Ensaio Teórico
Recepção: 22 Agosto 2023
Aprovação: 02 Setembro 2023
Publicado: 25 Setembro 2023
DOI: https://doi.org/10.1590/1982-7849rac2023230176.por
RESUMO: Neste artigo discuto a exaustão vivida por travestis e/ou mulheres transexuais, negras e brancas, no sistema educacional brasileiro. Discuto também o conceito de Dispositivo Imunológico desenvolvido pelo filósofo chinês Byung-Chul Han (2015) procurando entender em que medida ele impacta ou não o cotidiano escolar de travestis e/ou mulheres transexuais, negras e brancas. Para fazer essa discussão recorro ao método (auto)biográfico desenvolvido pelo pesquisador cis gay branco Marcio Caetano (2016) por concordar que experiências, pessoais e profissionais, ainda que produzidas em contextos específicos e individualizadas, são relacionais e podem ser conectadas/comparadas com as narrações de outras histórias de vida. Assim, adotar a trajetória de vida aliada à perspectiva cultural, pós-estruturalista, com os estudos feministas, transfeministas e das relações étnico-raciais e de gênero, bem como com o conceito de interseccionalidade proposto pela jurista negra estadunidense Kimberlé Krenshaw (2002). Nenhuma categoria aqui debatida é tratada como algo estático, fixo, cristalizado, numa oposição explicita às visões essencialistas que generalizam existências e desconsideram os múltiplos processos que as envolvem.
Palavras-chave: Exaustão, travesti, escola, dispositivo imunológico, resistência.
ABSTRACT: In this article I discuss the exhaustion experienced by transvestites and/or transsexual women, black and white, in the Brazilian educational system. I also discuss the concept of Immune Device developed by the Chinese philosopher Byung-Chul Han (2015) trying to understand to what extent it impacts or not the school routine of transvestites and/or transsexual women, black and white. To carry out this discussion, I resort to the (auto)biographical method developed by the white cis gay researcher Marcio Caetano (2016) for agreeing that personal and professional experiences, even if produced in specific and individualized contexts, are relational and can be connected/compared with the narrations of other life stories. Thus, adopting a life trajectory combined with a cultural, post-structuralist perspective, with feminist, transfeminist and ethnic-racial and gender relations studies, as well as with the intersectionality concept proposed by the black American jurist Kimberlé Krenshaw (2002. No category discussed here is treated as something static, fixed, crystallized, in explicit opposition to the essentialist views that generalize existences and disregard the multiple processes that involve them.
Keywords: Exhaustion, crossdresser, school, immunological device, resistance.
INTRODUÇÃO
Meu nome é Megg Rayara Gomes de Oliveira, travesti negra, nascida e ‘criada’ no interior do Paraná, numa cidade chamada Cianorte, num bairro habitado por pessoas que migraram de várias regiões do país, em sua ampla maioria oriundas da zona rural, da roça mesmo!
Criada no sentido de cria, de filha, de alguém que foi cuidada, formada, ensinada, educada, instruída, urdida, armada, nem tanto.
Criada no sentido de lacaia, de serviçal, de pessoa que executa serviços domésticos, que serve, que se submete, quase sempre, especialmente na infância e adolescência.
Sem entender o que acontecia e as razões pelas quais a proteção, o afeto, o carinho, o acolhimento, me eram negados, passei a reivindicá-los da maneira como podia, tentando convencer as pessoas à minha volta de que eu era útil.
Útil nos moldes do dispositivo de poder proposto por Michel Foucault (1999), que explica que o poder procura atribuir ao corpo alguma utilidade e integrá-lo em sistemas econômicos.
Ainda que eu fosse uma criança, com pouco mais de seis anos de idade, decifrava com certa precisão os discursos adulto-centrados que decidiam quais infâncias tinham o direito de existir e quais infâncias precisavam passar por um realinhamento.
Foi na infância, então, que passei a adotar atitudes e discursos que me pareciam eficazes para conquistar a atenção das pessoas, e quem sabe, por algum milagre, algum afeto, já que o amor era algo inatingível para uma criança que não se encaixava nas normas de raça e de gênero, mesmo porque “o afeto e o carinho são essencialmente binaristas” (Megg Rayara Gomes de Oliveira, 2017, p. 143), normatizadores.
A norma, explica Paul Preciado (2014), ronda todos os corpos. Todos indistintamente, mas se lança com maior agressividade sobre ‘os corpos meigos’ (Preciado, 2014), os corpos das crianças bichas, viadas, sapatões, travestis, trans, a fim de torná-los cisgênero heterossexuais.
Tudo o que eu era, no fim das contas, de acordo com Foucault (1999), não escapava à sexualidade. Ela estava presente o tempo todo, subjacente a todas as minhas condutas, já que ela era o princípio insidioso e infinitamente ativo das mesmas. Inscrita sem pudor na minha face e no meu corpo, já que era um segredo que se traía sempre, apesar de todos os meus esforços para controlar “meu jeito de andar e de correr, a maneira de gesticular mãos e braços e o modo como balançava a cabeça e mexia nos cabelos. Eu também tentava controlar meu jeito de falar e o tom da minha voz na expectativa de ser o menos visível” (Oliveira, 2017, p. 23).
Na sociedade onde estava inscrita, inicialmente em um contexto familiar e na vizinhança, restrita à rua de chão batido onde se localizava minha casa e, em seguida, na escola, fui apresentada a situações cotidianas que me informavam que não teria como escapar ao dispositivo de poder.
E foi essa busca incessante em ser, ou talvez parecer, útil que me fez adotar o ‘sim’ como resposta sem questionar os pedidos e/ou as tarefas que me eram atribuídas.
Acreditava verdadeiramente que sendo útil estaria percorrendo um caminho que me conduziria, em alguma medida, ao acolhimento.
Diante dessa impossibilidade, ainda na adolescência, passei a me contentar com o respeito, e foi em busca dele que dirigia meus esforços, assim como a maioria das travestis e mulheres transexuais, negras e brancas, que passam grande parte de suas vidas lutando pelo mínimo, como o direito a um nome, a um pronome de tratamento adequado e a usar um banheiro público em paz.
Minha jornada por respeito continua em curso. Às vezes sozinha, às vezes em grupo.
Lutar a mesma luta todos os dias é extenuante, mas está longe de esgotar minhas energias.
Por mais cansada que me sinta, exausta às vezes, entendo que desistir não é uma opção.
Ainda que minha luta diga respeito à sociedade como um todo, olho com mais atenção para o sistema educacional, por acreditar no poder transformador da educação. E é justamente nesse espaço que venho travando as lutas mais intensas, inicialmente como estudante e agora como professora, pois como afirma Simone Santos (2006), as:
"pessoas que compõem a instituição [escola] - os professores, diretores e coordenadores pedagógicos - trazem seus valores e atributos morais, atitudes estéticas e diferentes linguagens que refletem o mundo externo ao ambiente escolar, que se concretizam dentro dele. Muitas vezes, essas práticas permitem a institucionalização do preconceito e da discriminação racial" (Santos, 2006, pp. 3-4),
e também de gênero, de diversidade de gênero e sexualidade, dentre outros.
Assim, para discutir a exaustão de travestis e mulheres transexuais, especialmente negras, na educação, utilizo o método (auto)biográfico desenvolvido pelo pesquisador brasileiro, cisgênero, gay, branco, Marcio Caetano, por considerá-lo “adequado para articular as dimensões individuais aos fenômenos de caráter mais amplo” (Caetano, 2016, p. 33).
Tal método permite que recorra a fatos acontecidos na minha infância, adolescência e juventude, atravessados pelo racismo e pela homo-transfobia, assim como estratégias de resistência, e que se aproximam de situações observadas no tempo presente e com as experiências vividas por outras pessoas. Nessa dinâmica, a trajetória de vida vai para além da pessoa que conduz a narrativa (auto)biográfica.
Caetano (2016) explica que ao focar a pessoa que é narrada, dimensiona-se tal pessoa em um contexto mais amplo.
Concordo com o autor quando afirma que a “constituição da identidade é relacional e as biografias das pessoas poderão ser conectadas/comparadas com as narrações de outras histórias de vida, numa dinâmica que supõe ir além da sucessão cronológica individual ou da constituição de trajetória de vida” (Caetano, 2016, p. 33).
Assim, adotar a trajetória de vida aliada à perspectiva cultural, pós-estruturalista, com os estudos feministas, transfeministas e das relações étnico-raciais e de gênero, bem como com o conceito de interseccionalidade proposto pela jurista negra estadunidense Kimberlé Crenshaw (2002), me possibilita “compreender as narrativas como resultado de práticas cotidianas as quais … podem ser vistas como históricas e denunciam as regras que as governaram e as produziram” (Caetano, 2016, p. 33), sendo possível ainda encontrar nas narrativas do passado mais que as justificativas e os sentidos que as pessoas atribuem para as configurações do presente.
EXAUSTAS, PORÉM EM PÉ!
A exaustão, de acordo com Salomão Ayroza Ribeiro (n.d.), é causada pelo excesso de esforço, não apenas de trabalho, mas também de conflitos interpessoais do cotidiano, sobrecarga de responsabilidades e estímulos cognitivos ou emocionais.
A exaustão seria, então, resultado de um processo acumulativo que, depois que ultrapassa o limite, pode levar a pessoa ao colapso.
Carol Castro (2017) informa que os relatos sobre exaustão aparecem há séculos na literatura médica, assim como a depressão.
Analisando o trabalho da pesquisadora britânica Anna Katharina Schaffner, publicado em 2016, Castro (2017) afirma que o médico Aelius Galenus já descrevia a falta de energia como um desequilíbrio do organismo na Roma Antiga.
Citando o trabalho de Schaffner (2016), Castro discorre a respeito dos esforços empreendidos pela ciência para explicar a exaustão, alguns bastante curiosos, como, por exemplo, quando associada a problemas espirituais ou resultado dos movimentos planetários.
A explicação mais recente associa à exaustão a sociedade moderna.
Com a chegada da industrialização, explica Castro (2017), o mundo mudou bastante, diferente de tempos anteriores em que a vida seguia um ritmo muito mais calmo, acompanhando as idas e vindas do sol, e o trabalho estava diretamente associado às condições climáticas. Com a chegada das fábricas, com um ritmo cada vez mais frenético no processo de produção, a busca incessante por dinheiro, a vida passou a girar em torno do expediente de trabalho.
Embora nós, travestis e mulheres transexuais, negras e brancas, de modo geral, sejamos preteridas pelo mercado formal de trabalho, logo pelos processos de produção - estando aproximadamente 90% de nós inseridas na prostituição -, também somos atingidas pela modernidade e pelas cobranças que emergem dela.
Como parte de uma sociedade de consumo, a busca por dinheiro interfere de maneira intensa no nosso cotidiano, dado ao fato de que enfrentamos obstáculos bastante difíceis de serem superados.
A formação profissional se apresenta como uma dificuldade adicional nas nossas vidas, uma vez que a transfobia presente no espaço educacional dificulta e, às vezes, nos impede de ingressar e/ou permanecer nele.
As experiências de chacota e humilhação, as diversas formas de opressão e os processos de exclusão, segregação e guetização a que nos arrasta como uma rede de exclusão que vai se fortalecendo, na ausência de ações de enfrentamento ao estigma e ao preconceito (Rogério Diniz Junqueira, 2009).
De acordo com o dossiê ‘Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021’ da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), “muitas escolas não têm garantido o direito ao uso do nome social e/ou o respeito à identidade de gênero” (Bruna Benevides, 2022, p. 43), assim como o uso do banheiro, “alargando os motivos que propiciam a exclusão do ambiente escolar, interrompendo o direito à educação de uma parcela considerável da população” (Benevides, 2022, p. 43).
Além do mais, travestis e mulheres transexuais, negras e brancas, relatam dificuldades para participar das atividades pedagógicas … e para preservar sua integridade física (Junqueira, 2009).
Como resultado, 72% das travestis e mulheres transexuais não possuem o ensino médio e 56% o ensino fundamental. No ensino superior a situação é ainda mais grave e apenas 0,02% da população universitária do país é composta por travestis e transexuais (Benevides, 2022).
Mais do que dados estatísticos, esses números revelam que nem sempre as estratégias que desenvolvemos para nos mantermos no espaço escolar funcionam e a expulsão involuntária, como denuncia Luma Nogueira de Andrade (2012), se materializa, empurrando travestis e mulheres transexuais, especialmente negras, não apenas para fora do espaço escolar, mas para a informalidade, uma vez que “apenas 4% da população trans feminina se encontra em empregos formais, com possibilidade de promoção e progressão de carreira” (Benevides, 2022, p. 47).
Ao contrário das pessoas cisgêneras heterossexuais brancas, tratadas como modelo universal de humanidade, a trajetória escolar de travestis e mulheres transexuais, desde muito cedo, as colocam, ainda que não queiram, obrigatoriamente na condição de educadoras, forçadamente responsáveis pelo processo de desconstrução de todas as pessoas que as cercam (Ayra Cristina Sousa Dias, 2022).
Como todo processo educativo, para que essa desconstrução se efetive se faz necessário que as partes envolvidas estejam em sintonia, caso contrário a energia gasta terá sido em vão.
Fundamentada em meio à e pela cis heteronormatividade, a escola, de acordo com Fernando Altair Pocahy e Priscila Dornelles (2014), é um terreno fértil à disseminação e reprodução de padrões hegemônicos e, consequentemente, um espaço violento à diversidade sexual e de gênero.
Assim, o investimento que fazemos para apresentar linhas de fuga e a possibilidade de construção de um espaço menos hostil, na maioria das vezes, se torna uma tarefa inglória, isso porque
"historicamente e socialmente, o corpo trans e travesti não é considerado capaz de exercício epistêmico, tampouco de se configurar uma autoridade epistêmica ou potência inteligível, pois a sua existência como outra possibilidade de gênero diferente da cisheteronormatividade e do modelo binário (centrado no dimorfismo sexual) sempre foi cerceada por estigmas de identidade sociomoral (exótico, anormal, monstruosidade, aberração, agressivo, histérico, transtornado mental, perversivo, pervertido, patológico, grotesco, sujo, poluído, imoral, abjeto etc.), violências, violações, extrema vulnerabilidade social, exclusões, silenciamentos epistêmicos, apagamentos simbólicos e extermínios" (Fran Demétrio & Hilan Bensusan, 2019, p. 117).
Seja por questões legais ou sociais, os espaços de educação formal seguem atualizando formas de representações estereotipadas e reducionistas de travestis e mulheres transexuais, negras e brancas, atreladas a “uma noção patopsicomoralizante sobre essas existências” (Demétrio & Bensusan, 2019, p. 117), dificultando, e até impedindo, que sejam vistas e tratadas como sujeitos epistêmicos.
Além disso, convivemos diariamente com situações que autorizam que sejamos vistas e tratadas com desconfiança, descritas de maneira genérica, sem direito a uma individualidade, acusadas de poluir e contaminar a escola, justificando atitudes de cunho imunológico contra nós, a fim de que a cisgeneridade heterossexual branca seja preservada.
Preservar a cisgeneridade heterossexual é preservar o poder naturalmente associado a ela. Desenvolver estratégias imunológicas é impedir que travestis e mulheres transexuais vislumbrem a possibilidade de produzir deslocamentos, abandonem as margens da margem para acessar o centro.
DISPOSITIVO IMUNOLÓGICO CONTRA TRAVESTIS E MULHERES TRANSEXUAIS
O filósofo chinês Byung-Chul Han no livro Sociedade do cansaço, publicado no Brasil em 2015, afirma que o século XX foi uma época imunológica.
"Uma época na qual se estabeleceu uma divisão nítida entre dentro e fora, amigo e inimigo ou entre próprio e estranho. O próprio paradigma imunológico do século passado foi integralmente dominado pelo vocabulário dessa guerra, por um dispositivo francamente militar. A ação imunológica é definida como ataque e defesa" (Han, 2015, p. 7).
Tal afirmação, embora coerente, ignora tanto a existência quanto as experiências de travestis e mulheres transexuais, uma vez que os dispositivos imunológicos associados a nós datam do século XVI, quando a Europa invadiu os continentes americano e africano.
Continuando, Han (2015) explica que o dispositivo imunológico ultrapassou o campo biológico para adentrar o campo e todo o âmbito social e assim, em nome de uma suposta defesa, afastar tudo o que é estranho, ainda que o estranho não tenha nenhuma intenção hostil, mesmo que ele não represente nenhum perigo, sendo eliminado em virtude de sua alteridade.
Ainda que Han (2015) não discorra a respeito, identifico no dispositivo imunológico uma relação bastante estreita com a moral cristã, produzindo violências e violações de direitos em nome de Deus, inclusive nas escolas, sob a justificativa de que “nem os devassos, nem os idólatras, nem os efeminados, nem os maldizentes, herdarão o Reino de Deus” (1 Coríntios 6:9-10).
O sistema educacional brasileiro, então, “organizado imunologicamente possui uma topologia específica. É marcado por barreiras, passagens e soleiras, por cercas, trincheiras e muros. Essas impedem o processo de troca e intercâmbio” (Han, 2015, p. 9), por considerar que determinadas pessoas, como nós travestis e mulheres transexuais, negras principalmente, não sejam dignas de trocas, uma vez que não teriam nada de valor para oferecer.
Assim, os muros que se levantam no interior da escola com a intenção deliberada de segregar os corpos se sustentam em estruturas epistêmicas hierarquizadas que defendem a ideia de que existe “um conhecimento superior e um conhecimento inferior, que de igual forma define seres superiores e inferiores no mundo” (Jéssica Santana Bruno, 2019, p. 51).
Tanto Byung-Chul Han (2015) quanto Jéssica Santana Bruno (2019) concordam que atribuir sentidos negativos a determinadas pessoas e ao conhecimento que produzem é fundamental para que o dispositivo imunológico seja apontado contra elas, ainda que existam em quantidade mínima e sejam incapazes, numérica e politicamente, de alterar a lógica de funcionamento de qualquer sociedade, como o sistema formal de ensino, por exemplo.
Nós, travestis e mulheres transexuais, negras e brancas, seríamos então inimigas contra as quais a escola procura se defender, “construindo fortificações e muros” (Han, 2015, p. 11), a fim de se manterem intactas as “almas dos meninos brancos, cisgênero, heterossexuais, magros, ‘saudáveis’, estimulados de forma recorrente, sendo apresentados a inúmeras possibilidades de ser e de estar no mundo” (Oliveira, 2023, p. 158).
Ainda de acordo com Han (2015), a sociedade do século XXI, aí incluída a escola, não seria mais uma sociedade disciplinar, como proposto por Michel Foucault na década de 1970, para tornar-se uma sociedade de desempenho e seus habitantes - estudantes também - não seriam mais sujeitos da obediência, mas sujeitos do desempenho e “aqueles muros das instituições disciplinares, que delimitam os espaços entre o normal e o anormal, se tornaram arcaicos” (Han, 2015, p. 14).
Mais uma vez o filósofo chinês ignora a maneira como nós, travestis e mulheres transexuais, negras e brancas, nos relacionamos com essa sociedade de desempenho, considerando o fato de que as oportunidades acessadas por homens brancos cisgêneros heterossexuais nos são constantemente negadas. Assim, estaríamos, em certa medida, relegadas à sociedade disciplinar, arcaica, marcada “pela negatividade da proibição” (Han, 2015, p. 15).
Digo em certa medida porque continuamos inscritas no campo da anormalidade, proibidas de acessar determinados espaços e direitos, o que justificaria não apenas a manutenção do dispositivo imunológico, mas a sua atualização. Porém, como parte de uma sociedade capitalista (consumista, produtivista, reprodutivista, etc.), que exige estratégias atualizadas de sobrevivência, somos pressionadas a adotar atitudes que nos tornam, ainda que de maneira específica, sujeitos de desempenho.
Dessa forma, os esforços empreendidos para a realização de atividades mínimas, como usar um banheiro público, por exemplo, são por demais desgastantes, resultando em inquietações, esgotamento, exaustão e sufocamento.
Diante das reflexões propostas por Han (2015), afirmo que nós, travestis e mulheres transexuais, negras e brancas, podemos ser tudo, menos passivas, tendo que renovar nossas energias e assim adaptar nossa artilharia para a guerra que enfrentamos diariamente, principalmente nos espaços de educação formal.
ALGUMAS CONCLUSÕES
Para refletir a respeito do cansaço, da fadiga, do esgotamento, enfim, da exaustão que atinge a nós, travestis e mulheres transexuais, negras e brancas, recorri ao método (auto)biográfico proposto pelo pesquisador cisgênero, gay, branco, Marcio Caetano (2016), por considerá-lo “adequado para articular as dimensões individuais aos fenômenos de caráter mais amplo” (Caetano, 2016, p. 33) e assim colocar em debate situações que dizem respeito à minha experiência individual, mas que também se referem à experiência de outras travestis e mulheres transexuais, por permitir encontrar nas narrativas do passado inúmeras justificativas para as configurações do presente.
Assim, determinadas experiências, ainda que individualizadas, podem ser tratadas no plural a fim de compreendermos como o ‘dispositivo de poder’ (Foucault, 1999) opera, produzindo situações desconfortáveis, exigindo estratégias para ser e estar no mundo.
O ser e o estar, no caso de travestis e mulheres transexuais, negras e brancas, exigem estratégias diárias para enfrentar a norma instituída pela cisgeneridade heterossexual masculina branca que organiza os espaços e atribui sentidos, positivos ou negativos, às identidades, interferindo na maneira como são vistas e tratadas.
A escola, teoricamente um espaço onde as pessoas seriam apresentadas a possibilidades de sociabilidade, representa para nós, travestis e mulheres transexuais, uma arena onde muitas lutas são travadas de forma solitária e desigual.
Nesse espaço nossas experiências são marcadas pelo abandono, pelo descaso, pela chacota, pela descrença…
A luta pelo direito a um nome, a um pronome de tratamento feminino, ao uso do banheiro, nos coloca desde muito cedo, como explica Ayra Cristina Souza Dias (2022), na condição de educadoras.
Além de estudantes, travestis e mulheres transexuais, negras e brancas, atuam como professoras e informam como nos educamos, como nos socializamos, como nos afirmamos e nos formamos como sujeitos sociais, culturais, cognitivos, éticos e políticos que somos1.
A escola, então, como território em disputa, com todas as suas contradições, é um espaço importante, uma vez que pode contribuir, e muito, para a construção e difusão de práticas de liberdade e de recuperação da humanidade roubada (Miguel Arroyo, 2012) das travestis e das mulheres transexuais.
Por mais dolorosa e cansativa que seja a função de educadora (Dias, 2022), dentro e fora do sistema educacional, se faz necessário considerar a possibilidade de que essa situação seja temporária e que à medida que a pedagogia travesti seja efetivada, possamos ser apenas pessoas, inclusive na escola.
Enquanto isso não acontece, seguimos lutando, reivindicando, educando, reeducando, informando, formando, questionando, corrigindo, resistindo, construindo, mudando, sem direito a descanso.
A exaustão que nos atinge, ainda que nos machuque, que nos adoeça, não é capaz de nos deter.
Desistir nunca foi, não é e não será uma opção para travestis e mulheres transexuais.
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Notas
Autor notes
Deidi Maca (Universidad Santiago de Cali, Colômbia)
Josiane Silva de Oliveira (Universidade Federal de Goiás, Brasil)
Janaynna de Moura Ferraz (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil)
Luiza Farnese Lana Sarayed-Din (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Andrea Poleto Oltramari (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil; Universidade de Lisboa, SOCIUS, Portugal)
Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Educação
Praça Santos Andrade, n. 50, Centro, CEP 80060-000, Curitiba, PR, Brasil
E-mail: meggrayaragomes@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-9203-9989
* Autora Correspondente
Declaração de interesses