RESENHAS
NJINGA: RAINHAS AFRICANAS NA NETFLIX É CONHECIMENTO HISTÓRICO?
NJINGA: RAINHAS AFRICANAS NA NETFLIX É CONHECIMENTO HISTÓRICO?
Afro-Ásia, núm. 67, pp. 809-821, 2023
Universidade Federal da Bahia
Smith Jada Pinkett, Gharavi Tina, Hilton Etosheia, Ward Susannah, Thomas Victoria Adeola. Rainhas africanas: Njinga. 2023 |
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É uma grande conquista Njinga Mbandi, soberana dos reinos do Ndongo e Matamba no século XVII, ter sua história representada enquanto seriado de TV numa plataforma mundial como a Netflix. Com produção executiva e narração de Jada Pinkett Smith, a série Rainhas Africanas chega para contar histórias de mulheres poderosas no continente africano, ainda pouco conhecidas do grande público. Vem da necessidade de uma mulher preta norte-americana ensinar referências de poder feminino preto na história da humanidade. Sem dúvida, uma proposta que supre uma demanda por narrativas não brancas no cinema mundial, um sonho sonhado por muitos, como eu.
A produção foi uma parceria da Westbrook, agência norte-americana fundada por Jada e seu esposo Will Smith, e a Nutopia, produtora sediada em Londres. Categorizada como docu-drama, a produção intercala a dramatização dos episódios históricos com depoimentos de pesquisadore/as e autoridades. Um ponto positivo é a narrativa/interpretação apresentada por vozes negras, na sua maioria historiadoras. A Rainha Diambi Kabatusuila é quem abre os depoimentos, conferindo legitimidade a uma história que será contada a partir da perspectiva da mulher africana.1 Além dela, falam historiadoras e historiadores, todos negros e negras, na sua maioria acadêmicos/as, nem todas especializadas em história angolana do período.
Apenas uma única angolana aparece na série: Rosa Cruz e Silva, ex-ministra da cultura de Angola, também é a única das entrevistadas que tem publicações sobre Njinga.2 A maioria são pesquisadores de universidades norte-americanas e europeias especialistas em abolicionismo nos Estados Unidos no século XIX, literatura africana, reino do Congo, mas sem conhecimento profundo das fontes sobre Angola no século XVII.
É importante refletir sobre as relações Norte-Sul na produção audiovisual, já que se trata de uma representação norte-americana da história africana e assim prioriza intelectuais do Norte Global em detrimento do Sul. As pesquisas produzidas sobre Njinga no Brasil são referências importantes e foram consultadas pela produção.3 Eles nos leem, utilizam nossas ideias, porém se recusam a nos citar. Isso é bem recorrente na produção acadêmica de pesquisadores norte-americanos, lamentavelmente. De forma que a série passa a ideia de que só universidades dos Estados Unidos e Europa produzem pesquisa de qualidade. Até mesmo Rosa, a única angolana consultada, aparece proporcionalmente bem menos que os demais. Os créditos informam os consultores: Cécile Fromont (Yale University), John Thornton (Boston University) e Linda Heywood (Boston University) apenas nos agradecimentos, ausência que chama atenção pois Linda Heywood é a grande especialista de Njinga nos Estados Unidos e a narrativa apresentada na série segue de perto suas interpretações.4
Os depoimentos dos pesquisadores conferem legitimidade à obra audiovisual, transmitem a mensagem de que a produção é baseada em pesquisa histórica. Faz-se necessário analisar a relação entre pesquisa e produção audiovisual. A História, enquanto disciplina, tem regras a cumprir, pretende-se portadora de uma versão do passado comprovada por evidências. Já o cinema não tem compromisso com a verdade. Pode-se pintar a personagem com as cores que agradem a seus criadores, sem necessidade de comprovação em fontes históricas, e assim foi criada uma representação de Njinga que, em muitos aspectos, não corresponde ao verificado pelas pesquisas históricas.
A história de Njinga é “enrolada”, como seu nome profetiza.5 Acredito que todos os sujeitos históricos podem ser analisados sob diferentes prismas e perspectivas, várias “verdades” possíveis, mas no caso de Njinga pesam suas múltiplas identidades: Engambele, embaixadora D. Ana de Souza, afilhada do governador; Ngola (rei) do Ndongo; Cambolo de Matamba; Tembanza jaga; abençoada do Papa etc. Ao longo de seus mais de 80 anos, Njinga acumulou títulos, comandou diversos povos, atuou para a reconfiguração das identidades étnicas em Angola, além de compor com diferentes aliados: o reino do Congo, os holandeses, os capuchinhos italianos e diversos chefes centro-africanos. Além de formidável guerreira, como a série destaca, Njinga foi uma hábil negociadora e diplomata, capaz de aglutinar vários sobas e governantes em torno de suas pautas.
Pelos muitos papéis que representou, existem muitas fontes e histórias produzidas sobre ela, cada qual com uma perspectiva diferente, por vezes conflitantes. Diversos pontos de sua trajetória são polêmicos para a historiografia, o que significa dizer que não há um consenso entre os historiadores, que têm interpretações divergentes sobre a relação de Njinga com os chamados jagas/imbangalas; sobre quem eram estes; por que ela aceitou o batismo católico e sua relação com a Igreja; sobre a legitimidade do poder feminino na África Central; e, finalmente, sua participação no comércio transatlântico de escravizados.
Os depoimentos dos pesquisadores estão colocados na série para corroborar a narrativa ali apresentada, sem abrir espaço para as divergências que existem entre as tradições e as fontes históricas sobre sua longa vida. Não há discussão historiográfica, as falas dos pesquisadores são utilizadas apenas como recurso narrativo no desenrolar da história.
A temporada dedicada a Njinga tem quatro episódios. O primeiro aspecto a se observar é a má distribuição dos temas entre os episódios. O primeiro começa em 1617, com Njinga já adulta, em treino militar, como a filha favorita do Ngola, governante do Ndongo, morto em uma batalha contra os portugueses naquele mesmo ano. O segundo episódio vai da posse de seu irmão, Ngola Mbandi, até seu batismo em 1622. Njinga torna-se governante no terceiro episódio, ou seja, os mais de quarenta anos de seu governo são resumidos nos dois últimos episódios.
Os anos de maior confronto (1626-1630) foram resumidos a poucos minutos. A série anulou totalmente o fato mais impactante de sua trajetória: o golpe político planejado pelo governador português Fernão de Sousa, em 1626, quando Njinga foi declarada soberana ilegítima do reino do Ndongo, sendo entronizado como Ngola um soba de outra linhagem, Ari a Kiluanje. Foi este golpe que levou Njinga a ocupar o reino de Matamba e a assumir a identidade jaga-imbangala. Por toda vida, Njinga vai justificar suas guerras por este golpe. Entre os anos de 1626 e 1630, Njinga desafiou os portugueses de inúmeras formas, é o momento em que mais se percebe sua inteligência militar e perspicácia em iludir e enganar os adversários que a perseguiam nas ilhas do rio Kwanza. Ela usou diversas estratégias para permanecer livre. A partir de seu conhecimento da geografia local, fez ataques noturnos, empreendeu fugas mirabolantes como a de Quina Kinene, quando desceu um desfiladeiro gigantesco amarrada em cipós, além do uso constante da diplomacia, ao enviar embaixadores e espiões que transmitiam sua adesão ao catolicismo. Nos poucos minutos que tratam desse período, a série mostra uma derrota de Njinga que não encontra respaldo nas fontes históricas.
A série apresenta pouco da genialidade e astúcia da soberana. Preferiram construir uma personagem sensível, que chora diante do tráfico transatlântico. Ao invés de discutirem os contextos políticos, econômicos e sociais de sua época, optaram por carregar no sentimentalismo. Por exemplo, quando mostram um Ngola Mbandi deprimido, sem apresentar as razões para tal. Ora, ele estava isolado politicamente após ser derrotado, exilado e sem boa parte de seus funcionários, portanto, não se trata de uma tristeza por fraqueza emocional; sua morte foi consequência do expansionismo predatório do governador português Luiz Mendes de Vasconcelos. As cartas do capitão-general Fernão de Sousa confirmam: “El Rey d’Angola é falecido de uns pós de peçonha que tomou de paixão por lhe não cumprir o governador João Correa de Sous a promessa que lhe tinha feito de mudar o presídio da Amabaca para a Luinha”.6
Apresento mais alguns pontos que a série trabalhou de forma equivocada historicamente.
Relação com o catolicismo
A cena de batismo de Njinga apresenta uma protagonista confusa, indecisa sobre o que é o catolicismo. Na posição de embaixadora do Ndongo, ela aparece aconselhada, em total inocência, pela esposa do governador João Correia de Sousa, aquela que se tornou sua madrinha e lhe explicou sobre a religião europeia. Essa representação choca-se com a astúcia e perspicácia da rainha na famosa cena descrita por diversas fontes, dentre as quais destaco o capuchinho Giovanni Cavazzi (1621-1678), que não testemunhou o episódio, mas o registrou cerca de quarenta anos mais tarde a partir do que ouviu durante suas visitas à corte da rainha na década de 1660. O religioso escreveu que, antes de partir, Ngola Mbandi pediu à irmã
que aceitasse ir até Luanda como medianeira da paz entre ele e os Portugueses, com autoridade de concluir o negócio da melhor maneira que lhe fosse sugerida pela sua prudência. Acrescentou que, se os portugueses mostrassem o desejo de a atrair ao Cristianismo e de a baptizar, não se recusasse, preferindo os interesses reais ao particular génio dela; tanto mais - dizia aquele descrente - que as aparências exteriores eram uma coisa e os sentimentos interiores outra coisa.7
É importante frisar que Njinga não tinha inocência alguma em relação ao catolicismo, que já estava presente no vizinho reino do Congo havia mais de cento e trinta anos. O batismo do rei Nzinga a Kuwu, em 1491, impactara profundamente as relações de poder na África Central. Há vários documentos que evidenciam as relações entre as cortes do Congo e de Ndongo, ao longo do século XVI, inclusive a interferência do Mani Congo para a libertação do padre Francisco de Gouveia, que viveu como prisioneiro do Ngola por muitos anos.8
Nas cenas que se desenrolam em Luanda, Njinga aparece acuada, ignorada pelos homens portugueses, enquanto as fontes destacam o impacto que sua presença provocou, sendo ela recebida com todas as honras, presentes e salvas de tiros.9
Segundo Cadornega, foram padrinhos de batismo o governador João Correia de Sousa e D. Jerónima Mendes, esposa do capitão-mor de cavalos; Luís Gomes Machado, já que antes de D. António de Lencastre (1772-1779), nenhum governador levara a esposa para Angola.10 Chama atenção a relevância que a madrinha portuguesa ganha na narrativa da Netflix, sendo aquela que orienta Njinga ao catolicismo, que a convence (como se ela hesitasse), sendo que nem o nome dela é ponto consensual na historiografia. Por que a série resolveu criar uma personagem branca, sem relevância histórica alguma, ao invés de mostrar a sagacidade de Njinga diante do catolicismo?
Há diversas interpretações sobre o significado do batismo de Njinga. Roy Glasgow entende que ela ficou deslumbrada pela cultura europeia, com seus luxuosos palácios, e por isso aceitou o catolicismo.11 Joseph Miller enxerga como uma deslealdade em relação aos cultos dos ancestrais em benefício de ritos estrangeiros.12 Marina de Mello e Souza mostra as profundas imbricações entre comércio, poder e catolicismo na África Central naquele contexto, em que “a pregação católica era componente central do império português”.13 No meu entendimento, não se trata de fé, como pregou Cavazzi: “sentindo ela que Nosso Senhor batia à porta do seu coração mediante a Sua graça”. Tampouco adotar o nome Anna de Souza pode ser visto como aculturação, mas como estratégia de negociação. A paz com Portugal passava pela aceitação do catolicismo. Ser apadrinhada pelo governador garantiria estabilidade política ao Ndongo. A grande perspicácia de Njinga levou à assinatura de um acordo de paz altamente favorável ao Ndongo, que manteve sua soberania preservada e reconhecida mesmo com o Ngola exilado e a capital Cabaça incendiada. É importante frisar que a paz interessava aos portugueses tanto quanto ao Ndongo, sobretudo pela presença do jaga Kasanje, um “inimigo comum” forjado pelos próprios portugueses.14
Para batizar Ngola Mbandi, o irmão de Njinga, conforme parte do acordo, foi enviado o padre Dionísio de Faria, natural do reino de Matamba, acompanhado por um capitão representando o governador. Ngola Mbandi se zangou, “sob o pretexto inconsistente de que não queria ser baptizado por um padre que nascera duma sua escrava, qualificativo usado para indicar os súbditos”.15 Dionísio de Faria não aparece na série, o que seria bem interessante para mostrar como o clero na África Central foi, em boa medida, constituído por africanos. Um padre negro teria sido uma boa oportunidade de evidenciar a inserção da elite centro-africana nas relações políticas e diplomáticas com o Vaticano.16 Ao contrário, na cena em que o batismo é oferecido a Ngola Mbandi, a personagem Njinga condena abruptamente o catolicismo, chegando a ameaçar o irmão ao dizer que o batismo representaria traição aos ancestrais. Esta passagem é bem problemática para a compreensão das relações entre catolicismo, poder e comércio na África Central. Ao longo de sua vida, Njinga negociara com sacerdotes cristãos, que recebiam o mesmo nome dos líderes espirituais locais, nganga. Ela soube usar os símbolos e autoridades cristãs sem romper com sua cultura original. Esse traço de sua “plasticidade” / “xenofilia” é característico da cosmopercepção africana, em que elementos da cultura estrangeira são adicionados, somados, sem que gere exclusão dos elementos tradicionais.17 Cavazzi afirma que, em seus últimos anos, Njinga rezava na cruz e logo depois honrava os ossos de seus ancestrais, evidenciando a coexistência de ambos sistemas espirituais na sua religiosidade.
Ainda sobre a relação de Njinga com o catolicismo, chama atenção a anulação dos capuchinhos italianos, como Antonio Gaeta, que a reconduziu ao catolicismo em 1656, e Cavazzi, seu confessor e quem lhe deu a extrema-unção, autor de dados importantíssimos sobre ela.18 No final de sua vida, Njinga assumiu-se publicamente como cristã, carregou ela mesma as pedras para a construção da igreja Santa Maria de Matamba, onde frequentava missas, tornou obrigatório o batismo em seu reino, casou-se segundo os preceitos da igreja e passou a proibir os ritos ancestrais, inclusive punia os feiticeiros com degredo como escravos para o Brasil.19 Aparece de forma superficial o padre negro Calisto Zelotes dos Reis Magos, natural de São Salvador do Congo, presente no batismo de Njinga em 1622, e que em 1648 participou da missão de Uando como intérprete, tendo sido aprisionado pelos jagas até Njinga resgatá-lo e transformá-lo em “mestre” em Matamba. Zelotes é um bom exemplo de clero africano, contudo estas circunstâncias não são evidenciadas pela série.
Njinga também se comunicou com o Papa Alexandre VII, a quem escreveu diversas cartas e de quem recebeu missiva abençoando-a. Para ler publicamente a carta do Papa, Njinga organizou festividades públicas que duraram sete dias. Também enviou missões diplomáticas a Roma, uma em abril de 1658 e outra em agosto de 1662, o que evidencia seu desejo de se aproximar do líder máximo da Igreja como forma de obter proteção e prestígio no mundo cristão. Toda esta relação complexa foi ignorada na produção, que por vezes apresenta o catolicismo como um inimigo de Njinga, não como uma dentre tantas possibilidades de aumentar seu poder.
Relação entre Njinga e os jagas
Quem eram os jagas em Angola no século XVII? Esta ainda é uma questão polêmica na historiografia. Seriam os mesmos que invadiram o Congo no século anterior? Seriam os imbangalas o grupo que se deslocou da Lunda sob a liderança de Kinguri? Há intensos debates e diferentes interpretações sobre a identidade destes guerreiros.20 Miller afirma que o termo “jaga” foi uma criação das fontes portuguesas, atribuído a diversos grupos que eles consideravam incivilizados.21 Outro ponto problemático é a relação de Njinga com os jagas. Glasgow vinculou a dinastia Ngola a Kiluanje aos jagas, assim Njinga já era conectada a esta dupla identidade e fora educada nas artes militares, preparada desde pequena para assumir a liderança tanto dos jagas como dos mbundos.22 Heintze, em consonância com as fontes de Fernão de Sousa, afirmou que somente a partir da fuga de Kindonga Njinga conseguiu refúgio junto ao Jaga Caza Cangola e ganhou o mais importante título feminino do kilombo, o de tembanza, que quer dizer senhora ou dona da casa. Njinga assumiu o papel de sacerdotisa do unguento Magia a Samba, capaz de tornar os guerreiros invencíveis e passou a ser rigorosa no cumprimento das leis ou kijila.23
Dois chefes jagas aparecem na série da Netflix: Caza e Cassanje. O primeiro era guardião do herdeiro do Ndongo, que foi seduzido para que Njinga matasse seu sobrinho. A relação é apresentada como um flerte amoroso, sem explorar as estratégias políticas envolvidas, e termina rapidamente, quando na realidade fez toda a diferença na trajetória de Njinga. Como tembanza, Njinga passou a comandar milhares de guerreiros destemidos e bem treinados e só assim pode fazer frente à intensa perseguição dos portugueses. Foram os jagas-imbangalas que lhe garantiram segurança militar para se deslocar por vastos territórios. Já Cassanje é apresentado de forma ainda mais problemática.
Na cena das negociações de paz, em 1622, é dito: “Os portugueses prometeram ajudar a proteger o povo dela contra o Imbangala Cassanje”. Reparem que nessa construção, os portugueses aparecem como benevolentes, necessários, quando na verdade foram eles que armaram Cassanje para atacar o Ndongo. O governador Luís Mendes de Vasconcelos forneceu armas a este líder militar para invadir Cabaça, em 1617, mas não contavam com sua deslealdade. Após a vitória sobre o Ngola, Cassanje se recusou a desocupar as terras e passou a bloquear as rotas comerciais, cobrando altos preços pelos escravizados que trafegavam por elas, tornando o comércio mais inseguro e sob seu controle.
A união entre Njinga e Cassanje é representada com uma linda cena em que sexo e rito se entrelaçam. Mas essa relação não pode ser entendida como casamento de forma literal; como explicou Miller, é muito mais simbólico no sentido de união entre duas forças políticas.24 A cena em que Cassanje manda entregar a lunga é consonante as fontes históricas, contudo a série mostra pouco essa insígnia de poder, a mais importante entre os jagas, que simboliza o comando militar máximo.25 Apesar da união com Casanje ter durado pouco, Njinga assumiu a identidade jaga e seguiu as leis da kijila - assim como todos seus seguidores - até retornar ao catolicismo em 1656.
Njinga e o tráfico transatlântico de escravos
Este, sem dúvida, é o ponto mais polêmico da série, que se inicia com a narração de Jada Pinket Smith: “Somos um povo que nasceu fugindo da extinção”. O eixo central da narrativa é a luta de Njinga contra o comércio de escravos. Em várias cenas, a personagem se revolta com o tráfico negreiro como se fosse uma abolicionista. Seu heroísmo consiste na luta contra a escravidão, o que é completamente anacrônico para o século XVII. Em Angola, nesse período, as relações comerciais internacionais eram balizadas pela medida padrão “peça” - um homem adulto em plenas condições físicas. Sabe-se que a sociedade mbundu era dividida entre povo da murinda (livres) e kijicu (não-livres), contudo, estes últimos não podem ser confundidos com a noção de escravo que o comércio transatlântico vai definir. Tanto que uma das exigências de Ngola Mbandi para a paz de 1622 era a devolução de seus kijicu injustamente aprisionados nas guerras de Mendes de Vasconcelos, pois deles dependiam a prosperidade do reino.
A série apresenta a sociedade mbundu como se desconhecessem o comércio de pessoas, o que é uma inverdade. Seria mais honesto discutir como a escravidão transatlântica se diferenciava das formas de trabalho compulsório existentes na África e quais foram as consequências do tráfico para as dinâmicas sociais e econômicas. Aí se percebe a ideologia na construção da narrativa, que falsifica fatos históricos para sustentar a ideia de que Njinga lutou contra a escravidão. Há documentos que comprovam a venda de escravizados por ela para a Holanda na década de 1640.26 Foi desta forma que Njinga obteve armas de fogo. Ao invés de mostrarem Njinga negando-se ao comércio de gente, poderiam ter problematizado seu envolvimento nele: por que os chefes africanos foram obrigados a se envolver no comércio negreiro? Quais as possibilidades de resistência que tinham? Quem foi vendido por Njinga? Certamente eram seus prisioneiros de guerra, seus inimigos e não seu próprio povo.
Ainda que não se possa falar que a luta de Njinga era contra a escravidão em si, é preciso entender que suas ações militares visavam enfraquecer Portugal e minar seus interesses econômicos na região. Njinga agiu estrategicamente para desconstruir as redes do tráfico luso, seus exércitos atacavam as fortalezas portuguesas, atacavam as feiras onde se vendiam cativos, assaltavam caravanas que os levavam ao litoral, interrompiam a navegação dos rios, de forma que ela conseguiu de fato impedir a escravização de centenas de almas. Fernão de Sousa justificava o baixo número de embarques pelas guerras movidas por Njinga.27
Na intenção de promover a imagem de uma heroína antiescravista, a série pecou por anacronismo e perdeu uma boa oportunidade, que a linguagem docudrama oferece, para discutir questão tão polêmica que é o envolvimento de autoridades africanas no comércio de pessoas. É de se notar também a completa ausência dos “brasílicos” e do Reino do Congo, que seria oportunidade de mostrar Njinga como hábil articuladora de alianças externas.
Certamente, a série é uma bela produção, que mostra a força e poder de uma soberana africana, com grandes méritos. Há liberdade artística em construir a imagem da Njinga contra a escravidão, uma vez que não há regras, bancas de avaliação, rigor científico que exija das produtoras e roteiristas coerência com as fontes. O propósito de criar uma representação heroica de uma mulher negra é legítimo, louvável, engrandecedor. Contudo há que se refletir sobre como a indústria audiovisual se vale da pesquisa histórica sem o menor compromisso com a discussão científica, tampouco com os pesquisadores. Os depoimentos são gravados, depois recortados, editados e montados de acordo com os roteiristas e suas convicções. Ainda que historiadores sejam consultados, inclusive do Brasil,28 o que é apresentado ao público é uma construção fictícia, que em muitos aspectos não encontra fundamentos nos documentos históricos.
A relação entre indústria audiovisual e História da África merece atenção, uma vez que cresce o interesse em representações cinematográficas sobre histórias passadas no continente, mas criadas a partir dos Estados Unidos e Europa, que não seguem um protocolo ético, nem com os pesquisadores especialistas, tampouco com as sociedades e culturas que buscam apresentar.
Notas