hoje, os pais muçulmanos eles têm que colocar as crianças na escola islâmica, na madrassa, e essa escola é também uma mesquita. Eles pagam um professor para ensinar ética etc., não é só recitação do Alcorão não. É verdade também que no começo ir para a madrassa não era escolha da gente, mas dos pais. No meu caso, foi escolha do meu tio, mas isso não quer dizer que eles forçavam a gente. Você sabe que se você é muçulmano, filho de muçulmanos, provavelmente, você vai frequentar a escola religiosa de sua região, da sua comunidade. No dia que a gente faltava, o professor procurava nossos parentes para dizer que tínhamos faltado, mas depois você começa a ir de vontade própria, entende que é necessário. Fui eu que depois escolhi que eu queria estudar na Arábia Saudita para ser sheikh por conta própria. Eu mesmo que escrevi a carta para a Arábia Saudita. Eles pagavam os livros, mas se você não quisesse não tinha problema. Eu escolhi ficar por vontade própria. E quando voltei, no colégio que ensinava era uma instituição do governo, tinha estudantes de todas as religiões, mas não era misturado. Isso tem muito na minha terra até hoje, o governo manda os diretores colocarem professores de Islã, de Cristianismo, de língua árabe, francês. Na hora da aula de religião eles dividem a sala, mas se você é muçulmano e quer participar da sala A com cristãos, não tem problema, vai aprender se quiser. A mesma coisa com muçulmanos se quiser ir para sala com cristãos. Eu, lá, era professor de religião islâmica e da língua árabe.
O senhor teve dúvida em algum momento sobre a escolha de se tornar sheikh, alguma crise de fé?
Crise de fé é algo que ocorre normalmente. A fé precisa ser renovada, ser relembrada. É por isso que rezamos, jejuamos, frequentamos a mesquita. O profeta disse que a fé é assim para baixo e para cima e, se você percebe que sua fé está abalada, você faz alguma coisa, fica com Deus, conversa com ele que faz bem. Reza cinco vezes por dia na mesquita porque se você está em comunidade, as pessoas ao seu redor te lembram da fé. O Islã não nega o ser humano, não nega ambas as partes que a gente tem. A parte positiva e a parte negativa. É por isso que não é bom julgar ninguém. Você percebeu que uma pessoa errou ou pecou, porque se ele caiu hoje, não tem problema, o que o Islã diz é que você não pode viver 24 horas em erro sem pensar em sair. Outro dia um irmão me disse: “Sheikh, minha fé está abalada”, eu não quis nem saber o porquê, apenas disse “faça alguma coisa, não deixe sua fé chegar no zero, porque aí é muito difícil reverter”. A fé nada mais é do que quando você segue a orientação de Deus para fazer coisas boas, não só oração, mas coisas que te dão orgulho, coisas que quase todas as religiões têm. Mas dúvidas, mesmo, sobre o caminho a ser seguido, eu nunca tive. Eu nunca tive dúvidas sobre a religião, mas tinha dúvidas se iria conseguir terminar o curso porque esse nome [título] que eles botam no seu diploma, isso implica responsabilidade, e naquela época havia poucos sheikhs na minha cidade, na minha região. E todos eram já mais velhos, e eu pensei muitas vezes que não iria dar para mim, mas todos os anos, além da bolsa de estudos integral, o governo saudita lhe dá uma passagem de volta para Nigéria para você demonstrar o que aprendeu, e as pessoas em casa me davam força para voltar e terminar os estudos. Tive muito apoio do meu sheikh na Nigéria, que acabou, inclusive, se tornando o meu sogro.
Como isso aconteceu?
Quando eu fui de volta, na primeira visita que eu fiz para a Nigéria depois de mudar para a Arábia Saudita, eu conversei com ela, com a filha dele, Sadaqah, eu tinha 22 anos. Naquela época era difícil ter acesso ao telefone, a gente trocava cartas, correspondências, mas o pai dela não sabia. Naquela época, falar que você quer se casar com alguém, ainda mais a filha do sheikh, não era fácil. E todo o ano o pai dela ia para a Arábia Saudita fazer o haje, e eu nunca falava de mulher nenhuma com ele, e ele me perguntava porque todos os meus amigos já haviam se casado e eu não. Aí ele me disse que já tinha conversado com minha mãe, e quando eu tivesse interesse em alguém era para conversar com ele que ele iria tentar organizar, porque eu estava na Arábia Saudita e ele na Nigéria. Aí no terceiro ano que eu voltei para visitar eu disse: “então, senhor, eu quero me casar com uma moça”, e ele me perguntou quem era e eu fiquei com a língua pesada para falar que era a filha dele, mas ele insistiu, então eu falei o nome dela. Ele tomou um susto e me perguntou desde quando a gente se falava, mas eu expliquei e ele concordou. Aí casamos depois de três anos, ela trabalhava, então não foi para a Arábia Saudita, então foi só em 1980, quando voltei, que começamos a vida juntos, mas tivemos três filhos quando eu ainda estava na Arábia e depois mais três quando eu voltei.
A Arábia Saudita adota a madhhab, ou escola de interpretação da jurisprudência islâmica, hanbali, que depois passou a ser associada com o salafismo. Essa é uma tradição que é marcada por uma abordagem mais restrita, literal, considerada radical até, dos textos sagrados. Como foi a experiência na Arábia Saudita e como foi o processo de adaptação da doutrina salafista para o contexto cultural africano iorubá?
Quando eu terminei o ensino médio na Nigéria, pensei o que iria fazer, porque fazer faculdade naquela época na minha terra não era fácil, principalmente na minha cidade. Então eu e meus colegas decidimos escrever para a Arábia Saudita; pensamos, “vamos escrever em árabe para dizer que queremos fazer uma faculdade lá”, e eles nos aceitaram. Naquela época, a Arábia Saudita dava uma bolsa completa aos alunos, e todos os anos você ganhava passagem para visitar a família, pagavam os livros, mas eu não vou mentir para você, eu como estudante na Arábia no começo tive dificuldade com a cultura e com os costumes, a língua também era muito difícil para mim. Eu achava que eles cobravam muito. Eu já tinha estudado um pouco de árabe na escola, mas tive que estudar mais quatro anos da língua e refazer o ensino médio lá. Depois eles perguntaram quem gostaria de estudar na faculdade para a formação em Shari’a [xária] e eu quis. Quando faltava pouco para terminar a faculdade eu entendi que valia a pena; no início eu achei que eu não iria conseguir porque é muito difícil, eu não tinha aprendido bem a língua árabe na Nigéria e lá era tudo em árabe. Também porque a formação para sheikh implica muita responsabilidade, então eles ensinam muito. Porque o Islã, em termos de jurisprudência, tem muita coisa. Na lei islâmica, tem muita coisa que você tem que memorizar, não é fácil, mas quando passou o primeiro ano, eu me acostumei, decidi que iria sair da lá como sheikh. Sobre a adaptação dos ensinamentos, é verdade que o Islã tem quatro escolas: Hanifi, Maliki, Shafi’i e Hanbali.35 A doutrina islâmica que quase toda a África aplica é a Maliki, que funciona muito bem para nós e eu continuei seguindo essa escola, não mudei de tradição por conta do período que passei na Arábia Saudita. Ela [Maliki] é uma doutrina boa porque ela não nega a cultura que não é contra a doutrina islâmica. A gente fala nossas palavras, mas no momento em que você encontra palavras novas, mais adequadas, você pode escolher. O profeta Maomé diz que, entre duas escolhas, você deve sempre escolher o que é leve, ele nunca exagera em nada. Os cinco pilares devem ser os cinco pilares, mas a gente, na África, tinha nossa maneira de vestir, nosso tipo de comida, tipo de cumprimento, a maneira de saudar que não nega a cultura islâmica, então isso não foi mudado, e a escola Maliki orienta assim.36 Como te disse, também eu venho de uma família diversa, a cultura iorubá é a do respeito, então quando eu viajei para a Arábia e retornei para a Nigéria, isso não mudou, eu continuei influenciado pelos mesmos modos de agir e de viver a religião. Eu não me visto com roupas de árabe, eu uso as roupas da minha terra, como as comidas da minha terra. O Islã é uma religião do mundo, deve se adaptar. A maneira de vestir, a maneira de comer, a maneira de falar de cada lugar devem ser respeitadas. Isso me ajudou muito quando eu cheguei na Bahia também, essa maneira de pensar.

Como foi chegar à Bahia? Quais foram suas principais dificuldades? O senhor considera que a bagagem cultural e religiosa africana iorubá lhe tornou mais apto para exercer sua função de liderança religiosa aqui?
Inicialmente, tive questões com a adaptação cultural e com a língua, já que eu não falava português; tive que aprender o idioma. Quando eu cheguei, eu não sabia que as pessoas não falavam inglês aqui. Eu falava iorubá, inglês e árabe, mas aqui não adiantava falar nenhum desses idiomas. E quando eu cheguei, eu não conseguia falar com ninguém, mas mesmo assim eu fiquei. Hoje, graças a Deus, eu consigo me expressar bem e meus sermões são todos em português. Também tive um pouco de choque cultural, no começo. Eu cheguei aqui em 10 de fevereiro, em pleno carnaval, e eu nunca tinha visto nada igual. Eu pensei que não conseguiria ficar, pensei até em retornar para a Nigéria. Eu liguei para minha esposa e ela me perguntou o que havia acontecido e eu não sabia nem como explicar; eu dizia a ela “você não vai acreditar, você não vai entender, se eu te contar”. Eu pensei em ir embora, liguei para o pessoal de São Paulo, foi muito difícil para mim. Eu achei que aqui era assim sempre! Mas, fora isso, tinha também uma familiaridade grande porque a Bahia parece demais com uma parte da Nigéria. Os tipos de comida, lá tem acarajé, tem abará, moqueca, farinha de mandioca. E também o clima, a maneira como as pessoas se comportam, gente de cabeça livre, e não é só isso, a aparência das pessoas, nomes dos lugares; eu fiquei muito surpreso quando cheguei, quando vi como aqui se parece demais com a minha terra. Eu olho para a cara das pessoas e se parecem com as pessoas de lá, não é só a cor, mas a cor também, é claro. E o jeito, a história, temos uma cultura compartilhada. Certamente o ambiente iorubá, a forma como o Islã é praticado lá, me moldou e também a minha família, porque de fato o Islã se misturou com práticas familiares, hábitos africanos que já existiam antes do Islã, porque eu sempre tive relações próximas com pessoas que não eram muçulmanas, meus tios continuavam meus tios, mesmo não sendo muçulmanos e isso ajudou bastante. Mas até a forma da religião mesmo. Por exemplo, nos países árabes raramente você vê mulheres nas mesquitas; os maridos não insistem que elas vão porque o profeta disse que é melhor que elas rezem em casa. Mas na África, ali na terra iorubá, a mesquita está sempre cheia de mulheres, entendeu? Não porque os maridos forçam, mas porque elas gostam de sair, têm os esquemas delas, são mais soltas. Aqui, por exemplo, tem dia que eu vou na área das mulheres aqui para tratar de assuntos delas na mesquita. Se um sheikh árabe estivesse aqui seria bem diferente, por conta de que ele provavelmente não teria familiaridade com essa interação. Inclusive os árabes do CDIAL, Saifi sabia que eu tinha muita proximidade cultural com a Bahia, como africano, e que um árabe aqui teria muito mais dificuldade. Ele sabia que para mim, como nigeriano, a adaptação cultural seria muito mais fácil, eles me escolheram sabendo disso. A cultura árabe com a cultura baiana não tem nada a ver e a minha cultura com a cultura baiana é quase a mesma coisa, com poucas diferenças. Também porque essa atitude de tolerância eu trouxe para cá comigo e eu sabia que eu não poderia chegar aqui e condenar tudo, e isso é natural de acordo com os ensinamentos do profeta. E tem coisas que eram também na minha cultura, que eu aprendi a fazer diferente. Vou te contar uma história, logo quando eu cheguei aqui, nove alunos da Universidade Católica vieram aqui conversar comigo para um trabalho sobre o papel da mulher no Islã. Eram oito homens e uma mulher e quando terminamos a conversa a moça me disse, “Sheikh, será mesmo que a mulher tem o mesmo lugar que o homem no Islã?”, eu disse que sim e ela me respondeu, “através das atitudes do senhor eu vejo o contrário”, e eu perguntei, “por quê? O que foi que eu fiz?”. Veja bem, eu não falava português direito e achei que tinha falado algo errado. Ela então disse, “somos nove aqui, o senhor apertou a mão de todos e me deixou de fora”. Eu não vou mentir para você, isso tocou o meu coração. Eu comecei a falar, falar, falar, mas na minha terra, muçulmano ou não muçulmano, homens raramente apertam as mãos das mulheres, isso é o normal, hoje isso até está mudando. Mas no Islã a gente não enfatiza a discriminação, ao contrário, e eu aprendi. E hoje, a depender da situação, eu aperto a mão das mulheres, se é gentil, para ser justo, e isso não quebra regra alguma da religião, não tira nada da religião. Até a minha cultura, coisas que não são só do Islã, eu tive que aprender, mesmo sendo muito parecido com as coisas aqui.
No que diz respeito a questões de gênero e o Islã, existe uma narrativa sobre o papel subalternizado das mulheres na religião que permeia, sobretudo, o imaginário ocidental. Como o senhor entende essas questões e como é lidar com uma comunidade com uma grande quantidade de mulheres convertidas?
Na Arábia, as mulheres não trabalham, mas isso não está dito como uma prática islâmica, isso é cultura árabe. Tem muitas coisas que são práticas árabes e que acabam sendo ligadas à religião, mas isso não é Islã. Tem coisas que acontecem, que a própria religião condena. Temos muitas convertidas aqui, muitas se interessam, a maioria é pelo coração, no entanto, uma minoria me procura por causa de casamento. Com as mulheres que procuram a gente para se converterem para casar, eu digo logo, “Não! Não converte ao Islã por causa de homem menina, o Islã não quer que você entre na religião por causa de homem, você só entra se o Islã tocar seu coração, seu marido não pode lhe forçar a nada, não é islâmico. Não deixa ninguém te conduzir, entrar no Islã por causa de A ou B”. O processo de fé é entre você e o Criador, não tem amigo, conhecido, namorado ou marido no meio. Quando se fala em submissão da mulher, isso nada tem a ver com o Islã, muitas vezes são questões culturais de países e comunidades, a mulher tem direitos garantidos no Islã. Buscar conhecimento, por exemplo, é obrigação para homens e mulheres. Nada deve ser imposto, aqui mesmo temos muitas irmãs que não usam o véu, e ninguém, nem eu nem marido nenhum pode dizer o contrário, ninguém pode interferir na escolha.

No período que acompanhei as pregações das sextas-feiras, Khutbas, do início do Ramadã até o Eid al-Adha 2022 [1 de abril a - 13 de julho de 2022], observei que o senhor com frequência fazia menção à importância dos pequenos gestos do dia a dia, ressaltando a relevância da intenção e da religiosidade “possível”. Essa noção é norteadora do seu estilo de liderança?
O profeta Mohammed não proibiu nada e ninguém no início; ele disse que primeiro a gente tem que deixar a fé entrar. Se você deseja que as pessoas façam ou deixem de fazer certas coisas que não têm a ver com o Islã não pode ser à força. Nada de radicalismo. A primeira lição é sempre sobre fé, a fé em Deus, a intenção, a sinceridade. Eu não vigio ninguém, esse não é meu papel como sheikh, vigiar, policiar; é orientar. Eu aqui nunca falo, “ah, tem que deixar a bebida”, porque isso não é a primeira coisa. A primeira coisa é a fé, que lidera os cinco pilares. Cada um se dá conta de que o que está fazendo não combina com a religião. Se você vai introduzir uma religião, tem que ter calma, paciência. Quando a pessoa passa a ter fé sincera, antes do sheikh falar, você sabe que o Islã não permite. Eu sempre digo também que o sheikh é ser humano, e erramos às vezes, eu procuro sempre ser humilde e liderar pelo exemplo. Vou te contar uma história. Um dia eu estava com dois jovens daqui, brasileiros convertidos, e chamamos um táxi para ir no Pelourinho. Eu falei para o taxista, nessa época não tinha Uber ainda, perguntei a ele quanto seria a corrida e ele falou mais ou menos 150 reais, um valor absurdo na época, e eu falei que não era estrangeiro, que eu sabia o que ele estava fazendo. Eu falei a verdade, mas eu falei com a voz alta, porque 150 reais era muito! Ele me disse que estava na loja dele e que me vendia o serviço por quanto quisesse e eu falei, está bom, tchau. Sabe o que um dos jovens me falou? “Sheikh, você não ensinou a gente assim, você nos ensinou a ter paciência”. Ele me cobrou, me disse, “a maneira como o senhor falou não é o que o senhor ensina para a gente”. Eu pedi desculpas, sabe? Disse: “desculpa, irmão, eu sou um ser humano, eu erro também”. Todos nós caímos às vezes, e a porta do perdão está sempre aberta. É por isso que eu falo das pequenas coisas, do dia a dia. Eu estou sempre aberto a ser chamado a atenção, a pedir desculpas. Aqui falo muito da fofoca também, que é uma coisa comum na sociedade, todas as comunidades, não só na comunidade muçulmana. Porque o nosso profeta diz que [ao jejuar] a comida que você está deixando de comer, você leva para Deus? Não! O que Deus quer é sua atenção com seu comportamento, o que interessa é a maneira que você está tratando as pessoas. O que Ele quer é o treinamento do seu corpo e de sua alma para que você possa conviver melhor com as pessoas. O jejum não é sobre passar fome ou passar sede, mas é treinamento do corpo e da alma; como um estudante que treina cinco ou seis anos na faculdade, você vai aplicar o que você aprendeu. A mesma coisa com os rituais da religião, com o jejum, com a oração, são formas de você educar o coração para você colocar em prática na vida, educar o nosso corpo e nossa alma e aplicar no dia a dia. Por isso falo que o jejum para muçulmanos tem que ser completo. O jejum da água, da comida, e segurar a língua. Para que você está fazendo jejum se você não consegue melhorar a vida diária, se você não consegue tratar as pessoas com gentileza, não consegue evitar falar mal das pessoas? Se você tem alguma coisa para corrigir, sugerir para alguém, você chama tranquilamente e fala, não faz fofoca. Pede para Deus ajudar a pessoa, no silêncio, não precisa desrespeitar os outros com sua língua.

Os nomes que compõem o documento de fundação do Centro Cultural Islâmico da Bahia atestam a identidade plural do projeto desde seu início. Dentre os 23 membros fundadores,38 temos árabes, africanos de diversos países, um jamaicano, um turco e mulheres e homens, brasileiras e brasileiros, convertidos. De certa forma, essa mesma heterogeneidade segue sendo uma característica notável da comunidade até hoje. Como é liderar um grupo tão diverso?
Realmente, até hoje é assim aqui, e no Brasil inteiro o Centro Cultural Islâmico da Bahia é conhecido por todos os sheikhs, todo mundo sabe que aqui é onde há mais mistura, o povo é todo misturado! A gente sempre fala isso, e quem vai dirigir aqui tem que falar a língua daqui, com diferentes influências que se fazem notáveis no Centro. Tem desentendimentos, mas muitas vezes as pessoas se resolvem, outras vezes as questões são sutis, então eu procuro ser sutil também. Tem coisas que são de ordem cultural, coisas de ordem pessoal, que pedem uma abordagem diferente. Procuro sempre apagar o fogo e nunca incitar. Quem vai dirigir comunidade muçulmana tem que se atentar para as coisas secundárias que nada afetam a religião. As regras e princípios da religião islâmica são as mesmas, mas a maneira de conduzir e divulgar vai ser diferente em cada lugar. Ninguém é dono da verdade. Aqui eu ensino a Suna e a tradição do profeta Mohammed e me concentro nisso.39 Então eu tenho provas quando há conflito, nosso profeta disse isso, isso ou isso, nosso livro disse isso, não disse aquilo. E temos estudos religiosos todos os sábados justamente para isso. Eu me esforço para que eles [membros da comunidade] não misturem costumes com religião, hábitos sociais que o Islã não condena. Por exemplo, uma pessoa chegou aqui e começou a convidar as pessoas para uma festa de aniversário do filho e nosso irmão africano condenou, “ah, isso não tem nada a ver com o Islã”. Eu falei, “venha cá, ele está negando a unicidade de Deus? Está adorando alguma coisa?”. Se em países muçulmanos não se faz isso, e você não quer fazer, não faz, mas condenar não pode. Hoje na África temos coisas que ligam a cultura ao Islã, mas aqui não, e as pessoas têm que respeitar, deixar as outras pessoas confortáveis. Sempre lembro que o profeta nunca mandou você sair por aí condenando as pessoas; isso é radical. E no Islã existe o que é obrigatório e o que é recomendado e são coisas diferentes. Em países muçulmanos as mulheres usam véu, mas aqui muitas não usam e colocam [sobre a cabeça] o hijab [lenço] durante as orações e quando vão embora tiram o hijab. Eu pergunto, “elas são muçulmanas? Claro que são muçulmanas!”. E na minha terra também é a mesma coisa, tem mulheres que usam e mulheres que não usam. Se elas não estão confortáveis para usar, a gente tem que esperar até que estejam. E eu aprendi através do Islã a ser gentil, isso é um dos ensinamentos do profeta. Para levar a religião, tem que ser gentil. Tem que pensar em primeiro lugar na cultura do lugar, na cultura do povo. Se você pretende que as pessoas deixem de fazer coisas que não têm a ver com o Islã não pode ser à força, entendeu? Tem que ter maneira. Eu adapto os sermões pensando também que temos muitos convertidos. Temos um ditado que diz que devemos fazer o sermão para as pessoas da maneira como elas são. Eu não vou chegar aqui e falar apara as pessoas, pensando que eu estou em um país muçulmano ou em uma comunidade onde as pessoas conhecem muito [o Islã]. E embora eu recite o Alcorão primeiro em árabe, porque a comunidade é diversa, eu procuro sempre falar em português para valorizar os convertidos. O objetivo do sermão é levar a informação correta, e aqui não adianta eu falar árabe, ou meu idioma, o iorubá, a informação não vai chegar. No começo, eu tive dificuldade para aprender a língua, eu achava que não ia conseguir, mas hoje, graças a Deus, a maior parte do sermão eu consigo passar em português. Quando terminamos os sermões, se algum irmão africano não entendeu bem, eles me falam e eu explico. A gente está só começando. Eu tento focar no importante, nas coisas gerais que todo o muçulmano tem que fazer, como as cinco orações diárias. Existem escolas no Islã, claro que se alguém for trazer algo completamente fora da tradição islâmica eu não vou permitir, mas dentro das escolas tem muita variedade. Tem escola que permite coisas que outras proíbem e aqui, se a escola de alguém ensina uma coisa diferente da de outro, não precisa brigar. Qualquer muçulmano que chega na mesquita a gente não vai perguntar sobre as coisas tradicionais que ele está fazendo, porque existem coisas no sufismo, no sunismo que a gente não vai perguntar, não tem problema.40 Se entrou aqui para rezar como a gente está rezando, pronto, vamos rezar juntos. O que ele faz depois é entre ele e Deus. Essa é uma maneira de unir, unindo nos pontos principais. Eu, como líder religioso, essa é minha obrigação. E com frequência acontece de virem sheikhs de outros estados aqui e fica todo mundo muito surpreso com o quão razoavelmente harmonioso é o ambiente.
Na sociedade escravocrata baiana no século XIX, o Islã se caracterizava por ser uma religião africana que tinha o potencial de unir escravos e libertos, cujo aspecto universal era capaz também de transpor cisões étnicas, embora isso nem sempre acontecesse.41 Hoje, na Bahia, dada a diversidade de nacionalidades e etnias dos africanos que frequentam o CCIB, o islamismo ainda é capaz de suscitar solidariedade religiosa de africanos na diáspora?
Na comunidade aqui sempre tivemos africanos; desde o começo, quando éramos dez, doze pessoas, sempre havia africanos de fora. Os africanos sempre falam como se sentem bem, gente de Gana, Moçambique, Nigéria, Senegal, são todos unidos aqui como muçulmanos. Temos mais africanos aqui também porque os árabes, onde não tem comércio, eles não ficam. A maioria dos árabes muçulmanos saíram daqui para São Paulo, Foz do Iguaçu, mas nosso primeiro diretor aqui era palestino. E aqui, sem dúvida, até os irmãos e irmãs baianos têm um tanto de África. A gente sente isso, que os baianos têm uma ligação forte com a África, não tem quem não veja isso e os africanos sentem. Na maneira de fazer as coisas, na maneira de falar, por isso Saifi escolheu um africano. Ele mesmo disse, se eu trouxesse um sheikh árabe, não ia dar certo, porque costume árabe é muito menos adequado, não só na alimentação e clima, é uma coisa da forma de fazer, de sentir, e essas coisas. Como disse, qualquer pessoa africana sente.
Os muçulmanos do século XIX experimentaram a desilusão de ver filhos e netos abandonarem, pouco a pouco, o islamismo e se juntarem a outros grupos religiosos, ao Catolicismo, ao Candomblé.42 O que o senhor acha que teria acontecido caso o levante tivesse sido vitorioso?
Bom, a Nigéria hoje é um país muçulmano, com grande população islâmica. Se os malês tivessem vencido a revolta, se tivessem ganhado, talvez fossemos aqui um pouco mais como a Nigéria, certamente teríamos aqui uma população grande muçulmana.

Em seu livro The Call of Bilal, em que, por sinal, uma foto sua estampa a capa, Edward Curtis observa que “há uma forte e talvez crescente população de afrodescendentes muçulmanos que constroem sua identidade islâmica através de uma genealogia africana; ou seja, muitos muçulmanos de ascendência africana, na diáspora, professam formas de islamismo que deliberadamente incorporam ou aludem a elementos da herança negra e/ou africana”.43 Esse fenômeno é notável na comunidade muçulmana baiana que, desde sua fundação, teve uma presença marcante de brasileiras e brasileiros convertidos para quem essa ligação era aspecto fundamental da relação com a religião. Inclusive, isso não é necessariamente novo, já que é possível fazermos uma analogia com a própria Revolta dos Malês que, embora possa ser compreendida pelo prisma da centralidade que o papel da religião islâmica teve nela, ao incluir nagôs não muçulmanos, ter contado com a cooperação entre muçulmanos com diferentes graus de compromisso com a religião, sugere que essa foi uma luta dos africanos contra o domínio dos senhores brancos, na qual o Islã entrou como um significativo fator integrativo e mobilizador.44 O senhor identifica aqui o aspecto da luta política antirracista e sua interseção com o Islã?
Não existe Islã racial, isso não tem no Islã, mas o Islã condena e combate a discriminação racial. Não existe Islã para branco ou Islã para negro, o Islã que eu conheço é para todos, para brancos, para negros, para homens e para mulheres. A maioria aqui são africanos, mas os africanos sabem que o Islã é para todos. Ao mesmo tempo, nada é pior do que a escravidão e aqui a história dos malês, a história do Islã não dá para ser separada da história contra o racismo e da história dos negros aqui. E muitos que vêm aqui na mesquita, querendo saber do Islã, têm essa curiosidade, de seus ancestrais, é por isso que vêm. Quando eu fui ao Mercado Modelo, lá embaixo onde os escravos ficavam, como eu chorei lá! Eu chorei porque eu fiquei pensando como nossos pais, nossos antepassados ficavam aqui? Aqui!! Tudo que eu conseguia pensar era naquele sofrimento, meu Deus! Meu Deus! E isso também está relacionado com os malês, não é só religião.
A maioria dos escravos de origem iorubá na Bahia, na primeira metade do século XIX, era oriunda do reino de Òyó, que corresponde hoje à região onde o senhor nasceu, cresceu e viveu uma boa parte da sua vida. O núcleo dos nagôs muçulmanos que lutaram na revolta de 1835 era constituído por pessoas que vinham sobretudo de Ilorin, seja nativos ou outros que para lá convergiram durante disputas em terras africanas à época.45 Sua cidade natal, Ibá, fica a somente 65 quilômetros desse lugar, cuja história é tão fortemente atrelada à da Bahia. Como foi conhecer uma parte da sua história, da história da sua terra, através da história da Bahia e dos malês?
A história dos malês não havia chegado até mim na Nigéria, eu não cheguei a estudar na faculdade lá. Eu não sabia que havia uma história dos malês aqui, sabia por alto porque na África existe uma mesquita do Brasil, de pessoas que retornaram. Eu visitei um dia essa mesquita, mas eu não entendia por que ela estava ligada ao Brasil. Eu não sabia a história dos malês, nem sabia que o Brasil tinha relação com os africanos iorubás, que nagôs haviam chegado aqui. Quando eu voltei para minha terra em 1980, da Arábia Saudita, eu fui ser professor até que meu “irmão” que é doutor, Isa Bello, com quem eu tinha estudado na Arábia Saudita, o tio de Misbah Akanni, tinham chamado ele para fazer uma palestra na Bahia num seminário sobre os malês, um grande seminário com Júlio Braga, que era diretor do CEAO, com Cid Teixeira, através do grupo de São Paulo (CDIAL), e quando o seminário terminou disseram para ele (Bello) que eles estavam precisando de um sheikh da Nigéria que soubesse cultura islâmica bem.46 Quando meu amigo me chamou para vir para cá eu disse: “eu não tenho interesse de sair da minha terra, eu fiquei longe dos meus filhos por quase oito anos, eu não quero mais”, mas ele insistiu, então eu disse, “eu vou passar um tempo lá, dois, três anos”. Mas foi só no segundo seminário Islâmico que fizemos aqui na Bahia, em janeiro de 1993, que o professor João Reis me deu um livro dele em inglês, porque eu não falava uma palavra de português, aquele livro que ele escreveu, e foi ali que eu descobri a história, que é também a minha história. Eu li o livro dele e falei “meu Deus!”. Nesse livro eu vi informações de como os escravos saíram de lá para cá, aprendi a história dos malês, eu não conhecia muito da história, muita gente na Nigéria não conhece essa história. Eu sabia muito pouco da escravidão. Depois que eu conheci o trabalho de João Reis, aí eu pensei, tem coisa grande aqui com os malês, que o que a gente usa na minha terra, a palavra ìmàlê, é igual a muçulmano. Foi aí que eu percebi a importância da cultura islâmica aqui, porque tem muita coisa naquele livro que eu não sabia, sobre a minha terra, mas eu não sabia! Aí eu entendi que era alguma coisa do destino, eu não posso negar isso. Como negar? Eu não conhecia essa história, eu nunca pensei que viveria no Brasil, nunca! E meu plano naquela época, até 1991, era, se eu fosse sair da Nigéria, era para ir para os Estados Unidos com minha família, mas o Brasil, o que tem no Brasil? Mas alguma coisa me dizia, vai lá, se der certo você fica, e se não der certo, você volta. E quando eu cheguei aqui eu fiquei na dúvida se eu ficaria, até conhecer a história dos malês, foi só aí que eu disse a Saifi que eu ficaria, que ele podia comprar a casa.
A crise internacional desencadeada a partir dos atentados ao World Trade Center de Nova York, perpetrados no dia 11 de setembro de 2001, colocou o mundo islâmico no centro da opinião pública. Ao redor do mundo, os meios de comunicação “noticiaram” o Islã com ênfase na representação de uma religião violenta, irracional, e o muçulmano como um “outro” que se configurava como inimigo em essência do Ocidente democrático cristão. Como foi ser líder de uma comunidade islâmica naquele momento?
Quando teve o 11 de setembro, eu nunca vou esquecer, o professor Bira [Ubiratan Castro de Araújo, 1948-2013] ligou para mim e me disse: “Sheikh, o senhor acha que isso vai acabar com o Islã?”, e eu disse que isso era impossível! Muito pelo contrário. Justamente porque os ataques não têm nada a ver com o Islã, na nossa religião se diz que matar uma única pessoa é igual a matar toda a humanidade, e a convivência entre muçulmanos e não muçulmanos é muito mais antiga do que essa história. Mas é claro, de vez em quando ouvia alguma brincadeira sem graça na rua sobre sermos terroristas, até a ABIN [Agência Brasileira de Inteligência] veio me procurar, ficaram uma hora e meia, e deixaram um cartão para eu entrar em contato caso eu observasse alguma coisa suspeita. Mas não posso dizer que teve agressão, mesmo que algumas mulheres da comunidade tenham optado por tirar o hijab na época. Por outro lado, naquela época tivemos uma procura grande pela religião, muitas conversões aconteceram por conta disso, o Alcorão que tínhamos, vendendo traduzido para o português, acabou. Aí eu perguntava, “por que você quer comprar?”, e elas respondiam, “porque a gente quer saber a verdade sobre o Islã, o que ele ensina”. Por conta da cobertura midiática, teve muita procura, as pessoas tinham muita curiosidade de saber se aquilo era de fato o Islã.

A Universidade Federal da Bahia e a produção acadêmica sobre o tema tiveram um papel vital nesse retorno do Islã para a Bahia no século XX. Misbah Akanni, o pioneiro no movimento de retorno do Islã para o estado, conheceu a história da presença histórica muçulmana na Bahia em um curso de língua portuguesa oferecido pelo professor Arnaldo Lima, do CEAO, na Universidade Obafemi Awolowo, então conhecida como Universidade de Ifé. Depois, foi através de um período de intercâmbio entre a mesma instituição e a UFBA que ele veio para a Bahia e pôde combinar com o CDIAL para pôr em prática o projeto de retorno. Foi também no Restaurante Universitário da UFBA que ele conheceu os baianos que depois se converteram e o ajudaram a fundar uma comunidade propriamente dita. Lá também estudavam os outros africanos que compunham o primeiro grupo de fiéis. Professores da UFBA foram as principais figuras na produção de conhecimento sobre o tema, o exemplo mais óbvio sendo o livro de João Reis. Adicionalmente, foi no CEAO que muitos dos eventos de divulgação da religião aconteciam, com o apoio dos professores Cid Teixeira, Ubiratan “Bira” Castro de Araújo, Júlio Braga e da professora Yeda Pessoa de Castro, para citar alguns nomes recorrentemente mencionados em entrevistas com os membros fundadores da CCIB.47 O senhor concorda que hoje talvez não teríamos essa comunidade aqui se não houvesse esse envolvimento institucional, particularmente da UFBA?
Acho que não é possível pensar o Centro Islâmico sem essa relação. Além desse apoio com tudo, com espaço, com tudo, a gente aprendeu muito com os brasileiros. Eu mandei cópia do livro de João Reis para a Nigéria, porque meus amigos não conheciam a história. Eu aprendi muito com o professor João Reis, com o professor Cid Teixeira, todos ajudaram, o professor Júlio Braga, professora Yeda Castro, Ieda Machado [pesquisadora já falecida do CEAO], que recebia os estudantes africanos aqui. E eles não ajudaram só ao Centro Islâmico. Quando eu cheguei aqui comecei logo a dar aula de língua árabe e Islã no CEAO, através de Akanni, que já conhecia todos, isso já em 92. Depois, quando encontrei Yeda Castro, ela havia morado na Nigéria, e convidávamos todos para dar palestras, fazer os seminários, João Reis, Ubiratan, Cid Teixeira. E, antes de termos sede própria, todos os nossos eventos aconteciam na UFBA, no CEAO. Eles ajudaram muito e essa relação aconteceu com a Igreja Católica também. Inclusive nosso primeiro seminário, antes de eu chegar aqui, ocorreu na sede da Universidade Católica. O povo da igreja apoiou muito; no dia, eles abriram o auditório, ofereceram tudo. Também tocou o meu coração, quando a Igreja de São Bento nos ofereceu a possibilidade de fazer um seminário islâmico lá.

Depois da sua chegada, esse diálogo inter-religioso se solidificou e o senhor é reconhecido por ter ótimas relações e interlocução com diversos líderes espirituais no Brasil. Como isso funciona?
Não vou mentir para você que isso é o que tem me ajudado muito. A gente tem que agradecer a Deus por isso. A gente tem união aqui, com Candomblé, com judeus, pastores e padres. Se você olha bem o que a gente está estudando, fazendo aqui, é igual a jogo de futebol. Os times do Bahia e Vitória querem fazer gol para ficarem felizes, então cristãos, povo de Candomblé, a gente quer fazer o bem, diante de Deus e do que é sagrado para nós, fazer coisas boas. A maneira como um muçulmano conversa com Ele, com o Criador, pode não ser a maneira como os cristãos conversam com ele. Muçulmanos oram cinco vezes ao dia, todas as religiões têm orações; muçulmanos falam sobre a fé, todas as religiões falam sobre a fé; muçulmanos têm jejum, quase todas as religiões têm jejum, ou especificidades alimentares. Outras religiões podem não funcionar da mesma maneira, mas fazem caridade. As maneiras de fazer podem ser diferentes, mas o objetivo é o mesmo. Você não vai ver pregação para destruição em nenhuma religião. Todas pregam a solidariedade, a caridade, cuidar da família; o objetivo é o mesmo, só a maneira de chegar a Deus [é] que pode ser diferente. Para mim, isso é fácil. Eu tenho boas relações e diálogo com muitos líderes religiosos, com o Padre Jonathan,48 com Jaciara,49 nossa mãe Makota,50 me dava muito com o pastor Djalma Torres,51 agora falecido. A gente usa o auditório de José Medrado52 para fazer reuniões anuais; também, junto com o Ministério Público, fazemos palestras lá juntos. E isso é uma coisa bem única na Bahia, reflete essa herança nossa, porque no resto do Brasil não é a mesma coisa. Aqui cada um fala dos assuntos de acordo com a sua religião. A maneira como a gente está trabalhando com outras religiões é o futuro.
Quando vocês, os malês de hoje, chegaram à Bahia, encontraram um contexto muito esvaziado do Islã, enquanto os “antigos”, no começo do século XIX, vieram principalmente em um momento do tráfico negreiro posterior àquele que havia trazido os haussás, que era o principal grupo muçulmano até então estabelecido. Os malês do passado, de certa forma, já teriam encontrado uma base para a prática do Islã, mesmo que formada por um grupo com o qual eles haviam acabado de travar disputas e com quem entrariam, em alguma medida, também em competição aqui.53 O senhor também vem de um contexto fortemente islamizado, onde a religião muçulmana é, por assim dizer, a linguagem do poder. Ambos os cenários diferem bastante da atual realidade baiana que, embora configure um ambiente pautado pela liberdade para a prática religiosa e a conversão, reserva para o Islã um lugar de minoria bastante reduzida e pouco marcada na paisagem cultural e religiosa local. Como é viver como uma minoria religiosa?
Bom, quando eu cheguei aqui foi um pouco difícil e estranho porque aqui eu posso dizer realmente que o Islã está só começando, mesmo com a influência forte dos malês. Então quando eu cheguei foi mesmo difícil, mas aqui na Bahia, ao mesmo tempo, o povo é muito acolhedor e isso ajudou bastante. Mesmo assim o fato de o Islã, para a maioria das pessoas, ser estranho, isso me deixou estranho também, e muitas vezes eu não sabia como me comportar. Tem coisas que são comuns na minha terra, que até pessoas que não são muçulmanas na Nigéria sabem que o Islã funciona assim, nossa maneira de agir. Ao mesmo tempo, sabendo que o Islã é fraco, ainda tem coisas que não precisa forçar, [mas] divulgar ou dizer como as coisas têm que ser. Quando alguém me pergunta como funcionam certas coisas na lei islâmica, eu sei que se eu disser como isso funciona nos países muçulmanos, isso vai ser colocado em questão. Quando fazem perguntas sobre esse tipo de assunto, faço sempre questão de dizer que aqui isso não tem nada a ver, primeiro porque não estamos em um país muçulmano, e mesmo eu que sou sheikh, não sou juiz. Aqui, por exemplo, eu não vou fazer palestra sobre a homossexualidade, porque tem ideias que são estabelecidas em países muçulmanos que são diferentes aqui. Se eu vou falar sobre isso aqui, isso vai gerar polêmica, e não tem necessidade nenhuma, então eu evito. Nas palestras eu tendo a enfocar então as coisas que podem servir para a comunidade, para gerar pontes, e que eu sei que não vão gerar polêmica. Fizeram um filme na igreja da Lapinha dizendo que a igreja era uma mesquita e que era para a gente resgatar, mas se você for ver, João Reis não fala isso, [mas] Cid Teixeira falou que os malês provavelmente trabalharam na construção da igreja e o púlpito parece com o de uma mesquita, mas isso não é provado. E falar isso sem prova, eu não falaria jamais. Essas coisas, por exemplo, eu evito porque não estamos aqui para confrontar a religião católica, aliás nenhuma religião do lugar, é importante ter respeito. Eu já pedi para fazer tratamento funerário islâmico e eu não recebi permissão, disseram que não tem isso aqui, então eu fiquei na minha.54 Eu expliquei para a filha do falecido que aqui eu não tinha força para dizer como tinha que ser. E veja, o Islã tem plano B, então a gente usa o plano B. Não adianta querer plano A, e o Islã diz que a gente tem que sempre respeitar a lei da terra. Temos sempre que pedir autorização para dirigir oração, no aeroporto, na faculdade, mas em país muçulmano não existe isso. Aqui tem que conversar, às vezes dá e às vezes não dá. Precisamos ter paciência e respeito, eu entendo isso claramente. A minha religião tem um futuro aqui, mas eu entendo que o que é bom para a gente pode não ser bom para todos.
Inicialmente, na Bahia, os haussás estiveram mais diretamente ligados ao Islã.55 Mesmo na contemporaneidade, se comparados com a população da região norte da Nigéria, dos haussás, por exemplo, os iorubás são considerados menos ortodoxos, com um Islã historicamente mais maleável. O senhor acha que teria sido diferente a prática do Islã na Bahia se outro sheikh, de outro grupo étnico, como os haussás, tivesse vindo no seu lugar?
Hoje os sheikhs jovens, mais jovens, na região iorubá e haussá são iguais porque o que está acontecendo hoje na minha terra é que eles estudam juntos, em escolas parecidas, recebem as mesmas orientações. Talvez na época dos nossos pais, os mais antigos, na época deles, era diferente. Hoje, através do estudo conjunto, são mais parecidos, as coisas lá acontecem em intercâmbio. Por isso, se fosse hoje, não acho que faria tanta diferença.
No Brasil, justamente por conta do seu status como minoria religiosa, em alguma medida estigmatizada, o Islã se organizou de forma bastante peculiar na vida pública e no pleito por direitos. A atuação da Associação Nacional de Juristas Islâmicos (Anaji), por exemplo, é centralmente focada nas bandeiras pela tolerância religiosa e no combate ao racismo religioso, articulando-se, inclusive, às religiões de matriz africana pelo direito ao uso de marcadores da diferença particularmente visíveis - o abadá, o turbante e o véu - em contextos institucionais.56 Como o senhor vê a Associação de Juristas Islâmicos e o que acha dessa intercessão entre as esferas religiosas e políticas?
Isso é natural, essa aliança, o nosso profeta Mohammed, que a paz esteja sobre ele, deixou isso claro, que está claro também no Alcorão. Muçulmanos não têm direito de falar mal de outros deuses e religiões. Quando você ataca uma religião ou fala mal do Deus deles, você está convidando eles para fazerem o mesmo com você. Todos os mensageiros de Deus vieram para fazer o bem, só a maneira de adorar que é diferente. Todas as religiões têm similaridades, e a coisa mais importante é a fé sincera, fé, oração, jejum, caridade. A convivência pela paz, isso é Islã. Eu não sou político, mas o Islã anda junto com a política, porque o Islã e a política são uma coisa só. Sou muçulmano no social, sou muçulmano no econômico, no político, sou muçulmano.
O cenário baiano se transformou com a inauguração da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), que estabeleceu um novo polo do Islã em São Francisco do Conde, com a chegada de alunos muçulmanos oriundos de países lusófonos.57 O senhor acha que o estabelecimento do Campus dos Malês, como foi batizado, pode funcionar como uma espécie de ponte histórica e simbólica entre os muçulmanos do passado e essa nova leva de imigrantes afro-muçulmanos?
Para mim, os malês, essa palavra me dá orgulho. Inclusive eles, na Unilab, estudam sobre isso e é uma referência para eles também. A história dos malês já é estabelecida, esse sempre será o marco, a ponte, a referência. Está posto, não tem como apagar. E, com os alunos da Unilab, está acontecendo uma expansão, eu não esperava! O trabalho que a gente está fazendo aqui é uma coisa tímida, pequena, mas pode crescer, inclusive com os alunos de fora. Eu não sabia dessa ponte com a Unilab, fiquei sabendo através de uma professora que veio aqui e disse que tinha muçulmanos lá; isso foi só em 2018, aí começamos uma parceria próxima. Eu sempre aconselho eles lá para fazerem as coisas como sabem, como podem, para quem estiver dirigindo a oração fazer com segurança, que ninguém espera que ele faça como sheikh, mas que é importante fazer. Eu os ajudo, já fui lá várias vezes. E com esse nome, Campus dos Malês, só pode ser coisa boa! É bonito! E como eu disse antes, na Nigéria eu não havia estudado a história dos malês e quando eu cheguei eu tinha me programado que, em cinco anos, eu voltaria para a minha terra. E quando eu comecei a trabalhar aqui, eu tinha dificuldade com a língua, mas o povo, os muçulmanos que já haviam se convertido e os africanos que não tinha nem cinco ou seis naquela época, agora eu vejo que a gente está crescendo, então eu tenho muito orgulho de onde estamos. Eu tenho só um pouco de medo, a comunidade [em São Francisco do Conde] está crescendo e se ampliando, mas tem que ter um líder, terá que ter um sheikh.
Assim como os malês oitocentistas se tornaram indissociáveis do Islã na Bahia e no Brasil, a sua trajetória como sheikh marca o período de reconfiguração da história da presença muçulmana no estado e no país. Como o senhor acha que será lembrado? Acredita que um líder africano deve lhe suceder?
Eu acho que as poucas coisas que estou fazendo agora, que já fiz aqui, Deus sabe que eu tenho e não tive como agradar a todos, mas sempre estive e estou aberto para ser chamado a atenção e pedir desculpas, caso tenha errado em alguma coisa. Eu tentei praticar as regras do Islã pensando no que seria melhor para todos, tentei aprender no processo e coloquei a minha melhor e mais sincera intenção. As pessoas sempre me ajudaram muito, muitas vezes eu achei até que não merecia o reconhecimento que recebi e recebo. Quando eu não estiver mais aqui, é importante que a comunidade continue, a mesquita não me pertence, as pessoas devem vir à mesquita eu estando aqui ou não. Enquanto eu estiver aqui, eu vou fazer a minha parte. Se eu retornar para minha terra, eu vou fazer de tudo o possível para que seja alguém que conheça a cultura do lugar, como um africano que vá me substituir.

Notas
O texto desta entrevista foi corrigido em 15 de agosto de 2023, a pedido do entrevistado, e com o aval da entrevistadora.
Foi inteiramente removido um período (cerca de duas linhas), que não refletia adequadamente o ponto de vista do entrevistado sobre um tema teologicamente sensível.
O restante do conteúdo não foi alterado.