RESENHAS

TESTEMUNHOS DA LUTA ANTIRRACISTA BRASILEIRA NO TEMPO PRESENTE

Mário Augusto Medeiros da Silva
Universidade Estadual de Campinas, Brasil

TESTEMUNHOS DA LUTA ANTIRRACISTA BRASILEIRA NO TEMPO PRESENTE

Afro-Ásia, núm. 67, pp. 753-757, 2023

Universidade Federal da Bahia

CARDOSO Edson. Nada os trará de volta: escritos sobre racismo e luta política. 2022. São Paulo. Companhia das Letras. 456 ppp.

Um dos lançamentos que foram organizados deste livro do jornalista e doutor em literatura Edson Cardoso se deu no Museu Judaico de São Paulo. Ali, a discussão aproximou a temática de seus escritos, que envolvem aspectos variados da experiência política negra entre os anos 1980 e 2000, ao debate sobre judeidade e negritude, envoltos pelo problema da memória e do testemunho. Em tal ocasião, a conversa se deu entre o autor e um dos grandes especialistas brasileiros no tema da memória e da literatura testemunhal, o crítico literário Márcio Seligmann-Silva.

Independente daquele debate, parece ser interessante reter a pista que ele enceta pois, de fato, desde o título, há uma sugestão no livro de Cardoso sobre a importância da memória social como uma forma de disputa de poder, seja da narrativa sobre um determinado tempo, seja como uma importante avaliação para o tempo presente do que deve ser retido do passado, tanto como uma forma de alerta, uma maneira de celebrar aqueles e aquelas que não mais se encontram entre os vivos e que, por fatores variados, em particular o racismo, terão suas memórias soterradas por algo que se pode chamar de prática social do esquecimento.

Nada os trará de volta assume, neste sentido, uma espécie de compromisso político com a memória de personagens negros esquecidos pela passagem do tempo - que nada tem de natural, já que a recordação coletiva retoma a temporalidade que lhe interessa quando lhe convém - e pela prática racista, especialmente daqueles que detêm o poder de controlar a narrativa sobre o que foi a experiência social de outros. Cardoso, assim, envereda pelo problema ético do testemunho como uma forma de recordação e de narrativa, bastante debatido desde a Segunda Guerra Mundial, em que se inaugura uma literatura de testemunho (É isto um homem, de Primo Levi, por exemplo), ou ainda no âmbito da literatura dos países que tiveram ditaduras e governos autoritários, como nas Américas, África, Ásia, Europa. Também, como inspiração, o autor lembra, na introdução, a importância das reflexões filosóficas de Hannah Arendt sobre o testemunho e a verdade face aos ditames do poder.

O testemunho é proveniente da esfera do trauma, individual e coletivo, e assim precisa ser compreendido como algo que permita lidar com o indizível e o incrível - a exemplo dos horrores dos campos de concentração ou da banalidade do mal aceito e executado por nazistas e sua adesão social ampla. Aquele que narra o faz por si e por outros que já não podem mais fazê-lo. Espera-se que existam interlocutores de escuta sensível, que não ignorem o que lhes foi contado, tampouco considerem como inverossímil, uma vez que de horrores e feridas é feita a matéria do teor testemunhal. Pelo contrário: ao ouvir aquilo que narra o sobrevivente, a personagem do testemunho que logrou existir apesar de tudo, seus interlocutores no tempo presente assumam responsabilidades para que não se esqueçam e para que nunca mais aconteçam os fatos narrados. Trata-se, assim, de um dever da memória que é imputado eticamente ao tempo presente. Isso é a base de uma discussão bastante complexa entre história e memória após a Segunda Guerra Mundial, bem como de diferentes processos de análise histórica e jurídica do que se chama “justiça de transição” em sociedades pós-ditatoriais e pós-coloniais no século XX.

É muito interessante, portanto, que Cardoso coloque seus escritos nessa linhagem de pensamento, pois a matéria de que eles são feitos é de uma documentação sistemática das formas assumidas pelo racismo na sociedade brasileira da redemocratização, bem como dos diferentes acertos - e também equívocos, na visão do autor - da luta antirracista protagonizada, especialmente, por diferentes movimentos negros e intelectuais negras e negros brasileiros. O autor, destarte, se apresenta como uma testemunha do racismo e da discriminação, como um intelectual negro brasileiro em atividade desde as primeiras fileiras do Movimento Negro Unificado (MNU), como editor de seus periódicos, passando por seu trabalho no âmbito da Câmara dos Deputados, como assessor do parlamentar Florestan Fernandes, além de também editor de um dos mais importantes jornais contemporâneos da imprensa negra nacional, o Irohin. Cardoso é aquele que narra desde dentro, provocando desta forma a fala e a escuta sobre o racismo e contra os racistas em diálogo com intelectuais e ativistas comprometidos com a luta antirracista, negros e não negros, mas nem sempre escrevendo, na sua percepção, sobre aquilo que mesmo eles gostariam de ler. Trata-se de um intelectual crítico.

A temporalidade do livro se inicia em 1987 e chega até o ano de 2020, não de forma linear, em textos curtos publicados originalmente em periódicos como Jornal do MNU, Brado Negro, Portal do Geledés, muitas no Irohin (jornal fundado por ele), e intervenções em jornais como Correio Braziliense, O Estado de São Paulo e em prefácios. Está dividido em cinco partes denominadas “Movimento Negro”, “Denúncia do genocídio negro”, “Incidência política”, “O jornalismo em revista” e “Imaginário”. Essa divisão mostra diferentes formas de incidir no debate contemporâneo como um intelectual crítico que retoma, novamente na chave do testemunho, o papel de “dizer a verdade ao poder” (lembrando aqui de formulações de Edward Said e Noam Chomsky).

Neste sentido, as partes do livro discutem diferentes ações coletivas do movimento negro brasileiro, que atravessam os anos 1990 e começo dos anos 2000 - envolvendo desde questionamentos às conquistas de direitos no âmbito da Constituição de 1988, críticas aos governos pós-redemocratização e os debates sobre os direitos da população negra -; documentam protestos e atos públicos, ponderando sobre seus sentidos, como a Marcha Zumbi +10, ou rendem homenagem a figuras de destaque na memória pessoal e coletiva do movimento negro brasileiro, algumas que paulatinamente vão sendo esquecidas, mesmo que não tenham sido anônimas em vida, segundo o autor, como a socióloga e ex-minista Luiza Bairros.

O racismo brasileiro faz dos negros sobreviventes, no sentido do teor testemunhal. Portanto, denunciar o genocídio do negro brasileiro - em diálogo com Abdias do Nascimento - é uma tarefa dos movimentos negros e da qual Cardoso não se furtou, tendo em vista a reunião de artigos que publica sobre o assunto no livro. A testemunha, nesta parte, fala de anônimos e invisibilizados, que muitas vezes não foram mencionados nos grandes veículos de imprensa ou se somaram aos números esterilizados e gritantes de violência contra a população negra em geral, que chocam a ninguém além de vítimas e familiares. A testemunha, portanto, não deixa de registrar esse massacre, mas dignifica a memória de sujeitos vilipendiados de maneiras variadas, em vida ou após a morte; também não deixa de ironizar a inércia ou a inação do poder e de agentes poderosos face aos dados que eles mesmos geram. A ironia, aliás, é uma figura de linguagem que permeia sempre o testemunho, dado que a pergunta sobre como foi possível o horror implica em perguntar como permitiram, aqueles que se dizem cidadãos de bem, homens e mulheres, que ele acontecesse enquanto acontecia. Num país em que o racismo existe apesar da inexistência de racistas autodeclarados, faz sentido.

Uma longa parte do livro documenta a própria experiência negra no poder, nos anos mais recentes, em governos progressistas, majoritariamente. São análises sobre a luta pela aplicação de leis antirracistas ou de conquistas históricas, como as ações afirmativas, a respeito da atuação da Secretaria de Promoção de Políticas de Igualdade Racial (Seppir), as crises envolvendo agentes políticos negros no poder e os vacilos, mesmo de governos progressistas, com relação a ações antirracistas. É um grande momento do livro que coloca em disputa a narrativa do tempo presente, feita à quente por quem o viveu de um ponto específico de observação e sem constrangimentos em debater com seus pares, outros intelectuais e ativistas negras e negros em cargos, comissões, comitivas e outras estruturas institucionais. A esgrima do sobrevivente passa em revista também as diferentes produções do imaginário brasileiro, tanto pela produção jornalística como por obras de cultura, em livros, músicas e pesquisas sobre a experiência da vida negra no Brasil. No mais das vezes, infelizmente, o racismo se atualiza como forma de dominação e prática social de esquecimento.

Nada os trará de volta assume um ponto de vista brilhantemente incômodo, o suficiente para sugerir a necessidade de que outros e outras sobreviventes da experiência de ser negro no Brasil, nos anos que atravessam o livro, ocupando posições que são discutidas e criticadas nos textos, venham a público disputar a narrativa sobre as lutas políticas travadas no âmbito do poder e do antirracismo cotidiano. Isso é mais um acerto da obra do autor, pois muitos dos personagens públicos citados no livro caminham entre nós, alguns novamente prestes a ocupar posições em estruturas do poder. Edson Cardoso provoca nossa leitura (e espera-se que a deles também), fazendo com que revivamos sob suas lentes, que fotografaram tais experiências no momento que aconteceram, experiências que julgamos conhecer ou que ainda pensamos soterradas em camadas seletivas da memória. Como intelectual crítico comprometido com a ética testemunhal, ele nos questiona, permanentemente e sem trégua, o que fazíamos quando tais fatos aconteciam. E o que faremos agora que sabemos.

Autor notes

mariomed@unicamp.br

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