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O poder da interjeição na performance trágica
Nelson de Aguiar Menezes Neto
Nelson de Aguiar Menezes Neto
O poder da interjeição na performance trágica
The power of interjection in tragic performance
Synthesis, vol. 32, núm. 2, e163, 2025
Universidad Nacional de La Plata
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Resumo: No verso 1028 das Rãs, Dioniso diz que gostou quando, nos Persas, o coro bate palmas e emite exclamações de tristeza (εἶπεν ‘ἰαυοῖ’) diante do corpo morto de Dario. Com isso, Aristófanes coloca em evidência a interjeição como um componente particular das convenções do teatro. Inscrita numa tradição em que o lógos corresponde à palavra em ação, o emprego dessa estrutura lexical na tragédia grega apresenta-se, portanto, como elemento fundamental para o funcionamento deste gênero poético. Trata-se de uma estratégia refinada de enunciação que atende às finalidades trágicas de produção de efeitos emocionais mediante a palavra oralizada. Sem função denotativa ou descritiva, mas com rica variação de possibilidades de sentido, ela é pura performance mimética, marcada pela expressão espontânea de sentimentos quase inefáveis. Nesta comunicação propomos uma discussão do caráter mimético da interjeição na tragédia –de sua capacidade fônica de imitar a realidade–, recorrendo, para isso, a um levantamento do uso da estrutura nos Persas de Ésquilo, obra considerada “um grande lamento”. O objetivo é compreender a natureza fundamentalmente sonora do arranjo discursivo da tragédia, evidenciando, assim, uma prática grega singular de uso da linguagem e de produção do discurso.

Palavras-chave: Os Persas, Ésquilo, Lamento, Interjeição.

Abstract: In Frogs 1028, Dionysus states that he rejoyced when Aeschylus in the Persians lamented for the death of Darius, and the chorus straightway clapped their hands and said, “Ee-ow!” (εἶπεν ‘ἰαυοῖ’). In doing so, Aristophanes highlights the interjection as a particular component of theatrical conventions. Embedded in a tradition where lógos corresponds to word in action, the use of this lexical structure in Greek tragedy thus appears as a fundamental element for the functioning of this poetic genre. It is a refined strategy of enunciation that serves the tragic purposes of producing emotional effects through oralized speech. Without a denotative or descriptive function, but with a rich variation of possible meanings, it is pure mimetic performance, marked by the spontaneous expression of ineffable feelings. In this paper, we propose a discussion of the mimetic character of the interjection in tragedy—its phonetic ability to imitate reality—by examining its use in Aeschylus's Persians, a work considered “a great lament.” The goal is to understand the fundamentally sounding nature of the tragic discourse arrangement and highlight a unique Greek practice of using language and producing speech.

Keywords: Persians, Aeschylus, Lament, Interjection.

Carátula del artículo

Dosier Del treno al epitafio: el lamento funeral en la antigua Grecia y sus inflexiones

O poder da interjeição na performance trágica

The power of interjection in tragic performance

Nelson de Aguiar Menezes Neto
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Synthesis, vol. 32, núm. 2, e163, 2025
Universidad Nacional de La Plata

Recepción: 27 Febrero 2025

Aprobación: 30 Marzo 2025

Publicación: 01 Agosto 2025

Introdução

Nos Persas de Ésquilo (v. 623-693), assistimos ao coro de anciãos invocar o fantasma de Dario diante de seu túmulo. O coro geme, bate e sulca o solo, grita com gemidos e lamentos: ἠέ, οἴ, αἰαῖ αἰαῖ. Aristófanes remete a essa passagem nas Rãs (v. 1028-1029), quando Dioniso, na posição de espectador dessa peça, diz ter se regozijado ao ouvir o coro dar socos e dizer ἰαυοῖ diante do cadáver de Dario.1 Com isso Aristófanes coloca em destaque as convenções do lamento trágico, construídas a partir dos recursos dramáticos do gestual e da sonoridade, além de apontar para os efeitos alcançados no prazer do público em ouvir e ver a performance da lamentação. Indica-se, por assim dizer, um importante elemento no universo da recepção trágica: a natureza estética de gestos e sons produzidos pela tragédia esquiliniana e seus respectivos efeitos.

A sonoridade como recurso dramático na tragédia apresenta-se, portanto, como uma questão. A temática seria tratada por Nietzsche em seus primeiros escritos, numa perspectiva que, em linhas gerais, retomamos no presente artigo. No ensaio Wagner em Bayreuth, escrito em grande parte em 1875, Nietzsche reflete sobre os limites da arte de sua época, confrontando-a com o projeto wagneriano de reforma do teatro, do qual se revela entusiasta. Trazendo influências da poesia grega, Wagner teria encontrado uma relação entre música e drama (Nietzsche, 2009, p. 68, seção 5), colocando-se como uma alternativa em relação ao esgotamento estético e ao adoecimento linguístico do homem moderno. Nesses termos, Wagner teria levado a língua de volta a um estado originário no qual ela está desvencilhada da forma conceitual do pensamento, oferecendo-se como poesia, imagem e sentimento (Nietzsche, 2009, p. 111, seção 9).

De acordo com Nietzsche (2009, pp. 113-114, seção 9), ao recuperar a relação entre música e drama, Wagner teria se insubordinado contra as exigências do drama falado, reconhecendo a lacuna que havia eliminado a dimensão sonora, um dos elementos do trinômio fundamental da unidade da linguagem trágica, constituído de som, gesto e palavra. Tendo em vista os elementos desse trinômio e considerando a referência metateatral de Aristófanes aos gestos e gritos de lamentação presentes nos Persas, propomos uma análise do uso e da função da interjeição de lamento nessa tragédia como indicativo de um fenômeno singular de “linguagem do páthos”, constituída a partir da força sonora que produz sentimento. Trata-se, portanto, de um esforço de observação de como o poeta grego se vale da interjeição como elemento sonoro com a propriedade específica de expressar imediata e diretamente o sentimento desvencilhado do conceito, estabelecendo assim um elemento de estilo de fundamental importância para a própria convenção trágica. Busca-se, com isso, colocar em evidência o próprio caráter mimético da interjeição de lamento, permitindo adentrar na natureza sonora do arranjo discursivo da tragédia, refletindo assim uma prática singular de uso da linguagem e de produção do pára-discurso.

Inscrita numa tradição que aponta para a natureza fundamentalmente sonora e pragmática do grego arcaico e clássico, o emprego da interjeição de lamento na tragédia apresenta-se, tal como noticiado por Aristófantes em As Rãs, como elemento fundamental para o funcionamento deste gênero poético. Na Antiguidade, os gramáticos gregos não tinham conhecimento da função específica dessa estrutura lexical no enunciado, classifcando-a por vezes como advérbio. Foram os latinos que teriam inventado a palavra interiectio (“colocado entre”, “que se interpõe”), definindo-a como affectum animi significans (“aquilo que expressa uma emoção da alma”) ou como pars orationis affectum mentis significans voce incondita (“parte do enunciado que expressa uma emoção da mente por uma voz sem arte”), como observa Perdicoyianni-Paléologue (2002, pp. 49-50). No campo da linguística contemporânea, a interjeição pertence à função emotiva ou expressiva da linguagem, em contraste com a linguagem referencial, destacando-se tanto por seu padrão sonoro, com sequências peculiares, quanto por seu papel sintático de autonomia (Jakobson, 1985, p. 114; Ducrot, 1972, p. 19).

Em grego, a interjeição de lamento estaria relacionada ao sentido dado pelo termo γόος (gemido, choro improvisado e espontâneo), equivalendo assim à performance de sons inarticulados e indistintos, que na representação dramática supõe a habilidade do ator no desempenho do papel. Nos três autores trágicos, é abundante o uso das chamadas interjeições primárias, unidades autônomas não analisáveis etimologicamente, formadas por vogais longas isoladas, vocalizações, reduplicações, encontros vocálicos e combinações de consoante com vogal. Ouçamos algumas delas: αἰαῖ, αἰαῖ αἰαῖ, αἴ, ἆ ἆ ἆ, ἆ, ἀπαππαπαππαῖ, ἀπαππαπαῖ, ἆ, ἆ ἆ, βαβαί, ἒ ἔ, ἐή, ἐὴ ἐή, ἐλελεῦ ἐλελεῦ, ἔα, ἔα ἔα, ἢ ἤ, ἰώ, ἰώ μοί, ἰώ μοί μοι, ἰὼ ἰώ μοί μοι, ἰοὺ ἰού, ἰὼ ἰώ, ἰὴ ἰή, φεῦ, φεῦ φεῦ, φεῦ, παπαῖ, οἴ, οἴμοι, οἲ γώ, οἴμοι μοι, οἰοῖ, ὀτοτοῖ, ὀτοτοτοῖ, ὀττοτοῖ, ὀτοτοτοτοῖ τοτοῖ, ὀττοτοτοτοτοῖ, παπαιάξ, παπαῖ, παπαπᾶ, παπαπαππαπαππαπαππαπαῖ, ὤ, ὤμοι, ὤμοι μοι, ὤμοι μοι μοι, ὦ πόποι, ὦ. De acordo com Barbosa (2018, p. 151)

No que diz respeito ao texto trágico antigo, o comportamento cênico exagerado é facilmente corroborado por uma constatação básica: as peças são crivadas de interjeições, isto é, de marcadores de emoção inseridos na frase e dirigidos ao interlocutor, marcadores que diferem da linguagem referencial pelo som particular que têm. 2

Nas composições trágicas, tais unidades linguísticas correspondem à vívida expressão de sentimentos e emoções, como nos mostra Perdicoyianni-Paléologue (2002, p. 56): o excesso de prazer e euforia; o desejo intenso de realização de um acontecimento (Alceste, 719-720); o desejo da própria morte em situação de desespero (Medeia, 97); o desejo de desgraça para si ou para alguém (Filocteto, 1018); o arrependimento e o remorso (Persas, 852-856); o sofrimento e a dor; a aflição física e moral (Medeia, 112-114; 144); a compaixão e a piedade (Helena, 212); a sensação violenta frente a fato terrível (Medeia, 292); o medo (Antígona, 1105; Medeia, 117); o pressentimento de desgraça iminente (Édipo em Colono, 216-224); o horror frente a atos abomináveis; a surpresa (Antígona, 128); a raiva; a reação; a revolta; a aversão frente a um ato que fere a consciência moral do locutor (Hipólito, 806-807); a súplica e o apelo à intervenção divina ou humana (Coéforas, 18, 490); a angústia; a loucura; a agitação e o descontrole.

As tragédias evocam tudo isso: as emoções materializadas na interjeição de lamento constituem seu principal subtexto, que consagra, naturalmente e sem mediações, um lugar privilegiado à expressão da dor e do sofrimento.3 O lamento aparece como a expressão sonora, cheia de sentido mas vazia de significado, que intradramaticamente se apodera dos personagens e do coro, invadindo-os e apropriando-se deles. É a performance da dor, exibida sem artifícios, que coloca em cena a agonia, o corpo e a voz sofredora. Nos Persas, apenas o grito, o gemido, o urro subsistem, exalando a dor por interjeições (Rey, 2012, p. 34).

Os Persas de Ésquilo

Para nosso estudo, os Persas assumem um lugar de centralidade, não apenas em virtude da referência cômica acima explicitada, mas também em razão de a peça corresponder, como um todo, a uma espécie de grande lamentação que coloca em cena o desvairio, a loucura, a extravagância e o exagero, com abundantes expressões que remetem a gritos de dor e a representações gestuais de sofrimento. Construída em torno do tema da derrota naval do exército persa pelas mãos dos atenienses, em cena o sofrimento associado aos horrores da guerra e à presença permanente da morte. Lamento, sofrimento e dor são experiências reportadas diversas vezes pelo coro: “a cidadela cantará gritando de volta” (121), “os leitos enchem-se de lágrimas pela saudade dos homens; e as persas de delicada dor ...” (134-135), “agonias, agonias, novas e devastadoras” (256), “muitas mulheres, com mãos delicadas rasgando os véus, em lágrimas, molham seus seios inundados, compartilhando da dor” (537-540), “as persas de delicado gemido, saudosas choram com os mais insaciáveis gemidos” (541-545). O coro ressalta, ainda, o caráter coletivo da lamentação: “a terrra inteira da Ásia despovoada lamenta-se” (548-549); “a terra geme a terrena juventude morta por Xerxes” (922-923).4

Nesta peça, o léxico do lamento se destaca. No verso 686, temos o verbo θρηνέω, em referência ao cantar ritual fúnebre de tipo antifonal diante da tumba de Dario.5 O substantivo γοός (gemido, lamento, choro espontâneo) aparece 7 vezes, em 545, 687, 697, 705, 948, 1050 e 1077, sendo esta a última palavra no verso final da peça. O termo ὑμνός aparece em 620 e 625. O termo οἰμωγή (lamentação, gemido), por sua vez, ocorre na linha 426. O universo da dor aparece em expressões como agonia (ἄνια: 256, 1055, 1061); luto sombrio (πένθος δνοφερός: 536); lágrimas (δάκρυα: 539; πολύκλαυτε: 674; πολύδακρυς: 940; ἀρίδακρυς: 948); dor (ἄλγος: 540, 583; ἄχη: 638); choro/ gemido (κλαῦμα: 705; ἰαχή: 940); lamento (τὰν πάνδυρτον: 944); lamentador (πενθητήρ: 947); sofrimento (πῆμα:1038); desgraça (δύα: 1039); o afligir-se (δακνάζω: 571) e o sofrer (ἀλγέω: 844, 1045; πάσχω: 912). A gestualidade aparece em expressões como: geme, bate e sulca o solo (στένει, κέκοπται, καὶ χαράσσεται πέδον: 683); bater no peito (ἔρεσσ᾽ ἔρεσσε: 1046; στέρν᾽ ἄρασσε: 1054); arrancar os pelos da barba (γενείου πέρθε τρίχα: 1056); rasgar o peplo (πέπλον δ᾽ ἔρεικε:1060); arrancar o cabelo (ψάλλ᾽ ἔθειραν: 1062).

Em The Form of Laments in Greek Tragedy (1986), Wright propõe que os versos 908-1077 dos Persas e os versos 961-1004 de Sete Contra Tebas constituem as formas mais antigas de um lamento completo, contendo seus principais elementos formais de composição. Esses textos seriam referência paradigmática para a fixação da forma trágica do lamento, sendo, segundo Wright (1986, p. 65), a base para os lamentos das demais tragédias. No caso dos Persas, o trecho corresponde a um kommós, na medida em que é um canto de lamento entoado por Xerxes e pelo coro, alternadamente.6 Nesse sentido, ele combina elementos da antifonia ritual e a regularidade estrófica das odes trágicas em forma bipartite, com uma alternância de estrofes e antístrofes, formadas de versos anapésticos e trocaicos, próprios à recitação situada entre o canto e a fala.7

Vejamos, brevemente, a estrutura geral deste lamento:

  • Trecho introdutório (908-931): os lamentadores –Xerxes e o coro– recitam anapestos líricos, preparando-se para o lamento principal, em vista da perda do exército persa. Xerxes lamenta sua própria sorte (909-910), interpretada como obra de uma divindade (911-912). No trecho introdutório, temos as seguintes interjeições: ἰώ (Xerxes, 907), ὀτοτοῖ (coro, 918) e αἰαῖ αἰαῖ (coro, 928).

  • O lamento propriamente dito começa em 932 e vai até o final da peça, verso1077, contendo 7 pares de estrofes e antístrofes, seguidas de um epodo. Trata-se de um melodrama, com trechos de recitativo acompanhados de lirismo. Em estrutura de responsório, Xerxes alterna com o coro, entoando solos líricos –embora seja raro que atores entoem metros líricos em Ésquilo (Wright, 1986, p. 65). Isso indica a anormalidade de expressão da personagem, situado em um nível emocional cada vez mais alto. O lamento é dividido em 3 partes:

    1. 1. primeira parte (v. 932-1001): composta por 3 pares de estrofes e antístrofes em versos anapésticos e iônicos, com estrofes mais longas, de 3 a 9 versos. Neste trecho, temos o oferecimento de informações detalhadas, destacando-se a ocorrência das seguintes interjeições: οἰοῖ (932, Xerxes), οἰοιοῖ (955 e 967, coro), ἰὼ ἰώ μοι (974, Xerxes), ἐἕ ἐἕ (977, Xerxes), e ὢ ὢ (985, coro).
    2. 2. segunda parte (v.1002 a 1065): composta por iambos líricos, com 4 pares de estrofes e linhas mais curtas, de 1 a 3 versos, às vezes 2 palavras.8 Deparamo-nos com uma série de gritos desconexos e exclamações, com linhas barulhentas, sendo assim uma parte menos retórica ou narrativa. 9 O trecho é permeado por interjeições: οἴ (1003, 1008, 1045 e 1053, coro e Xerxes), ἰὴ ἰή, ἰὼ ἰώ (1004, Xerxes), ἰὼ ἰώ (1005, coro), παπαῖ παπαῖ (1031, coro), παπαῖ (1032, Xerxes), αἰαῖ αἰαῖ (1039, coro), ὀτοτοτοτοῖ (1043 e 1051, coro).
    3. 3. epodo (v. 1066-1077): parte menos coerente, com gritos repetidos e gemidos em quase todas as linhas. Ele começa com a ordem de Xerxes para que o coro grite.

Xerxes reconhece sua condição de lamentador: “Eis-me, oioî, gemente; deplorável, assim, terrivelmente tornei-me” (931-933) e “Grita, grita, no interior do corpo, o meu coração” (991). Disfere, então, ordens ao coro, convidando-o também a lamentar: “elevai lúgubre lamentosa voz de som triste” (941-942), “chora, chora o sofrimento” (1038), “grita agora me devolvendo o som” (1040/1048/1066), “emite um grito junto de mim, entoando um canto” (1042), “bate, bate no ritmo dos remos e geme para o meu agrado” (1046),

“eleva agora os lamentos” (1050), “bate no peito e entoa o canto” (1054), “arranca para mim os brancos pelos de tua barba” (1056), “solta grito agudo” (1058), “o peplo em teu peito rasga com o vigor das mãos” (1060), “arranca o cabelo e sente compaixão” (1062), “enche de lágrimas os dois olhos” (1064). A tais solicitações, o coro atende prontamente: “este gemido de mau agouro, grito que canta males de um Mariandino que lamenta enviarei, gemido pleno de lágrimas” (936-940), “sim, elevarei também o lamento” (944), “banho-me de lágrimas ao ficar gemente” (1047), “com força, força, muitos os gemidos” (1057/1063), “agonia, agonia” (1061). Essa é uma maneira delirante e frenética de mostrar dor e lamento em cena, originada provavelmente dos rituais de lamentação. Xerxes ordena e o coro responde com interjeições. Ésquilo combina um comando e mímesis dos rituais de lamento com o motivo trágico de descrever as reações físicas ao sofrimento, dando à audiencia a verdadeira sensação de lamentação (Wright, 1986, p. 57).

Uma análise da estrutura métrica e estilística do lamento completo dos versos 908-1077 dos Persas nos permite verificar uma espécie de simplificação progressiva do canto lírico, que culmina com expressões dissonantes de gritaria e gemido, produzindo um efeito singular de intensificação da emoção. O fluxo entre as formas métricas mais elaboradas e musicalizadas para formas mais simples e menos líricas acompanha a intensificação do processamento da dor. O lamento começa com trechos recitativos líricos, em ritmo lento e mais pesado, refletindo estilo mais grandioso e solene. No verso 1002, porém, deparamo-nos com uma mudança de metro, introduzindo-se um ritmo vivo e bem marcado, até chegar ao epodo, parte marcada pelo excesso de interjeições que expressãm sonoridades e gestos exagerados. A ação torna-se progressivamente mais acelerada, menos cantada e mais recitada, com um responsório mais dialogado e um ritmo mais rápido e fluido, na medida em que substitui anapestos e troqueus por iambos. Essa variação métrica tem a função de enfatizar a gravidade do tema central da peça —a consequência da hybris de Xerxes e a queda do império persa. Haveria, assim, uma redução da musicalidade até as formas sonoras de lamentação mais simples e puras no epodo:

Xerxes

Grita agora me devolvendo o som.

Coro

οἰοῖ οἰοῖ.

Xerxes

Gemente, vai para as moradas.

Coro

ἰὼ ἰώ; terra persa de marcha difícil.

Xerxes

ἰωὰ, assim, pela cidade.

Coro

ἰωὰ, então, sim, sim.

Xerxes

Gemei em marcha delicada.

Coro

ἰὼ ἰώ; terra persa de marcha difícil.

Xerxes

ἰὴ ἰὴ, nas de três fileiras de remos.

Coro

ἰὴ ἰὴ, nas barcas, foram aniquilados.

Xerxes

Escolta-me agora para as moradas.

Coro

Escoltar-te-ei, sem dúvida, com lastimosos gemidos.

Vê-se que, como parte final da peça, o epodo é marcado pela emoção, conduzindo a ação a um momento de grande tensão e de liberação do sentimento. Constroi-se, assim, um crescendum de expressão emocional, deflagrado desde a primeira cena e sem retorno a um nível neutro de emoção. A audiência é levada a um estado de compaixão e de aflição, excitada pela antifonia rápida, pelos gritos, ruídos e gemidos, e pela linguagem repetitiva. Nesse sentido, a posição do lamento no final da peça é adequada, na medida em que permite o clímax e a explosão excepcional de emoção.

Até aqui analisamos o lamento completo esquiliano, buscando evidenciar o uso da interjeição de lamento como recurso dramático da ordem da sonoridade nessa estrutura. Importante observar, porém, que as interjeições não são exclusivas do lamento completo, embora sejam aí mais frequentes. No caso dos Persas, a obra apresentaria também duas outras formas mais simples de lamento, os lamentos reduzidos, identificáveis nos versos 256-259 e nos versos 532-680 (Suter, 2008, p. 161-162). O primeiro exemplo é uma lamentação lírica do coro em versos iâmbicos alternada com o o trímetro iâmbico falado pelo mensageiro, estruturada em 3 pares de estrofes.10 O segundo corresponde à cena em que o coro evoca o fantasma de Dario, construída em 3 pares de estrofes iônicos e um epodo de conclusão com dátilos e iâmbicos –passagem que é caracterizada de góos (687, 697, 705) e associada a descrições de sons estridentes e dissonantes.

Observe-se, ainda, que as interjeições de lamento podem aparecer em qualquer parte da peça. Nos Persas, a primeira ocorrência –ὀᾶ– aparece duas vezes no párodo, nos versos 117 e 122, antecipando o motivo da lamentação como elemento central da peça. No primeiro episódio, por sua vez, o mensageiro informa o aniquilamento do exército nesses termos: “ó de mim (ὤμοι), é um mal ser o primeiro a anunciar males” (253), a que o coro responde: “agonias, agonias, novas e devastadoras” e “aiaî (αἰαῖ), umedecei os olhos, persas, após ouvir tal dor” (256-259). A partir de então, coro e personagens passam a emitir diferentes interjeições de lamento: ὀτοτοτοῖ (268 e 274, coro), αἰαῖ (283, 331 e 433, coro e rainha), φεῦ (285, mensageiro), οἴ (445 e 517 rainha). No primeiro estásimo, o coro entoa que “a terra inteira da Ásia despovoda lamenta-se” (548-49) e apresenta diferentes interjeições: a repetição da sequência ποποῖ/τοτοῖ no primeiro par de estrofe e antístrofe (548-567), e a repetição da sequência φεῦ/ ἠέ/ ὀᾶ/ ὀᾶ , no segundo (568-583). No segundo episódio, a rainha Atossa, mãe de Xerxes, ordena ao coro que entoe hinos e invoque o espírito de Dario (620). Na primeira estrofe do segundo estásimo, fica clara a lamentação proferida pelo coro, que se pergunta se o rei ouvirá suas palavras bárbaras, que emite com lástimas penosas de múltiplos sons (634-636), e acrescenta: “gritos plenamente infortunados terei que ecoar?” (637). Novamente, em estrutura antifonal, temos o uso de interjeições: ἠέ (segundo par de estrofes) e οἴ (terceiro par), seguidos de αἰαῖ αἰαῖ no epodo. No terceiro episódio, temos então a aparição do espírito de Dario, que coloca em evidência a lamentação do coro:11

Ó fiéis de fiéis e companheiros da minha juventude,

anciãos persas, a cidade sofre que pena?

Geme, bate e sulca o solo [...]

(681-683)

Vós estais lamentando, de pé, perto de meu túmulo,

e, gritando com gemidos que conduzem as almas,

chamam-se em lamento [...]

(686-688)

Por fim, podemos dizer que as interjeições de lamento expressam a agitação sonora não modulada de gemidos, gritos, balbucios e choro. Nos Persas este recurso tem destaque e sua função é cumprida, na medida em que exacerba a progressão em movimento da emoção. As interjeições geralmente começam uma linha, vindo antes de vocativos e outras exclamações. 1070. Também são com frequência duplos (ἰὼ ἰώ, 1074). Elas compõem a métrica do verso e criam um efeito de alternância, estrofe a antístrofe. A repetição é um elemento notável do lamento trágico de Ésquilo, devendo ter sido enfatizada na performance. Como mostra Wright (1986, p. 61), a performance se desenvolve na direção de produzir maior incoerência e emoção. As convenções dramáticas visam produzir esse efeito. A retórica e a coerência são, assim, deixadas para trás.

As finalidades trágicas: uma prática mimética

Segundo Wright (1986, pp. 56-58) as interjeições configuram-se como uma característica do lamento trágico que não se encontra nos lamentos literários mais antigos (poesia épica e lírica), tendo suas origens prováveis nos rituais de lamentação. Elas teriam sido incorporadas na tragédia enquanto arte mimética, e não na poesia épica ou lírica, por serem gêneros narrativos. A inclusão de interjeições no lamento trágico deriva como resultado da própria performance mimética, possuindo um propósito dramático específico. Na tragédia, a performance de sonoridades não verbalizadas sob a forma de grito, choro e gemido não é reportada, mas vívida, emotiva, aterrorizante e prazerosa. Não se trata, aqui, da incapacidade dos personagens de expressar, com intensidade, emoção e vivacidade, sua dor. Pelo contrário. Além disso, enquanto produção de phonaí, ou seja, de unidades sonoras, as interjeições de lamento exercem uma ação sobre a alma, atendendo às finalidades trágicas de produção de efeitos emocionais.12 Sem função denotativa ou descritiva, mas com rica variação de possibilidades de sentido, elas são pura performance mimética, marcada pela expressão espontânea de sentimentos inefáveis, o que nos remete para o entendimento latino de “emoção da alma” (affectum animi). Nos termos de Barbosa (2018, p. 123), as interjeições de lamento “são sons que expressam estados e que, por isso, não são verdadeiros nem falsos. São expressões, μιμήσεις, que mimetizam o que se passa na alma dos que as deixam romper a barreira dos seus próprios dentes”.

O alcance do lamento na ordem da comunicação parece ter, assim como a música, natureza universal: a interjeição de lamento pode ser sentida imediatamente por qualquer um na audiência.13 Sem comportar nenhum conteúdo representacional, é pura exteriorização do afeto; ação sem mediação; efeito e estímulo puramente sonoro. Correspondendo a um dos elementos da unidade da linguagem trágica, a interjeição de lamento possui natureza eminentemente mimética. O sentido de mímesis empregado aqui aproxima-se daquele explorado por Koller em Mímesis na Antiguidade (1954), obra em que se atrela o sentido original de mímesis e seus cognatos à esfera da música e da dança coral ritualística, entendendo-os como uma forma de expressão da interioridade e do espírito.14

Koller verifica que as palavras pertencentes ao grupo mimeîsthai foram usadas originalmente para denotar atividades relacionadas às performances nos campos da música e da dança. O grupo de palavras estaria conectado originalmente com o culto dionisíaco, sendo trazido para a Grécia com ele. Ao contrário do entendimento de mímesis como cópia de um modelo, Koller defende que seu sentido original não era imitação, mas representação ou performance (Darstellung), expressão (Ausdruck), forma expressiva (Ausdrucksform) ou formação da alma (Formwerdung des Seelischen), e que os âmbitos desta palavra eram, como dissemos, os universos da música e da dança.15

Embora a visão de Koller tenha sido criticada por Else (1958) e por Sörbom (1966) como uma visão parcial, seus argumentos nos interessam por colocar em evidência o caráter mimético do aparato sonoro. Koller se baseia, sobretudo, em uma passagem da peça Edonianos de Ésquilo, citada por Estrabão, na qual temos a aparição mais aintiga do termo mîmos.

e novamente, o instrumento de cordas ressoa fortemente (ψαλμὸς δ᾽ ἀλαλάζει),

e embaixo rugem como touros (ταυρόφθογγοι δ᾽ ὑπομυκῶνται)

imitações assustadoras (φοβεροὶ μῖμοι) vindas de algum lugar invisível,

e à semelhança de um tambor (τυπάνου δ᾽ εἰκὼν), como de um subterrâneo

trovão, vem junto aterrorizante.

(Geografia 10.16 470F, frag. 57 Nauck)

Em sua Geografia, Estrabão reproduz esse pequeno trecho trágico para ilustrar os ritos trácios. A peça fala sobre a rejeição de Dioniso por Licurgo. Trata-se provavelmente de uma passagem do párodo, que apresenta uma importante ocorrência do termo μῖμοι, no contexto de um barulhento ritual dionisiaco. O párodo provavelmente apresenta a entrada em cena do deus e de seus adoradores, num verdadeiro culto orgiastico em que se destaca o aspecto musical. Há uma enumeração de instrumentos musicais, bem como o emprego de um léxico próprio da audição: ψαλμός (instrumento de cordas), ἀλαλάζω (lançar um grito de guerra, ressoar fortemente), ταυρόφθογγος (o que muge como touros) e τύπανον (tambor) e βροντή (trovão). O coro menciona, ainda, a expressão φοβεροὶ μῖμοι, que indica a própria performance, ou seja, a produção de ruidos sonoros.16 O que é descrito na passagem são, portanto, os efeitos sonoros produzidos mimeticamente. Observe-se que nem atores nem instrumentos são vistos em cena, mas apenas se ouve o barulho produzido cenicamente. Há aqui a dimensão de algo que engana, que ilude, que aparenta ser o que não é. Sob esse aspecto, Else encontra nesta aparição mais antiga de mîmos, uma implicação que Koller não identifica antes de Platão –aquela de uma enganação deliberada. De todo modo, o trecho mostra que, desde suas origens mais remotas, mímesis e tragédia estavam fortemente ligadas a aspectos sonoros.

A relação feita por Koller entre o universo da mímesis e o culto dionisíaco aproxima-se, também, da ideia de que o lamento teria sua origem remontada a práticas rituais.17 Nesse sentido, vale lembrar que o coro –um dos principais agentes da lamentação– teria evoluído de rituais e cerimônias religiosas, sendo tipicamente marcado pelo canto e pela dança.18 E, de algum modo, as interjeições de lamento, objeto de nosso estudo, funcionam como os φοβεροὶ μῖμοι dos Edonianos. São performances sonoras, cuja materialidade cênica proporciona a exteriorização do sentimento, expressando-o de forma imediata e direta. Nesse sentido, o som materializado na exclamação lamentosa é uma forma de apresentação e meio eficaz de estimulação sensorial. Em seu aspecto sonoro, a interjeição de lamento estimula a alma do ouvinte, possibilitando a transposição de estimulações fundamentais de afeto (Garcia, Apresentação, in Nietzsche, 2014, p. XXI).19

Um fenômeno para-discursivo: phoné x lógos

A leitura estruturalista da tragédia –que reúne autores como Vernant & Vidal-Naquet (1972 y 1986) e Loraux (1994 y 2002) –teve o mérito de colocar de lado uma visão universalista e despolitizada da tragédia para considerar seu contexto histórico-cultural, marcado por estruturas ideológicas e institucionais.20 Nesse sentido, a abordagem estruturalista passou a entender o lamento a partir do viés da divisão de papeis entre homens e mulheres na Antiguidade, colocando-o como um fenômeno político e social associado à produção da normatividade do discurso. O lamento foi tomado, então, como uma atividade feminina própria da vida privada e associada ao lamento ritual, em oposição aos discursos cívicos masculinos. Essa visão será criticada por autores contemporâneos como Suter (2008), que rediscutem a questão do gênero e o significado social do lamento na Antiguidade.

O presente estudo, porém, não contempla esse debate, mas se volta para o aspecto linguístico e estilístico do uso da interjeição. Nosso objetivo é analisar a interjeição de lamento como elemento sonoro da convenção trágica, que, na formulação de Nietzsche, reúne o trinômio sonoridade, gesto e palavra. Nos Persas, de fato, o universo da sonoridade é amplamente explorado. Isso se verifica no uso abrangente de um léxico que reenvia para esse universo: lamentar/gemer/chorar (διαίνω: 257, 1038, 1047, 1064; στένω: 285, 548, 571, 683; πενθέω: 545, 579; ὀδύρομαι: 582; αἰάζω: 922; στενάζω: 1046; γοάω: 1073); ouvir a dor/o sofrimento (τό ἄχος κλύω: 258, 640; τὸ ἄλγος κλύω: 583); ouvir as misérias (πήματα ἀκούω: 844); gritar (ἰύζω: 280, 1042; ἀναβοάω: 572; διαβοάω: 638; ὀρθιάζω: 687; κλάζω: 948; βοάω: 955, 967, 991, 1040, 1048, 1066; ἐπιβοάω: 1054); emitir sons (ἵημι: 636, 941, 944); emitir múltiplas falas sombrias e dissonantes (τὰ παναίολ᾽ αἰανῆ δύσθροα βάγματα ἵημι: 636-637); emitir voz sombria, chorosa e dissonante (αἰανῆ καὶ πάνδυρτον δύσθροον αὐδάν ἵημι: 941-942); gritar ecoando (βόα ἀντίδουπά: 1040, 1048, 1066); ficar gemente (γοεδνὸς ὤν: 1047); levantar a voz (ἐπορθιάζω:1050); soltar grito agudo (ἀύτει δ᾽ ὀξύ: 1058). Além disso, temos referências ao grito (βοή: 281); às lamentações estridentes (λιγέα κωκύματα: 332); à voz (αὐδή: 575, 942); ao choro efeminado (ἁβρόγοος: 541); à voz clamorosa e infortunada de lamento (δυσβάυκτον βοᾶτιν τάλαιναν αὐδάν: 574-575); ao golpe gemente (στονόεσσα πλαγά: 1053); aos muitos gemidos (μάλα γοεδνά:1057, 1063); aos dissonantes gemidos (δύσθροος, δυσθρόοις γόοις: 1077).

Entende-se que a natureza fundamentalmente sonora do lamento evidencia uma prática singular de uso não discursivo da linguagem. Aiai, io, ototototoi, pheu pheu são emissões vocais essencialmente sem significado linguístico, que preservam a performatividade do lamento, sua força expressiva, sendo o seu próprio fazer. Há uma assonância nesses vocábulos, marcada pela predominânica e repetição de vocais, que lhes confere estatuto puramente acústico ou sonoro. Não possuindo conteúdo semântico, escapam à noção linguística de signo, não possuindo outro sentido senão o som ele mesmo. Trata-se, portanto, de uma modalidade de comunicação que se apresenta como antítese do lógos entendido como palavra articulada, como discursividade. Sob esse aspecto, “a certeza do sentido, nas interjeições, é vã” (Barbosa, 2018, p. 129; Loraux, 2002, p. 39). A interjeição de lamento apresenta-se como elemento acústico ininteligível que converte ruídos emocionais inarticulados em linguagem (Weiss, 2017, p. 253).

O emprego da interjeição de lamento na tragédia denota, assim, uma espécie de fenômeno linguístico paradiscursivo, que constitui aquele trinômio apontado por Nietzsche –sons, gestos e palavras. Nesse sentido, a phoné constitui dimensão efetiva e essencial para a transmissão e realização da comunicação dramática. Como vimos, na tragédia o sentimento é expresso não pela mediação do discurso articulado, mas por ruídos, gritos, lágrimas, choros, gemidos, tudo isso ritmicamente integrado sob a forma de canto. Como comenta Nagy (2013, 3 §10):

Como, então, ‘pesar’ ou ‘tristeza’ são expressas pelo lamento? Chorando e cantando ao mesmo tempo. Quando pessoas como você e eu choramos, nós apenas choramos. Quando pessoas em uma cultura musical choram, elas lamentam. Ou seja, elas cantam enquanto choram, elas choram enquanto cantam, e esse tipo de canto é choro; esse tipo de choro é canto. Os aspectos físicos do choro são todos integrados ao canto: o fluxo de lágrimas, o engasgo da voz, as convulsões do corpo, e assim por diante, são todos parte do canto.

Isso explica por que, na própria tradição trágica, a performance do lamento é associada tanto ao canto dos pássaros quanto ao acompanhamento aulético.21 No Agamêmnon 1140-1146, por exemplo, o coro compara o lamento de Cassandra ao canto do rouxinol. Ao mesmo tempo em que destaca a musicalidade lírica da performance, o coro descreve o seu canto como νόμος ἄνομος (1142). Cassandra se lamenta cantando. Diz o coro:

Coro

Estás alucinada e certamente

Alguma divindade te domina;

Entoas um canto desencantado (νόμον ἄνομον),

Tal como o pardo rouxinol tristonho

Chorando interminavelmente Ítis,

Ítis, por tada a desolada vida.

(Agam., 1140-1145, trad. da Gama Kury, 2010)

O coro relaciona aspectos contráditorios: as lamentações de Cassandra são nómos ánomos, às vezes ditas com suavidade, às vezes proferidas entre gritos. Trata-se de uma musicalidade a-musical, que reúne barulho perturbador e lirismo. Cassandra canta como um ἀηδών (rouxinol), numa clara aproximação ao sentido poético do verbo ἀείδειν. O rouxinol encarna a natureza do lamento. Como afirma Weiss (2017, p. 257), “a identificação do rouxinol com o lamento parece estar antes de tudo baseada numa correlação acústica entre o seu som e os gemidos de lamentação espontânea que estavam originalmente associados ao γόος.” Nesse sentido, o caráter não-verbal, não articulado do som dos pássaros é associado também às formas de expressão dos estrangeiros e das mulheres (Il. III, 1-9; Aves, 1681; Rãs, 674-685; Agamêmnon, 1050-1052.).22 E por esses mesmos motivos, como instrumento musical, o aulo é identificado ao rouxinol e ao lamento (Píndaro, Pyth. 12; Esq., Persas, 938; Plut., Mor. 394b-c; Paus. 10.7.3-5; Ath. 174f-75a).23

Na entoação melodiosa do lamento, deparamo-nos com o desempenho de uma forma de linguagem não-conceitual. A interjeição de dor é corpo sonoro, ato linguístico visível e sensível, fazendo da audiência um público que vê e escuta e, por isso, sente. Trata-se da condução da língua e do espetáculo a um estado originário de representação e de produção de sentimento em sua total pureza, ou seja, desvinculado da mediação conceitual. A lamentação, constituída por interjeições cantadas e entoadas em performance coral entra em contraste com o lógos, com a narrativa, com o metro iâmbico das partes dialogadas. Na tragédia, todos esses elementos estão conjugados, mas a articulação entre eles é conflituosa, não se tratando de simples coexistência (Loraux, 2002, p. 82). Na República, Sócrates observa que o aulo é o instrumento que produz maior número de sons, apropriado para a produção de harmonias chorosas, lânguidas e afeminadas –em oposição à harmonia própria para os tons e modulações da voz de um homem corajoso e guerreiro.24Destaca sua preferência por Apolo e seus instrumentos a Mársias e seus instrumentos. Finalizo com um trecho da República:

Em todo caso, disse eu, deves ser capaz de dizer que o canto é constituído por três elementos (τὸ μέλος ἐκ τριῶν): palavra, harmonia e ritmo (λόγου τε καὶ ἁρμονίας καὶ ῥυθμοῦ).

Sim, disse. Isso eu posso.

Então, enquanto palavra, o canto em nada diferia da palavra não cantada, quanto à necessidade de ser expressa segundo os mesmos modelos e também da mesma maneira que há pouco enunciamos?

É verdade, disse.

E a harmonia e o ritmo devem acompanhar a palavra?

Como não?

Afirmamos, entretanto, que em discursos não precisamos de choros (ὀδυρμός) e lamentações (θρῆνος).

De fato, não precisamos.

Quais são então as harmonias chorosas (θρηνώδεις ἁρμονίαι)? Responde-me! Tu és músico...

A harmonia mixolídia, a sintonolídia e outras como essas.

Então, disse eu, essas devem ser excluídas? É que, se não servem nem para as mulheres que devem ter uma postura decente, muito menos servirão para os homens...

É bem assim. (Rep. III 398d-e, trad. Prado, 2014)

Se pensarmos a passagem platônica em perspectiva nietzschiana, a corrupção da tragédia se dá em virtude da tendência socrático-euripidiana amusical e inartística de conduzir a encenação teatral unicamente em virtude da narrativa e do discurso articulado. Para Nietzsche, “o recurso à palavra, ao diálogo, ao lógos, constitui o principal sintoma do perecimento da tragédia.” (Garcia, Apresentação, em Nietzsche, 2014, p. XXVII). Dá-se, assim, o atrofiamento da linguagem tonal pela narrativa. A interjeição de lamentação, porém, contraria o ideal platônico fundado na primazia do lógos, “em discursos não precisamos de choros (ὀδυρμός) e lamentações (θρῆνος)”, sendo elemento primordial de ininteligibilidade e expressão do afeto.25

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Referências bibliográficas
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Notas
Notas
1 “Ao menos regozijei-me quando ouvi, com relação a Dario morto,/ o coro de uma vez gritar ‘iauoî’, batendo as mãos tão excessivamente.” Curiosamente, Aristófanes usa o hapax ἰαυοῖ, termo que não é usado nos Persas nem em nenhuma outra tragédia. As referências e citações das Rãs correspondem à tradução de Vieira (2014).
2 Com relação aos estudos sobre as interjeições, remetemos a Perdicoyianni-Paléologue (2002, p. 53-54) e a Barbosa (2018, p. 117).
3 Segundo Rey (2012, p. 35), “a tragédia grega do séc. V a. C. oferece uma representação não apenas do sofrimento, mas da dor em seu sentido mais físico, mais concreto, e mais abrupto. Diferentemente, por exemplo, da tragédia clássica na França no século XVIII, não substitui a mediação de um relato no espetáculo da dor, e também não participa de uma estética da retenção. Mesmo quando há um relato, a presença do corpo sofredor, coberto de lesões ou abatido, redobra a verdade do relato”.
4 Neste trabalho, as traduções dos Persas são retiradas de Nogueira (2017).
5 O substantivo θρῆνος (canto fúnebre ritual) não aparece nos Persas. O termo remete ao canto fúnebre ritualístico e elaborado, entoado coletivamente por cantores profissionais (Il. XXIV. 720-721). Weiss (2017, p. 245) afirma que na Grécia arcaica e clássica, o lamento teria sido a forma originária e prototípica de canto.
6 Para a definição de κομμός, ver A Poética 1452b 24-25.
7 Anapestos são versos com quatro pés, com alternância entre sílabas longas e curtas, refletindo estilo mais grandioso e solene. Já os troqueus correspondem a um ritmo mais forte e enérgico. De acordo com Moore (2024), “a importância dos anapestos para a tragédia grega é inegável. Anapestos são o tipo de metro mais comum na tragédia grega, ao lado do trímetro iâmbico. [...] Os anapestos frequentemente acompanham o movimento físico, especialmente entradas, e particularmente entradas notáveis por sua solenidade; desempenham um papel de transição tanto estrutural —geralmente ocorrem entre os trímetros iâmbicos e os cantos líricos— quanto emocional —pois elevam a emoção acima dos trímetros iâmbicos e abaixo dos cantos líricos—; e muitas vezes expressam lamento e parecem estar associados a rituais.” Ver Brown (1977) e Lourenço (2004, p. 154).
8 O iambo é um verso próprio das partes mais dialogadas, facilitando a fluidez e o ritmo contínuo da ação.
9 Koonce (1962) examinou os gritos na tragédia e, comparando seus diferentes usos em diferentes contextos, concluiu que diferentes gritos expressam diferentes nuances de emoções de sofrimento.
10 Com relação à métrica dos Persas, ver Hall (1996, p. 179).
11 O próprio Dario também emite exclamações: φεῦ (725 e 739) e πόποι (731), sendo esta última repetida na primeira linha do 3º estásimo.
12 “Será, Glaucon, disse eu, que a educação pela música é muito eficiente principalmente porque o ritmo e a harmonia penetram no íntimo da alma e com muita força a tocam e, tranzendo-lhe elegância, também lhe emprestam uma postura elegante, se é bem educada?” (Rep. III 401d, trad. Prado, 2014)
13 Sobre a universalidade da música, ver a metafísica da música de Schopenhauer (2005, p. 336-338).
14 Em seu artigo, Imitation in the Fifth Century (1958), Else estabelece um debate com a obra Die Mimesis in Der Antike (1954) de Koller. Para fundamentar seus argumentos, Else observa que Koller teria se limitado a tomar uma fonte tardia, o segundo livro de Aristide Quintiliano Sobre a Música, como fonte primária de sua análise, negligenciando outras evidências de mimeîsthai e mímesis em autores do V século, evidências de pelo menos igual importância. Sobre o tema da mímesis, ver meu livro Menezes Neto (2021).
15 O autor toma como pano de fundo a importância de Damon e do pitagorismo sobre a música e argumenta que o sentido de imitação teria sido um desenvolvimento posterior, ligado a uma aplicação do termo a campos como a pintura e a escultura.
16 A propósito deste fragmento de Ésquilo, para Koller mîmoi corresponde aos atores e para Else a palavra remeteria para o som produzido pelos instrumentos musicais. Cfr. Else (1958, p. 75ss), Sörbom (1966, p. 53ss).
17 Práticas rituais das cerimônias fúnebres em Atenas, anteriores às reformas de Sólon. Cfr. Weiss (2017, p. 252).
18 Os instrumentos musicais eram o aulo, a siringe e outros instrumentos de percussão. Além disso, a linguagem era distinta do discurso cotidano, empregando-se o dialeto dórico, em contraste com o grego ático, usado no diálogo falado. Isso dava ao coro aspecto solene e formal. Na Ilíada e na Odisseia, o lamento está presente em diferentes passagens. Cfr. Il. XXII,168ss; IV, 1-49; XXIV, 23; XX, 21; XXIV, 513ss; Od. 8, 521ss; 19, 210; 23, 231-246. Ver Loraux (2002, p. 55).
19 Barbosa (2018, p. 21) formula bem esse aspecto trágico, ao dizer que a tragédia estimula sensibilidades, desenvolvendo no espectador uma capacidade de envolvimento mais profundo: a comoção provocada pela identificação (a compaixão aristotélica, ἔλεος) e pelo distanciamento (o medo aristotélico, φόβος), afetos concomitantes da catarse. Nesse sentido, a encenação sonora do pranto libera uma afetividade incontrolável, de modo que o espectador é convidado a ver e a testemunhar, com verossimilhança, a dor e o sofrimento dos quais ele não participa diretamente. O espectador-ouvinte contempla e, ao fazê-lo, descortina-se o contraste entre a sua realidade e a daquela dos personagens em ação. A dor apresentada é assim transposta para o nível da audiência.
20 Nos termos de Loraux (1994, p. 62) em Invenção de Atenas, “a cidade-estado clássica renuncia, sem hesitações, a essas duas formas (thrénos e goós), ligadas de maneira bastante evidente a uma concepção aristocrática do luto.” Na Atenas democrática, gritos, gemidos e choros não são compatíveis com uma assembleia exclusivamente formada por homens nem refletem os ideais de unidade cívica e superioridade militar da cidade. O thrénos, poema lírico de lamentação, representaria o mundo aristocrático, dando lugar ao enkómion/ épainon e ao epitáphios –discursos congruentes com os novos valores.
21 A imitação humana do canto dos pássaros aparece em diversos textos antigos: Demócrito fr. 154; Aristófanes, Aves, 209-222; Eurípides, Helena, 167-251; Ath. 9. 390a; Lucrécio 5. 1379-1381; ver Weiss (2017, pp. 253-255). No caso do lamento, sua associação ao canto dos pássaros nos remete para o campo próprio das práticas miméticas. Em particular, a identificação do canto do rouxinol com as origens do canto e da mousiké coloca em evidência um modelo natural para a habilidade mimética humana.
22 Weiss (2017) argumenta em favor de uma correspondência entre o canto do rouxinol, o aulo e a performance do lamento associados à lingua estrangeira e ao discurso de mulheres.
23 Em Rep. III 399d, encontramos uma condenação do aulo.
24 O aulo como πάμφωνος: Pind. Ol. 7.12; Pyth. 12.19; Isth. 5.27; Platão Rep. III 398c-399e. Sobre as emoções que o aulo provoca: Arist. Pol. 1341a22; 1342b3; Eur. Heracles 871; Ésq. Coéforas. O aulo como instrumento que substitui o discurso: Arist. Pol. 1341a25-26; Plut. Alc. 2.6. O aulo teria, assim, natureza não discursiva.
25 Com relação à primazia do lógos na música, ver Rep. III 400 d-e.
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