Resumo: Este ensaio maneja o referencial teórico que fundamenta uma concepção do sujeito como agente reflexivo e plural. Nossa intenção é apresentar alguns autores e correntes que têm contribuído para a formulação e compreensão da pluralidade e reflexividade do sujeito. A partir de uma discussão bibliográfica, tomaremos aspectos das pesquisas de vários autores como evidência de que - quaisquer que sejam as linhas teóricas dos autores citados - vários estudiosos têm apontado para a reflexividade e pluralidade constitutivas do ator social. Concluímos que (a) das pluralidades múltiplas presentes na sociedade contemporânea, pode-se derivar a pluralidade dos processos de subjetivação atinentes aos sujeitos sociais; e que (b) diversos autores apontam para a centralidade desse sujeito reflexivo nos processos sociais nos quais ele se insere.
Palavras-chave:SujeitoSujeito,SubjetividadeSubjetividade,ReflexividadeReflexividade,PluralidadePluralidade,SocializaçãoSocialização.
Abstract: This essay deals with the theoretical framework that underlies a conception of the subject as a plural and reflexive agent. Our intention is to present some authors and strands that have contributed to the formulation and understanding of the plurality and reflexivity of the subject. Based on a critical review of literature, we discuss aspects presented in various researches as evidence that - whatever the theoretical strands of referred authors - several scholars have pointed to the reflexivity and plurality as constitutive of social actors. We finally argue that (a) the multiple pluralities present in contemporary society allow to imply the plurality of subjectivation processes concerning to social subjects; (b) several authors point out the centrality of this reflexive subject in the social processes in which he is inserted.
Keywords: Subject, Subjectivity, Reflexivity, Plurality, Socialization.
Artigos
A subjetividade como reflexividade e pluralidade: notas sobre a centralidade do sujeito nos processos sociais
Subjectivity as reflexivity and plurality: notes on the centrality of the subject in social processes
Recepção: 23 Outubro 2016
Aprovação: 27 Junho 2017
Qual é a relação entre o “homo sociologicus” e o “psychological man”? (Dahrendorf, 1969, p. 56)
Este ensaio teórico maneja textos de diversos autores, que nos permitem formular uma concepção do sujeito como agente reflexivo e plural. Nossa intenção é apresentar como tais autores e suas pesquisas têm contribuído para uma formulação e compreensão da pluralidade (em termos de constituição identitária) e reflexividade (em termos de procedimentos cognitivos) do sujeito, embora muitos deles não tenham chegado a uma formulação explícita (ou intencional) desse quadro. Objetivamos mostrar que há uma progressiva compreensão, na teoria social, de que o sujeito consiste num ator reflexivo dotado de uma pluralidade constitutiva de si. E que tais evidências apontam para uma centralidade do sujeito no cerne dos processos sociais nos quais se insere.
O esforço cognitivo de articular autores, inclusive com diferentes abordagens teóricas, busca extrair evidências (presentes nas elaborações teóricas e empíricas desses autores) para a formulação da noção de um sujeito reflexivo, pluralmente constituído. Neste diálogo, não nos preocuparemos em informar a tradição teórica dos autores mencionados, fundamentados na proposta de Berthelot (2005) de analisar como as posições das diversas correntes sociológicas são colocadas em prática na pesquisa:
[...] o que é que nos garante, quando apresentamos uma análise, que não dizemos uma coisa qualquer? Haverá, na diversidade de abordagens e metodologias, um certo número de grandes opções lógicas e teóricas? Se sim, como exprimir e clarificar o trabalho de análise e de pensamento que elas comandam? [...] [Devemos procurar] [...] responder a estas questões [...] não através da análise dos discursos, mas através da análise das práticas [...]. Mais precisamente: o modo como as correntes sociológicas tematizam e justificam as suas posições é uma coisa; o modo como as põem em prática, no tratamento dos objetos é outra. Tal diferença, proclamada ou exibida, para se demarcar, revela-se, na prova dos fatos, secundária ou puramente terminológica. (Berthelot, 2005, p.14-15).
Assim, embora estejamos cientes de que é recomendável, quase sempre, que cada declaração de um autor seja interpretada a partir da linha teórica à qual ele está filiado (ao menos em sua própria percepção), é possível tomar excertos de seus textos como evidência de que, às vezes, traindo a linha teórica à qual o autor se afilia (Berthelot, 2005), o que a sua pesquisa informa pode estar além das conclusões que o mesmo formula de maneira explícita. Portanto, outros pesquisadores podem ampliar as formulações originais de um autor para além do escopo que ele mesmo adotou (Billig, 1987; Geertz, 2002).
A “subjetividade” tem sido compreendida como atividade sobre si mesmo, assunção de si perante o mundo, agência pessoal, a capacidade de fazer ser para si aquilo que não é, autorreferência, autofinalidade, autointeresse e pessoalidade, ipseidade (cf. Touraine, 1996; Gonzáles Rey, 2005; Castoriadis, 2007). Como escreve Martuccelli (2007, p.25), “pela subjetivação o indivíduo se converte em ator para fabricar-se como sujeito.”. Os termos “subjetividade”, “self”, “personalidade” e “identidade” têm sido utilizados de modo intercambiável por vários autores clássicos (Mead, 1968; James, 1968) e contemporâneos (Ricoeur, 2002; Martuccelli, 2007; Giddens, 2009).
O termo “identidade” é dotado de uma carga teórica polivalente (Brubaker; Cooper, 2000, p. 39), uma vez que a concepção de “identidade” pode ser tomada tanto em sentido amplo - como afinidades (cognitivas ou emotivas), afiliações comunitárias, formas de pertencimento, experiências grupais e representativas, conexões, laços e vínculos, o que se “compartilha com” ou se “diferencia de” (Brubaker; Cooper, 2000; Hall, 2005) - quanto no sentido restrito de autocompreensão tácita (Brubaker; Cooper, 2000) e autoidentificação explícita (Erikson, 1972; Dubar, 2005; Burke; Stets, 2009). Desse modo, a construção identitária é ipseidade, uma emergência relacionada à interação com o outro, num jogo especular movimentado por identificações, processos de subjetivação sempre abertos, não havendo uma identidade fixa, embora exista uma estabilidade fundamental do sujeito consciente: o seu centro de monitoramento reflexivo denominado “consciência” (Searle, 1983; Fabri, 2010) ou self (Mead, 1968; James, 1968).
No sentido amplo, a noção de “identidade” considera os diacríticos da identidade ampla (etnicidade, cor, raça, nação, gênero, orientação sexual etc.). No sentido restrito, essa noção diz respeito às identificações subjetivas dos indivíduos, como se percebem, como se assumem, com quais grupos ou culturas se identificam. Neste último sentido, a “identidade” pode ser concebida como “subjetividade”, no sentido sociopsicológico de “construção do si” (Gonzáles Rey, 2005; Giddens, 2002; Ricoeur, 2002), “formação de si” (Strauss, 1999; Kauffman, 2004), assunção do “para-si” (Martuccelli, 2007), tomada de consciência do “si” face aos outros (Barth, 1967; Castoriadis, 2007). Ou, como acentua Giménez (1992), “A identidade [particular] é o ‘auto’, o ‘si-mesmo’ ou a subjetividade [pessoal], […] a autogestão […].” (Idem, p. 188). Certamente, existem identidades assumidas e imputadas (Barth, 1967; 2000; Burke; Stets, 2009).
A identidade é marcada por: (a) certa permanência através do tempo dos pressupostos genéticos fundamentais da identidade (etnicidade, cor, raça, gênero etc.), (b) variações acidentais (interferências socioculturais e relacionais) e (c) adaptações constantes ao entorno ecológico (cf. Giménez, 1992, p.192). A “subjetividade” é, muitas vezes, relacionada por autores contemporâneos à personalidade, conceito muito explorado pelos autores clássicos tais como Mead (1968) e James (1968). Contemporaneamente, no entanto, a noção de “personalidade” está mais estreitamente relacionada à dimensão biológica e ao “temperamento” das pessoas (Gonzáles Rey, 2002; Kaplan; Sadock; Sadock, 2007), ao passo que “identidade” e “subjetividade” - ou self (Mead, 1968; James, 1968; Taylor, 1997) - relacionam-se aos fundamentos socioculturais dos sujeitos (Dubar, 2005; Burke; Stets, 2009; Lima; Neto; Aragon, 2009).
Concebemos, neste texto, a “reflexividade” como “especularidade” (Dupuy, 1992), isto é, como “o ato mental pelo qual um espírito humano se coloca no lugar de um outro” (idem, p. 90) ou pelo qual o ator reprisa situações passadas ou antecipa situações futuras com vistas a eliminar as falhas em situações passadas e se precaver de possíveis obstáculos à sua atuação em situações futuras (Dewey, 1959; Barth, 1967; Bandura, 2008). Desse modo, a reflexividade, ou especularidade, é uma das capacidades relacionadas à aprendizagem (Argyris; Schön, 1978, 1996; Argyris, 2000 [1991]; Bandura, 2008).
Certamente, podemos aceitar com Dupuy (1992) que “Toda especularidade [é] finita [e] marca um certo grau de opacidade, um certo déficit de reflexividade.” (Idem, p. 90). A despeito disso, o homem como “animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu” (Geertz, 1978, p. 4) é dotado de uma reflexividade inscrita - como “dimensão oculta” (Hall, 1986), “sensorial” (Hayek, 2004) ou “semiótica” (Rogoff, 1995) - no seu próprio corpo, na linguagem (Bronckart, 1995; Bakhtin, 2003, 2010) e na gestualidade que existe como “linguagem silenciosa” (Hall, 1959) e que comunica e realiza “atos de significação” (Bruner, 1997).
Tal reflexividade incorporada, como dimensão oculta e linguagem silenciosa - na e pela qual o homem age, assenhoreando-se da realidade por meio da execução de atos cada vez mais aperfeiçoados, a partir de processos individuais e coletivos de tentativa-erro (Dewey, 1959; Argyris; Schön, 1978, 1996) - demarca a capacidade do sujeito de assumir-se enquanto ator com alguma “margem de manobra” (Elster, 2010; 2013).
Tal “espaço de possibilidades ainda a realizar” (Vygotsky, [1925] 2003)1, mesmo que limitado, torna-lhe possível contornar os obstáculos que a realidade opõe aos seus projetos e desejos (Bandura, 2008); assim como assumir-se como sujeito responsável (Bakhtin, 2010), face às decisões e posturas que deve tomar para si a fim de levar a cabo o projeto coletivo de vida social reflexiva (Giddens et al., 1997) e o projeto pessoal de “construção de si” (Giddens, 2002; Kaufmann, 2001, 2004).
A ipseidade (Ricoeur, 2002) é a marca da realização subjetiva do ator. Ao pôr em curso a sua identidade pessoal nos cenários múltiplos em que atua, o sujeito pluraliza os seus modos de ser (Lahire, 2002; Rose, 2011; Lopes, 2012), adquire novas e várias identificações (Burke; Stets, 2009) e realiza identidades diversas (Brubaker; Cooper, 2000; Deschamps; Moliner, 2009), atuando, assim, como representante dos seus próprios interesses2 (Fabri, 2010; Goffman, 2011) e como agente comprometido com as lealdades conflitantes (Van Velsen, 2010) que incorpora no decurso de sua vida. Assim, o ator reitera as investidas para apropriar-se criativamente (Rogoff, 1995) dos espaços e domínios nos quais percebe que é chamado a agir (Parsons; Bales; Shils, 1970) e a construir valores, normas e expectativas coletivas (Parsons; Shills; Olds, 1968; Kastrup, 1999).
A sociologia das socializações, contemporaneamente, sinaliza para o fato de que, em razão da emergência de novos modelos de socialização, os atores sociais convivem “simultânea e sucessivamente em contextos sociais diferenciados” (Lahire, 2002, p. 33) e que, por aderirem difusamente a diversos grupos a partir dos quais imergem em diferentes tipos de socialização, são dotados de propensões subjetivas, patrimônios individuais e identidades “variadas, diferentes e, às vezes, contraditórias” (idem, p. 36). Desse fato, segue, por um lado, a postulação de que “o ator [é] plural [e] [...] produto da experiência - amiúde precoce - de socialização em contextos sociais múltiplos e heterogêneos” (Lahire, 2002, p. 36).
Autores já clássicos, como Berger e Luckmann ([1966] 2005), derivam a constituição psíquica dos sujeitos dos processos sociais de socialização e contribuem para uma teoria da sociogênese do psiquismo, nos seguintes termos:
O organismo humano [...] está ainda desenvolvendo-se biologicamente quando já se acha em relação com seu ambiente. Em outras palavras, o processo de tornar-se homem efetua-se na correlação com o ambiente. Desde o nascimento, o desenvolvimento orgânico do homem, e na verdade uma grande parte do seu ser biológico enquanto tal, está submetido a uma contínua interferência socialmente determinada (Berger; Luckmann, 2005, p. 71).
A descrição supra aponta para a dimensão social da constituição subjetiva e informa o peso que a subjetividade recebe do ambiente sociocultural em que o sujeito se desenvolve (Piaget, 1973; Searle, 1998). Desde o nascimento, a criança interage numa cultura - compreendida tanto como ambiente de atuações intersubjetivas, quanto por entorno que sofre a influência de artefatos materiais e simbólicos - que age sobre a sua mente. O habitus - na trajetória histórica deste conceito que se inicia com Aristóteles, passando por Mauss e Elias até chegar em Bourdieu (Kaufmann, 2001) - demarca estruturas sociais incorporadas nos gestos e na mente (consciente e inconsciente) do sujeito. Desse modo, é evidente que, em primeiro lugar, “estruturas sociais incorporadas” não são obtidas somente numa esfera de atuação, num único espaço de socialização (cf. Lahire; 2002, 2004, 2006; Dubar, 2005).
Lahire (2002, p. 23) nos fala sobre “a multiplicidade de nossos sistemas de hábitos incorporados ligados aos diferentes domínios de existência e universos sociais que atravessamos”. Em segundo lugar, se “todo corpo (individual) mergulhado numa pluralidade de mundos sociais está sujeito a princípios de socialização heterogêneos e, às vezes, contraditórios que incorpora” (Lahire, 2002, p. 31), então, no processo em que “os atores saltam a cada instante de uma interação a outra, de um domínio de existência a outro” (idem, p.33) há transferência de habilidades e competências de um domínio para outros (cf. Argyris; Schön, 1978, 1996; Argyris, [1991] 2000; Bandura, 2008).
Inkeles e Smith (1981, p.135) elaboram a sua “teoria dos efeitos educacionais”, formulando que “a educação [...] [é] [...] um fator de modernização” da vida social. Eles têm o cuidado de informar que “esses processos de aprendizagem não são exclusivos da escola e ocorrem em outras organizações formais ou não formais, tais como a família e os companheiros de brincadeira” (Inkeles; Smith, 1981, p. 136).
Assim, temos um sujeito atuando como gestor dos seus interesses de aprendizado, selecionando ativamente aquilo que lhe interessa (Dewey, 1959; Bandura,2008), construindo - de acordo com suas capacidades - seus saberes e a si mesmo (Kaufman, 2004). Então, Inkeles e Smith (1981) afirmam:
[...] consideremos a aquisição de um sentido de eficiência, que é um dos elementos centrais do perfil de um homem moderno. Na aquisição desse sentimento, a generalização desempenha um papel importante. A generalização ocorre quando um indivíduo tem uma experiência tão satisfatória em um determinado relacionamento ou desempenho, que é levado a acreditar que pode atingir sucesso comparável em outros contextos. Tendo adquirido maestria em uma ou mais capacitações, passa a acreditar na sua capacidade geral de adquirir outras mais; tendo resolvido um problema, pode vir a ter confiança em sua habilidade de resolver outros mais. [....] Cada uma dessas capacidades [adquiridas] abre novas oportunidades para um comportamento de maior competência. [...] Por extensão e difusão, ou aquilo que chamamos de generalização, [o sujeito] também chegará a um maior sentido de eficiência pessoal (Inkeles; Smith, 1981, p. 137, grifo original).
Bandura (2008) denomina tal generalização de senso de “autoeficácia” e Rogoff (1995) a chama de “apropriação participativa”. Tal transferência de hábitos implica a “circulação de [...] esquemas cognitivos” (Maldonato, 2006, p. 11), entre as esferas de atuação, realizada pelo sujeito, e, promove a reflexividade (Argyris; Schön, 1978, 1996; Giddens, 2009). A capacidade de aprendizagem com a qual os sujeitos são dotados requer uma plasticidade adaptativa (Schön, 2000), uma aplicação criativa de “conhecimentos tácitos” (Polanyi, 2009) aos novos ambientes em que o sujeito se insere, bem como a transferências de “competências intelectuais” (Pinker, 1989), de “esquemas de interpretação e reflexão” (Dewey, 1959) e de “esquemas práticos de ação” (Garfinkel, [1967] 1984) de um domínio ao outro, de um a outro campo de realização das atividades e dos engajamentos psíquicos e sociais com os quais o ator se acha comprometido. Por isso, Rogoff (1995) compreende que a “apropriação participativa” é, ao mesmo tempo, um processo social e uma atividade individual e individualizante.
“Todo self é um self social” (Mead, [1925] 1991, p. 185). O que significa - em Mead (1968), em James (1968), em Dewey (1959), em Piaget (1973) e em Vygotsky (1987) - que a consciência ou o self é plural, já em sua constituição (cf. Smolka et al., 1995). Um dos mecanismos da diferenciação individual - e da decorrente pluralidade subjetiva dos sujeitos - é a socialização parcial (nunca total ou absoluta) que os sujeitos vivenciam nos diversos espaços da vida cotidiana. Assim é preciso considerar que:
[...] as explicações da sociogênese [do psiquismo] devem dar conta de exemplos de ‘relatividade social máxima’ [da sociedade em relação ao indivíduo], bem como de ‘independência aparentemente total’ do sujeito em relação ao mundo social. Essas possibilidades são abrangidas por um modelo bidirecional de transmissão da cultura, uma vez que os modelos unidirecionais supõem uma fixação quanto ao que está para ser transmitido e uma passividade do destinatário da transmissão (Smolka et al., 1995, p. 188).
Dubet (2010), por seu turno, formaliza que:
Contra as imagens demasiado claras que opõem a cultura todo poderosa à razão autônoma, convém antes sublinhar que existe na experiência social alguma coisa de inacabado e de opaco, porque não há adequação absoluta da subjetividade do ator à objetividade do sistema [social] (Dubet, 2010, p.96).
Com efeito, a metáfora das “linhas de fuga” proposta por Deleuze e Guatarri (1996) e Deleuze (2000) torna-se esclarecedora das relações entre a subjetividade e os sistemas socioculturais doméstico e global nos quais ela se constitui.
Bandura (2008) encaminha-nos para uma compreensão de que as atividades situadas em que os humanos se encontram - embora em grande parte das vezes sejam realizadas sob a influência biomecânica dos hábitos de pensamento ou de comportamento, isto é, nem sempre racionalizadas e refletidas - são, invariavelmente, realizadas por agentes capazes tanto de uma apropriação remissiva dos seus atos já realizados3, quanto de uma apropriação projetiva dos atos ainda a realizar, fazendo uso das experiências para se antecipar aos eventos.
Toda uma tradição da filosofia ocidental antiga e da ciência moderna tem incutido, na cultura universal dos povos, a noção de que a racionalidade é tanto uma técnica quanto uma arte, ambas cultiváveis e de que a autorreflexão é o primeiro passo para a aquisição de uma maior racionalidade pessoal; tal como a educação e ciência são os passos fundamentais para a racionalidade coletiva.
Em sua abordagem da questão, Bandura (2008) deixa-nos a par do fato de que a subjetividade dos agentes é tanto dotada de um senso de autoeficácia (uma crença no poder da ação pessoal para modificar as situações e contornar eventos que fugiram ao controle imediato), quanto da capacidade de mobilização de competências cognitivas e habilidades aprendidas pela experiência. Como nos informa: “entre os mecanismos da agência pessoal, nenhum é mais central ou penetrante do que as crenças pessoais em sua capacidade de exercer uma medida de controle sobre o próprio funcionamento e os eventos ambientais [...]” (Bandura, 2008, p. 78). Deste modo, “as crenças de eficácia são a base da agência humana” (ibid.).
Frankl (1989) manifesta, a seu modo, um ponto de vista semelhante sobre a reflexividade humana, a competência subjetiva que os homens têm de interpretar os desafios que seu ambiente lhes impõe e responder por meio de soluções refletidas e criativas, que consistem na superação do desafio inicial e na elevação contínua do seu padrão de existência (natural e social). Tal capacidade é por ele denominada de “autotranscendência” (Frankl, 1989, p. 29).
Tal autotranscendência - ou bootstrapping, como denomina Dupuy (1992, p. 89) - demarca a capacidade que os sujeitos têm de superar as limitações fundamentais que sobre eles “pesam”4. Pelo que, apoiando-se nas conquistas coletivas (cultura, técnica etc.), os atores são capazes de elaborar objetivos que - embora não descartando os “cuidados de si” ou os anseios relacionados à sua “pessoa” (Mauss, [1938] 2003a) - estão tanto para além de si mesmos (suplantado o horizonte de existência pessoal e encaminhando-se para as eras geracionais à sua frente), quanto para além de sua situação sociocultural específica (suplantando o horizonte de sua existência sociocultural localizada).
Como é sabido, os artefatos culturais, as técnicas, as ferramentas e os inventos são difundidos (ou imitados) transculturalmente (cf. Mauss, [1934] 2003b). Mesmo nos termos das teorias sociais mais holísticas, uma perspectiva como a de que “os agentes deixam-se puxar por um ponto de referência em direção ao futuro que eles mesmos projetaram para fora de si” (Dupuy, 1992, p. 89) não pode ser negada. Do mesmo modo, mesmo as teorias que defendem um sujeito incapaz e prostrado ante às estruturas sociais portam-se como afirmando que “a teoria põe em cena um certo desconhecimento dos agentes. Façamo-los aceder ao conhecimento da teoria, dotemo-los de conhecimento do seu próprio desconhecimento” (ibid.).
Como apontam Garfinkel ([1967] 1984), Giddens et al. (1997), Bandura (2008) e Argyris e Schön (1978, 1996), o fato de termos diversas ciências e especialidades científicas concebidas como autoridades do conhecimento objetivo no mundo social moderno revela o quanto acreditamos que o conhecimento objetivo acarreta maior racionalidade, reflexividade um direcionamento da intencionalidade individual e coletiva Há, portanto, um suposto de racionalidade societal na existência das ciências e das disciplinas científicas.
Desde o nascimento da modernidade e, com esta, da ciência moderna, a coletividade ocidental aposta que a ciência é o meio fundamental para sanar a nossa ignorância e que, por ela, é possível contornar a desinformação que nos ameaça enquanto espécie. Coletivamente, acreditamos que a informação e o conhecimento são os meios pelos quais nos assenhoreamos tanto dos fenômenos naturais quanto dos sociais.
A ciência - desbravadora, que é, de novos e cada vez mais especializados espaços onde o conhecimento objetivo é possível - consiste num dos inventos coletivos fundamentais, por meio dos quais desenvolvemos a nossa capacidade de aprendizagem e adestramos as nossas capacidades reflexivas, dominando (de maneira progressiva) processos complexos que exigem de nós amplos conhecimentos das “leis” naturais e de fenômenos sociais, ampliando os espaços de domínio de nossa racionalidade cientificamente informada.
Nem todos os homens são, por certo, cientistas, mas todos os homens são seres pensantes, reflexivos (Dewey, 1959; Castoriadis, 2007; Bandura, 2008), capazes de “testar” suas ações por meio da experiência. O “teste” de hipóteses para ação e das possibilidades de ação é “o fator central de todo o ato de pensar reflexivo [...]” (Dewey, 1959, p. 20). De igual modo, o ato de justificarmos as nossas ações com base nas crenças que temos (Garfinkel, [1967] 1984) é revelador do fato de que todo homem é um intelectual (Dubet, 2010) e de que o “trabalho reflexivo” é uma atitude constante e fundamental, pela qual as pessoas justificam seus atos, para si mesmas e para os outros (Mead, 1968; James, 1968).
Dahrendorf (1969, p. 44), em seu ensaio teórico sobre o Homo sociologicus, observa que, embora se possa afirmar que as “formas de comportamento são impostas [pela sociedade] ao ator, o mesmo precisa aprendê-las para poder desempenhá-las”. Amparado na metáfora do pensamento filosófico clássico e de Shakespeare sobre o mundo da vida como um “teatro”, Dahrendorf (1969, p. 44) propõe que “o ator pode aprender e desempenhar uma multiplicidade de papéis”; situação que provocaria no sujeito uma capacidade de transferência de desempenho de uma esfera de atuação a outra, bem como uma entonação expressiva particular ou estilo pessoal - aos moldes de Bakhtin (2003) - nos papéis por ele desempenhados. É deste modo, também, que Goffman (2011) nos apresenta o ator representando o seu “eu” nos cenários sociais. Billig (1987) observa:
A metáfora teatral está compreendida em um conjunto de termos teóricos que são normalmente usados pelos cientistas sociais e que implicam que a vida social se parece como uma representação teatral. Entre esses termos o mais importante é o de papel [role]. [...] A vida cotidiana é considerada como a encenação de um drama em que os atores desempenham habilmente seus papéis. Os atores precisam aprender a se apresentar para que o público perceba os gestos necessários. (Billig, 1987, p. 59, grifo acrescido).
Em síntese, a metáfora do teatro, em Dahrendorf (1969), em Billig (1987) e em Goffman (2011), aponta para a capacidade que o ator tem de encenar, representar papéis sociais, de dar uma entonação expressiva particular (Bakhtin, 2003)5 às regras impessoais que recebe da coletividade - como a linguagem (Bakhtin), a ordem (regras tácitas) da interação (Goffman) ou o sistema de posições sociais (Dahrendorf) -, bem como de “tomar uma posição” (Dahrendorf, 1969, p. 48) em relação a elas. Aponta-se, assim, para a performatividade do ator social.
Dahrendorf (1969) aponta que o indivíduo assume os comportamentos sociais esperados, o conjunto de expectativas sociais, e a eles dá o seu tom expressivo particular tornando-os “de uma certa forma sua propriedade privada” (Dahrendorf, 1969, p. 56). Dessa maneira, Dahrendorf (1969, p. 56) fala do “confronto entre o agente individual e [as] formas predeterminadas de ação”. Assim, se neste quadro, a primeira questão fundamental para a sociologia está relacionada a essas formas prescritas de ação ou papéis, “a questão [fundamental] seguinte [...], como um determinado indivíduo se comporta realmente ante tais expectativas, assume um significado específico a partir de tais expectativas” (Dahrendorf, 1969, p. 56). A teoria da atividade (Bronckart, 1995; Bruner, 1997; Bakhtin, 2010) supõe que, entre a atividade prescrita e a atividade real (isto é, realizada), situa-se um sujeito que toma as prescrições e as utiliza conforme seu estilo pessoal, isto é, dando expressividade que não é somente dele, mas que é ele.
O distanciamento das normas - ou dissonância entre a tarefa prescrita e a execução real da tarefa, que é a atividade elaborada do agente, é, para Dahrendorf (1969, p. 48), uma questão tão importante quanto aquela da permanência de normas. Razão pela qual o sociólogo alemão assume o posicionamento weberiano - que é neokantista - de que tanto o Homo sociologicus quanto o Homo oeconomicus e o Psychological man não são imagens exatas da realidade, mas uma construção científica (Dahrendorf, 1969, p. 42). Isto é, o homem real, em suas dimensões empíricas, está situado entre as formulações teóricas destes três tipos de “homem” que essas três disciplinas clássicas das ciências sociais postulam.
Nesse sentido, Dubet (2010, p. 107) formula que “uma sociologia da experiência incita a que se considere cada indivíduo como um ‘intelectual’, como um ator capaz de dominar conscientemente, pelo menos em certa medida, sua relação com o mundo”. Quanto ao “peso” do social sobre a subjetividade, Dubet (2010, p. 106) acrescenta que “basta pouco para que a calma aparente revele tensões que impedem que se reduzam as condutas a rotinas ou a aplicações de papéis”.
As situações de multiposicionalidade dos sujeitos nos cenários sociais - abordada tanto por Dahrendorf (1969) quanto por Grimson (2011) - terminam por possibilitar que os atores realizem a transferência de lógicas de ação de um campo ao outro e que permutem (Strauss, 1993) de uma lógica de ação a outras nos “campos”, “cenários” ou “esferas de atuação” em que estão imersos (Cf. Billig, 1987; Lahire, 2002). Desse modo, observa Dubet (2010, p. 107): “o ator é obrigado a articular lógicas de ação diferentes, e é a dinâmica gerada por esta atividade que constitui a subjetividade do ator e sua reflexividade”.
Seja numa sociedade antiga como a sociedade Azande estudada por Evans-Pritchard ([1937] 2005) ou numa sociedade intermediária na Alta Birmânia (Leach, 1995), seja em sociedades modernas e contemporâneas (Van Velsen, 2010), os indivíduos são maximizadores dos seus interesses (Hayek, [1952] 2004; Simon, 1983; Downs, 1999).
Maximizar interesses, contudo, não significa alcançar os objetivos tais como planejados nem que os interesses sejam sempre absolutamente racionais. Os elementos pré-intencional, intencional, bem como as consequências não intencionais que compõem a agência são reveladores do fato de que, ao tentar maximizar os seus interesses, não poucas vezes, os indivíduos terminam por minimizá-los. Nada impede, contudo, que a intencionalidade ativa, ou “papel atuante do sujeito” (Smolka et al., 1995, p. 189), faça uso de remissões e antecipações - num processo de tentativa-erro - para alcançar melhores resultados a cada ação liberada no espaço social. Selecionamos os nossos comportamentos em razão das “consequências”, promissoras ou negativas, que a ativação dos mesmos recebe da realidade que recai sobre nós como “resposta” ou “retorno”, seja das pessoas, seja das instâncias e processos coletivos com os quais o sujeito se relaciona. (cf. Elster, 2009; 2010). Mesmo “acontecimentos” que não foram resultado da ação original do sujeito que os experimenta ou os sofre são apropriados (filosoficamente, inclusive) pelo mesmo, que os toma como “experiência” adquirida e como “filosofia de vida” (cf. Dewey, 1959; Dubet, 2010).
Análises antropológicas como as de Barth (1967; 2000) e Van Velsen (2010) subscrevem um sujeito que faz contínuas escolhas sobre atitudes e comportamentos que porão em causa no mundo social. Por trás de uma ação, Van Velsen (2010, p. 441) enxerga “um indivíduo [que] pode fazer uma escolha [...] de acordo com os seus objetivos em determinada situação”. Segundo Van Velsen (2010, p. 442) “em qualquer sociedade, o indivíduo terá, por vezes, que optar entre várias normas contraditórias”. Se, “as normas [...] dificilmente serão compatíveis entre si em todos os sentidos” (Van Velsen, 2010, p. 442), os nossos interesses e metas também sofrem “curto-circuito” durante a realização de um entre os vários. Isto é, interesses e metas colidem, expressam “lealdades conflitantes” (Van Velsen, 2010, p. 454) e, cada um deles, demanda sua urgência quando estamos realizando um ou outro.
Assim:
[...] em todas as sociedades existem incongruências e contradições entre os vários conjuntos de normas nos diferentes campos de ação. Um problema que os membros de qualquer sociedade devem resolver é o de viver com tais incongruências por meio da manipulação de normas [...]. (Van Velsen, 2010, p. 442).
Um dos efeitos colaterais da complexidade social é a pluralidade de demandas e conflito inerente entre elas (Giddens et al., 1997; Certeau, 2011). Embora sempre possuam uma “margem de possibilidades” para efetuar suas estratégias de realização dos próprios interesses - pondo em ação táticas de maximizar a conquista dos seus interesses pessoais na relação de força com os interesses coletivos (cf. Elster, 1999; 2009; 2010; Van Velsen, 2010) -, os agentes experimentam o conflito não somente entre suas metas e as metas coletivas, mas também entre suas metas particulares, elegendo as que são mais urgentes e as que podem ser adiadas (Elster, 2010).
Seja para os psicólogos educacionais Dweck e Elliot (2005), seja para um sociólogo da interação como Goffman (2011), a “estratégia” pessoal de ação tem a ver com a gestão de si (Bandura, 2008), a autorregulação nas interações (Azzi; Polydoro, 2008), bem como com o monitoramento reflexivo do “eu” no cenário social (Giddens, 2009). As “táticas” de ação originam as diferentes maneiras de agir num tecido social (cf. Bandura, 2008; Elster, 2009) e abrem um leque de possibilidades de escolhas, enriquecendo a capacidade inventiva dos atores que elaboram “desvios” às opções restritivas, resistências às agências heterônomas de controle e de tomada de decisão.
Dessa maneira,
[...] a cena aparece no contexto da vida cotidiana. [...] [com] um certo número de pessoas com personalidades bem diferentes, reagindo a um conjunto de regras [...] [grupais] [...] de maneiras diferentes, seja conformando-se com essas regras, seja rebelando-se contra elas. (Richards, 1939, p.160 apudVan Velsen, 2010, p. 445).
Então, “normas e regras gerais de conduta são traduzidas em prática e, em última análise, manipuladas por indivíduos em situações específicas para servirem a fins específicos, o que dá margem a variações [...]” (Van Velsen, 2010, p. 449). Se há pluralidade de interesses, valores e grupos existentes e concorrentes no cenário social, e se as variações entre eles “ampliaram a escolha, para os indivíduos [...] entre as normas de comportamento” (Van Velsen, 2010, p. 457) numa mesma sociedade, devemos entender por “escolha” a “seleção por parte dos indivíduos de normas alternativas de comportamento dentro de uma estrutura social persistente” (Van Velsen, 2010, p. 457). O autogerenciamento e a autodeterminação são componentes inegáveis da reflexividade dos agentes no tecido social contemporâneo.
A sociedade reflexiva implica, invariavelmente, uma “autoconfrontação” (Giddens et al., 1997, p. 16), seja da sociedade consigo mesma (influenciada pelos grupos de interesses políticos e por grupos de especialistas dotados de conhecimentos divergentes e diferenciados sobre diversas esferas e conteúdos do social), seja dos grupos entre si (pelas trocas constantes e desafios reflexivos que as comunidades de interesses e conhecimentos rivais ou heterogêneos fixam umas às outras). Do mesmo modo, os próprios sujeitos em interação, também se veem desafiados a “dar razões” (para si mesmos e para os outros) dos seus atos, assim como são levados a refletir e a empenharem a si mesmos nos afazeres cotidianos que o sistema simbólico-valorativo do tecido cultural da modernidade reflexiva impõe a todos - sujeitos, grupos, instituições etc. -, sem exceção.
Compreendemos que as evidências oferecidas pelos teóricos citados (supra), possibilitam-nos formular que uma teoria sociológica da subjetividade explicita alguns pontos essenciais. Tais elementos fundamentais são: (a) os processos de formação da subjetividade são iniciados desde o nascimento, (b) ocorrem por meio de uma interação entre o indivíduo e seu meio ambiente sócio-histórico-cultural e num (c) alinhamento intersubjetivo de comportamentos sociais (papéis sociais dotados de expectativas e restrições) e práticas discursivas. Tais trocas intersubjetivas (d) ocorrem pela mediação de símbolos, por meio dos quais - realizando atos de significação - os homens atribuem sentido ao mundo e à sua existência.
Em razão de tais processos, a subjetividade do sujeito é plural e o sujeito é um ator reflexivo e “criativo”, um meio da inovação social, “um princípio de imprevisibilidade” (Mounier, 2010, p. 08) do mundo social. Assim, “a pessoa é, antes de mais nada, o não, a recusa de aderir, a possibilidade de se opor, de duvidar, de resistir” (idem, p. 18) e, ainda, “um centro de reorientação do universo [social] objetivo” (Mounier, 2010, p. 20).
Diversas evidências apontam para uma compreensão da centralidade do sujeito nos processos sociais. Esse sujeito atua como um agente autônomo dentro de um mundo socioculturalmente organizado, mas em transformação contínua (embora conservando as regularidades sociais que a sociologia estuda). Sem dúvidas, tal autonomia e a individuação que ela implica são, per se, socioculturalmente constituídas.
A ênfase na autonomia, individuação e reflexividade do sujeito supõe “algo” de permanente num sujeito que é plural e cuja identidade nunca é fixa. O que há de permanente na subjetividade do sujeito é o seu centro de monitoramento das ações que é o self. O self é o centro reflexivo do sujeito, e a reflexividade que ele implica demarca a centralidade do sujeito como “gestor” de si e de suas ações e interações - com pessoas e coisas - nos cenários sociais.
E-mail: jairpopper@hotmail.comE-mail: rfazzi@pucminas.br