RESUMO: Apesar das evidentes vantagens da revisão de literatura e dos muitos textos que tratam sobre o tema, ainda faltam reflexões críticas sobre as formas de fazê-la e os seus usos. O meu objetivo neste editorial é apresentar uma reflexão crítica sobre a prática da revisão de literatura no campo científico da administração. A revisão de literatura de que estou tratando aqui não se resume apenas a um conjunto de técnicas de como fazê-la, mas ao que implica esse fazer coletivo entre acadêmicos que leva ao surgimento de um conhecimento próprio que envolve a sua prática. A partir das noções de modismo, metodologismo e uma crítica decolonial, é possível concluir que ao contrário do que muitos pesquisadores dizem, fazer revisão de literatura sob protocolos muitos rígidos, ao invés de oportunizar novos conhecimentos, termina reproduzindo modos de pensar sobre um determinado tema e inibe o pensamento reflexivo e crítico sobre os achados da pesquisa.
Palavras-chave: Revisão de literatura, artigos de revisão, metodologismo, prática social, decolonialismo.
ABSTRACT: Despite the advantages of literature review and the abundance of texts that discuss it, there is still a gap in critical reflection on its methodologies and uses. My goal in this editorial is to reflect on the practice of literature review in the administration field from a critical perspective. The literature review I am referring to is not just a set of techniques for conducting it; it is a collective doing among scholars, producing specific knowledge. By drawing on concepts such as fad, methodologism, and decolonial critique, we can conclude that contrary to the common belief among researchers, following rigid protocols in literature review does not necessarily lead to new knowledge. Instead, it reproduces pre-existing ways of thinking about a topic, which can inhibit reflective and critical thinking about research findings.
Keywords: Literature review, review articles, metodologism, social practice, decolonialism.
Editorial
Um Olhar Crítico sobre a Prática de Revisão de Literatura
A Critical Look at the Practice of Literature Review
Publicado: 29 Novembro 2023
A revisão de literatura é algo que faz parte da prática da pesquisa científica. Nos últimos anos, surgiram muitas formas de realizar a revisão de literatura e há uma produção considerável de textos que evidenciam a sua importância e como fazê-la (Cooper, 1988; Elsbach & Knippenberg, 2020; Fan et al., 2022; Ogbonnaya & Brown, 2023; Paul & Criado, 2020; Post et al., 2020; Wong, 2015). Por outro lado, ainda há uma carência de textos que busquem refletir e debater a prática da revisão de literatura em si. O termo ‘prática’ aqui se refere a um fazer coletivo de conhecimento que envolve arranjos (agencement) entre humanos (acadêmicos) e não humanos (artigos, planilhas, internet, computadores, softwares, rankings, periódicos etc.) (Gherardi, 2019). Portanto, a revisão de literatura de que estou tratando aqui não se resume apenas a um conjunto de técnicas de como fazê-la, mas ao que implica esse fazer coletivo entre acadêmicos que leva ao surgimento de um conhecimento próprio que envolve a prática da revisão de literatura. Enquanto prática, a revisão de literatura é parte de uma textura de outras práticas acadêmicas e científicas como, por exemplo, a orientação de estudantes, o fazer pesquisa e a publicação. O meu olhar está orientado para a revisão de literatura como um fenômeno social (uma prática). O meu objetivo neste editorial é apresentar uma reflexão crítica sobre a prática da revisão de literatura no campo científico da administração.
É crescente o número de artigos científicos apresentados em formato de revisão de literatura (Vogel et al., 2017). O contexto para tal acontecimento está relacionado a um aumento significativo do número de publicações científicas, aos avanços tecnológicos que permitem o mapeamento da produção científica por meio de buscadores e bases de dados diversos e ao entendimento de que o resultado da revisão da literatura sobre determinado assunto pode ser apresentado como um artigo científico. A revisão de literatura pode servir para sintetizar trabalhos anteriores, comparar suas descobertas, destacar lacunas e enigmas relevantes, desafiar e ampliar a teoria existente e propor novas questões e direções para estudos futuros. As formas de fazer a revisão de literatura variam de acordo com os objetivos determinados para a pesquisa (Cooper, 1988; Fan et al., 2022; Ogbonnaya & Brown, 2023; Paul & Criado, 2020; Post et al., 2020; Wong, 2015). Essas várias formas de fazer revisão de literatura levam a classificações denominadas de revisão narrativa, sistemática, integrativa, meta-análise, conceitual, histórica e crítica (Fan et al., 2022; Ogbonnaya & Brown, 2023).
Apesar das evidentes vantagens da revisão de literatura e dos muitos textos que tratam sobre o tema, ainda faltam reflexões críticas sobre as formas de fazê-la e os seus usos (e.g., Alvesson & Sandberg, 2020). Isso inclui pensar a revisão de literatura não só nas suas possíveis tecnicalidades, mas a partir da desnaturalização das regras e normas ‘científicas’ que orientam e controlam essa prática como, por exemplo, a predominância da língua inglesa como meio oficial de comunicação científica e as consequências disso para os acadêmicos de países periféricos (Barros & Alcadipani, 2023), especialmente do Sul Global. A minha reflexão está dividida em três tópicos que são o modismo, o metodologismo e os aspectos (de)coloniais que envolvem a prática de revisão de literatura. Eu não tenho a intenção de esgotar o debate crítico sobre a prática da revisão de literatura com esses três pontos, a escolha se deu em razão daquilo que mais me chama atenção considerando a minha experiência como pesquisador, autor, revisor e editor. Por outro lado, acredito que esses tópicos são relevantes para jogar luz sobre aspectos que costumam passar desapercebidos ou são negligenciados por acadêmicos (especialmente periféricos) quando o tema é a prática da revisão de literatura. Estas reflexões servem também como uma sinalização para aquelas pessoas que pretendem submeter uma revisão de literatura à RAC, que se caracteriza como uma revista brasileira com interlocução global.
Um dos aspectos que considero problemático na revisão da literatura é quando acadêmicos a tornam o principal gênero (em quantidade de publicações) de seus artigos científicos. Para muitas pessoas que não conhecem o contexto brasileiro ou mesmo de outros países em que a produção científica está concentrada nos programas de pós-graduação (mestrado e doutorado) em que professores orientam muitos estudantes, cada orientação costuma gerar uma revisão de literatura que possibilita um potencial artigo. A questão não está na realização das revisões de literatura em si, mas no abandono da produção de outros tipos de artigos científicos que evidenciem a capacidade de investigação empírica do pesquisador para além do que já existe na literatura. Dessa forma, dois problemas emergem.
O primeiro é que a ânsia de transformar a revisão de literatura em um artigo está vinculada à pressão por publicações tanto para estudantes (para concluírem seus cursos e entrarem no sistema) quanto para professores (para se manterem no sistema). Esse fenômeno é conhecido como publish or perish (Machado & Bianchetti, 2011; Rond & Miller, 2005; Silva, 2019). Gherardi et al. (2023) apresentam o conceito de “atletismo acadêmico afetivo” para dizer como o fazer acadêmico encarnado está diretamente relacionado às publicações de modo que “Eu publico, logo eu sou” (p. 180). Eles evidenciam uma lógica de que os corpos acadêmicos são moldados por práticas específicas no sentido de disciplinar a autogestão no fazer acadêmico. A publicação é uma dessas práticas encarnadas, uma vez que os textos publicados (especialmente em periódicos de maior prestígio) representam o principal artefato no qual muitos pesquisadores são reconhecidos na academia. É nessa esteira que muitos pesquisadores veem na publicação de revisões de literatura um caminho para conquistar parte dos objetivos acadêmicos planejados.
Por outro lado, muitos dos potenciais autores de revisões de literatura esquecem que há muitas pessoas fazendo revisões sobre o mesmo tema que eles com metodologias semelhantes que terminam levando a resultados parecidos, o que torna a revisão um mapeamento de um campo científico específico sem grandes descobertas. Apesar de os achados das revisões de literatura serem importantes para os pesquisadores de uma pesquisa conhecerem o campo de estudo (Ogbonnaya & Brown, 2023; Patriotta, 2020), não se pode perder de vista que para muitas outras pessoas os achados já são bem conhecidos porque elas já estão há mais tempo pesquisando no campo. Em vez de a concentração estar em compreender com profundidade o campo de estudos a partir dos achados por uma perspectiva qualitativa crítica (entender o campo), os achados costumam ser tratados quantitativamente e de modo descritivo, o que termina acrescentando muito pouco para o campo. Esse tipo de revisão de literatura descritiva é muito perecível em razão da velocidade da produção científica e ela rapidamente se torna obsoleta a ponto de não merecer um espaço em um periódico. É preciso separar a necessidade da revisão de literatura enquanto etapa relevante de qualquer pesquisa científica (Fan et al., 2022; Ogbonnaya & Brown, 2023; Paul & Criado, 2020; Post et al., 2020) das revisões de literatura que realmente têm potencial de oferecer novos conhecimentos a partir de uma análise criteriosa ou mesmo crítica dos achados para se tornar um artigo científico relevante (Alvesson & Sandberg, 2020; Patriotta, 2020).
O segundo problema é que grande parte das revisões de literatura termina não entregando o que se espera dela, incentivar a reflexão crítica sobre o conhecimento existente em um campo com o objetivo de ampliar e aprofundar a compreensão sobre determinado tema de modo a destacar implicações para a teoria e a prática apontando novas agendas de pesquisa (Patriotta, 2020). Na maioria das vezes, as revisões de literatura terminam se limitando a descrever o que já foi produzido em um campo de estudos sem dar conta da pergunta que é recorrente no meio científico: “E daí?” Como escrito por Ogbonnaya e Brown (2023), “Geralmente, editores e revisores valorizam mais a contribuição teórica [prática e social] de um manuscrito do que a simples descrição das evidências disponíveis sobre um tópico” (p. 369). A falta de percepção por parte de alguns acadêmicos de que a etapa de mapeamento de um determinado tema que é necessário para uma investigação como meio de subsidiar novas agendas de pesquisa não é equivalente ao que se espera de um artigo de revisão de literatura leva-os a focar mais a produção de um artigo descritivo de um campo de estudos do que mergulhar nos achados da revisão de literatura para realmente avançar nas pesquisas e contribuições oriundas delas. Concretamente, é preciso encarar os achados de uma revisão de literatura como qualquer outro dado empírico obtido por meio de surveys, entrevistas, observações ou bancos de dados.
Outro aspecto que me chama atenção sobre a prática da revisão de literatura é o número de possibilidades metodológicas existentes. As variações de como fazer uma revisão de literatura e suas tipologias induzem muitos pesquisadores a uma superespecialização no tema. Um exemplo do que estou falando é a criação de protocolos como o PRISMA (Principais Itens para Relatar Revisões Sistemáticas e Meta-Análises) (Moher et al., 2009) nas pesquisas em administração. Ainda que eu reconheça que os vários campos do conhecimento possuam especificidades que demandam formas distintas de produção do conhecimento, o que faz o PRISMA ter relevância no campo da medicina, na administração alguns desses protocolos terminam sendo mais utilizados como rigidez do que rigor científico. É uma espécie de fantasia na busca de fazer certos procedimentos parecerem científicos, principalmente quando esses procedimentos são apresentados de maneira passo a passo e sugerem algum tipo de complexidade na sua realização. O suposto ‘conforto’ de um protocolo de pesquisa que muitas vezes sugere rigor científico pode terminar fazendo do pesquisador um prisioneiro em uma jaula em que o método termina sendo fim e não meio de realização da pesquisa. É o que Bell et al. (2017) chamam de ‘metodologia como técnica’.
Quando a prática de revisão de literatura se torna uma jaula com um fim em si mesma no processo da pesquisa, ela pode ser classificada como um metodologismo. Aliás, o campo da administração está cheio de metodologismos em que os protocolos metodológicos dos manuais de pesquisa parecem inverter a ordem das coisas, em que o pesquisador passa a ser controlado pelos métodos. Boschetti (2015)traz uma reflexão importante sobre o que caracteriza o metodologismo, evidenciando como valores e epistemes influenciam o fazer ciência.
"O metodologismo ressurge sob a forma de ênfase no tecnicismo e legalismo positivista, como elemento crucial na formação e na pesquisa, em detrimento do questionamento, da crítica, da grande política como elementos fundamentais do pensamento crítico. Fortalece-se a suposição de que uma boa técnica, ou um arsenal de técnicas, pode substituir a análise crítica e a ação política coletiva na transformação do real. Daí decorrem elaborações teórico-metodológicas orientadas por abordagens conservadoras, prescritivas ou descritivas, que realçam o empirismo e rebaixam o pensar crítico e a intervenção comprometida com a transformação coletiva" (p. 647).
O metodologismo na prática da revisão de literatura representa o discurso da neutralidade científica que se cristaliza por meio da normalização dos processos metodológicos dados como certos (taken-for-granted) e são apresentados na comunidade científica (especialmente para os que estão em formação) como “este é o jeito de se fazer” (Alvesson & Sandberg, 2020, p. 1291). No domínio do metodologismo não há espaço para a criatividade e a crítica, além de dificultar a teorização em razão da rigidez dos protocolos. Uma forma de evidenciar esse determinismo metodológico nas revisões de literatura está na fala de Alvesson e Sandberg (2020):
"Sugerimos que é necessária uma atenção cuidadosa para a ordenação e rotulagem de temas, domínios de pesquisa, ideais de acumulação de conhecimento, aspiração de grandes conjuntos de literaturas, confiança na simplificação excessiva de classificação e ordenação de sinais, neutralidade do autor e o possível privilégio da integração em detrimento do reconhecimento variação. Não queremos enfatizar excessivamente as críticas aos artigos de revisão, mas pensamos que qualquer forma de procurar desenvolver conhecimento através deles requer uma reflexão crítica sobre as suas potenciais deficiências". (p. 1296)
O metodologismo nas revisões de literatura tem implicações também nas bancas de trabalhos finais de mestrado e doutorado, assim como na revisão por pares. Eu já me deparei com situações (como membro de banca e como editor) em que avaliadores cobraram que estudantes e autores fizessem revisões de literatura de acordo com o protocolo X por entenderem que o método da revisão apresentada não era ‘robusto’ o suficiente. Em todos esses casos, o que eu percebi foi que a ‘robustez’ cobrada era mais um preciosismo que não acrescentaria nada de relevante para a pesquisa em julgamento do que a identificação de uma falha concreta no mapeamento do que foi produzido sobre o tema enquanto conteúdo (e não em quantidade de artigos identificados).
Eu não me posiciono contra qualquer tipo de revisão de literatura. Minha defesa é que se há múltiplas possibilidades de fazer revisões de literatura com objetivos diversos, então que os pesquisadores tenham suas escolhas respeitadas para conduzir suas pesquisas da maneira que entendem mais coerente e alinhada ao escopo do projeto de pesquisa desenhado. É preciso ter em mente que qualquer protocolo de revisão de literatura é incapaz de mapear toda a produção existente sobre determinado assunto. Isso fica evidente quando os autores elegem critérios para recortes da pesquisa. Um deles (que nem sempre está explícito na descrição metodológica) é utilizar apenas textos que estão escritos em língua inglesa e na língua nativa para os que não são falantes nativos de inglês. Uma justificativa comum para essa escolha é a de que as ‘melhores’ produções foram feitas ou estão disponíveis em inglês. Será que algum cientista sério acredita que não é possível haver produções de qualidade em outros idiomas que não o inglês?
Algumas pessoas ainda podem dizer que o que tem qualidade está publicado em revistas disponíveis em indexadores de prestígio internacional devido à rigidez que utilizam para a aceitação das revistas nas suas bases, o que não implicaria (em tese) a publicação em inglês. Isso é verdade, mas será que não é possível haver publicações de qualidade em revistas que não estão nesses indexadores? E os preprints que não costumam entrar nos critérios de seleção de revisão de literatura, mas estão disponíveis e, em muitos casos, conseguem ter mais visualizações e citações do que artigos publicados em revistas de prestígio? Todos esses questionamentos visam apenas a chamar atenção para o fato de que ‘mapeamentos perfeitos’ de literatura são utópicos e muitas vezes a complexidade do processo é maior do que os ganhos de conhecimento sobre determinado tema para a condução de uma boa pesquisa científica. É preciso evidenciar que muitas das crenças sobre a prática de revisão de literatura carregam não apenas metodologismos, mas aspectos coloniais da produção do conhecimento (Alcadipani & Rosa, 2011; Abdalla & Faria, 2017; Abreu-Pederzini & Suarez-Barraza, 2020; Boussebaa & Tienari, 2019).
O último ponto que quero tratar sobre a prática de revisão de literatura são os aspectos decoloniais. Especialmente no campo da administração, em que a literatura considerada de ‘ponta’ é produzida em língua inglesa e em periódicos com sede no Norte Global, há aspectos tanto políticos (sim, políticos!) quanto técnicos para serem debatidos. Uma das evidências de que o debate sobre a prática da revisão da literatura tem contornos políticos pode ser percebida a partir do depoimento que Amon Barros e Rafael Alcadipani fazem em um texto publicado recentemente na revista Management Learning.
"Com base em nossa experiência como acadêmicos brasileiros, argumentamos que publicar nas principais revistas acadêmicas do MOS [Management and Organization Studies] exige mais do que dominar a linguagem e o estilo. Os acadêmicos mais próximos das margens e dispostos ou pressionados a publicar em revistas “internacionais” envolvem-se num encontro colonial. Eles também precisam realizar uma dupla tradução, escrevendo ideias em outro idioma e para outro público. Tudo isso não é gratuito e a escrita está entrelaçada com o pensamento. Os acadêmicos baseados na periferia precisam de se adaptar a ambos, enfrentando custos objetivos e subjetivos. Conseguir que um artigo seja aceito não é uma mera questão de dominar as palavras" (Barros & Alcadipani, 2023, p. 577).
Trata-se de uma fala que traduz bem o sentimento de muitos acadêmicos ao redor do mundo (Boussebaa & Brown, 2017; Horn, 2017; Rosa & Alves, 2011). O aspecto político que reflete na prática da revisão de literatura é sutil. Ele está na barreira que a língua impõe para produção de conhecimento científico (Barros & Alcadipani, 2023; Boussebaa & Tienari, 2019). Qualquer pessoa que conhece bem outro idioma além do seu nativo sabe que a língua não envolve só palavras e uma regra gramatical, mas representa formas de viver e pensar (Chanlat, 2014). Mas a língua é apenas uma evidência dos modos de pensar e fazer ciência dominantes.
A língua também carrega consigo uma doxa que garante a sutileza na imposição de regras no fazer científico. Doxa representa crenças subjacentes que geralmente são tidas como certas por todos em determinados grupos (Abreu-Pederzini & Suarez-Barraza, 2020). No caso específico da revisão de literatura, a crença na existência de uma ciência em que a técnica é desprovida de valores e preferências (Bell et al., 2017) leva a afirmações como as listadas abaixo:
"O critério mais importante para publicação no IJMR [International Journal of Management Reviews] é que o manuscrito ofereça uma sólida contribuição teórica ou conceitual. Para tal, a abordagem metodológica necessita ser robusta e analítica; demonstrar uma abordagem robusta e analítica continua a nos levar a pensar nas melhores práticas para realizar uma revisão da literatura profissionalmente" (Fan et al., 2022, p. 171).
Observando rapidamente essa passagem, ela parece dizer apenas o que é bem comumente reconhecido no campo da administração e das ciências em geral. Contudo, um olhar mais atento nos revela como a imposição de ideias, valores, epistemes está presente em técnicas aparentemente ‘neutras’. Estou me referindo ao termo ‘melhores práticas’, que é muito comum no campo da administração, mas esconde nele um problema relevante que pode ser evidenciado pelas seguintes perguntas: Quem elege o que é melhor prática? Elas são melhores para quem? No caso das revisões de literatura, as ‘melhores práticas’ podem representar uma forma de metodologismo. A doxa de que existem ‘melhores práticas’ é um bom caminho para criar o que Michel Foucault (1987)chamou de ‘corpos dóceis’ e que se naturaliza no fazer acadêmico encarnado (Gherardi et al., 2023). Para que as ‘melhores práticas’ se consolidem é preciso algum tipo de mecanismo legitimador dessas práticas, daí entram em cena os rankings (Wedlin, 2011).
Os rankings são criados com a justificativa de ser possível estabelecer comparações dentro de critérios padronizados (Vogel et al., 2017; Wedlin, 2011). Entretanto, os critérios de ‘qualidade’ são determinados por quem detém o poder sobre os rankings, o que leva a um controle sobre seus resultados e funcionamento. Vogel et al. (2017) realizam uma pesquisa com uma grande amostra sobre o funcionamento dos rankings de periódicos. Os autores descobriram que a maioria dos artigos publicados em revistas consideradas de ponta em administração era de autores e instituições anglo-saxãs e que há uma predominância de métodos quantitativos com grande base de dados e de viés positivista. Será que esses achados correspondem a uma superioridade intelectual anglo-saxã? Será que a predominância da língua inglesa é só uma coincidência? Ainda que exista um movimento de ampliar a diversidade nos periódicos de maior prestígio no campo da administração, essa diversidade ainda não chegou de forma plena no comando dessas revistas. Essa diversidade precisa ir além das questões de raça, gênero, localidade, tipo de instituição, chegando também a questões epistemológicas, teóricas e metodológicas. Poder fazer revisão de literatura com respeito epistêmico (Krlev & Spicer, 2023) é chave considerando uma visão decolonial sobre o tema. Isso tem a ver com fazer revisões de literatura que possam ter nos seus achados textos de revistas diversas para além dos rankings, bases de dados prestigiadas, ou mesmo a língua inglesa como principais critérios de busca. Revisões sobre contextos específicos precisam olhar onde é produzida essa especificidade, caso contrário a agenda de pesquisa continuará a ser determinada por uma elite que se legitima por meio do reforço dos pensamentos dominantes legitimados por rankings.
Um aspecto que pode contribuir (ainda que haja alguns passos para avançar) em uma democratização da produção científica e ajudar a ampliar as buscas por textos nas revisões de literatura é a inteligência artificial. É possível que em algum momento, ela seja capaz de fazer traduções de alta qualidade a ponto de podermos escrever os nossos textos e ler o dos outros em nossas línguas maternas. Uma grande barreira seria rompida. Imagine você abrir um número de qualquer periódico e encontrar textos publicados em português, espanhol, francês, alemão, mandarim, sérvio, árabe e conseguir ler todos eles na sua língua nativa? Aguardemos.
O meu objetivo neste texto não foi produzir mais um protocolo sobre revisão de literatura. A minha motivação estava em oferecer um olhar crítico sobre a prática da revisão da literatura pensando menos no que ela é (ontologia) e mais no como ela é feita (prática). Isso abriu a oportunidade de mostrar como a revisão de literatura se tornou um modismo entre vários acadêmicos e que a forma de fazê-la está muito ancorada em um metodologismo que termina sendo uma jaula no processo de explorar a literatura existente sobre determinado tema. É importante ter essa compreensão porque ao contrário do que muitos pesquisadores dizem, fazer revisão de literatura sob protocolos muitos rígidos, ao invés de oportunizar novos conhecimentos, termina reproduzindo modos de pensar sobre um determinado tema. As revisões terminam sendo mais um teste de hipótese (com alta probabilidade de confirmação) do que um percurso realmente exploratório, reflexivo e crítico. Nesse sentido, compartilho as palavras de Alvesson e Sandberg (2020):
"Embora os entendimentos dominantes das revisões de literatura utilizem imagens do autor delas como trabalhador da construção civil ou solucionador de quebra-cabeças, estamos mais interessados em seu papel como artista, detetive, inovador ou mesmo antropólogo, apoiando a parte inovadora da pesquisa" (p. 1302).
As revisões de literatura na RAC devem buscar esse caminho plural de modo a entregar teorizações originais. A ideia é que os autores consigam construir conhecimento considerando os seus lugares e que estejam preocupados em como o fazer administração contribui no enfrentamento dos grandes desafios societais.
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