Resumo: A concepção de “modo de vida” tem sido muito utilizada nas Ciências Sociais, principalmente, para assinalar mudanças culturais, tal como pode ser observado desde Durkheim, Weber, Wirth, Rambaud, Lefebvre, Bourdieu, dentre outros. No entanto, o termo “modo de vida” assume uma pluralidade de significados, dificultando a compreensão das nuances interpretativas que o perpassam. As traduções para o português de estudos em língua inglesa e francesa, por vezes, apresentam termos idênticos para ideias originalmente distintas. Dada essas ambiguidades na definição do modo de vida, esse artigo se propõe a analisar os significados a ele atribuídos na literatura nacional e internacional. Como metodologia foram utilizados dados secundários oriundos de artigos e teses que utilizam o termo modo de vida e/ou traduzem a terminologia para a língua portuguesa, aplicando-se a análise em redes como ferramenta para avaliar o seu uso. Os resultados indicaram que termos distintos em sua língua original, como no francês genre de vie e style de vie, têm, rotineiramente, a mesma tradução para o português, modo de vida, reforçando a imprecisão do termo.
Palavras-chave:Modo de vidaModo de vida, Traduções Traduções, Way of life Way of life, Genre de vie Genre de vie.
Abstract: The concept modo de vida has been widely used in social sciences, particularly to denote cultural changes, as seen in Durkheim, Weber, Wirth, Rambaud, Lefevbre, and Bourdieu. Nevertheless, the term modo de vida bears multiple, nuanced, meanings, making difficult to understand its distinct interpretations. Translations of studies from English and French to Portuguese sometimes present the same term to denote different original notions. In view of these ambiguities of the concept modo de vida, this article aims to analyze the meanings ascribed to the term modo de vida in both national and international literature. The methodological approach was based on secondary data comprised by studies featuring the term modo de vida or his correlates, and used network analysis as a tool to analyze the use of synonymy and translations of many terms related to modo de vida. The results points to distinct concepts, such as the French terms of genre de vie and style de vie, being often translated into Portuguese as modo de vida, therefore reinforcing the vagueness of the Portuguese term modo de vida.
Keywords: Modo de vida, Translations, Way of life, Genre de vie.
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O conceito de modo de vida: entre traduções, definições e discussões
The concept modo de vida: between translations, definitions, and discussions

Recepção: 30 Junho 2016
Aprovação: 24 Agosto 2016
O conceito de modo de vida, apesar de amplamente discutido na literatura internacional, carece de uma maior precisão em termos da sua definição. Para Isabel Guerra (1993), ao analisar os modos de vida, devem-se levar em conta três dimensões, que geralmente são pouco utilizadas; o sistema e os atores sociais; a história e o cotidiano; e o objetivo e o subjetivo na percepção do real. Essas três dimensões deveriam ser articuladas de modo a combinar a força da estrutura com a possibilidade de ação dos indivíduos, o nível da vida cotidiana articulado com o econômico, o político, o cultural, bem como as redes de poder estabelecidas nas articulações entre as diferentes esferas do social. O estudo sobre os modos de vida encontra-se frente a um dilema: por um lado, de acordo com a autora, a análise da vida cotidiana assumiria a forma de uma mediação horizontal, especifica e irredutível, mas sofreria com as contradições sociais. Por outro lado, a análise dos modos de vida, submete-se à lógica da reprodução da força de trabalho expressa pelas condições de exploração e de classe.
As pesquisas mais recentes sobre os modos de vida dão enfoque a dois aspectos, conforme aponta Guerra (1993). Por um lado, à análise da relação entre as diferentes práticas cotidianas, trabalho, vida familiar, consumo, lazer e etc. e, por outro lado, às relações que o conjunto dessas práticas cotidianas estabelece com as relações sociais mais gerais. Assim, os estudos ligados aos aspectos da vida cotidiana deveriam preocupar-se com o grau de consciência dos atores sobre a condução dos seus destinos, individuais ou coletivos. Deveriam, ainda, buscar a compreensão do nível de racionalidade e irracionalidade presente nas práticas sociais, seguindo tendências imersas na história da sociedade em questão.
Tais sentidos imersos na história, não captáveis conscientemente pelos indivíduos, são destacados por Gomes (2015) em seus estudos sobre a sociabilidade do homem comum, que vive à margem da sociedade. A autora também contribui para os estudos dos modos de vida, ao apontar que a cultura popular, no Brasil, incorpora a modernidade, mas não a partir da tradição. Numa perspectiva semelhante à de Rambaud (1969), a autora discorre sobre as influências da força expansiva da cultura urbana difundida em escala global, a qual exerceria forte influência nos modos de vida em escalas locais. Brandão (2009) também se mostrou atento à relação que o global exerce sobre o local. Este autor dedicou muitos estudos à construção cultural das escalas espaço-temporais em comunidades rurais, defendendo que os padrões de tempo e espaço construídos em nível local permitiriam aos sujeitos sociais construírem e recriarem o cenário entre a natureza e a cultura, sendo este processo expresso pelos seus modos de vida.
Todavia, embora as definições de “modo de vida” venham sendo utilizadas com pertinência teórica e metodológica por autores de renome internacional e nacional, ainda é grande a imprecisão teórica em torno do mesmo, sendo comum, em muitos textos científicos o termo não merecer sequer definição acerca do significado que o autor lhe atribui. Assim, não constitui exagero afirmar que paira sob o mesmo a doxa. Vários termos distintos são traduzidos de estudos internacionais indiscriminadamente como modo de vida. Ao se analisar essa pluralidade de traduções, vislumbra-se uma verdadeira Babel. Ao pensar neste problema, este artigo propõe-se a analisar as relações entre os termos que se apresentam na literatura como sinônimos ou traduções do constructo modo de vida. Para isso, traz inicialmente perspectivas teóricas envolvendo estudos de modos de vida. Na parte subsequente, apresenta-se a metodologia referente as redes sociais e a terminologia para analisar o diálogo estabelecido entre os autores que utilizam o constructo “modo de vida”. Em seguida o artigo apresenta os resultados desta aplicação seguidos das considerações finais do estudo.
É possível perceber-se já nas origens da Sociologia a utilização do constructo modo de vida para analisar a passagem das sociedades pré-capitalistas para as sociedades industrializadas. Tal constructo esteve presente nos clássicos que estudavam a passagem da vida em “comunidade” para a vida em “sociedades” diversificadas econômica e culturalmente. Nesse sentido, vários autores da sociologia utilizaram a concepção de modo de vida para apontar as transformações pelas quais as sociedades rurais, sobretudo, estavam passando. Wirth (1938), Rambaud (1969), Lefevbre (1970) foram alguns dos autores que destacaram, no período de avanço da industrialização e da urbanização, as mudanças nos modos de vida nas sociedades rurais.
Placide Rambaud (1969), em seu livro Société rurale et urbanisation, mostra como o modo de vida rural tradicional vai absorvendo as influências advindas da sociedade urbana em ritmos diferenciados dentro de um mesmo grupamento. Para o autor, a urbanização do campo estaria a efetivar-se através de um processo de aculturação gradual e heterogêneo. Esse processo de aculturação, na percepção de Rambaud, não seria, portanto, grupal, mas sim individual. Cada indivíduo passa pela aculturação de forma diferenciada, montando o que o autor chama de canevas, que seria um tipo de bordado criado segundo o direcionamento dado pelo indivíduo, a partir dos seus interesses e objetivos de vida. Assim, cada indivíduo poderia montar o seu estilo pessoal de vida escolhendo o que incorporar à sua vida face à influência advinda da cultura urbana.
Henri Lefebvre (1970) também chama a atenção para a forma como o modo de vida camponês estaria sendo impactado pelo que ele chamou de “revolução urbana”. Para Lefebvre (1999, p. 17) “o tecido urbano prolífero, estende-se, corrói os resíduos de vida agrária”. A sociedade urbana, como uma totalidade processualmente construída, surgiria, assim, como um horizonte utópico de vida a ser alcançado. Lefebvre não interpreta o “tecido urbano” em sentido restrito, tomando o urbano como um domínio que vai além das cidades, espraiando-se sobre o campo. Para Lefebvre (1991), a cidade é anterior, historicamente, à industrialização, contudo a sua relação com o campo mudou de acordo com o modo de produção. Para o filósofo, no contexto capitalista contemporâneo, a cidade torna-se cada vez mais um produto a ser consumido. Assim, podemos diferenciar a morfologia material onde há a cidade e a morfologia social onde há a urbanidade. Antônio Cândido (1975) é outro autor que vislumbrava o fenômeno do processo de urbanização dos modos de vida, apontando as transformações dos meios de vidas dos caipiras paulistas face às influências advindas do processo de urbanização, em perspectiva semelhante à destacada por Wirth (1938).
Contudo, se o constructo “modo de vida” serviu de forma clara para apontar as transformações das sociedades tradicionais em meio ao avanço da cultura urbana ao longo do Século XX, no Século XXI o termo ainda pode ser observado em inúmeros estudos, mostrando sua força explicativa para evidenciar os processos de mudança pelos quais as sociedades humanas passam. McCarthy (2008), por exemplo, utiliza a concepção de modo de vida para apontar a forma como a paisagem do campo se modifica em concomitância às transformações dos modos de vida dos rurais e “neorurais” que provocam um “revival da vida no campo”. Todavia, o constructo “modo de vida” não ficou restrito apenas à sua utilização para evidenciar as transformações das sociedades tradicionais.
Segundo Gonçalves (2004), o constructo modo de vida desdobrou-se em dois aspectos: 1) relativo às condições de vida e 2) relativo ao estilo de vida. Enquanto as condições de vida corresponderiam às determinantes e condicionantes da vida em sociedade, o estilo de vida se daria nas singularidades presentes nas pessoas e em pequenos grupos, abarcando os hábitos, normas e valores expressos pelos indivíduos. Essa perspectiva é compartilhada por aqueles que atuam com temáticas relativas à saúde, tais como: Fernandes (1996), Vasconcelos et al. (2009); Fensterseifer e Silva (2008); Almeida, Gutierrez e Marques (2012); Hatzenberger e Carlotto (2013).
Gonçalves e Carvalho (2007) ampliam o leque de definições relativas ao conceito de estilo de vida, defendendo que tal conceito poderia ser usado como sinônimo de concepção de vida. O estilo de vida seria a expressão dos conhecimentos, valores e práticas sociais, sendo, por eles, expresso na fórmula KVP Model (sigla do inglês Knowledge Values Practices). Assim, o estilo de vida poderia ser escrito através da forma matemática, EV = f(KVP), onde EV é o estilo de vida e KVP seria o conjunto de variáveis que comporia a tríade do KVP Model (Knowledge Values Practices). A dimensão da cultura, que já se tornava bastante visível na concepção anterior, que define estilo de vida considerando os conhecimentos, valores e práticas expressas pelo indivíduo, pode ser observada de forma ainda mais evidente na definição de Castro (2003), para quem, o modo de vida seria expressão do universo cultural absorvido pelo indivíduo, enquanto o estilo de vida seria mais restrito, dependendo da classe social, do gênero e da geração. Velho (1995) é outro autor que, dentro do campo da Antropologia, define estilo de vida considerando o universo cultural do indivíduo.
Assim, nota-se, a partir do exposto, que parte dos autores utiliza modo de vida e estilo de vida de forma intercambiável, como visto em Chelotti (2010); Teixeira, e Lamas (2006); Oyola-García e Soto-Cabezas (2012). Para além desta “sinonimização” entre modo de vida e estilo de vida, há outras, como a apresentada por Guerra (1993), que propôs os conceitos de “forma de vida” e “gêneros de vida” como sinônimos de modo de vida. O termo “forma de vida” foi utilizado também como sinônimo de modo de vida por Ferreira (2003), que ressaltou, entretanto, a dimensão do tipo de consumo a ele associado. Essa profusão de termos não é exclusividade da literatura em língua portuguesa. Além dos estudos lusófonos, não há consenso também nas discussões apresentadas nos artigos francófonos e anglo-saxões, ainda que as variações no uso dos termos sejam menores. Na francofonia, os termos “genre de vie”[1] e “style de vie” não são dúbios na literatura como os similares em língua portuguesa. No entanto, chama a atenção que, nas traduções oficiais de estudos franceses notórios, como “Classe et styles de vie”, de Bourdieu e de Saint-Martin (1976), styles de vieé traduzido para o português como estilo de vida (Bourdieu, 1983), enquanto, no estudo de Souza (2011), o mesmo termo francês aparece com a versão em português como modo de vida. O termo styles de vie, na visão de Bourdieu e de Saint-Martin (1976), é definido como relativo às práticas e às propriedades que formam uma expressão sistemática das condições de existência relacionadas às diferenciadas posições dos agentes no tecido social.
Às diferentes posições nos espaços sociais correspondem styles de vie, sistemas de separações distintivas que são a retradução simbólica de diferenças objetivamente inscritas nas condições de existência. As práticas e as propriedades constituem uma expressão sistemática das condições de existência (aquilo mesmo que se denomina um style de vie) porque são o produto do mesmo operador prático, o habitus, sistema de disposições duráveis e trasladáveis que exprimem sob a forma de preferências sistemáticas as necessidades objetivas das quais ele é o produto (Bourdieu; de Saint Martin, 1976, p. 18)[2].
O style de vie é utilizado por Bourdieu como um demarcador simbólico das diferenças entre classes, visível nos habitus de classe que exprimem os gostos e preferências dos indivíduos, bem como as suas necessidades objetivas. Portanto, o conceito de estilo de vida teria uma especificidade marcante em relação ao conceito de modo de vida até aqui exposto, referente à questão da demarcação de diferenças entre indivíduos de camadas sociais distintas. Já o conceito genre de vie, na interpretação de Paul Vidal de la Blache (1911), apontaria para uma ação do homem sobre a natureza, imprimindo sobre a terra as suas características econômicas, sociais, ideológicas e psicológicas. Esta concepção se aproxima muito da concepção de meios de vida proposta por Cândido (1975) em seu estudo sobre as mudanças dos meios de vida entre os caipiras paulistas. Pode-se vislumbrar, entre os geógrafos que trabalharam com o conceito de genre de vie na França, uma linha de pensamento que introduziu a noção de “possibilismo” na Geografia humana, na qual o papel do homem é modelar, através da ação, o espaço e a vida, criando, assim, seu genre de vie.
Um “genre de vie” constituído implica uma ação metódica e contínua, portanto muito forte, sobre a natureza, ou, para falar nos termos da geografia, na fisionomia das regiões. Sem dúvida, a ação do homem se faz sentir em seu “meio ambiente”, desde o dia em que sua mão se armou com ferramentas; poder-se-ia dizer que, desde os primórdios da civilização, essa ação não tem sido negligenciável (Vidal de la Blache, 1911, p. 194)[3]
Outro autor notório na discussão de genre de vie é Maximilien Sorré (1948), que, 37 anos após o artigo de Vidal, procurou reeditar o termo. Sua obra que demonstra a “nécessité d'humaniser la géographie humaine” (Sorré, 1958, p. 61), para muitos, como Allix (1958), trouxe um novo diálogo entre a Geografia e a Sociologia. Para Sorré (1948), o genre de vie está intimamente ligado ao milieu. No entanto, o autor não crê no determinismo geográfico, alinhando-se à perspectiva vidaliana nesse ponto. Para Sorré (1948, 1958), o social e o geográfico são interdependentes, tal qual o genre de vie e o milieu. Não obstante, há ainda no francês o termo mode de vie, utilizado por autores como Foucault (1981), que foi traduzido para o português como modo de vida. O autor procura mostrar que o mode de vie pode ser partilhado por pessoas de diferentes idades, status quo e atividades sociais, envolvendo relações entre indivíduos, subsidiadas por uma cultura e uma ética.
Um modo de vida pode ser partilhado por indivíduos de idade, estatuto e atividade sociais diferentes. Pode dar lugar a relações intensas que não se pareçam com nenhuma daquelas que são institucionalizadas e me parece que um modo de vida pode dar lugar a uma cultura e a uma ética[4] (Foucault, 1981, tradução de W.Nascimento, p. 3).
Novamente, o diferencial entre estilo e modo de vida evidencia-se dentro da literatura acadêmica visto que o modo de vida se mostra mais vinculado a parâmetros culturais estabelecidos face ao meio social em que se vive, e o conceito de estilo de vida vincula-se à demarcação de diferenças e hierarquias subliminares entre indivíduos de camadas sociais diferentes. O termo mode de vie também foi utilizado na tradução da obra do alemão radicado nos Estados Unidos, Louis Wirth (1938), intitulada Urbanism as a way of life, em francês publicado sob o título de Le phénomène urbain comme mode de vie. No entanto, o mesmo estudo foi publicado na Alemanha em 1974, na língua materna de Wirth, sob o título de Urbanität als lebensform, última palavra cuja tradução literal para o francês seria forme de vie (Wirth, 1974)[5]. Wirth (1938), um dos principais autores da Escola de Chicago, em seu célebre estudo no qual desenvolveu a “teoria do urbanismo” (Wirth, 2005), incluiu em seu título way of life. No entanto, em praticamente todo seu estudo, o autor utilizou o termo mode of life. De fato, além do título, o autor somente utilizou o termo way of life mais uma vez em seu estudo e de forma intercambiável com mode of life, procurando associar o termo a ideias e práticas coletivas.
A característica distintiva do mode of living do homem na era moderna é sua concentração em agregações gigantescas, em torno das quais concentram-se núcleos menores, e das quais irradiam as ideias e práticas que chamamos de civilização (Wirth, 1938, p. 2)[6]
Nas traduções em língua portuguesa, o mode of life/way of life de Wirth assume as formas de: modo de vida (Veiga, 2004; Velho, 1994), estilo de vida (Barreto, 1987) e forma de vida (Maldonado, 2013; Narita, 2013), mostrando que ainda não há consenso sobre qual a melhor grafia portuguesa deste constructo. O termo lifestyle é bastante conhecido na literatura sociológica, médica e mercadológica, nas quais é amplamente utilizado. Nos estudos de marketing, o termo é empregado desde 1964, ocasião em que Lazer (1964) o definiu como atividades, interesses e opiniões. No campo mercadológico, o conceito evoluiu, sendo definido por Brunsø, Scholderer e Grunert (2004) como um sistema de intervenção das estruturas cognitivas que apontam para percepções de produtos em situações específicas para incrementar categorias cognitivas e, finalmente, valores pessoais (Brunsø; Scholderer; Grunert, 2004)[7]. Já nos estudos sobre saúde, o lifestyle começou a ser usado na década de 1930, pelo psicólogo austríaco Alfred Adler, que descreveu o “lifestyle” como um mecanismo de defesa: um padrão de comportamento adotado em uma idade precoce para disfarçar uma fraqueza física ou uma inferioridade (Hayward, 2004)[8].
Assim como nos estudos mercadológicos, o conceito de lifestyle evoluiu nos estudos médicos, chegando a ser tratado por Hayward (2004) como o coração da Medicina moderna. O termo tem sido associado a causas de doenças e já é tratado pelos estudiosos da saúde como fim e não mais como meio. Pronk, Kottke e Isham (2013) definem lifestyle, na Medicina, como os comportamentos individuais que promovem, ou não, a saúde e o bem estar. No campo da Medicina, predominam os autores que tratam o lifestyle como um remédio, que pode ser utilizado pelo indivíduo ou pelo poder público para promover hábitos saudáveis.
Conceitualizamos a medicina do estilo de vida (lifestyle) como tendo dois componentes principais: um aborda os comportamentos de pacientes individuais para melhorar sua saúde e bem estar e o outro trata das políticas sociais que impactam a saúde de populações e promovem esforços para melhorar a saúde de todos os indivíduos de uma população (Pronk; Kottke; Isham, 2013).[9]
No campo sociológico, o lifestyle é trabalhado há mais tempo do que na saúde e no marketing (Finotti, 2004). O termo lifestyle vem sendo empregado em estudos sociológicos desde seu início, segundo Sobel (1981) que, por sua vez, defendia que o lifestyle seria distinto do mode of living, ainda que reconhecível nele. A grande maioria dos sociólogos irá concordar que “lifestyle” pode ser definido como um distinto, portanto, reconhecível, “mode of living” (Sobel, 1981)[10].
Na década de 1990, o constructo lifestyle passou a ser mais fortemente utilizado em outras áreas, com uma forte ligação com a teoria da ecologia profunda, promovida, principalmente, por Arne Næss (1974; 1989). Næss, que é norueguês, editou em inglês a obra Ecology, community and lifestyle em cujo prefácio afirma ter baseado o livro em seu estudo norueguês intitulado Økologi, samfunnoglivsstil: utkast til enokosofi. Sua definição do termo lifestyle tem um cunho individualista, tratando do modo como vivemos e consumimos no nosso cotidiano.
Percebe-se, assim, que o termo lifestyle vem sendo utilizado em vários campos com significados diversos. Para Jensen (2007), lifestyle é frequentemente utilizado sem qualquer definição prévia. O autor argumenta que, pelo fato de o conceito ser essencialmente transdisciplinar, cada disciplina científica adotou um significado distinto para lifestyle. Apesar de reconhecer a complexidade do desafio, Jensen (2007) apresenta uma definição para lifestyle. Um lifestyle é um padrão de atos repetitivos, que são dinâmicos e em algum grau indiscerníveis para o indivíduo, e que envolvem o uso de artefatos. Esse lifestyle é baseado em crenças sobre o mundo, e sua continuidade no tempo que é guiada por propósitos de alcançar metas ou submetas desejadas. Em outras palavras, um lifestyle é um conjunto de hábitos dirigidos por uma mesma meta principal (Jensen, 2007)[11].
Na língua portuguesa, lifestyle apresenta as mais diversas traduções: estilo de vida (Gonçalves; Carvalho, 2007), modo de vida (Nascimento et al., 2013; Pignatti; Castro, 2008; Seabra, 2011) e meios de vida (Freitas et al., 2013). Essa diferenciação na tradução de lifestyle deixa ainda mais complexa a discussão sobre o termo. Há, ainda, na língua inglesa, o termo livelihood que também aparece em português como modo de vida (Peñafiel, 2006; Schneider; Tartaruga, 2004), meios de vida (Niederle; Wesz Junior, 2009), subsistência (Santos, 2001), formas de vivência (Navarro, 2001). Chambers e Conway (1992) definiram livelihood sobre o tripé: capacidades, atividades e ativos (incluindo recursos materiais e sociais), que podem ser entendidos como os meios de ganho de vida. “A livelihood in its simplest sense is a means of gaining a living” (Chambers; Conway, 1992, p. 5). Sob essa visão, os autores procuram compreender, em seu estudo, os rural livelihoods. Para tanto, enumeram determinantes dos livelihoods, tais como fatores sociais, econômicos e ecológicos ambientais.
Scoones (1998) também faz reflexões sobre o conceito livelihoods, referenciando o artigo de Chambers e Conway (1992) como tendo um papel influente sobre o tema. Nas suas ponderações, Scoones mostra a interdisciplinaridade do tema e o seu vasto uso em estudos sobre meio ambiente e microeconomia. Ele argumenta que o conceito é complexo e maleável e que isso auxilia nas múltiplas interpretações sobre o termo. O problema é que a análise dos livelihoods pode ser feita para servir a múltiplos propósitos e fins. Como um conceito maleável que abre essa rica diversidade de descrições empíricas, ele igualmente pode ser esmagado pelo instrumentalismo estreito dos marcos e formatos de planejamento, ou ser implantado por compromissos políticos vinculados à reforma neoliberal dos últimos anos (Scoones, 1998).[12]
Scoones (1998, p. 175) adota a conceituação elaborada por Chambers e Conway (1992) e apresenta a seguinte definição: “Um meio de vida compreende as capacidades, ativos (incluindo tanto os recursos materiais e sociais), bem como as atividades desenvolvidas como forma de subsistência”[13] Outro importante autor que se preocupa com o rural livelihood é Ellis (1999), defensor do tripé “ativos/processos/atividades”.[14] O autor especifica, a partir da definição de livelihood de Scoones (1998), as características relativas aos ativos (assets), as quais incluem, além do capital material e social, o capital humano (escolaridade, habilidades e saúde dos habitantes), o capital financeiro e os seus substitutos (créditos, poupanças etc.) e o capital natural (recursos naturais).
O presente estudo foi realizado a partir de pesquisas em periódicos indexados e livros publicados no período de 1938 a 2013. Foram selecionados 38 artigos que abordaram, ainda que parcialmente, o termo modo de vida ou seus correlatos. Esses artigos foram eleitos de forma a procurar diversificar ao máximo as traduções e as relações entre os termos ligados a modo de vida. Uma vez selecionados, através da metodologia das redes sociais, criou-se uma rede na qual foram apresentadas as relações entre os termos ligados a modo de vida.
As redes sociais, segundo Zampier (2007), surgiram na década de 1930, com os estudos do antropólogo social inglês Radcliffe-Brown, que buscava uma forma que diagramar a estrutura social. No entanto, esse pioneirismo foi contestado, como afirmou Mizruchi (2006), mostrando as correntes que acreditam que o primeiro estudo sobre redes foi de J. L. Moreno. Também foram apontados como propulsores dessa abordagem os antropólogos John Barnes, Elizabeth Bott e J. Clyde Mitchell e há, ainda, apontamentos que consideram esse tipo de análise um possível apêndice do estruturalismo de Lévi-Strauss.
Apesar da controversa origem da abordagem de redes, essa foi amplamente difundida e laureada na academia, inclusive sendo usada por autores de relevância no campo da sociologia econômica, como o ganhador do prêmio Nobel, Mark Granovetter (1973). Com base em seu estudo sobre a força dos vínculos fracos, pode-se esperar que, mesmo havendo divergências, o estado da arte sobre o tema do modo de vida poderia ser forte se houvesse ligações fracas entre aqueles que a estudam. Havendo redes densas, ou seja, amplamente integradas, essa literatura poderia ser considerada forte. Tomando a análise de rede como uma ferramenta metodológica, apesar de haver discussão sobre se há espaço para compreendê-la como categoria teórica (Rivoir, 1999), elaborou-se uma rede na qual os termos de diversos idiomas ligados a modo de vida compunham os nós. Os arcos do grafo apresentado na Figura 1, que realizaram as conexões na rede, são os artigos que usam os termos como equivalentes.
No campo terminológico, existem basicamente duas grandes escolas com visões distintas sobre a compreensão do termo: a Escola Clássica, de Viena; e a Canadense. A primeira defende a separação entre “termos técnicos” e signos linguísticos – para a Escola Clássica, os termos são palavras “comuns”, construídas de forma objetiva para a concepção de um termo, assim, possuiriam “monossignificação”. Já a Escola Canadense entende que o termo pode se comportar de forma polissêmica. Um termo, nessa visão, é visto como um signo linguístico, no qual são ativados simultaneamente vários significados conhecidos acerca do significante (Cabré, 2005; Bevilacqua, Finatto, Reuillard, 2009).
Neste estudo, adotamos a concepção de “termo” da Escola Canadense. Essa escolha metodologia é adequada, aqui, dado compreendermos o termo de maneira polissêmica, como demonstrado no grafo da Figura 1, onde termos distintos, em um mesmo idioma, são usados como equivalentes. Na tradução, também foi observado que um conceito não se equivale a um termo. A tradução consiste em transpor um texto da língua de origem para um texto equivalente na língua para a qual o texto é traduzido. Essa tarefa, porém, não se limita a utilização de “palavras” – as distinções semânticas e estruturais entre várias línguas não permitem que a tradução carregue todos os significados e nuances existentes no texto de origem. No exemplo estudado, a palavra em inglês livelihood não apresenta uma palavra única equivalente em português, contudo, o termo livelihood possui equivalência, ou seja, termos que compartilham o mesmo conceito, com outros termos lusófonos, na visão dos artigos estudados. O tradutor, dessa forma, tem a função de buscar uma construção linguística que mais se aproxime do sentido original. Podemos dizer que a tradução é uma tarefa baseada na confiança de que o tradutor produzirá o texto traduzido com o sentido o mais próximo possível do original. Assim sendo, os termos traduzidos podem carregar consigo uma carga polissêmica (Hurtado Albir, 2001; Gémar, 1998).
Os resultados da pesquisa apontaram a existência de uma rede densa ligando diretamente o termo modo de vida com os seus “sinônimos”, exceto com os termos: formas de vivência, subsistência e meios de vida, utilizados em português. Contudo, mesmo essas exceções fazem referência a modo de vida. De fato, apesar da profusão de termos, é possível visualizar a centralidade do termo modo de vida face aos outros termos. Pode-se observar, na Figura 1, que na língua francesa os termos “modo de vida”, “estilo de vida” e “gênero de vida” não são utilizados como sinônimo, apresentando especificidades conceituais que os delimitam dentro de campos semânticos específicos. Na língua inglesa, o termo livelihood também não apresenta relação direta com nenhum dos outros termos utilizados. Já em português, o termo livelihood aparece traduzido tanto como modo de vida quanto por meios de vida, apontando para uma imprecisão conceitual desse constructo.

Essas imprecisões aparecem no significado atribuído a modo de vida – há certa convergência em seu entendimento ora como cultura, ora como cotidiano, ora como adaptação dos meios de produção à natureza. Nota-se, assim, que não há precisão em sua aplicação. Da mesma forma, a tradução de termos distintos como genre de vie e style de vie como sinônimos de “modo de vida” em português torna impreciso o uso do conceito. O termo genre de vie remete a école française de géographie, que possui expoentes como Vidal de la Blache (1911) e Sorré (1948). Esse termo corresponde, na literatura francesa, à ideia de que o homem está intrinsecamente ligado a seu ambiente, ao milieu, e isso molda sua socialização. Já o termo style de vie está ligado à sociologia francesa, tendo como destaque Bourdieu, que o utiliza para expressar as diferenças dos anseios de indivíduos de diferentes classes. Já mode de vie deriva de uma visão foucautiana e é caracterizado por uma perspectiva culturalista relativa ao espírito de uma época, sendo, portanto, maior que as diferenças entre pessoas de classes e profissões diferentes.
Assim, as traduções dos termos “mode de vie”, “style de vie” e “genre de vie” para o português como sinônimos faz com que o seu conteúdo semântico se misture. Já o termo lifestyle nos estudos anglo-saxônicos tem sido empregue entre os pesquisadores do campo da saúde e da ecologia, enquanto way of life e mode of life, utilizados como equivalentes por Wirth (1938), caracterizam-se por uma perspectiva culturalista, próxima da ideia foucautiana de mode de vie. O termo livelihood é recorrente em estudos sociológicos, sendo utilizado reportando-se à ideia de meios utilizados para garantir a sobrevivência. Assim, da mesma forma que as especificidades dos termos apontados na literatura francesa, também na literatura anglo-saxônica os vários termos utilizados como sinônimos de “modo de vida” em português apresentam especificidades conceituais, fazendo com que o texto em língua portuguesa não corresponda à ideia concebida em sua língua original.
Ainda é muito comum observar-se, em pesquisas na área de Ciências Humanas, a utilização pouco criteriosa de categorias analíticas que não são definidas, como se o significado a elas atribuído fosse óbvio. Assim é com “modo de vida”, “estilo de vida” e “meios de vida”. Todavia, por detrás desses termos, escondem-se concepções teóricas de diferentes matizes, levando a uma imprecisão no uso dos mesmos. Dessa forma, este artigo chamou a atenção, de forma específica, para a necessidade de definir de forma clara a concepção teórica relativa ao termo “modo de vida”, enfatizando a necessidade de que o termo não seja utilizado como sinônimo de “estilo de vida”, nem de “meios de vida”. Ainda que assumamos que o termo é um signo linguístico dotado de polissemia, o uso de diversos termos para um mesmo conceito dificulta o desenvolvimento de seu estado da arte.
De igual forma, a tradução de termos distintos, como o genre de vie, mode de vie e o style de vie, por um mesmo termo em português pode gerar um viés, dado que os termos, em sua origem têm significados e abordagens distintos, não sendo, assim, equivalentes. A ausência de equivalência de termos nas traduções, apontada pelo estudo de redes, faz com que a literatura sobre o tema use de forma, se não errônea, no mínimo truncada o constructo modo de vida. Defende-se nesse artigo que o termo modo de vida seja empregado como o equivalente de mode de vie.
A tradução de termos de língua inglesa apresenta problemas semelhantes à tradução francês/português. Os termos lifestyle, livelihood, way of life e mode of life, possuem autores, como demonstrado no grafo elaborado pelo artigo, que os compreendem como equivalente ao termo modo de vida. Entretanto, os termos ingleses são dotados de concepções incompatíveis entre si, gerando dubiedades no uso do termo português modo de vida. Dada a equivalência do way of life e do mode of life ao termo francês mode de vie, esses possuem melhor correspondência ao termo modo de vida. Por fim, futuros estudos deverão procurar formas de contornar esses contratempos linguísticos e reforçar o debate para que se torne mais palatável o uso do termo modo de vida.
